Numa tarde de Abril de 1936, em Torres Vedras, em pequena e modesta casa onde os meus pais viviam, saltei cá para fora a berrar que nem um danado. A gravidez da minha mãe fora de risco mas eu apareci escorreito. Meu pai terá respirado fundo e certamente jurou que nunca mais se metia noutra aventura daquelas. Era homem de palavra e cumpriu.
A infância mostrou teimosia e paciência. Notou-se logo às refeições em que o tempo, sendo imaterial, para mim não existia. Não raro juntava o almoço com o lanche e este com o jantar sem me levantar da mesa. Minha mãe perdia as estribeiras. Cheguei a estar mais do que uma hora com uma peça de fruta no prato. Era no tempo da guerra e eu entretinha-me inventando batalhas mas a fruta não a comia. Comer era já em si uma batalha, ou melhor um desafio à paternidade austera daquele tempo. Abandonei a fruta aos 12 anos e o vinho aos 14, até hoje.
A adolescência não foi recomendável. Os castigos e reguadas recebidos na Primária tiveram a faculdade de despertar a rebeldia contra a autoridade. Com 12 anos tinha no liceu o “cadastro” de cábula; quando me provocavam e perdia a paciência (coisa difícil) tinha a fúria de um touro levando tudo à frente.
Carta do Céu: signo Touro, ascendente Virgem, 1º decanato, Marte em Touro, mais Urano e Mercúrio. Belo retrato!
Naquele tempo crescia-se nas ruas jogando a bola, andando de bicicleta, rodando o pião, manobrando a fisga como arma de defesa e ataque. A malta movimentava-se para as mais “audazes” aventuras. Ninguém receava ser raptado, abusado, frito, roubado, pelo que corríamos sozinhos todas as ruas. Torres Vedras ensinou-me a ver e viver o mau e o bom, praticar ambos e escolher depois o meu caminho. Nos cafés aprendi a jogar bilhar e xadrez, fiz teatro nas colectividades, dancei paso-dobles e tangos, pratiquei desportos inclusive de pancadaria. Observei a vida sacrificada nas aldeias; operários fabris com ordenados de pobreza; famílias sem Caixa de Previdência porque a assistência na saúde era rara e má; médicos sacerdócio percorrendo campos sem estradas nem luz; a média burguesia de comerciantes conquistando o seu lugar numa sociedade até ali dirigida pelo poder económico dos ricos lavradores e industriais. Foi por aqui e pelos livros que entrei na realidade. Brinquei e convivi com pobres e ricos, crentes e ateus. Iniciei-me a escrever no jornal da terra (Badaladas) com o cinema por temática, a colaborar no teatro, a imaginar cultura. Estudava pouco do que devia e muito do que não devia. Meu pai, coitado, não entendia esta anacrónica atitude. Concluído o quinto ano do liceu pedi-lhe para ir trabalhar em vez de gastar o seu dinheiro sem resultado. Foi uma decisão séria, tomada a sério, pelo acabei com o folclore. Estava escolhido o meu caminho. Tinha 17 anos em 1953.
O momento era o dos cineclubes com quem o Secretariado Nacional da Informação (SNI) não simpatizava, mas engolia. Eu andava a escrever em revistas de cinema como a “Visor”, “Imagem”, etc. e fazia crítica na “Vértice”. Fui conhecendo gente da área, uns já se foram das canetas e outros arrastam por aí a velhice. Foram eles (José Ernesto de Sousa, Henrique Espírito Santo, José Fonseca e Costa, Vitoriano Rosa) que me entusiasmaram a fundar em Torres Vedras um cineclube (Junho 1956). A sua história de resistência e contestação é longa para a poder contar, todavia, a fim de situá-la sempre vos digo que acabou por ter uma comissão administrativa nomeada pelo SNI e uma acção persecutória levada a cabo pela PIDE. É suficiente!
