Quarta-feira, 1 de Dezembro de 2010

Para uma redefinição da União Económica e Monetária Europeia: da crítica dos seus fundamentos à crítica da crise actual - 4

Júlio Mota, Luís Lopes e Margarida Antunes *


FALSA EVIDÊNCIA N.º 8: A UNIÃO EUROPEIA DEFENDE O MODELO SOCIAL EUROPEU

A construção europeia apresenta-se como uma experiência ambígua. Duas visões da Europa coexistem, sem se atreverem a confrontar-se abertamente. Para os social-democratas a Europa deveria ter como objectivo a promoção do modelo social europeu, fruto do compromisso social do pós-Segunda Guerra Mundial, com a sua protecção social, os seus serviços públicos e as suas políticas industriais. Deveria ser um baluarte contra a globalização liberal, uma forma de proteger, manter e fazer avançar este modelo. A Europa deveria defender uma visão própria da organização da economia mundial, a globalização regulada por instituições de governação mundial. Deveria permitir aos países-membros manterem um nível elevado de despesas públicas e de redistribuição, protegendo a sua capacidade de as financiar através da harmonização fiscal sobre as pessoas, sobre as empresas e sobre os rendimentos de capital.

Todavia, a Europa não quis assumir a sua especificidade. A visão que prevalece actualmente em Bruxelas e na maioria dos governos nacionais é, em vez disso, a de uma Europa liberal, cujo objectivo é o de adaptar as empresas europeias às exigências da globalização: a construção europeia é uma oportunidade para pôr em causa o modelo social europeu e para desregulamentar a economia. A prevalência do direito europeu da concorrência sobre as regulamentações nacionais e sobre os direitos sociais no Mercado Único permite introduzir maior concorrência nos mercados de produtos e serviços, diminuir a importância dos serviços públicos e organizar a concorrência entre os trabalhadores europeus. A concorrência fiscal e social permitiu reduzir os impostos, nomeadamente sobre os rendimentos de capitais e empresas (as “bases móveis”) e permitiu fazer pressão sobre as despesas sociais. Os tratados garantem quatro liberdades fundamentais: a livre circulação das pessoas, bens, serviços e capitais. Mas, longe de se limitar ao mercado interno, a liberdade de circulação de capitais tem sido dada aos investidores do mundo inteiro, submetendo assim o tecido produtivo aos constrangimentos da valorização do capital internacional. A construção europeia apresenta-se como uma forma de impor reformas neoliberais aos seus povos.
A organização da política macroeconómica (independência do Banco Central Europeu face ao poder político, o Pacto de Estabilidade) é marcada pela desconfiança para com os governos democraticamente eleitos. Trata-se de privar os países de qualquer autonomia, tanto em termos de política monetária, como em termos de política orçamental. O equilíbrio orçamental deve ser alcançado, estando banidas quaisquer políticas discricionárias de relançamento da economia, para deixar funcionar unicamente os “estabilizadores automáticos”. Nenhuma política económica conjuntural comum é posta em prática ao nível do espaço europeu, nenhum objectivo comum é definido em termos de crescimento e de emprego. As diferenças de situação entre os países não são tidas em conta, porque o Pacto não tem em conta nem as taxas de inflação nem os défices externos nacionais; os objectivos das finanças públicas não têm em conta as situações económicas nacionais.
As instâncias europeias têm tentado impulsionar reformas estruturais (pelas Grandes Orientações de Políticas Económicas, pelo Método Aberto de Coordenação, ou pela Agenda de Lisboa) com um sucesso muito desigual. O seu modo de elaboração não foi democrático nem mobilizador, a sua orientação liberal não correspondia necessariamente às políticas decididas a nível nacional, dada a relação de forças em cada país. Essa orientação não teve desde logo um sucesso brilhante que a teria legitimado. O movimento de liberalização económica tem sido posto em causa (o falhanço da directiva Bolkestein); alguns países têm tentado nacionalizar a sua política industrial, enquanto a maioria está contra a europeização das suas políticas fiscais e sociais. A Europa social tem-se mantido uma palavra vazia, só a Europa da concorrência e da finança é que se tem realmente afirmado.
Para que a Europa possa promover verdadeiramente um modelo social europeu, colocamos a debate duas medidas:

Medida n.º 16: Pôr em causa a livre circulação de capitais e de mercadorias entre a União Europeia e o resto do mundo, através da negociação de acordos bilaterais ou multilaterais, se necessário.

