De Xénophiles (1948). Este poema foi incluído no poemário da Assírio & Alvim, de 2004. Aos responsáveis da editora, à editora e aos descendentes de André Breton apresentamos os nossos cumprimentos e o nosso obrigado.
Este poema integra a obra Contos do Gin-Tonic, de Mário-Henrique Leiria. Reproduzimo-lo a partir da 6.ª edição, da Editorial Estampa. Pedimos a compreensão da da editora, assim como a dos herdeiros do autor. A ambos enviamos os nossos cumprimentos.
1923: A 2 de Janeiro Mário-Henrique Leiria nasce em Lisboa. - 1942: É expulso, em Lisboa, da Escola Superior de Belas Artes, talvez por motivos políticos. - 1949/51: Participa nas movimentações surrealistas portuguesas, entre as quais a obra colectiva Afixação Proibida. - 1952/57: Vários empregos: Marinha Mercante, caixeiro viajante, operário metalúrgico, servente de pedreiro, etc... Viaja pela Europa ocidental e central, também pelo norte de África. - 1958: Visita a Inglaterra. - 1959: Casa, em Lisboa, com uma rapariga alemã; dois anos depois o casal irá separar-se. - 1961: “Operação Papagaio” e MHL é detido pela PIDE. Parte para o Brasil. - 1970: Regressa a Portugal. - 1973: Publica Contos do Gin-Tonic. - 1974: Publica Novos Contos do Gin. Revolução do 25 de Abril, em Portugal. - 1975: MHL é o chefe de Redacção de O COISO, suplemento semanal do diário A REPÚBLICA. Publica Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças e Casos de Direito Galáctico seguido de O Mundo Inquietante de Josela (fragmentos). - 1976: Adere ao PRP (Partido Revolucionário do Proletariado) - 1979: Publica Lisboa ao voo do pássaro. - 1980: A 9 de Janeiro morre em Cascais (degenerescência óssea).
SURREALISMO E CARBONÁRIA
Ó Mário-Henrique: conhecemo-nos em Lisboa, no Café Chiado, em 1951. Tinha eu uns 20 anos e tu eras mais crescidinho, terias uns 28. Lembras-te? Se não te lembras, lembro-me eu, tu sempre agitadinho e a provocar tudo e todos, militância surrealista, as coisas arrancadas do seu lugar habitual, humor negro, a tua rebeldia a oscilar entre as artes plásticas, a prosa e a poesia.
No interior de uma das casas de banho do Café há, na porta, um poema escrito com tinta ácida, impossível de apagar:
Aqui
cagou
Pio XI,
Rei dos Ciganos.
Negas ser o autor mas desmanchas-te a rir e mais me convenço que o poema é teu.
O que tu adoras é choques em cadeia, dentro ou fora das casas de banho... Também te dá muito gozo atropelar os adeptos do “neo-realismo” (nome que, por causa da PIDE e da Censura, em Portugal se dá ao “realismo socialista” apregoado pelo camarada Zdanov). Aproximas-te da mesa do Manuel Ribeiro Pavia e começas a espicaçá-lo por causa das ceifeiras rechonchudas que não pára de esboçar, desenhar e colorir. O Pavia não te suporta, é trombudo por natureza, leva tudo a sério. Guarda os desenhos, fecha a pasta, levanta-se, vira costas, vai-se embora. Não desistes e começas logo a mordiscar o José Dias Coelho, aquele escultor, teu antigo condiscípulo na Escola de Belas Artes, aquele apóstolo comunista que a PIDE irá matar a tiro numa rua do bairro de Alcântara. Mas não consegues varar as suas naturais defesas, ele desmancha-se a rir com as tuas investidas e acaba por te dar um grande abraço. Saudade tens, saudade temos da fraterna inteireza do Zé Dias...
Andas sempre à porrada. Não só com os neo-realistas mas também com os surrealistas, os outros do teu grupo. Não vos entendo, é a briga do Césariny com o António Pedro, e depois tu para um lado e o ALEXANDRE O’NEILL para outro enquanto na primeira sala do Café, sentado a uma mesa, o poeta António Maria Lisboa vai morrendo aos poucos, tuberculose. Apesar de vocês terem feito obras colectivas, como as colagens da Afixação Proibida, os vossos burrinhos estão sempre a puxar cada qual para o seu lado. Porrada, é só porrada... Até que um dia me dizes e passo a entender-te melhor:
- O meu avô é que era um gajo porreiro e muito giro. Pertencia à Carbonária. De segunda a sexta-feira trabalhava mas nos fins de semana fazia a Revolução. Ainda tenho lá em casa o bacamarte que ele usava contra a Monarquia...
Quero ver esse tal de bacamarte e tu convidas-me a ir a tua casa, uma vivenda em Carcavelos, a dois passos de Lisboa, à beira-mar, logo depois da foz do Tejo.
- Mas num domingo à noite, está a ouvir?
- Porquê domingo à noite?
- Tu vais ver...
E vejo. A vivenda onde moras, que foi dos teus pais, que é da tua mãe, fica próximo da estação dos Caminhos de Ferro, mesmo ao lado do cinema. À meia-noite subimos à torrinha e quando os espectadores começam a sair do cinema para a rua, tu empunhas o bacamarte do teu avô e começas aos tiros. Para o ar, mas aos tiros. A malta desata toda a fugir e tu a rir. E eu também, obviamente...
Só agora é que estou realmente a perceber-te: nas horas mais insólitas o teu gene da Carbonária resolve pôr os corninhos ao sol. Até de noite...
* Nota sobre a "Operação papagaio" - Este magnífica biografia de Mário-Henrique Leiria, foi uma das fontes que utilizei na feitura de um texto que aqui publiquei. Contém, no entanto, uma imprecisão pequena, mas importante. Talvez o Fernando Correia da Silva tenha interpretado mal o que lhe disse o Mário-Henrique, pois a "Operação Papagaio" não passou da fase conspirativa. Houve uma tentativa frustrada porque o recinto desportivo do Rádio Clube Português estava cheio de uma multidão que inviabilizou a operação, que foi adiada uma semana. Entretanto, os conspiradores foram presos pela PIDE. De resto, tudo se passou como o Fernando conta. É mesmo uma das melhores descrições da «Operação.(CL)*
Há tempos atrás, num outro blogue, o Aventar, recordei o poeta Pedro Oom. Começava assim:
«Segundo reza a história, a Revolução de 25 de Abril de 1974 apenas provocou quatro mortos. Agentes da PIDE/DGS, aterrados com a multidão que gritava sob as janelas do quartel-general daquela polícia, dispararam sobre os manifestantes, matando quatro e ferindo muitos outros. A História está errada – foram cinco e não quatro os que morreram nesse dia devido à Revolução. A poucos metros do sinistro palácio da Rua António Maria Cardoso, no Largo de Camões, dois poetas seguiam, entre muitas outras pessoas que enchiam o largo naquela tarde de Primavera, as peripécias dos agentes da secreta que, saltando de telhado em telhado procuravam escapar de ser presos pela força de fuzileiros que invadira o edifício. Era o António José Forte e o Pedro Oom. O Pedro estava feliz e comentava para o Forte: «Nunca esperei ver uma coisa destas, os pides a fugir de nós!». Sorria, e de repente, sentiu-se mal cambaleou e caiu. O Forte, ajudado por algumas outras pessoas, estenderam-no sobre um banco do largo e tentaram reanimá-lo. Alguém foi rapidamente telefonar a pedir uma ambulância. Nada feito. O coração do Pedro não aguentou tanta alegria».