Costumamos dizer: fecha-se uma porta abre-se uma janela. No meu caso abri duas A primeira criando no jornal “Badaladas” um “Suplemento Cultural” de 4 páginas (1961-1964) e a segunda levando ao palco “O Doido e a Morte” de Raul Brandão. Pelo caminho editara o primeiro livro: “Diário de um Espectador de Cinema” (1961), ingénuo e fraquito. Enfim, um devaneio… Em seguida o pequeno caderno de contos “A Primeira Manhã”(1964), Publicações Imbondeiro (Sá da Bandeira – Angola), dirigidas por Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme. Neste entretanto casei-me e fui pai de uma menina. Acabava o 1º acto da peça de teatro pessoal.
O segundo acto abre com o protagonista deitando a língua de fora ao destino, trocando-lhe as voltas no princípio de 1964. Larga a terra natal, sem mala de cartão, e vem trabalhar para Lisboa, numa editora, e morar no Algueirão ao tempo localidade maneirinha.
Comecei com o Menano (António Augusto Menano), na mesma empresa, que regressou à Figueira e eu fiquei a dirigir a edição de cursos técnicos por correspondência cuja especialização acabei por fazer em Barcelona. Voltei mais vezes, mas na primeira, quando Franco ainda mantinha a proibição da língua catalã, conheci o escritor Manuel de Pedrolo (1918-1990), de quem me tornei amigo, um dos maiores da Catalunha que persistiu sempre em escrever e editar em calão uma obra imensa que nos finais da década de oitenta tinha títulos com tiragens de 100 mil exemplares. Nunca o consegui editar por cá. Nenhum dos editores contactados se interessou em publicá-lo pelo que ainda persiste como um desconhecido em Portugal.
O meu primeiro romance “Uma longa e Estranha Pausa” (1970) surgiu aos 34 anos, narrativa desenvolvida ao estilo de visualização cinematográfica. Como não podia deixar de ser em 1972 apareceu “Barcelona, Cidade na Catalunha”, modesta homenagem à cidade e aos catalães.
A vida na editora não correspondia às minhas ambições pelo que tratei de mudar de estaleiro, por minha iniciativa, para uma fábrica de confecções em Benfica onde assumi o cargo de director de publicidade. Era um trabalho catita. Mal pago mas catita. Aprendi coisas novas sobre mercados, moda, técnicas de comunicação, psicologia dos consumidores, vaidade humana, rissóis de camarão, cocktails, conselheiros acácios, acompanhantes de serviço. Catadupas de gente! Um deslumbramento para um provinciano. Quando podia acabava os dias nos cafés do Rossio à fala com os intelectuais assíduos. Foi curto o percurso. Acusado de ser activista de esquerda na empresa (o que era mentira) perdi o emprego e ganhei uma úlcera no duodeno.
Farto de me chatear com patrões decidi eu próprio tornar-me um deles juntando-me com dois colegas e montando uma agência de publicidade. Teso que era, fui pedir dinheiro emprestado para realizar a quota e entrar na aventura. Quando chegou o 25 de Abril de 1974 a empresa levava seis anos e estava a dar o salto para subir a outro patamar. Trambolhou mas não morreu pelo que após o 11 de Março camaradas do ramo (camaradas é o termo exacto) planearam nacionalizar as agências substituindo-as por uma única(método Lenine). Era o capitalismo na agonia, diziam quando me procuraram e me ofereceram um lugar de topo se aderisse com a minha empresa. Patrão fui, patrão sou, patrão serei. Nacionalizado só à força pelo COPCON.
Estávamos no inesquecível e surrealista tempo do PREC em que nos deitávamos com um país e levantávamo-nos com outro. Arranjar trabalho representava uma odisseia pelo que cheguei a inventá-lo a fim de manter o pessoal ocupado. Uma tarde, andando pela Baixa a carpir mágoas comigo próprio, deparei com a revista “L’Horoscope” que trazia a carta do céu e dava dicas para o futuro. Se andava tudo à rasca, interrogando a vida, uma publicação destas deveria ser um êxito. Limitei-me a interpretar o acidente como um negócio pois para ser sincero era um céptico militante daqueles assuntos. Desta circunstância ocasional nasce a “Astros” com dois crentes amigos meus e eu velo-me envolvido pela magia da interpretação do destino. Gozei à brava a escrever uma linguagem nova que preparava para publicar com as informações fornecidas pelos astrólogos. Debruçados sobre uma mesa quadrada, um lâmpada caída do tecto fornecendo uma luz tosca que projectava sombras nas paredes, procurávamos desgraças para publicar na revista. Criávamos um certo ambiente de mistério de modo a absorver melhor o mundo do oculto.