Medida n.º 17: Em vez da política de concorrência, fazer da “harmonização no progresso” o princípio norteador da construção europeia. Estabelecer objectivos comuns obrigatórios tanto em matéria de progresso social como em matéria de macroeconomia (as GOPS, grandes orientações de política social).

FALSA EVIDÊNCIA N.º 9: O EURO É UM ESCUDO CONTRA A CRISE

O euro deveria ser um factor de protecção contra a crise financeira global. No fim de contas, a eliminação de toda e qualquer incerteza sobre as taxas de câmbio entre as moedas europeias eliminou um dos principais factores de instabilidade. No entanto, não foi nada assim: a Europa foi mais duramente e mais prolongadamente afectada pela crise do que o resto do mundo. Isto deve-se às modalidades específicas da construção da união monetária.
Depois de 1999, a zona do euro registou um crescimento relativamente medíocre e um aprofundamento do processo de divergência entre os Estados-Membros, em termos de crescimento, inflação, desemprego e dos desequilíbrios externos. O quadro da política económica da zona euro, que tende a impor políticas macroeconómicas similares para todos os países-membros, mesmo que estes estejam em situações muito diferenciadas, alargou as disparidades de crescimento entre os Estados-Membros. Na maioria dos países, especialmente nos maiores, a introdução do euro não provocou a prometida aceleração do crescimento. Para outros, tem havido crescimento, mas ao preço de desequilíbrios dificilmente sustentáveis. A rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, permitiu fazer incidir sobre o trabalho todo o peso dos ajustamentos empreendidos. Promoveu-se a flexibilidade e a austeridade salarial, reduziu-se a parcela dos salários no rendimento total, aumentaram as desigualdades.
Esta corrida à minimização da dimensão social foi ganha pela Alemanha, que foi capaz de obter grandes excedentes comerciais, à custa dos seus vizinhos e, sobretudo, dos seus próprios assalariados, impondo uma redução do custo do trabalho e dos benefícios sociais, o que lhe conferiu uma vantagem comercial relativamente aos seus vizinhos, que não puderam tratar tão duramente os seus trabalhadores. Os excedentes comerciais alemães pesam [negativamente] sobre o crescimento dos outros países. Os défices orçamentais e comerciais de uns não são mais do que a contrapartida dos excedentes dos outros... Os Estados-Membros não foram capazes de definir uma estratégia coordenada.
A zona euro deveria ter sido menos atingida do que os Estados Unidos ou o Reino Unido por esta crise financeira. As famílias estão claramente muito menos envolvidas nos mercados financeiros e estes são menos sofisticados. As finanças públicas estavam em melhor situação, o défice do conjunto de todos os países da zona euro era de 0,6% do PIB, em 2007, contra quase 3% nos Estados Unidos, no Reino Unido ou no Japão. Mas a zona euro sofria um agravamento dos seus desequilíbrios: os países do Norte (Alemanha, Áustria, Holanda, Países Escandinavos) travavam os salários e a procura interna e acumulavam excedentes externos, enquanto os países do Sul (Espanha, Grécia, Irlanda) registavam um forte crescimento, impulsionado por taxas de juro baixas em relação à taxa de crescimento, ao mesmo tempo que acumulavam défices externos.
Embora a crise financeira tenha tido origem nos Estados Unidos, estes tentaram fazer uma verdadeira política de relançamento orçamental e monetário e, ao mesmo tempo, iniciaram um movimento de reforço da regulação financeira. A Europa, pelo contrário, não foi capaz de empreender uma política suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental foi de cerca de 1,6 pontos percentuais do PIB na zona euro, 3,2 pontos no Reino Unido e 4,2 pontos nos Estados Unidos. A queda da produção devido à crise foi nitidamente mais forte na zona euro do que nos Estados Unidos. O agravamento dos défices na zona euro foi sobretudo inelutável e não o resultado de uma política activa.
Entretanto, a Comissão continuou a accionar procedimentos por défice excessivo contra os Estados-Membros, de tal modo que, em meados de 2010, praticamente todos os Estados da zona euro estavam nessa situação. Exigiu aos Estados-Membros que se empenhassem em voltar, antes de 2013 ou de 2014, a valores abaixo dos 3%, independentemente da evolução económica. As autoridades europeias continuaram a clamar por políticas salariais restritivas e que se pusessem em causa os sistemas públicos de pensões e de saúde, com o risco, evidentemente óbvio, de afundar o continente numa profunda depressão e de aumentar as tensões entre os países. Esta ausência de coordenação e, fundamentalmente, a ausência de um verdadeiro orçamento da União Europeia que possibilitasse uma solidariedade efectiva entre os Estados-Membros incentivaram os operadores financeiros a afastar-se do euro e mesmo a especular abertamente contra ele.
Para que o euro possa realmente proteger os cidadãos europeus, em caso de crise, colocamos em debate duas medidas:

Medida n.º 18: Assegurar uma efectiva coordenação de políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus.

Medida n.º 19: Compensar os desequilíbrios de pagamentos na Europa, através de um Banco de Regularização de Pagamentos (organizando os empréstimos entre os diversos países europeus).

Medida n.º 20: Se a crise do euro levar ao seu estilhaçamento, e contando com a possível institucionalização de um orçamento europeu (ver abaixo), criar um sistema monetário intra-europeu (moeda comum do tipo “bancor”), que organize a reabsorção dos desequilíbrios das balanças comerciais no interior da Europa.

FALSA EVIDÊNCIA N.º 10: A CRISE GREGA POSSIBILITOU FINALMENTE AVANÇAR PARA UM GOVERNO ECONÓMICO E PARA UMA VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIA

A partir de meados de 2009, os mercados financeiros começaram a especular sobre a dívida dos países europeus. Globalmente, a forte subida das dívidas e dos défices públicos à escala mundial não resultou (ainda) em aumentos das taxas de longo prazo: os operadores financeiros acreditam que os bancos centrais vão manter durante muito tempo as taxas monetárias reais em valores muito próximos de zero, e que não há, nem o perigo de inflação, nem o risco de um grande país entrar em situação de incumprimento das suas dívidas. Mas os especuladores viram bem as falhas na organização da zona euro. Enquanto os governos de outros países desenvolvidos podem sempre ser financiados pelo respectivo Banco Central, os países da zona euro renunciaram a esta opção e estão totalmente dependentes dos mercados para financiar os seus défices. Em resultado, a especulação pôde desencadear-se sobre os países mais frágeis da zona: Grécia, Espanha, Irlanda.
As autoridades europeias e os governos nacionais têm sido lentos na resposta, não querendo dar a impressão de que os países-membros tinham direito a apoio ilimitado dos seus parceiros, e querendo castigar a Grécia, culpada de ter escondido — com a ajuda do banco Goldman Sachs — a dimensão dos seus défices. No entanto, em Maio de 2010, o BCE e os países-membros tiveram de criar de emergência um Fundo de Estabilização, para sinalizar aos mercados que dariam aquele apoio ilimitado aos países ameaçados. Em troca, estes tiveram que anunciar programas de austeridade orçamental sem precedentes, que os vai condenar a um abrandamento da actividade económica a curto prazo e a um longo período de recessão. Sob pressão do FMI e da Comissão Europeia, a Grécia deve privatizar serviços públicos e a Espanha deve flexibilizar o mercado de trabalho. Mesmo a França e a Alemanha, que não são objecto de especulação, anunciaram medidas restritivas.
No entanto, a procura não é, de forma alguma, globalmente excessiva na Europa. A situação orçamental é melhor do que a dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, possibilitando margem de manobra orçamental. É necessário reabsorver os desequilíbrios de forma coordenada: os países do norte e do centro da Europa, com excedentes comerciais, devem empreender políticas expansionistas — salários mais elevados, mais despesas sociais... — para compensar as políticas restritivas dos países do Sul. A política orçamental não deve ser globalmente restritiva na zona euro enquanto a economia europeia não se aproximar, a um ritmo satisfatório, da situação de pleno emprego.
Mas os defensores da política orçamental automática e restritiva na Europa estão hoje, infelizmente, com mais força. A crise grega permite fazer esquecer as origens da crise financeira. Aqueles que concordaram em apoiar financeiramente os países do Sul querem impor, em troca, um endurecimento do Pacto de Estabilidade. A Comissão Europeia e a Alemanha querem impor a todos os países-membros que inscrevam nas respectivas Constituições o objectivo de equilíbrio orçamental e que as respectivas políticas orçamentais sejam controladas por comissões de peritos independentes. A Comissão Europeia quer impor aos países uma longa cura de austeridade, para que a dívida pública volte a ser inferior a 60% do PIB. Se há um passo rumo a um governo económico europeu, é para um governo que, em vez de afrouxar o grilhão da finança, vai impor austeridade e um aprofundamento das “reformas” estruturais, em detrimento da solidariedade social em cada país e entre os diversos países.
A crise proporciona às elites financeiras e aos tecnocratas europeus a tentação para porem em prática a “estratégia de choque”, aproveitando a crise para radicalizar ainda mais a agenda neoliberal. Mas essa política tem poucas possibilidades de sucesso:

— A redução da despesa pública vai comprometer os esforços necessários a nível europeu para apoiar as despesas orientadas para o futuro (investigação, educação, política familiar), para ajudar a indústria europeia a manter e a investir em áreas de futuro (economia verde).

— A crise vai permitir a imposição de cortes profundos nas despesas sociais, objectivo incansavelmente perseguido pelos defensores do neoliberalismo, com o risco de comprometer a coesão social, de reduzir a procura efectiva e de pressionar as pessoas a pouparem, para garantir as suas pensões de reforma e os cuidados de saúde, e a colocarem as suas poupanças junto das instituições financeiras, os responsáveis pela crise.

— Os governos e as instâncias europeias recusam-se a organizar a harmonização fiscal, que permitiria o necessário aumento dos impostos sobre o sector financeiro, sobre os grandes valores patrimoniais e sobre os rendimentos elevados.

— Os países europeus instauram, de forma duradoura, políticas orçamentais restritivas, que pesam [negativamente] sobre o crescimento. As receitas fiscais vão cair. Deste modo, os saldos das contas públicas nunca poderão melhorar, os rácios da dívida pública irão degradar-se e os mercados não serão acalmados.

— Os países europeus, devido à diversidade das suas culturas políticas e sociais, não foram todos capazes de se sujeitar à disciplina de ferro imposta pelo Tratado de Maastricht, e não serão todos capazes de se sujeitar ao seu reforço actualmente instituído. O risco de desencadear uma dinâmica generalizada de os países se fecharem sobre si próprios é real.

Para avançar para um verdadeiro governo económico e uma verdadeira solidariedade europeia, colocamos duas medidas em debate:

Medida n.º 21: Instituir uma fiscalidade europeia (imposto sobre o carbono, imposto sobre os lucros...) e um verdadeiro orçamento europeu, para apoiar a convergência das economias e para caminhar no sentido da igualdade de condições de acesso aos serviços públicos e sociais nos diversos Estados-Membros, com base nas melhores práticas.

Medida n.º 22: Lançar um vasto plano a nível europeu, financiado por subscrição junto dos particulares, com taxa de juro baixa mas garantida e/ou por criação monetária pelo BCE, para empreender a reconversão ecológica da economia europeia.

* Docentes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
publicado por Carlos Loures às 21:00
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Terça-feira, 30 de Novembro de 2010

As economias, a criação de riqueza e o pensamento económico contemporâneo

José Reis*

0. Palavras iniciais

Antes de quaisquer outras palavras quero deter-me no significado da realização de encontros como este e saudar os seus organizadores. São três as “marcas genéticas” que me parece que aqui se nos apresentam e que eu quero elogiar. A primeira é que se tem uma visão larga e exacta do que é o debate económico. O debate económico é um debate de ideias, é um debate para gerar cultura. É certamente por isso que aqui se conjugam, de forma exemplar, economia e análise económica com cinema. Se bem entendo a motivação dos meus colegas, trata-se, pois, de sugerir que também aprendemos economia na medida em que desenvolvamos cultura económica. A segunda marca que rodeia uma iniciativa como esta é que os avanços do conhecimento, nos dias de hoje, precisam que reconheçamos que nos rodeia uma inquietação profunda – e que é preciso partir dela mas encontrarmos respostas satisfatórias. Não é portanto por mera opção estética que os filmes e os temas tratam do que tratam – de pessoas na sua individualidade difícil, de relações sociais assimétricas, de problemas que nos interrogam com veemência. Por isso, em terceiro lugar, esta iniciativa é um contributo claro para o pluralismo e para a valorização do conhecimento crítico