Pois bem, as coisas não se passaram assim, embora fosse deste modo que o episódio me foi contado (e, desta maneira, se fabricam as lendas). Uma amiga comum, Celeste Baeta, companheira do Adriano de Carvalho, do qual já aqui falei também, num comentário ao meu texto esclarecia que o poeta Pedro Oom terá morrido morreu, de emoção e de alegria, mas no dia 26 de Abril, às 14,30, quando no «Restaurante 13», festejava com uns amigos a queda do regime fascista. Ela estava presente. Aproveito para agradecer à Celeste o esclarecimento, evitando que continuasse a divulgar uma versão muito interessante e poética, mas falsa. Já aqui contei como o Francisco Fanhais, durante muito tempo antecedia a interpretação de uma canção com versos meus, contando que me despedira da minha mulher, dizendo-lhe «até já» e que, sendo preso pela PIDE no café onde fora, só voltei passados seis anos. Logo que o conheci pessoalmente, bastante depois do 25 de abril, esclareci-o – a prisão não fora de seis anos, mas sim de seis meses. A verdade é a grande inimiga das lendas!
Mas o que queria dizer sobre o Pedro, não é afectado pela diferença entre a verdade e a lenda da sua morte. Conheci-o em 1958 no Café Gelo, do Rossio. Quando, em 1959, organizei a revista Pirâmide, ele colaborou no primeiro número com o poema inédito “Um ontem cão” (que não transcrevo por ser muito longo). Estive depois uns anos sem o ver, pois saí de Lisboa. Voltámos a encontrar-nos em 1973. Encontrávamo-nos, num dia certo da semana, num restaurante da Rua João Crisóstomo, o Forte, a pintora Aldina, sua mulher, eu e a minha mulher, o Jaime Camecelha, o Pedro Oom, que éramos o núcleo duro do projecto, e mais alguns que apareciam com menos regularidade.
O Pedro só deixava revelar o poeta surrealista que o habitava quando falava. O seu aspecto era muito formal – roupa cuidada, gravata… Ninguém diria o que ia por aquela cabeça – a criatividade, as ideias inusitadas, mas de uma lógica impecável. E dizia todas aquelas inesperadas coisas., numa voz baixa, contida, com palavras muito correctas – só as ideias eram surpreendentes - a da comuna, por exemplo.
No Restaurante (Pelé, salvo erro) falávamos da queda do regime (tínhamos acesso aos comunicados que saíam das reuniões do MFA) e projectávamos criar uma comuna, uma espécie de falanstério. A ideia fora lançada pelo Pedro. Chegámos, eu e o Jaime num fim-de-semana, a ir ver terrenos no Ribatejo – iríamos todos viver para lá e seríamos auto-suficientes. Era um projecto que o Pedro pensara ao pormenor e de que um dia talvez aqui fale. Andávamos muito entusiasmados com a ideia.
Com a morte do Pedro Oom, o utópico projecto não voltou a ser debatido.
Pedro Oom nasceu em Santarém (24 de Junho de 1926). Inicialmente ligado ao neo-realismo, aderiu ao movimento surrealista. Foi o mentor da teoria do abjeccionismo, ao redigir, em 1949, o Manifesto Abjeccionista. Até 1974, os seus textos encontravam-se dispersos por jornais e revistas. Alguns desses textos poéticos, foram postumamente compilados em Actuação Escrita (1980) e em Histórias para Crianças Emancipadas, pequenos poemas ou relatos escritos com um insólito non sense próprio da poesia surrealista.
Como o poema «Pode-se escrever» que podemos ouvir, declamado por Mário Viegas.
Paul Éluard, pseudónimo de Eugène Emile Paul Grindel, nasceu em 1895, Saint-Denis (Paris) e morreu em 1952, Charenton-le-Pont (Paris). Poeta francês. Participou no movimento dadaísta, de Tristan Tzara, e depois no surrealismo, de André Breton. Desvinculou-se deste último movimento depois de ter aderido ao Partido Comunista Francês, embora continue a ser considerado como um dos maiores poetas surrealistas. Autor de uma extensa obra literária é, no entanto, o seu poema Liberté, escrito em 1942, quando a França estava ocupada pelas forças alemãs, que se transformou num ícone de Éluard. Muitos milhares de exemplares foram impressos, distribuídos clandestinamente, lançados sobre França pelos aviões britânicos. Ouçamo-lo, dito pelo grande actor francês Gérard Philipe (1922 –1959):
Em 1965 tive uma polémica com Mário Cesariny de Vasconcelos que me valeu a excomunhão do movimento surrealista. Cerca de dois anos antes, enviara ao Jornal de Letras e Artes, de Azevedo Martins, uma série de artigos sob o título «Demónios do Absurdo». Neles, em prosa surrealizante, exaltava figuras como as de Alfred Jarry, Jean-Arthur Rimbaud e Isidore Ducasse, Comte de Lautréamont, todos eles precursores do movimento lançado em 1924 pelo manifesto redigido por André Breton. O jornal não publicou nem (contra o que era habitual) me devolveu os textos. Protestei, não me responderam e eu esqueci o assunto. Até porque me envolvi numa alhada política que, em Janeiro de 1965, me levou à prisão. A polícia supunha-me um passarão importante, abusou dos esquemas habituais de «persuasão» e, depois, desiludida, vendo que não tinha «matéria» para me levar a tribunal, ao fim de três meses pôs-me na rua. Na realidade, eu era um elemento sem qualquer importância – distribuíra uns panfletos com a prosa do «Chico» Martins Rodrigues, recolhera uns fundos e pouco mais.
Vinha de muito mau humor e, colaborando no suplemento literário do Jornal de Notícias (na altura dirigido por Nuno Teixeira Neves) com uma crónica semanal sobre poesia, canalizei para essa croniqueta semanal todo o meu ódio ao estúpido sistema e a quantos, nomeadamente escritores supostamente de esquerda, pactuavam com o statu quo. – mais ou menos o que agora faço aqui, mas com a fúria dos vinte e poucos anos. A censura cortava muito, mas o que passava era mesmo assim excessivo – marxismo-leninismo, em estado puro e primário, sob a forma de crítica poética. Foi então, quando se comentava no pequeno planeta português das letras a minha fúria antifascista, concordando uns e discordando a maioria, que o Jornal de Letras e Artes resolveu pegar nos textos (quatro ou cinco) que lhes enviara e os publicou com todo o destaque na primeira página e com títulos (tirados do texto, mas escolhidos a dedo). O meu lirismo marxista-leninista sofreu um rude golpe. Os meus «apoiantes», a malta do «escacha-pessegueiro», ficaram desiludidos – «Mais um a baldar-se!», pensaram.
