Sábado, 7 de Maio de 2011

Lappin e Lapinova 1 - Virginia Woolf

 

Virginia Woolf  Lappin e Lapinova

 

 

(conclusão)

 

Foram para a mesa. Rosalind estava meio escondida atrás dos crisântemos, cujas grandes pétalas vermelhas e doiradas se abriam em bola. Tudo era doirado. Uma ementa marginada a ouro referia os pratos, com os nomes escritos com iniciais doira­das, que iam ser servidos. Rosalind mergulhou a colher num re­cipiente cheio de um líquido doirado e claro. O nevoeiro alva­cento lá de fora transformado, graças à iluminação, numa fosforoscência doirada que esbatia os contornos das travessas e da­va aos ananases uma pele de ouro áspero. Só ela no seu vestido de noivado branco, com os olhos salientes abertos e observando, parecia ali, no meio de tanto ouro, um pingente de gelo insolú­vel.

 

À medida que o jantar avançava, contudo, a sala ia ficando cada vez mais quente. Gotas de suor salpicavam as testas dos homens. Rosalind sentia que o seu gelo estava a liquefazer-se. Sentia que estava a ser derretida; dispersa; dissolvida no nada; em breve ia desmaiar. Depois, através do nevoeiro do seu cére­bro e da zoada que lhe afligia os ouvidos, ouviu uma voz de mulher exclamar: «Mas eles multiplicam-se tanto!»

 

Os Thorburn — sim; multiplicavam-se tanto, ecoou ela, olhando à volta da mesa os rostos avermelhados que lhe pare­ciam duplicar-se na atmosfera doirada que os envolvia e na tontura que dela se apoderara. «Multiplicam-se tanto.» Então, John bradou:

 

«São uns diabos pequenos!... Só a tiro! Só pisando-os com botas cardadas! É a única maneira de lidar com eles... os coelhos!»

 

Com esta palavra, a palavra mágica, Rosalind sentiu-se revi­ver. Espreitando por entre os crisântemos, viu o nariz de Ernest a franzir-se. O rosto enrugou-se-lhe e ele franziu-o várias vezes seguidas. E então uma catástrofe misteriosa transformou os Thorburn. A mesa doirada tornou-se uma charneca de giesta em flor; o ruído das vozes, no assobiar feliz de um melro que descia do céu. Era um céu azul — as nuvens passavam lenta­mente. E ei-los, todos os Thorburn, transformados. Rosalind olhou para o sogro, um homenzinho pequeno de bigode caído. O seu passatempo era coleccionar coisas várias — selos, caixas de esmalte, pequenos objectos de enfeitar mesas do século XVIII, que escondia nas gavetas do escritório da vigilância da mulher. Agora ele parecia-lhe um caçador furtivo, escapando-se com a sua bolsa recheada de faisões e perdizes que iria cozinhar na panela da sua casa escondida nos campos e cheia de fumo. Era isso o que o sogro realmente era — um caçador furtivo. E Célia, a filha por casar, que estava sempre a meter o nariz nos segredos das outras pessoas, nas pequenas coisas que os outros gostariam de guardar para si próprios — essa era um furão branco de olhos vermelhos e com o nariz todo sujo de terra por causa das horríveis pesquisas esconderijos em que andava sem­pre. Andar de um lado para o outro pendurada dos ombros dos homens dentro de uma rede e viver numa toca — era uma vida desgraçada, essa vida de Célia; a culpa não era dela, porém. E era assim que Rosalind agora a via. Depois, olhou para a sogra — a quem tinham dado o cognome de Squire. Corada, altanei­ra, cheia de si, era assim que ela se mostrava, agradecendo à direita e à esquerda, mas agora Rosalind — ou melhor, Lapinova — via-a de modo diferente: via-a contra o fundo da casa de família em decadência, com o gesso a desprender-se das pare­des, e ouvia-a, com a voz cortada por um soluço, a agradecer aos filhos (que a detestavam) um mundo que tinha já deixado de existir. Fez-se um silêncio súbito. Levantaram-se todos de copo erguido na mão; a seguir beberam; tudo acabara.

 

«Oh, rei Lappin!», gritou Rosalind, enquanto voltavam os dois através do nevoeiro de Londres, «se o teu nariz não tivesse franzido naquele momento preciso, eu tinha sido apanhada na armadilha!»