1. A financeirização da economia internacional e os caminhos da especulação

São conhecidas as circunstâncias tumultuosas dos tempos correntes: a entrega do financiamento e do crédito internacionais aos mercados liberalizados e à especulação desencadeou uma crise financeira e esta transformou-se rapidamente numa crise económica profunda e certamente prolongada, mal a turbulência se manifestou num sistema bancário desregrado.

Em termos muito gerais, vale, no entanto, a pena relembrar que, de forma mais profunda, estivemos e estamos perante dois fenómenos incontornáveis. Um deles consistiu no facto de a função social do crédito e do financiamento se ter desconectado radicalmente da economia e dos objectivos de geração de riqueza e de promoção das capacidades individuais e colectivas, em favor de uma autonomização descontrolada da intermediação financeira e da especulação. O que devia ser instrumental tornou-se fonte das normas e assumiu capacidade de mando.

O segundo fenómeno – porventura o mais profundo – resultou da própria desconexão da economia relativamente à sociedade. A economia deveria ser entendida como um sistema de provisão e uso de bens e serviços e como um processo de geração de bem-estar e de melhoria das capacidades humanas, tanto individuais como colectivas. E, assim sendo, a economia e a sociedade terão de ser concebidas como duas realidades articuladas. Quer dizer, a economia não pode ser alheia ao conjunto plural de indivíduos e organizações e aos padrões culturais e institucionais que eles estabelecem, bem como aos compromissos e objectivos que resultam do conflito e dos acordos que as comunidades humanas vão gerando. Mas bem sabemos que esta relação se inverteu à medida que tendeu a prevalecer uma noção normativa e redutora da economia, em que esta se impõe à sociedade, em vez de com ela se relacionar positivamente.

Este duplo processo de “desligamento” originou situações generalizadas de insustentabilidade, que agora não se limitam ao domínio financeiro, visto que dizem respeito aos próprios domínios económicos e sociais, para já não referir os ambientais. O que parece claro é que o quadro de circulação e disponibilização de capitais escapou quer a formas de regulação ajustadas, quer à presença prudente de um conjunto plural de mecanismos de alocação de recursos, com a enorme fragilização da esfera pública. Pelo contrário, caminhou-se para uma solução única, totalizante e, seguramente, totalitária – a dos mercados sem fim. O resultado mais evidente foi uma multiplicação de situações turbulentas, que desencadearam irracionalidades, fomentaram desigualdades, consolidaram periferias e reforçaram assimetrias. Como seria, aliás, lógico esperar-se, em vista da “desconstrução” social e económica a que comecei por aludir.
Esta crise é, pois, o culminar destes processos e apresenta-se, por isso, como um poderoso factor de insustentabilidade social e política.

2. Os limites da União Económica e Monetária revelados

O quadro europeu não foi alheio a este contexto e as estas tendências. A União Económica e Monetária pressupôs que bastava assegurar a convergência nominal das economias que a viessem a integrar e que isso era um caminho certo para a convergência real que esbatesse e tornasse pouco importante as relações assimétricas do tipo centro-periferia que pré-existiam à intenção da moeda única. No novo quadro de integração monetária, a disciplina imposta pelos critérios nominais de convergência bastariam para que não houvesse turbulência nem desestabilização. As economias ajustariam as respectivas competitividades e, por essa via, limitariam a sua propensão para gerar desequilíbrios no plano internacional. O crédito e o financiamento não representariam problema que os mercados não resolvessem quer pela disponibilidade que gerariam, quer pela sanção de custo que imporiam. Não seria, portanto, à esfera pública que competiria gerir tal assunto, antes pelo contrário. A esta caberia manter a ortodoxia monetária. Os Estatutos do BCE deram bem conta disso, ao atribuir-se finalidades nobres de controlo monetário, assegurando um enviesamento deflacionário, e compromissos apenas subsidiários ou marginais em matéria de crescimento económico.