Fiz então uma carta para o Jornal de Letras e Artes a pôr os pontos nos is – deixara de ser surrealista, o jornal manipulara as coisas, etc. O Mário Cesariny de Vasconcelos, o papa do surrealismo português, não me perdoou e numa carta, que o jornal publicou verberava a minha abjuração, acusando-me de me ter aburguesado. Vi-me obrigado a responder. Com o mau humor decorrente da porrada que levara e das longas noites de insónia forçada, não estava com paciência para aturar reprimendas de quem, merecendo-me o respeito devido a um grande poeta, passava os dias no café ou nos transportes públicos a tentar engatar marinheiros (Cesariny tinha um grande fascínio pelas fardas). E, isto é que conta, no intervalo destas coisas, escrevia a sua maravilhosa poesia.
Enfim, foi um corte completo. O meu nome que até então, figurava nas publicações surrealistas, foi limpo numa manobra que faz lembrar as técnicas da Checa, limpando Trotsky e outros elementos inconvenientes das fotografias históricas. Coisa que nada me preocupou. De facto, Cesariny tinha toda a razão. Nada tenho a ver com o surrealismo, embora tenha promovido e editado uma das poucas revistas que o movimento produziu. Explico como aconteceu essa revista, a Pirâmide», num depoimento prestado ao Daniel Pires. Note-se que o Benjamim Marques, um talentoso artista plástico, cujo rasto perdi (sei que foi para França ainda nos anos 60), no único registo gráfico que existe do grupo do Gelo, um desenho em que retratou as pessoas que o compunham, não me incluiu, embora não se tenha esquecido de uma rapariga, a Tininha (que por gralha passou à posteridade como «Fininha», uma jovem da mais antiga corporação profissional do mundo, que trabalhava no Ritz Club, e às vezes passava ali pelo café, mas que , de modo algum, era um elemento do grupo).
Por outro lado, designa o João Fernandes, um membro tão respeitável como os outros, por «João Zanaga» uma alcunha que aludia a um estrabismo que, ouvi dizer, corrigiu depois com uma cirurgia. O pormenor curioso é que eu, que fui excluído, e o João Fernandes que foi alcunhado, éramos, em todo o grupo, as pessoas que o Benjamim Marques melhor conhecia. Priváramos durante muitos anos, entre a infância e a adolescência no Ateneu, onde estudámos juntos. Falta também no retrato o João Vieira que era já um pintor com algum nome. Uma forma de acertar contas com inimigos de infância e concorrentes? Talvez, pois, apesar de tudo, não acredito que o Cesariny lhe tivesse guiado a mão e na altura em que o desenho foi feito eu não caíra ainda em desgraça.
Abro aqui um parêntesis, porque já que estou a falar de uma excomunhão, lembro-me da ameaça de uma outra. O Raul Leal (1886-1964) o mais velho elemento do grupo, era uma figura muito curiosa. Colaborador do «Orpheu», amigo de Fernando Pessoa, escandalizara a Lisboa do primeiro quarto do século XX ao assumir a sua homossexualidade no panfleto Sodoma Divinizada (1923). Hoje seria uma coisa vulgar, mas naquela altura era quase inconcebível (não a homossexualidade, mas a sua assunção). Foi atacado por todos os sectores de opinião, valendo-lhe a defesa que dele fez Pessoa. Vinha de uma família rica, era formado em Direito e ocupava as funções de Governador do Banco de Portugal. O escândalo foi enorme, proporcional à sua notoriedade social. Constou mesmo que iria ser excomungado. Considerando-se o profeta de uma nova religião, proferiu uma frase que ficou famosa: «Se o Papa me excomungar, eu excomungo o Papa!».
Apesar desta escaramuça, seria ingratidão não reconhecer que foi com os mestres do surrealismo que, mal ou bem, aprendi a escrever, embora os meus temas sejam realistas. Há mesmo quem me considere um neo-realista e, dando força a essa classificação, ainda há meses animei uma sessão no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira. Porém, a minha prosa tenta fugir à crueza estilística que tipifica esse movimento, embora a maioria dos neo-realistas tenha feito o mesmo (mas muito melhor do que eu) – Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca e até um dos patriarcas, Soeiro Pereira Gomes, por exemplo, escreveram furtando-se a essa aridez formal que apenas Alves Redol nos seus primeiros livros e alguns epígonos seguiram. No entanto, apesar deste corte de relações que durou para sempre, pois Cesariny tinha mau feitio e o meu também não é dos melhores (o papa excomungou-me e eu excomunguei o papa). apesar disso, dizia, nunca me esqueci, nem esquecerei de que Mário Cesariny de Vasconcelos foi um grande poeta, um dos maiores do seu tempo.
Acabamos de receber esta triste notícia – Alfredo Margarido, um homem que dedicou a sua vida à cultura, ao ensino, à investigação, faleceu hoje dia 12 em Lisboa. Longe dos focos mediáticos, a sua morte não tem sido noticiada. E no entanto, que grande perda a sua morte significa para a cultura portuguesa. Estrolabio endereça os seus sentidos pêsames a familiares e amigos do Professor Alfredo Margarido.
Alfredo Margarido, nasceu em Moimenta, concelho de Vinhais, em 5 de Fevereiro de 1928. Estudou na Escola de Belas-Artes do Porto e expôs obras de cerâmica no Porto e em Lisboa, em 1954, bem como esculturas em Luanda, Angola, em 1956. Esteve em S. Tomé e em Angola. Em 1964, instalou-se em Paris onde criou a revista “Cadernos de Circunstância” Professor universitário, fez parte dos corpos docentes de diversas instituições do Ensino Superior em França. No Brasil ensinou nas Universidades de S. Paulo (USP), Campinas, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade da Paraíba do Sul (João Pessoa). Dedicou-se especialmente à sociologia da literatura e aos problemas africanos. Poeta, ensaísta e ficcionista, foi um dos introdutores do nouveau roman francês em Portugal.