 

«Mas estás salva», disse o Rei Lappin, apertando-lhe a pata.

 

«E bem salva!», respondeu ela.

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00

editado por Luis Moreira às 19:31
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Sexta-feira, 6 de Maio de 2011

Lappin e Lapinova - Virginia Woolf

 

Virginia Woolf  Lappin e Lapinova

 

Tinham casado. Rebentara no ar a marcha nupcial. Os pombos esvoaçavam. Alguns rapazes com o uniforme de Eton atiraram-lhes arroz; um fox-terrier corria de um lado para o outro: e Ernest Thorburn conduziu a sua noiva até ao carro através da pequena multidão curiosa de pessoas completamente desconhecidas que se junta sempre nas ruas de Londres para desfrutar da felicidade ou da desgraça dos outros. Sem dúvida, tratava-se de um noivo elegante, e ela tinha um ar intimidado. O arroz foi atirado uma vez mais e o carro partiu.

 

Fora na terça-feira. Era agora sábado. Rosalind precisava ainda de se habituar ao facto de ser agora Mrs. Ernest Thor­burn. Talvez nunca lhe fosse possível, porém, habituar-se ao facto de ser Mrs. Ernest Qualquer Coisa, pensou ela, enquanto se sentava junto da janela larga do hotel, contemplando o lago e as montanhas, e esperava que o marido descesse para o pequeno-almoço. Era difícil uma pessoa habituar-se ao nome de Ernest. Não era de maneira nenhuma o nome que ela teria es­colhido. Teria preferido Timothy, Antony, ou Peter. O nome dele evocava coisas como o Albert Memorial, armários de mog­no, gravuras metálicas do Príncipe Consorte em família — ou, em suma, a sala de jantar da sogra em Porchester Terrace.

 

Mas ali estava ele. Graças a Deus não tinha cara de Ernest — nada mesmo. Mas teria ar de quê? Relanceou-o obliquamente por várias vezes. Bom, enquanto estava a comer aquela torra­da parecia um coelho. Não que qualquer outra pessoa fosse ca­paz de descobrir a mínima semelhança com um animal tão pe­queno e tímido naquele jovem aprumado e com bons músculos, nariz direito, olhos azuis, boca de traço firme. Mas era ainda mais engraçado por causa disso. O nariz dele franziu-se leve­mente ao trincar a torrada. Era assim que o coelho de estima­ção dela também costumava fazer noutro tempo. Ficou a olhar aquele nariz que se franzia; e depois teve de explicar, quando ele a surpreendeu a observá-lo, porque é que estava a rir.

 

«É que tu és como um coelho, Ernest», disse ela. «Como um coelho bravo», acrescentou, olhando-o de novo. «Um coelho de caça; um Rei Coelho; um coelho que faz a lei dos outros coelhos.»

 

Ernest não tinha qualquer objecção a ser um coelho de tal espécie, e como a divertia vê-lo franzir o nariz — embora ele nunca tivesse dado por que fazia semelhante coisa —, franziu-o de propósito. Ela riu uma e outra vez e ele ria também, de tal modo que as duas senhoras solteironas e o pescador e o criado suíço com o seu lustroso casaco preto, todos eles adivinharam certo: ele e ela eram muito felizes. Mas quanto tempo dura uma felicidade assim? — perguntaram-se as pessoas para consi­go: e cada uma delas respondeu de acordo com o que as suas experiências lhe lembravam.

 

À hora do almoço, sentados junto de uma moita de urze perto do lago: «Alface, coelho?» perguntou Rosalind, pegando numa folha de alface que acompanhava os ovos cozidos. «Vem cá, comer à minha mão», acrescentou ela, e ele mordiscou e provou a alface, franzindo o nariz.