A realidade, no entanto, foi às avessas. A lógica centro-perifera das relações dentro da União tornou-se muito evidente, com os problemas de competitividade das economias mais pobres a tornarem-se gritantes. Viu-se depressa que estes eram problemas que a integração monetária não resolvera nem previra e, dizem alguns, agravara dramaticamente. Apesar de ser um problema de monta, este não era, no entanto, um problema que uma Europa solidária, positiva, ambiciosa no plano da coesão social e como valores claros que guiassem o seu futuro não pudesse resolver. De facto, a integração dos países, das grandes federações (caso dos EUA) e mesmo de alguns quadros transnacionais (como o que a “velha” Europa dos fundadores utópicos e dos continuadores generosos pretendia ser) fez-se na base da integração das periferias e da sua transformação estrutural. Isso supõe transferências de capitais e igualmente uma perspectiva global de convergência social e de reorganização produtiva, alterando as especializações e fomentando as bases estruturais que determinam a competitividade.

Essa Europa esfumou-se no mesmo tempo histórico em que a União Económica e Monetária se ia afirmando como quadro normativo mas não como instrumento de desenvolvimento das economias. A “nova” Europa é, ao contrário do sonho, um espaço de incidência de interesses e lógicas nacionais, governada de forma hierárquica pelo centro, isto é, pelas economias que a UEM beneficia, com as periferias a serem entendidas não como os parceiros de um projecto comum que se supunha que tinha sido lançado pela ambição da moeda única, mas antes como sujeitos menores e infractores sistemáticos e incorrigíveis que importaria sancionar.

A base factual para dar este quadro como coisa provada não era difícil de encontrar. De facto, as economias periféricas europeias, com as dificuldades competitivas que tinham – e que algumas, como a Irlanda, foram capazes de disfarçar através de soluções não sustentáveis – revelaram cedo os seus défices e nem sequer se tratou de os entender como custos a suportar transitoriamente, em vista de objectivos de médio prazo de desenvolvimento e de uma mais profunda integração europeia. Os défices passaram a definir o principio e o fim da conversa. É certo que durante algum tempo ainda foram vistos como problemas benignos, enquanto os interesses dos financiadores se sentiam compensados pelos serviços da dívida, isto é por uma remuneração segura e confortável dos seus capitais. Mas rapidamente a situação se tornou tumultuosa. E assim estamos perante uma União que perdeu o seu sentido fundador e que se revela essencialmente como um ser incapaz de se organizar e desenvolver de forma conjunta e solidária. A União Monetária e Financeira, nas suas miopias e nas suas fragilidades contribuiu muito para isso. Poderá contribuir também para uma nova resposta aos problemas?

3. É possível pensar em novos termos?

As bases da Europa e dos seus projectos são, antes de tudo, políticas. É também a partir de uma economia política da construção europeia que os problemas de hoje podem encontrar soluções. E essas soluções existem. Parece-me indiscutível que é a refundação política da Europa, de uma Europa capaz de assumir a globalidade do seu espaço social, político e económico, que pode ser a base de alternativas credíveis. O que não discuto aqui é a probabilidade de tais soluções se concretizarem em momento adequado...
Contudo, é possível pensar em novos termos, inclusive para saber como é que o Euro e a União Económica e Monetária se devem governar. No início tem de estar o papel que se atribui ao Banco Central Europeu. Deve ele ser uma entidade capaz de intervir no mercado primário da dívida soberana? Isto é, deve haver capacidade de intervenção pública no financiamento de défices dos países, fazendo como que tal função não esteja apenas entregue aos mercados e à especulação? Deve evitar-se, como se tornou claro nesta crise, que o BCE financie a taxas de juro baixas os bancos, e apenas os bancos, que financiam a custos elevados os países, deixando estes sujeitos a todas as pressões? Com a ironia de que as garantias dos empréstimos do BCE são os próprios títulos da dívida dos países financiados... Parece evidente que a resposta à pergunta inicial só pode ser positiva, isto é, o BCE deve intervir no mercado primário da dívida soberana.
Mas é também claro que a União deve importar-se tanto com os défices das balanças correntes como com os excedentes. É aí que, no quadro intra-europeu, se encontra uma medida dos problemas estruturas que carecem de política económica – de uma política económica europeia. Dessa política há-de fazer parte a política orçamental e essa há-de ter também uma base europeia (“federal”, se se lhe quiser chamar assim) que a distancie claramente da actual situação, em que o orçamento comunitário não é mais do que 1% do PIB comunitário. Limitar-se a cuidar dos interesses das economias exportadoras (ou, noutro plano, dos bancos alemães) é uma negação profunda da Europa e a mais radical demissão de um compromisso com o desenvolvimento da integração europeia. Da integração real, claro.