Na sua obra destaca-se - Poemas com Rosas (1953); - Poema Para uma Bailarina Negra ( 1958); No Fundo Deste Canal(1960); - A Centopeia (1961) - Teixeira de Pascoaes — A Obra e o Homem(1961) O Novo Romance (em colaboração com Portela Filho)(1962) - A Osga, in Novos contos d'África : antologia de contos angolanos (1963) - As Portas Ausentes (1963) - Jean-Paul Sartre (1965) - La pensée politique de Fernando Pessoa (197191975 - A Introdução do Marxismo em Portuga em 1976 - Marânus: Uma Linguagem Poética Quase Niilista; em 1980 - Estudos sobre Literaturas das Nações Africanas de Língua Portuguesa em 1984 - As Surpresas da Flora no Tempo dos Descobrimentos em1989 - Plantas e conhecimento do mundo nos séculos XV e XVI 2000 - A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses - 33+9 Leituras Plásticas de Fernando Pessoa (1988)
Em 1965 tive uma polémica com Mário Cesariny de Vasconcelos que me valeu a excomunhão do movimento surrealista. Cerca de dois anos antes, enviara ao Jornal de Letras e Artes, de Azevedo Martins, uma série de artigos sob o título «Demónios do Absurdo». Neles, em prosa surrealizante, exaltava figuras como as de Alfred Jarry, Jean-Arthur Rimbaud e Isidore Ducasse, Comte de Lautréamont, todos eles precursores do movimento lançado em 1924 pelo manifesto redigido por André Breton. O jornal não publicou nem (contra o que era habitual) me devolveu os textos. Protestei, não me responderam e eu esqueci o assunto. Até porque me envolvi numa alhada política que, em Janeiro de 1965, me levou à prisão. A polícia supunha-me um passarão importante, abusou dos esquemas habituais de «persuasão» e, depois, desiludida, vendo que não tinha «matéria» para me levar a tribunal, ao fim de três meses pôs-me na rua. Na realidade, eu era um elemento sem qualquer importância – distribuíra uns panfletos com a prosa do «Chico» Martins Rodrigues, recolhera uns fundos e pouco mais. Vinha de muito mau humor e, colaborando no suplemento literário do Jornal de Notícias (na altura dirigido por Nuno Teixeira Neves) com uma crónica semanal sobre poesia, canalizei para essa croniqueta semanal todo o meu ódio ao estúpido sistema e a quantos, nomeadamente escritores supostamente de esquerda, pactuavam com o statu quo. – mais ou menos o que agora faço aqui, mas com a fúria dos vinte e poucos anos. A censura cortava muito, mas o que passava era mesmo assim excessivo – marxismo-leninismo, em estado puro e primário, sob a forma de crítica poética. Foi então, quando se comentava no pequeno planeta português das letras a minha fúria antifascista, concordando uns e discordando a maioria, que o Jornal de Letras e Artes resolveu pegar nos textos (quatro ou cinco) que lhes enviara e os publicou com todo o destaque na primeira página e com títulos (tirados do texto, mas escolhidos a dedo). O meu lirismo marxista-leninista sofreu um rude golpe. Os meus «apoiantes», a malta do «escacha-pessegueiro», ficaram desiludidos – «Mais um a baldar-se!», pensaram.
Fiz então uma carta para o Jornal de Letras e Artes a pôr os pontos nos is – deixara de ser surrealista, o jornal manipulara as coisas, etc. O Mário Cesariny de Vasconcelos, o papa do surrealismo português, não me perdoou e numa carta, que o jornal publicou verberava a minha abjuração, acusando-me de me ter aburguesado. Vi-me obrigado a responder. Com o mau humor decorrente da porrada que levara e das longas noites de insónia forçada, não estava com paciência para aturar reprimendas de quem, merecendo-me o respeito devido a um grande poeta, passava os dias no café ou nos transportes públicos a tentar engatar marinheiros (Cesariny tinha um grande fascínio pelas fardas). E, isto é que conta, no intervalo destas coisas, escrevia a sua maravilhosa poesia.
Enfim, foi um corte completo. O meu nome que até então, figurava nas publicações surrealistas, foi limpo numa manobra que faz lembrar as técnicas da Checa, limpando Trotsky e outros elementos inconvenientes das fotografias históricas. Coisa que nada me preocupou. De facto, Cesariny tinha toda a razão. Nada tenho a ver com o surrealismo, embora tenha promovido e editado uma das poucas revistas que o movimento produziu. Explico como aconteceu essa revista, a Pirâmide», num depoimento prestado ao Daniel Pires. Note-se que o Benjamim Marques, um talentoso artista plástico, cujo rasto perdi (sei que foi para França ainda nos anos 60), no único registo gráfico que existe do grupo do Gelo, um desenho em que retratou as pessoas que o compunham, não me incluiu, embora não se tenha esquecido de uma rapariga, a Tininha (que por gralha passou à posteridade como «Fininha», uma jovem da mais antiga corporação profissional do mundo, que trabalhava no Ritz Club, e às vezes passava ali pelo café, mas que , de modo algum, era um elemento do grupo).
Por outro lado, designa o João Fernandes, um membro tão respeitável como os outros, por «João Zanaga» uma alcunha que aludia a um estrabismo que, ouvi dizer, corrigiu depois com uma cirurgia. O pormenor curioso é que eu, que fui excluído, e o João Fernandes que foi alcunhado, éramos, em todo o grupo, as pessoas que o Benjamim Marques melhor conhecia. Priváramos durante muitos anos, entre a infância e a adolescência no Ateneu, onde estudámos juntos. Falta também no retrato o João Vieira que era já um pintor com algum nome. Uma forma de acertar contas com inimigos de infância e concorrentes? Talvez, pois, apesar de tudo, não acredito que o Cesariny lhe tivesse guiado a mão e na altura em que o desenho foi feito eu não caíra ainda em desgraça.
Abro aqui um parêntesis, porque já que estou a falar de uma excomunhão, lembro-me da ameaça de uma outra. O Raul Leal (1886-1964) o mais velho elemento do grupo, era uma figura muito curiosa. Colaborador do «Orpheu», amigo de Fernando Pessoa, escandalizara a Lisboa do primeiro quarto do século XX ao assumir a sua homossexualidade no panfleto Sodoma Divinizada (1923). Hoje seria uma coisa vulgar, mas naquela altura era quase inconcebível (não a homossexualidade, mas a sua assunção). Foi atacado por todos os sectores de opinião, valendo-lhe a defesa que dele fez Pessoa. Vinha de uma família rica, era formado em Direito e ocupava as funções de Governador do Banco de Portugal. O escândalo foi enorme, proporcional à sua notoriedade social. Constou mesmo que iria ser excomungado. Considerando-se o profeta de uma nova religião, proferiu uma frase que ficou famosa: «Se o Papa me excomungar, eu excomungo o Papa!».
Apesar desta escaramuça, seria ingratidão não reconhecer que foi com os mestres do surrealismo que, mal ou bem, aprendi a escrever, embora os meus temas sejam realistas. Há mesmo quem me considere um neo-realista e, dando força a essa classificação, ainda há meses animei uma sessão no Museu do Neo-Realismo em Vila Franca de Xira. Porém, a minha prosa tenta fugir à crueza estilística que tipifica esse movimento, embora a maioria dos neo-realistas tenha feito o mesmo (mas muito melhor do que eu) – Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca e até um dos patriarcas, Soeiro Pereira Gomes, por exemplo, escreveram furtando-se a essa aridez formal que apenas Alves Redol nos seus primeiros livros e alguns epígonos seguiram. No entanto, apesar deste corte de relações que durou para sempre, pois Cesariny tinha mau feitio e o meu também não é dos melhores (o papa excomungou-me e eu excomunguei o papa). apesar disso, dizia, nunca me esqueci, nem esquecerei de que Mário Cesariny de Vasconcelos foi um grande poeta, um dos maiores do seu tempo.