Acho uma bela cena para fazer cair o pano do segundo acto embora a representação vá continuar no mesmo cenário.
Em 1976 editei, pela Plátano Editora, o livro de contos “Requiem pelos Fiéis Defuntos”, referente aos que tinham vivido os tempos do fascismo. Dois anos mais tarde vinham as “Cartas da Revolução” que analisava o tempo caótico do pós 25 de Abril e dos protagonistas principais. Foi um “flop”! Não se deu pelo livro! Dei eu que o tinha escrito e pouco mais. Entretanto, enquanto procurava manter-me a boiar na profissão ia, paralelamente, rumando com a revista e entrando mais intimamente nos segredos da profissão dos astrólogos de serviço. Esses contactos e a exactidão de muitas das suas previsões acabaram por despertar a minha curiosidade. Fui comprando livros, lendo, exercitando, discutindo e realizando reflexões entre a lógica do mundo real e a concretização das previsões em tempo futuro. Foi uma experiência espantosa para o desenvolvimento de imensas interrogações sobre razão, concreta e científica, e a inteligência não dogmática capaz da tolerância não dogmática.
Ocorre, porém, a contradição dos astrólogos com quem convivia, nenhum evitou que a revista acabasse no fundo. Minto, só um me disse antes de começar: “Você está entusiasmado e convencido que a revista será um sucesso, mas engana-se. Dentro de um ano estará fora dela e a apostar na sua empresa”. E assim foi como o Horus me avisou.
Quando a “revolução” se aconchegou ao enlevo da democracia e os partidos sossegaram a publicidade ressuscitou. O estado voltou a acolher em seus braços, militantes, primos, primas, filhos e enteados (repetindo os vícios da Monarquia Constituinte e da 1ª República), garantindo a matilha de fiéis seguidores. A actividade profissional absorveu-me obrigando a uma constante adaptação às súbitas transformações na na sociedade portuguesa. Era tudo muito veloz, combativo, emotivo. Durante 15 anos não publiquei um livro mas crónicas semanais no diário “A Capital”, quando era um grande jornal da tarde.
Assim fui vivendo e guardando emoções e ideias, numa gaveta do cérebro, como se fossem latas de conserva. Um dia o raio da gaveta abriu-se e escrevi de uma pernada “Corpo Enigmático” (1993), logo de seguida o segundo romance, “Uma Mulher no Papel” (1996), há mais de 20 anos a passear dentro de mim como um fantasma. Por esta altura o destino aplicou-me um golpe que me levou ao tapete. Surge-me então, vinda do fundo dos tempos da adolescência, a memória das poesias do António Botto e o livro que me havia de ajudar a recomeçar tudo de novo: “António Botto, real e imaginário”(1997). A eles devo, ao António Botto e ao livro, retorno à vontade, ao impulso para escrever e fazer coisas através da descoberta de um homem cuja vida era em si um romance. Passei em seguida a escrever avulso por aqui e por ali, mas havia ainda um livro cabeça que exigia grande e demorada pesquisa e desejava concretizá-lo nos primeiros anos do século XXI. Tratava-se de escrever a memória humana da minha cidade com as alegrias e os dramas de sucessivas gerações, os actos que marcaram o seu desenvolvimento, a história das grandes polémicas, rivalidades, fortunas e misérias que ditaram tragédias. A feira, o cinema, o teatro, a fé, a política, a imprensa, a luz eléctrica, a vida que teria percorrido a minha terra natal durante todo o século XX. Foi deste modo que nasceu “Os Guardadores do Tempo” (2007) e depois o “Roteiro Turístico de Torres Vedras (2008).
Chegava à reforma e ao final do terceiro acto com 72 anos. Deste modo simples um homem vivera os dias da sua vida exterior podendo através deles traçar o seu auto-retrato. Este era o publicável porque o outro, interior, aquele que é meu companheiro secreto, desconheço onde se guarda: no cérebro, no coração ou na alma. Mas existe.
Reside em mim e em mim viverá até ao fim dos meus dias.
Algueirão, 9 de Junho de 2010