A poesia não é, nunca foi uma enumeração ou composto de exuberância, bondade, altitude, nem arado ou dádiva sobre chão prenhe de mortos.
Nem o arrependimento de Deus por ter criado o homem com o rosto da sua memória, ao lado dos seus vermes.
Tão-pouco fôlego dos que amam abrindo a porta límpida do corpo e chovendo sobre a terra, ou carregam como tartarugas o peso do mundo.
Nem reverência por um tigre, pela leveza maligna de todas as patas, pela sonolência junto à estirpe aprisionada também na dureza de ser tigre.
É o milagre de uma arma total, de uma só palavra reduzindo o átomo à completa inocência.
(A Ignorância da Morte)
João Machado (Lisboa, 1943)
SOBRE UM MAU POETA
Vou contar-vos uma tragédia De um senhor que queria ser poeta Fazer lindos versos tinha por meta Resultava sempre uma fraca comédia
Rimas pobres era uma praga Pontapés na gramática em cada linha Pois a falta de talento esmaga Quem tem pouco juízo na pinha
A poesia é a arte de comunicar De quem tem o sentimento, a excepção Com quem vive o dia banal, o vulgar
Transmitir o fogo, a modulação De querer, sofrer, lutar, amar Sem dos medíocres vir atrapalhação
___________________________
Vasco Graça Moura (Porto, 1942)
As palavras estão presas ao real. Não há praticamente nenhuma poesia, nenhuma literatura, que sobreviva se não houver uma especial coerência entre elas e a realidade. Talvez o mesmo se possa dizer em relação a todas as outras artes, sendo certo que, na música, estas coisas se põem em termos qualitativamente diferentes (provavelmente na música, e no Ocidente, o sistema tonal tende a exercer a mesma força de atracção que o real). Estas coisas para mim põem-se em termos de uma extrema simplicidade, sem altos voos filosóficos, num plano prático e corrente dos significados. É claro que a espessura do real é múltipla: tanto inclui o onírico como o pensamento abstracto. Eppure... é sempre o real. Hoje, assim como nas artes o fim do século XX parece ter ficado assinalado por um "neo-figurativismo" (outra vez o real...), também na poesia se regressa ao real (subjectivo e objectivo) em muitas modalidades. O escritor é um ser humano que utiliza as palavras com um certo nível de exigência qualitativa. Capturar o real, mesmo que seja para fazê-lo "inflectir", é um dos seus objectivos. É provável que o cinema e a fotografia tenham contribuído para acentuar essa necessidade. Não penso que se trate de um vício, mas de uma condição inelutável. A literatura é uma forma de criação artística pela palavra, mesmo quando tenta convocar outras áreas (veja-se, por exemplo, a ekphrasis). A sua relação com o real decorre naturalmente desta condição verbal.
(em entrevista a João Luís Barreto Guimarães)
E já agora, um poema de Vasco da Graça Moura sobre os "Poetas de Lisboa", letra de um fado cantado por Carlos do Carmo:
A poesia não é, nunca foi uma enumeração ou composto de exuberância, bondade, altitude, nem arado ou dádiva sobre chão prenhe de mortos.
Nem o arrependimento de Deus por ter criado o homem com o rosto da sua memória, ao lado dos seus vermes.
Tão-pouco fôlego dos que amam abrindo a porta límpida do corpo e chovendo sobre a terra, ou carregam como tartarugas o peso do mundo.
Nem reverência por um tigre, pela leveza maligna de todas as patas, pela sonolência junto à estirpe aprisionada também na dureza de ser tigre.
É o milagre de uma arma total, de uma só palavra reduzindo o átomo à completa inocência.
(A Ignorância da Morte)
João Machado (Lisboa, 1943)
SOBRE UM MAU POETA
Vou contar-vos uma tragédia De um senhor que queria ser poeta Fazer lindos versos tinha por meta Resultava sempre uma fraca comédia
Rimas pobres era uma praga Pontapés na gramática em cada linha Pois a falta de talento esmaga Quem tem pouco juízo na pinha
A poesia é a arte de comunicar De quem tem o sentimento, a excepção Com quem vive o dia banal, o vulgar
Transmitir o fogo, a modulação De querer, sofrer, lutar, amar Sem dos medíocres vir atrapalhação
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Vasco Graça Moura (Porto, 1942)
As palavras estão presas ao real. Não há praticamente nenhuma poesia, nenhuma literatura, que sobreviva se não houver uma especial coerência entre elas e a realidade. Talvez o mesmo se possa dizer em relação a todas as outras artes, sendo certo que, na música, estas coisas se põem em termos qualitativamente diferentes (provavelmente na música, e no Ocidente, o sistema tonal tende a exercer a mesma força de atracção que o real). Estas coisas para mim põem-se em termos de uma extrema simplicidade, sem altos voos filosóficos, num plano prático e corrente dos significados. É claro que a espessura do real é múltipla: tanto inclui o onírico como o pensamento abstracto. Eppure... é sempre o real. Hoje, assim como nas artes o fim do século XX parece ter ficado assinalado por um "neo-figurativismo" (outra vez o real...), também na poesia se regressa ao real (subjectivo e objectivo) em muitas modalidades. O escritor é um ser humano que utiliza as palavras com um certo nível de exigência qualitativa. Capturar o real, mesmo que seja para fazê-lo "inflectir", é um dos seus objectivos. É provável que o cinema e a fotografia tenham contribuído para acentuar essa necessidade. Não penso que se trate de um vício, mas de uma condição inelutável. A literatura é uma forma de criação artística pela palavra, mesmo quando tenta convocar outras áreas (veja-se, por exemplo, a ekphrasis). A sua relação com o real decorre naturalmente desta condição verbal.
(em entrevista a João Luís Barreto Guimarães)
E já agora, um poema de Vasco da Graça Moura sobre os "Poetas de Lisboa", letra de um fado cantado por Carlos do Carmo:
Vamos entrar na segunda metade - vem aí, às 13:00,Walt Whitman, com as suas barbas brancas . Vêm também o Carlos Loures e o Joan Brossa.