Como sendo um eco da “Maratona Poética” que às 24 horas de ontem terminou e que tanto interesse suscitou, provocando um acentuado acréscimo no número de visitas e no de leituras, balanço de que daremos conta proximamente, vou continuar por estes dias a falar de poetas que conheci e que já não estão entre nós. Hoje será a vez do Manuel de Castro.
Conheci o Manuel de Castro no café Gelo, em 1958. Tinha um feitio difícil, passando facilmente de uma extrema afabilidade para uma agressividade também excessiva (ou vice-versa). Se fosse hoje, dir-se-ia que sofria de bipolaridade. Na época atribuíam-se estas coisas a razões mais prosaicas – ao excesso de álcool, por exemplo. Porque Manuel de Castro foi um grande poeta, era uma excelente pessoa, mas abstémio não era. À medida que o íamos conhecendo, ia dissolvendo-se a sua carapaça de formalismo ou de grande animosidade, e aparecia o verdadeiro Manuel – cordial, bem humorado, irónico, com grande capacidade de encaixe para aceitar críticas. Ria-se em prolongadas casquinadas que lhe faziam estremecer os ombros.
Eu não valorizaria nem a eventual bipolaridade, nem o real alcoolismo – diria que Manuel de Castro era uma pessoa tímida e sem jeito para o convívio. Não fazia concessões nem fretes – se lhe liam um poema e se ele não gostava, dizia-o logo de forma brutal e demolidora ou de maneira delicada, mas consistente, consoante estava em dia sim ou em dia não. Tinha uma personalidade vincada e, sobretudo, era um grande poeta a quem nunca foi dado o merecido valor.
Éramos muito amigos. Uma vez até andámos à porrada (e há lá melhor maneira de selar uma amizade!). Uma piada envenenada que ele disse sobre a «Pirâmide» e que eu levei a mal. Felizmente que estávamos ambos com os copos e, diz quem assistiu à cena, que a maioria dos murros acertou no vácuo. Ele tinha uma direita potente e aleijou os dedos nos azulejos da parede. Talvez mais sóbrio, esquivei-me a tempo e o Manuel andou com a mão ligada nos dias seguintes. Se me tem acertado, partia-me ao meio. Foi na festa de despedida do Café Royal, salvo erro, no fim de 1960 ou no princípio de 1961. Passou a ser um banco.
Com um outro amigo que apenas me lembro chamar-se Toninho, fomos uma vez acampar para o Zambujal, perto de Bucelas. Foi uma épica semana de copos e aventuras várias. Houve também, no Verão de 61, um agradável almoço em minha casa, perto de Carcavelos, com o Renato Ribeiro e a Fernanda, o Benjamim Marques e a companheira, de cujo nome não me lembro, do Manuel e a Natália, sua mulher, eu e a Helena, que tínhamos acabado de casar.
Depois saí de Lisboa. Poucas cartas escrevemos, pois não éramos de grandes epistolografias. Quando vinha a Lisboa, víamo-nos e pude ir apercebendo-me de que a doença iria levar a melhor (o Luiz Pacheco afirmava que foi uma espécie de suicídio, continuando a beber depois de saber que isso lhe seria fatal). Com 37 anos, morreu. Um amigo e um grande poeta que desapareceu.
Mas não da minha memória.
Manuel de Castro, nasceu em 17 de Novembro de 1934 em Lisboa e faleceu, também em Lisboa em 12 de Setembro de 1971. Viveu os primeiros anos em Goa, onde o seu pai era encarregado do Governo e depois na antiga Lourenço Marques. Regressado a Lisboa e tendo perdido a mãe aos 6 anos, o pai enviou-o aos 8 anos para o Seminário dos Padres da Consolata. Sem vocação sacerdotal, fugiu do seminário. Autodidacta, interessou-se por diversos ramos do conhecimento – a literatura, a poesia, a filosofia, as línguas. Sabia sete idiomas para além do português., incluindo o alemão e o dialecto de Heidenheim, cidade em que viveu cerca de 4 anos e em que foi interprete da polícia e dos tribunais, face a quantidade de emigrantes ali existentes das mais diversas nacionalidades.
Em 1958 saiu o seu primeiro livro de poesia – «A Zona». Mais tarde publicou «Paralelo W» com capa de João Vieira, e «Estrela Rutilante». Colaborou na revista Pirâmide, com Alfredo Margarido, Ángel Crespo, Edmundo Bettencourt e outros grandes nomes da cultura portuguesa e internacional, nos Cadernos do Meio Dia, na Poesia 71, na Colóquio, na Árvore, na & ETC, na Contraponto…Foi incluído na Antologia do Surrealismo e o Abjeccionismo. Foi também integrado nas duas antologias da Novíssima Poesia Portuguesa da responsabilidade dos escritores Mello e Castro e Maria Alberta Menéres e ainda na do Humor Português que abrange escritores dos séculos XVIII a fins do século XX. Numa bienal de Paris entre 1963-66 foi considerado, com Carlos Drummond de Andrade, um dos melhores poetas da língua portuguesa. Do número 2 da Pirâmide, seleccionei um poema. Ei-lo:
Poema
A noite está líquida oclusa vegetal é um corpo longilíneo e desmembrado flui como um rio de si mesmo alheio flui e envolve pressagiando cárceres a noite tem hoje uma altitude especial com aves negrejando lentamente neste desintegrar-se de memória e eu sou uma alucinação rítmica com um tempo corpóreo a devorar um mar excessivamente quieto na cabeça excessivamente muscular e lúcido a noite distribui pedaços de lua aos farrapos na inconsciência dos prédios sobre a cidade a cidade a cidade louca que desvairou nas minhas mãos nos dedos possuída de um candelabro antigo a partir-se um lampadário cristalino e rutilante a quebrar-se com súbitos estilhaços pela noite fora viajo nitidamente pelo passado na organização de um jogo de perigo: o meu amor é a aquisição de uma técnica um processo de transformação dos corpos a prospecção dramática dos ritos uma queda livre e vertical um olhar imóvel sobre o mar a oferta do tempo sem comércio nem ódio fibra a fibra do tempo crivado de buracos baleado assassinado corrupto perdido o meu amor é correcta magia dos sons a ultrapassagem da noite fulminante e arrebatada num círculo de fogo coberta de engenhos de destruição correndo extensamente sem peso o meu amor é uma trovoada nas margens da noite uma proposta veiculada a sangue patrocinada pelos mortos deambulantes e é ainda a carcaça húmida dos barcos destroçados n’areia a noite é um coral magnífico na noite
Nestes dias que antecedem a “Maratona”, temos feito um esforço por publicar textos dedicados à poesia e a poetas. Prosseguindo, vou hoje recordar a figura de Ernesto Sampaio, um bom poeta, sobretudo, um homem de uma grande cultura.