4. A criação de riqueza e o pensamento económico contemporâneo

Há mais dois tópicos que me parecem estritamente associados às reflexões anteriores. O primeiro refere-se à necessidade imperiosa de regressarmos a uma compreensão apurada do que é a economia, a sua matriz constitutiva e as suas finalidades. Disse anteriormente que a economia deve ser entendida como um sistema de provisão e uso de bens e serviços e como um processo de geração de bem-estar e de melhoria das capacidades humanas, tanto individuais como colectivas. A economia não é, portanto, um jogo simples e livre (libertino) de afirmação de interesses, de interpretação de motivações ou de difusão errática de incentivos ou sanções. Quem centra a economia em lógicas individualistas, em relações competitivas de natureza interesseira ou egoísta pode dar-se bem com definições muito estritas dos sistemas económicos e da disciplina que se foca numa concepção maximizadora e normativa de racionalidade individual e na redução do conjunto dos mecanismos sociais de alocação de recursos e de coordenação económica a um único deles – o do jogo dos mercados.

No entanto, quando se postula que a economia é um sistema social de provisão e uso que tem a criação de riqueza e a capacitação individual e colectiva como sua finalidade essencial, então o quadro de problemas que se associa à economia há-de ser diferente. Por isso, parece-me claro que o problema da criação e distribuição de riqueza tem de regressar à primeira linha de prioridades da economia e da organização económica. É de estratégias de crescimento que se trata. Estratégias significam opções voluntaristas, concertação de acções e de meios, presença central do interesse colectivo.

Uma coisa me parece certa. Nos dias de hoje, nem os puros mecanismos de mercado (“os mercados”, essa entidade obscura e quase divina que ouvimos repetidamente ser invocada no dia a dia da discussão em Portugal) nem o sistema internacional são suficientes para relançar o crescimento e o bem-estar. Sobre a apropriação especulativa e financeira da chamada lógica do mercado estamos entendidos. E, quanto ao sistema económico internacional, quanto ao contexto em que o comércio internacional foi um poderoso factor de crescimento de economias nacionais de feição exportadora, parece razoável dizer-se, como alguns o fazem com veemência, que também conhecemos os limites da persistência de elevados défices comerciais externos por parte de grandes economias.

Quer isto dizer que me parece acertado colocar na agenda, sobretudo para economias periféricas, o regresso a política industriais activas. Estas políticas hão-de resultar do propósito de repor o crescimento nos lugares cimeiros das prioridades. E hão-de, sobretudo, consistir em meios pelos quais se regresse a transformação produtiva das economias, dando lugar a uma lógica de investimento que origine produções não-tradicionais susceptível de valorização internacional.

Parece-me claro que inquietações desta natureza sugerem inquietações de idêntica natureza quanto ao conhecimento económico que mais facilmente se tem difundido e reproduzido nas últimas décadas. Sou dos que acham que a teoria económica dominante foi um dos responsáveis activos pela crise, designadamente pela teoria dos mercados que propalou. Quer isto dizer que a crise comporta um convite irrecusável ao regresso ao pluralismo das concepções económicas, o que certamente há-de estar associado a visões prudentes sobre a organização económica e os mecanismos de que dispomos para promover a coordenação dos agentes. Uma parte desse convite não pode ser ignorado por uma faculdade de economia – refiro-me à maneira como ensinamos economia e como sugerimos aos estudantes formas de aprendizagem robustas, inteligentes e capazes de produzirem benefícios sociais relevantes.

Ora, acho eu, iniciativas como esta são já um contributo inestimável para estes últimos propósitos e por isso felicito de novo os organizadores.

*Director e Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Sociais


publicado por Carlos Loures às 14:00
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