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00

editado por Luis Moreira às 20:17
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Quinta-feira, 5 de Maio de 2011

A Marca na Parede 1 - Virginia Woolf

 

Virginia Woolf  A Marca na Parede

 

 

 

(conclusão)

 

Olhada de certo ângulo, a marca na parede parece tornar-se uma saliência. Também não é perfeitamente circular. Não pos­so ter a certeza, mas parece projectar uma sombra, sugerindo que se eu percorresse a parede com o dedo, este subiria e desce­ria, num dado ponto, um pequeno túmulo, como essas eleva­ções dos South Downs que não sabemos se são tumbas ou aci­dentes do terreno. A minha preferência vai para os túmulos, são eles a minha alternativa, porque gosto da melancolia como a maioria dos ingleses, e acho natural evocar no fim de um passeio os ossos enterrados por baixo da vegetação rasteira... Deve existir algum livro a esse respeito. Algum arqueólogo deve já ter desenterrado os ossos e ter-lhes-á também posto nome...                                                                                                                                                                                         

 

Que género de homem serão esses arqueólogos, pergunto-me. Coronéis aposentados, na sua maioria, tenho a certeza, conduzindo lavradores idosos, examinando punhados de terra e algumas pedras e trocando correspondência com os padres da vizinhan­ça, cujas cartas de resposta, abertas ao pequeno-almoço, fazem os coronéis reformados sentir-se importantes, além de que as pesquisas têm ainda a vantagem de exigirem deslocações pelo condado até à cidade local, necessidade tão agradável para eles como para as suas esposas envelhecidas, que gostam de fazer doce de ameixa ou tencionam limpar o escritório e que por isso alimentam a incerteza acerca da alternativa entre campas e aci­dentes de terreno que faz sair os seus maridos, enquanto estes se sentem cheios de um prazer filosófico à medida que acumu­lam provas nos dois sentidos do debate. É verdade que o coro­nel acaba por se inclinar para a hipótese dos acidentes de terre­no; e ao deparar com alguma oposição, edita um folheto que será lido numa sessão da assembleia local, altura em que uma apoplexia o deita por terra, e os seus últimos pensamentos cons­cientes não são para a mulher ou para os filhos, mas para o campo que estava a ser discutido e para a ponta de flecha que lá se encontrou e que aparece em seguida no museu da cidade, juntamente com o sapato de uma assassina chinesa, um punha­do de pregos isabelinos, uma profusão de cachimbos de porcela­na Tudor, um vaso de cerâmica romana e o copo por onde Nel­son bebeu — tudo isto provando que nunca será realmente possível saber que histórias.

 

Não, não, nada se encontra provado, nada se sabe. E se eu me levantasse neste preciso momento e me certificasse de que a marca na parede é realmente — o quê, por exemplo? — a ca­beça de um gigantesco prego, ali colocado há duzentos anos e que, graças à erosão pacientemente provocada por várias gera­ções de criadas, deita de fora a cabeça, rompendo a camada de pintura da parede e observando as primeiras imagens da vida moderna nesta sala branca e com um fogão aceso, que ganharia com isso? — Conhecimento? Tema para posteriores especulações?

 

Posso pensar tão bem continuando sentada como se me levantasse. E o que é o conhecimento? O que são os nossos ho­mens instruídos senão os descendentes das feiticeiras e eremitas das grutas e florestas, que apanhavam plantas, interrogavam o voo do morcego e transcreviam a linguagem das estrelas? E quanto menos os honrarmos, quanto menos crédito lhes der a nossa superstição, mais o nosso respeito pela saúde e pela bele­za hão-de crescer... Sim, é-nos possível imaginar um mundo muito mais agradável. Um mundo tranquilo, espaçoso, com um sem fim de flores vermelhas e azuis nos campos sem muros. Um mundo sem professores nem especialistas nem donas de ca­sa com perfil de polícias, um mundo por onde se poderá desli­zar na companhia dos próprios pensamentos, tal como um pei­xe desliza na água que passa, tocando de leve o manto de nenú­fares da superfície, enquanto os ninhos entre as ramagens da vegetação que cobre as águas guardam os seus ovos de pássaros aquáticos... Como se está em paz aqui, ao abrigo, no centro do mundo e olhando para cima através das águas cinzentas, com os seus lampejos súbitos de luz e os seus reflexos — se não fosse o Whitaker's Almanack — se não fosse a Mesa da Presidência!

 

Preciso de me levantar daqui e de me inteirar do que será realmente aquela marca na parede — um prego, uma folha de roseira, uma racha na madeira?