Conheci o Ernesto Sampaio (1935-2001) no café Gelo, em 1958. Na tarde de 16 de Maio eclodiram motins por ocasião da chegada a Lisboa, vindo da triunfal visita ao Porto, do general Humberto Delgado. Já houvera confrontos na estação de Santa Apolónia e repetiram-se, com maior violência, quando o general chegava à sede da candidatura, que funcionava no Teatro Avenida. No meio da refrega, encontrei-me lado a lado com o Ernesto Sampaio que conhecia, como já disse, do Gelo. E lá andámos na faina do arremesso de pedras, nos avanços e fugas – o trivial, nestas coisas. Já anoitecia, quando chegámos ao Gelo. Contámos aos outros, que tinham ficado a ouvir os rumores da refrega, o que se passara. Ficámos com uma relação boa, embora um pouco formal (nunca nos tratámos por tu). Ele era uns anos mais velho e isso, naquelas idades e naquele tempo, tinha alguma importância. E talvez não fosse só pela idade – o Ernesto era de uma erudição que na altura me atemorizava. Foi a ele que confiei a primeira leitura de uma tradução que fizera de um texto de Breton, de que ele era exímio tradutor. Eu frequentara o liceu Charles Lepierre, sabia bastante de francês, como estudante, mas a tradução, que me apressei a deitar fora, estava, por certo, horrível, escolar. Enquanto a lia vi que ele se esforçava por não se rir. Quando acabou a leitura, disse-me: «Bem, tem umas infidelidadezitas, umas acepções certas, mas mal escolhidas, soluções demasiado literais… mas assim até fica mais surrealista!» Percebi logo que a tradução estava péssima e desatei-me a rir e o Sampaio que, por delicadeza, estava a conter uma gargalhada, soltou-a.
Tenho uma dedicatória muito amistosa no seu livro «Luz Central», colaborou na revista «Pirâmide».Saliente-se que, no grupo do Café Gelo, embora maioritariamente antifascistas, as pessoas tinham pouca paciência para falar de política que consideravam coisa repugnante. Era com o Forte, com o Virgílio Martinho e com o Sampaio que podia desabafar a minha revolta pelo estado de coisas (após a minha segunda prisão, Virgílio referia-me com o «poeta quadriculado», aludindo às grades do Aljube e de Caxias).
Ernesto Sampaio, não recusando o compromisso político-partidário, foi um dos mais lúcidos elementos do movimento surrealista. Depois da minha saída de Lisboa, vi-o poucas vezes mas falámos sempre com amizade. E, depois do meu regresso, vimo-nos também raramente.
Lembro-me, como última, de uma conversa rápida no foyer do Teatro Aberto, durante um intervalo. Criticámos a política cultural, com o cuidado de quem anda em terreno minado – eu sabia-os, a ele e à Fernanda, militantes do PCP; eles sabiam-me «esquerdista» - não queríamos ofender-nos. De forma que a nossa última conversa foi travada num terreno que sabíamos comum – o da condenação da perniciosa influência dos americanos na cultura europeia. Soube da sua morte pelos jornais. Um ano antes, morrera a actriz, da companhia do Teatro Nacional de D. Maria II, Fernanda Alves (1930-2000), sua mulher. Quem privava com ele de perto, atribui a sua morte ao desgosto que sofreu pela perda da Fernanda. A ela dedicou o último livro que publicou - Fernanda.
Ernesto Sampaio nasceu em Lisboa em 10 de Dezembro de 1935 e faleceu, também em Lisboa, em 5 de Dezembro de 2001. Publicou Luz Central (1957), Para uma Cultura Fascinante (1958), Antologia doHumor Português (1964), A Procura do Silêncio (1986), O Sal Vertido (1988), Fourier (1996), Feriados Nacionais (1999), Ideias Lebres (1999) e Fernanda (2000).
Escolhi um pequeno excerto de Luz Central, também seleccionado na antologia de Perfecto E. Cuadrado, (Poesia Surrealista Portuguesa, Edicións Laiovento, Compostela, 1996):
Texto Poético (excerto final)
Noite sem rasto guia-me até ao meu destino escondido na solidão das ruas inconcreto na vastidão das horas onde tu existes misteriosa e nocturna no teu perfil de bruxa e de rainha apátrida e nostálgica deslizando no vidro da madrugada azulando de raios gelados o Dia que nasce viva e oculta cada vez mais viva e oculta cada vez mais única de amor humano com a tristeza das luzes marítimas com a gravidade de quem parte suavemente para sempre
You are welcome to Elsinore
O fogo despe-se cada vez mais cheio de alegria alisado no vento de cada poro da aurora
Começa-se a abrir o Sol em gotas de sangue tatuadas de esperma
Há uma flor de lava no fim de cada braço no fim de cada perna no fim dos tempos
E uma chuva de cinzas e de espinhos caminha a meu lado onde começa o mar das grandes lanças de água
É todo o teu ventre a cantar nas minas da catástrofe de noites sem véus de rios que começam a vida de gestos no crepúsculo São os teus olhos voando sobre os frutos da tempestade
É a cabeleira da Terra envenenando o ar de beleza ao ritmo alucinado com que abres as pálpebras deixando sair os lagos da tua infância e a luz louca da crisálida que nos gerou dissimulada em cada pedra em cada cama onde morremos juntos
Chicote ronronando por cima de nós em noites desmedidas na coragem de ver nascer uma nova manhã e uma nova estrada e uma nova boca incrível
Monstros sem ordem génios galopando na respiração estrelada dos meus pulmões Primaveras a recolher numa outra vida numa outra vida amante
Olhar suculento mestre do horror e da audácia gelada em cada canto em cada flor de fumo colada aos ossos dum horizonte inocente e inesgotável
Poeira dum astro pré-existente ao nosso espiral dos dias que estreitamos puros tripas da raiva vegetal que embrulhamos em cada palavra
Fogo perpétuo fruto espantoso de bandeiras negras e vermelhas comboio que esmaga e canta e ninguém deterá
Fuzis do hálito esbraseado danados embraiados num sinal nos ares num sinal vermelho
Na cinta a pistola de cada injustiça nas costas a metralhadora da porrada que nos deram no bolso um chacal a sorrir-nos no sexo tu
Tu meu avião de vinho minha rã no cérebro meu castelo de múmias minha jovem eterna de mãos de radium minha fonte que enche a boca de estrelas meu grande ventre de movimentos marítimos meu incêndio possuído numa cama de meteoros meu sopro de todas as potências minhas costas de Mar e de Terra minhas coxas de deboche minha mulher de movimentos de fuzilamento de movimentos loucos minha flor de sangue de ferro de esperma minha destruição luminosa minhas nádegas de noite e de loucura MEU AMOR
Habito a lealdade dos presságios Começo a ser um bom leito para o meu sangue
1923: A 2 de Janeiro Mário-Henrique Leiria nasce em Lisboa. - 1942: É expulso, em Lisboa, da Escola Superior de Belas Artes, talvez por motivos políticos. - 1949/51: Participa nas movimentações surrealistas portuguesas, entre as quais a obra colectiva Afixação Proibida. - 1952/57: Vários empregos: Marinha Mercante, caixeiro viajante, operário metalúrgico, servente de pedreiro, etc... Viaja pela Europa ocidental e central, também pelo norte de África. - 1958: Visita a Inglaterra. - 1959: Casa, em Lisboa, com uma rapariga alemã; dois anos depois o casal irá separar-se. - 1961: “Operação Papagaio” e MHL é detido pela PIDE. Parte para o Brasil. - 1970: Regressa a Portugal. - 1973: Publica Contos do Gin-Tonic. - 1974: Publica Novos Contos do Gin. Revolução do 25 de Abril, em Portugal. - 1975: MHL é o chefe de Redacção de O COISO, suplemento semanal do diário A REPÚBLICA. Publica Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças e Casos de Direito Galáctico seguido de O Mundo Inquietante de Josela (fragmentos). - 1976: Adere ao PRP (Partido Revolucionário do Proletariado) - 1979: Publica Lisboa ao voo do pássaro. - 1980: A 9 de Janeiro morre em Cascais (degenerescência óssea).
SURREALISMO E CARBONÁRIA
Ó Mário-Henrique: conhecemo-nos em Lisboa, no Café Chiado, em 1951. Tinha eu uns 20 anos e tu eras mais crescidinho, terias uns 28. Lembras-te? Se não te lembras, lembro-me eu, tu sempre agitadinho e a provocar tudo e todos, militância surrealista, as coisas arrancadas do seu lugar habitual, humor negro, a tua rebeldia a oscilar entre as artes plásticas, a prosa e a poesia.
No interior de uma das casas de banho do Café há, na porta, um poema escrito com tinta ácida, impossível de apagar:
Aqui cagou Pio XI, Rei dos Ciganos.
Negas ser o autor mas desmanchas-te a rir e mais me convenço que o poema é teu.
O que tu adoras é choques em cadeia, dentro ou fora das casas de banho... Também te dá muito gozo atropelar os adeptos do “neo-realismo” (nome que, por causa da PIDE e da Censura, em Portugal se dá ao “realismo socialista” apregoado pelo camarada Zdanov). Aproximas-te da mesa do Manuel Ribeiro Pavia e começas a espicaçá-lo por causa das ceifeiras rechonchudas que não pára de esboçar, desenhar e colorir. O Pavia não te suporta, é trombudo por natureza, leva tudo a sério. Guarda os desenhos, fecha a pasta, levanta-se, vira costas, vai-se embora. Não desistes e começas logo a mordiscar o José Dias Coelho, aquele escultor, teu antigo condiscípulo na Escola de Belas Artes, aquele apóstolo comunista que a PIDE irá matar a tiro numa rua do bairro de Alcântara. Mas não consegues varar as suas naturais defesas, ele desmancha-se a rir com as tuas investidas e acaba por te dar um grande abraço. Saudade tens, saudade temos da fraterna inteireza do Zé Dias...
Andas sempre à porrada. Não só com os neo-realistas mas também com os surrealistas, os outros do teu grupo. Não vos entendo, é a briga do Césariny com o António Pedro, e depois tu para um lado e o ALEXANDRE O’NEILL para outro enquanto na primeira sala do Café, sentado a uma mesa, o poeta António Maria Lisboa vai morrendo aos poucos, tuberculose. Apesar de vocês terem feito obras colectivas, como as colagens da Afixação Proibida, os vossos burrinhos estão sempre a puxar cada qual para o seu lado. Porrada, é só porrada... Até que um dia me dizes e passo a entender-te melhor:
- O meu avô é que era um gajo porreiro e muito giro. Pertencia à Carbonária. De segunda a sexta-feira trabalhava mas nos fins de semana fazia a Revolução. Ainda tenho lá em casa o bacamarte que ele usava contra a Monarquia...
Quero ver esse tal de bacamarte e tu convidas-me a ir a tua casa, uma vivenda em Carcavelos, a dois passos de Lisboa, à beira-mar, logo depois da foz do Tejo.
- Mas num domingo à noite, está a ouvir?
- Porquê domingo à noite?
- Tu vais ver...
E vejo. A vivenda onde moras, que foi dos teus pais, que é da tua mãe, fica próximo da estação dos Caminhos de Ferro, mesmo ao lado do cinema. À meia-noite subimos à torrinha e quando os espectadores começam a sair do cinema para a rua, tu empunhas o bacamarte do teu avô e começas aos tiros. Para o ar, mas aos tiros. A malta desata toda a fugir e tu a rir. E eu também, obviamente...
Só agora é que estou realmente a perceber-te: nas horas mais insólitas o teu gene da Carbonária resolve pôr os corninhos ao sol. Até de noite...
"OPERAÇÃO PAPAGAIO"
Mário-Henrique Leiria e mais uns tantos são detidos pela PIDE por causa de uma conspiração “surrealista” contra o Governo.
Em Janeiro de 1954, antes que a PIDE me deite a luva, consigo dar o salto para o Brasil. Nas vésperas ainda tento dar-te um abraço de despedida. Não consigo, estás a viajar pela Europa, irás também ao norte de África, prémio que te concedeste depois de teres trabalhado quer na Marinha Mercante, quer como caixeiro viajante, operário metalúrgico, servente de pedreiro, e não sei que mais...
Já no Brasil saberei que em 1958 arregaçaste as mangas durante a campanha do Humberto Delgado à Presidência da República. E que em 1961 também estavas disposto a arregaçá-las quando da falhada revolta de Beja. Saberei ainda que te apaixonastes pela Dietlinde Hartel, a Fipsy, uma alemã, linda mulher. Com ela casaste, em Lisboa, em 1959.
Contar-me-ão também o que a maioria dos frequentadores do Café A Brasileira em 1961 já sabe, regabofe colectivo: tu, e um grupo de malucos, entre os quais Virgílio Martinho e o poeta António José Forte, estão a programar, de mesa para mesa e em voz alta, a revolucionária “Operação Papagaio”. Numa das próximas noites vocês propõem-se bater à porta do Rádio Clube Português, que fica na Parede, povoação mesmo ao lado de Carcavelos. Lá dentro há apenas um contínuo enquanto roda a bobine com o programa nocturno “Companheiros da Alegria”. A porta é aberta. Vocês apontam um revólver, imobilizam, amarram e metem o contínuo num cacifo que depois fecham por fora, a cadeado. Entram no estúdio e trocam a bobine por uma outra que trazem convosco. Esta contem marchas militares, também o Hino Nacional tocado frequentemente e, a cada cinco minutos, notícias sobre movimentações militares para derrubar o Governo. Termina convidando a população a deslocar-se á Baixa de Lisboa para saudar os militares vitoriosos.