 

Lá está a natureza, uma vez mais, no seu velho jogo de au­todefesa. Esta corrente de pensamento, ela deu por isso já, é ameaçadora para mim, arrasta-me para um gasto inútil de energia, talvez mesmo para algum choque com o mundo real, como é de esperar que aconteça a quem se mostra capaz de le­vantar um dedo contra a Mesa da Presidência de Whitaker. O Arcebispo de Cantuária traz atrás de si o Lorde Chanceler: o Lorde Chanceler é seguido pelo Arcebispo de York. Toda a gente vem a seguir a alguém, eis a filosofia de Whitaker; e é uma grande coisa saber-se quem segue quem. Whitaker sabe e deixemos, como a natureza recomenda, que isso nos conforte, em vez de nos enfurecer; e se não pudermos ser confortados, se temos que estragar esta hora de harmonia, pensemos então na marca na parede.

 

Compreendi o jogo da Natureza — a sua rápida exigência de actividade que ponha fim a qualquer pensamento que amea­ce de excitação ou de dor. Daí, suponho eu, a nossa pouca esti­ma pelos homens de acção — homens que, de acordo com as nossas ideias, não pensam. No entanto, não há mal em uma pessoa deter decididamente os seus pensamentos desagradáveis contemplando uma marca na parede.

 

 

 

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Quarta-feira, 4 de Maio de 2011

A Marca na Parede - Virginia Woolf

 

Virginia Woolf  A Marca na Parede

 

 

Foi talvez por meados de Janeiro deste ano que vi pela pri­meira vez, ao olhar para cima, a marca na parede. Quando queremos fixar uma data precisamos de nos lembrar do que vi­mos. Assim, lembro-me de o lume estar aceso, de uma faixa de luz amarela na página do meu livro, dos três crisântemos na jarra de vidro redonda na chaminé. Sim, tenho a certeza de que foi no Inverno, e tínhamos acabado de tomar chá, porque me recordo de estar a fumar um cigarro quando olhei para cima e vi a marca na parede pela primeira vez. Olhei para cima atra­vés do fumo do cigarro e o meu olhar demorou-se por um mo­mento nos carvões em brasa do fogão e veio-me à ideia a velha fantasia da bandeira escarlate tremulando no alto da torre do castelo, e pensei na cavalgada dos cavaleiros vermelhos subindo a encosta do rochedo negro. Foi com certo alívio que a imagem da marca na parede interrompeu esta fantasia, porque se trata de uma velha fantasia, de uma fantasia automática, vinda tal­vez dos meus tempos de criança. A marca era uma pequena mancha redonda, negra contra a parede branca, a cerca de seis ou sete polegadas do rebordo da chaminé.

 

Ê surpreendente a rapidez com que os nossos pensamentos se precipitam sobre um novo objecto, o transportam por um instante, do mesmo modo que as formigas se atiram febrilmente a um pedaço de palha, que em seguida abandonam sem mais...Se a marca tivesse sido feita por um prego, não podia ser para prender um quadro, apenas uma miniatura — a miniatura tal­vez de uma senhora com os anéis do cabelo empoados, rosto co­berto de pó-de-arroz e lábios vermelhos como cravos. Uma falsi­ficação, é evidente, porque as pessoas que foram donas desta casa antes de nós deviam gostar de ter pinturas desse género — um quadro velho para uma sala velha. Eram pessoas assim, pessoas muito interessantes, e penso nelas muitas vezes, quando me vejo numa situação fora do vulgar, porque nunca voltarei a vê-las, nunca saberei o que lhes aconteceu a seguir. Queriam deixar a casa porque queriam mudar de estilo de mobília, foi o que ele disse, numa altura em que estava a explicar que a arte devia ter sempre uma ideia por trás, e era como se fossemos de comboio e víssemos de passagem uma senhora de idade a servir chá e o jovem que bate a sua bola de ténis no jardim das trasei­ras da sua vivenda nos arredores.

 

Mas quanto à marca, não tinha a certeza do que pudesse ser: afinal de contas, não me parecia feita por um prego; é grande de mais, redonda de mais, para isso. Posso levantar-me, mas se me levantar para a ver melhor, aposto dez contra um que continuarei a não saber o que é; porque, uma vez feita cer­ta coisa ninguém sabe nunca como é que tudo o que se segue aconteceu. Oh, meu Deus, o mistério da vida — a fraqueza do pensamento! A ignorância da humanidade! Vou contar algumas das coisas que tenho perdido, o que basta para mostrar como controlamos poucos o que possuímos — como é precária a nos­sa vida após todos estes séculos de civilização; dessas coisas perdidas misteriosamente — que gato as teria levado, que rato as terá roído? —. começarei por referir, por exemplo, três caixinhas azuis para guardar ferros de encadernar, cujo desaparecimento é a perda mais misteriosa da minha vida. Depois há as gaiolas de pássaros, as argolas de ferro, os patins, a alcofa de carvão Queen Anne. a caixa de jogos de cartão, o realejo — tudo isto desaparecido, além de algumas jóias também. Opalas e esmeraldas, que devem estar para aí enterradas entre as raízes de um quintal. Uma complicação como não se pode imaginar, não haja dúvida! O que é de espantar, no fim de contas, é que eu esteja ainda vestida e rodeada de móveis sólidos neste mo­mento. Porque se quiséssemos um termo de comparação para a vida, o melhor seria o de um metropolitano, atravessando o tú­nel a cinquenta milhas à hora — e deixando-nos do outro lado sem um gancho sequer no cabelo! Cuspidos aos pés de Deus, inteiramente nus! Rolando por campos de tojo como embrulhos de papel pardo atirados para dentro de um marco de correio! E os cabelos puxados para trás pelo vento como a cauda de um cavalo nas corridas. Sim, são coisas destas que podem dar uma ideia da rapidez da vida, a destruição e reconstrução perpétuas; tudo tão contingente, tão apenas por acaso...

 

Mas a vida. A lenta derrocada dos grandes caules verdes de tal modo que a flor acaba por se virar, ao cair, inundando-nos com uma luz de púrpura e vermelho. Porque é que, bem vistas as coisas, não nascemos ali em vez de aqui, desamparados, in­capazes de ajustarmos como deve ser a luz do olhar, rastejando na erva entre as raízes, entre os calcanhares dos Gigantes? Por­que dizer o que são as árvores, e o que são homens e o que são mulheres, ou sequer o que é haver coisas como árvores, homens e mulheres, não será algo que estejamos em condições de fazer nos próximos cinquenta anos. Não há nada por vezes senão es­paços de luz e de escuridão, intersectados por grandes hastes densas e talvez bastante mais acima manchas em forma de rosa — rosa-pálido ou azul-pálido — de cor indecisa, e tudo isso, à medida que o tempo passa, se vai tornando mais definido e se transforma — em não se pode saber o quê.

 

Mas a marca na parede não é, de maneira nenhuma, um buraco. Poderá ter sido o resultado de qualquer substância es­cura e arredondada, uma pequena folha de rosa, por exemplo, deixada ali pelo Verão, uma vez que não sou uma dona de casa lá muito atenta a essas coisas — basta ver o pó que há na chamine, o pó que dizem ter soterrado Tróia por três vezes, des­truindo tudo excepto os fragmentos de vasos que chegaram até nós.

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00

editado por Luis Moreira às 20:04
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Terça-feira, 3 de Maio de 2011

Uma nova maneira de narrar e uma nova maneira ética - Josep Anton Vidal

 

 

Josep Anton Vidal  Uma nova maneira de narrar e uma nova maneira ética

 

 

 

Notas de leitura de Jacob’s room, de Virginia Woolf

 

A estrutura narrativa de "Jacob's room" e a técnica de Virginia Woolf sugerem a imagem de um puzzle narrativo cujas peças se integram num todo unitário sem que nenhuma peça perca, não obstante, a sua identidade própria. Assim, o resultado unitário da narração dependeria do contributo de todas e de cada uma das peças, ao mesmo tempo que cada peça se explicaria em função das imediatas e da “paisagem narrativa global”.

 

No terreno da narrativa, o símile do puzzle equivale à criação de um universo que, com o contributo de cada um dos elementos singulares, constrói um universo integral, e este, por seu turno, dá sentido a cada uma das peças que o integram. O símile do puzzle poderia, em parte, explicar a técnica narrativa de Woolf, porém não é suficiente. Visto na perspectiva do resultado final, o puzzle, pese embora a aparente complexidade que a multiplicidade das peças lhe confere, não difere da fotografia, da imagem única, entendida como representação global e total de um universo bidimensional. No entanto, a obra de Virginia Woolf não pretende ser um universo, e muito menos bidimensional, porque não se fecha em si mesma, sendo feita de janelas que se abrem para paisagens diferentes, para mundos e universos cuja presença assume potencialidade e entidade narrativa, permanecendo, no entanto, inexplicada ou apenas intuída.

 

Creio que, se queremos empregar um referencial formal de natureza não literária que possa servir como símile da maneira de narrar de Virginia Woolf, o devemos procurar nas experiências dos artistas plásticos, pintores e escultores, dos primeiros anos do século XX e, de forma muito característica, no Cubismo. Não é que a narrativa de Virginia Woolf tenha recebido a influência da experimentação cubista, mas sim, experimentando com o material narrativo, Woolf chegou a soluções literárias similares a àquelas que o Cubismo e as primeiras vanguardas elaboraram a partir de materiais plásticos e da tradição das técnicas pictóricas e escultóricas.

A penetração social e cultural da psiquiatria não só quebrou as visões unitárias e as explicações monolíticas da existência e do imprevisto humanos, como além disso, os tornou impossíveis, fechando-lhes as portas do futuro. E este não foi o único fenómeno que se foi gerando ao longo do século XIX e contribuiu para o desmoronamento com que o século XX começou. A verdade é que com esse desmoronamento se tornou impossível a partir de então a construção de um juízo moral ao abrigo de uma concepção – fosse ela qual fosse – da ordem social. Desde então sabemos que a realidade só pode ser objecto de explicações múltiplas e diversas que, ao sobreporem-se umas às outras, renunciam às explicações simplistas e ao ponto de vista único, assumindo a existência como complexidade que ultrapassa a percepção sempre limitada, do observador, do narrador ou do artista – e a do ideólogo, e a do político...

 

A multiplicidade de formas, integradas na unidade que a obra de arte lhes confere, não serão já nunca mais uma reprodução da realidade, nem sequer uma reconstrução ou recreação da realidade, mas sim uma nova realidade, que existe apenas como obra de arte, e que não é um reflexo da realidade, mas sim uma realidade em si mesma. Esta complexidade, no entanto, separa-se conscientemente, tanto quanto lhe é possível, da complexidade pessoal do autor ou do observador, que – contrariando a herança romântica – renuncia a misturar-se no espaço que compete ao objecto artístico na própria obra, e por isso, o desenho e as formas, o traço nas artes plásticas e a linguagem na literatura, se estilizam, ensaiam caminhos minimalistas, procuram a simplicidade da linha, as cores simples, o movimento… Uma simplicidade que, no entanto, está ao serviço da complexidade.

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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Segunda-feira, 2 de Maio de 2011

Virginia Woolf - a mulher e a escritora - Augusta Clara

 

Augusta Clara  Virginia Woolf - a mulher e a escritora

 

Virginia Woolf (1882-1941) nasceu no seio duma família inglesa da pequena aristocracia vitoriana. Quando o seu pai, Sir Leslie Stephan, filósofo erudito e uma figura tutelar algo despótica, faleceu a família mudou-se para a área londrina de Bloomsbury onde, mais tarde, haveria de formar-se o grupo com esse nome, constituído maioritariamente por elementos trazidos de Cambridge pelo seu irmão Thoby a que se juntariam os economistas Lynton Strachey e John Maynard Keynes, os escritores E.M. Foster e T.S. Eliot, os pintores Roger Fry e Duncan Grant e outros, entre os quais o próprio Leonard Woolf, historiador, com quem Virginia viria a casar-se. O círculo de Bloomsbury pretendia uma mudança na vida cultural inglesa conciliando "arte e moral", "tradição e verdade".  

 

A acidentada vida familiar de Virginia Woolf ganhou alguma estabilidade, aos 30 anos, após o casamento, embora as crises depressivas que frequentemente a atormentavam não tivessem desaparecido. Ela e o seu marido compraram uma pequena impressora e constituiram uma editora. Mas era de escrever que Virginia gostava.

 

Ainda criança Virginia Woolf tinha manifestado a vontade de ser escritora. Apesar dos condicionalismos da época relativamente à educação e à vida intelectual das mulheres, a biblioteca do seu pai tinha-lhe sido franqueada sem quaisquer restrições. De inteligência brilhante, sabia-se uma privilegiada. Tinha consciência de como à generalidade das mulheres do seu tempo estava impedido o desenvolviemento intelectual e o acesso à cultura. As veementes intervenções que teve contra esse estado de coisas granjeram-lhe reacções adversas.

 

No livro Um quarto que seja seu, constituído por duas prelecções feitas nas universidades femininas de Newham e Girton, em Cambridge, Virginia aborda o problema da sujeição da capacidade intelectual das mulheres da sua época e da falta de condições quer financeiras quer de autonomia para poderem expressar essa capacidade. Porém, o conteúdo destas conferências nada teve de panfletário. Para abordar o tema central, ela desenvolveu a sua argumentação com fineza de raciocínio e de espírito. O conhecimento da vida, da literatura e da História estão bem patentes nestas páginas e, certamente, deliciaram quem a ouviu. Fiquemos nós, agora aqui, com algumas linhas delas extraídas: 

 

Ao longo de todos estes séculos as mulheres têm servido de espelhos, dotados do poder mágico e maravilhoso de reflectirem a figura do homem com o dobro do tamanho normal. (...) O Czar e o Kaiser nunca teriam usado coroa, nem as perderiam. Qualquer que seja a sua utilização nas sociedades civilizadas, os espelhos são a mola essencial de todo o acto violento e heróico. (...) Este o motivo porque tanto Napoleão como Mussolini insistem com tanta ênfase na inferioridade da mulher, pois se não fossem inferiores eles deixariam de engrandecer. (...) a inquietação que sentem, ante a crítica delas; é impossível que, ao dizer-lhes que este livro é mau, este quadro é fraco ou qualquer outra coisa, deixem de ofender e irritar muito mais do que se fosse um homem a fazer uma crítica idêntica. (...) Como conseguirá pronunciar opiniões, civilizar selvagens, escrever livros, preparar-se e discursar em banquetes, a não ser que ao pequeno almoço e ao jantar lhe reste a possibilidade  de se olhar ao espelho e de se ver pelo menos com o dobro da estatura?

 

Mas asseguro-vos que esta amostra pouco diz da totalidade desse Um quarto que seja seu, um inteligente livro de ensaios sobre o problema "A Mulher e a Ficção".

 

Virgínia Woolf foi principalmente romancista. Contudo, alguns dos seus contos revelam-nos bem o modo como soube captar a vida duma maneira muito própria. Apresentá-los-emos aqui durante esta semana.

 

Aos 59 anos, com toda a lucidez, atormentada pela constante depressão em que mergulhava, encheu de pedras os bolsos do casaco e deixou-se ir nas águas do ri Ouse escrevendo uma carta ao marido onde explicava porque tomara aquela decisão: Tenho a certeza de que vou enlouquecer outra vez. E sinto-me incapaz de enfrentar de novo um desses terríveis períodos. Começo a ouvir vozes e não consigo concentrar-me (...). Se alguém pudesse salvar-me serias tu (...). Não posso destruir a tua vida por mais tempo.

 

Na única entrevista de que há registo sonoro, dada por Virginia Woolf à BBC em 29 de Abril de 1937, ela põe a tónica na importância das palavras, que existem sobretudo na nossa mente, por muitos dicionários de que possamos dispor. Daí que, por vezes, nos seja tão difícil encontrar a palavra exacta para expressar uma ideia ou exprimir um sentimento. Escutemo-la, pois.

 

Livros de Virginia Woolf publicados em Portugal:

 

  • Um Quarto que Seja Seu, Vega
  • Os Três Guinéus, Vega
  • A Casa Assombrada, Relógio d'Água
  • Diário, Vols. I e II, Bertrand Editora
  • Os Contos de Virginia Woolf, Relógio d'Água
  • O Quarto de Jacob, Cotovia
  • Orlando, Livros do Brasil
  • As Ondas, Col. Mil Folhas, Público
  • Rumo ao Farol, Edições Afrontamento
  • Entre os Actos, Cotovia
  • Os Anos, Moraes
  • Mrs. Dolloway, Livros do Brasil
  • A Festa de Mrs. Dolloway, Cotovia
  • Flush, Edições Afrontamento

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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