Enquanto gira a nova bobine vocês retiram-se do Rádio Clube Português. Ficarão, pelas esquinas, a aguardar a reacção dos ouvintes que, esperam, seja de entusiasmo...
Quem não aguarda é a PIDE, que vos prende mas fora d’A Brasileira, para não dar nas vistas. Durante o interrogatório os agentes, volta e meia, correm para o corredor a desrolhar as gargalhadas. Vocês ficam detidos uns quatro ou cinco dias, talvez uma semana. Depois levam uns safanões e são postos na rua. O espaço já é curto para arrecadar tantos subversivos, quanto mais uns brincalhões inofensivos... *
BRASIL
Mário-Henrique Leiria localiza a sua alemã no Recife, mas não a incomoda.
Ainda em 1961 a Fipsy fica de lotação esgotada com os teus desatinos e passa-te as palhetas, regressa à Alemanha. Depois, atrás de uma nova paixão, pira-se para o Brasil. Inconformado, vais à sua procura. O curioso é que nas voltas e contravoltas legais do divórcio pedido pela alemãzinha, acabarás por te apaixonar por Isabel Alves da Silva, a advogada portuguesa da tua mulher, ou ex-mulher... A Isabel não resiste ao romance. Mas tu aqui e ela acolá, às vezes o Atlântico pelo meio, acaba a Isabel por se casar com um irlandês. O que não impede que vocês, durante uns 14 anos, troquem cartas de amor, muitas. Dirás tu: “O amor assim é mais barato...”
Em Abril de 1962 estou eu em São Paulo, sentado numa esplanada junto á Biblioteca Municipal, a beberricar uma cerveja. Levanto os olhos e vejo-te a passar, muito apressadinho.
- Mário, ó Mário-Henrique, ó grande sacana!
O grande abraço. Contas-me das tuas traduções de ficção científica para a colecção Argonauta. Sempre a conversar e a recordar os tempos idos, cruzamos a Itapetininga e descemos a Avenida de São João até ao Vale do Anhangabaú. Levo-te para minha casa. Apresento-te a minha mulher. Ela improvisa um jantar para o inesperado convidado. Acabas por felicitá-la pelo excelente caldo Knorr que, num instante, preparara. Gargalhadas e assim irrompe amizade bem-humorada...
Eu e a minha mulher temos três filhos com 7, 5 e 3 anos. Transformas os teus joelhos em cavalinhos e, enquanto os miúdos cavalgam, os teus dedos não se cansam de encharcá-los com cócegas desde o pescoço até aos pés...
Dois anos depois desapareces, perco a tua pista. Porém, por portas e travessas, saberei que localizaste a Fipsy em Recife. Mas não te aproximas, não a perturbas, ficas apenas a mirá-la, de longe, de muito longe...
Por essa época os problemas ósseos começam a atormentar-te. “Fiquei com um joelho (o direito) e um pé (o esquerdo) totalmente desarranjados, coisa que de vez em quando não me permite dar um passo e me chateia incrivelmente com dores”, assim te queixas, em carta de Dezembro de 64, à advogada Isabel, tua paixão fora de esquadria.
Em 74 dir-me-ás que andaste pelo Brasil a preparar stands para exposições, a encenar peças, a dirigir uma editora. Acredito que tudo isso tenha realmente acontecido. Mas quando depois me dizes que também andaste na luta armada contra a ditadura militar brasileira e contra outras ditaduras sul-americanas, tremo todo... Acho que voltaste às colagens surrealistas, “o que gostarias de ter feito” pespegado a cuspo sobre “aquilo que realmente fizeste”. Ai Papagaio Papagaio, ai Carbonária...
GIN-TONIC
Sei que voltaste a Portugal em 1970. Reencontramo-nos em Lisboa em 74, depois do 25 de Abril. Tu empenado porque, só para te chatear, a tua estrutura óssea começa a desabar...
Eu bem sabia que em 73 lançaras os Contos do Gin-Tonic e nos princípios de 74 os Novos Contos do Gin. Mas só depois da Revolução dos Cravos é que a tua prosa pega como fogo em palheiro, sucessivas edições de um e outro livro. Como é possível a surrealidade converter-se de repente em best seller? Tenho um exemplo à mão que talvez explique o fenómeno: durante a maré-cheia de Abril os meus três filhos navegam da adolescência para a juventude. E é a ti, ó Mário-Henrique, é justamente a ti que eles escolhem para figura emblemática do vendaval. Os teus contos e os novos contos do Gin-Tonic, por causa da irreverência e rebeldia, são para eles apetitosas cartas de marear. Está explicado? Faço-me entender?
Já tinhas dado à sola desta vida quando o actor Mário Viegas, no teatro e na tv, começou a interpretar os teus Contos do Gin-Tonic. Nós de olhos fixos ora no palco, ora na tela, pontaria, garra e graça, ver e ouvir, ao mesmo tempo fruir dois Mários, o Leiria a escrever, o Viegas a dizer. Pena que não tivesses assistido aos espectáculos, bem sentimos a tua falta. Em 96 o Mário Viegas passou-se para o Além, também ele. Acho que foi à tua procura.
Agora, para recordar os velhos tempos, vou beber, de enfiada, nove dos teus copos de Gin-Tonic. Aí vou eu, aí vens tu:
TORAH
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê.
SEPARATA GRATUITA
O QUE ACONTECERIA
SE O ARCEBISPO DE BEJA
FOSSE AO PORTO
E DISSESSE QUE ERA NAPOLEÃO
Toda a gente acreditava que era. O presidente da Câmara nomeava-o Comendador. Iam buscar a coluna de Nelson, tiravam o Nelson e punham o arcebispo lá em cima. E davam-lhe vinho do Porto.
Então o arcebispo dizia:
- Sou a Josefa de Óbidos.
Ainda acreditavam que era, embora menos. O presidente da Câmara apertava-lhe a mão. Iam buscar o castelo de Óbidos, tiravam os óbidos e punham o arcebispo na Torre de Menagem. Além disso, davam-lhe trouxas d’ovos.
Nessa altura, convicto, o arcebispo de Beja afirmava:
- Sou o arcebispo de Beja.
Não acreditavam. Davam-lhe imediatamente uma carga de porrada. E punham-no no olho da rua. Nu.
CARREIRISMO
Após ter surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai admoestou-o.
Depois de ter roubado a caixa do senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na rua.
Voltou passados vinte e dois anos, com chofer fardado.
Era Director Geral das Polícias. Seu pai teve o enfarte.
ÚLTIMA TENTAÇÃO
Então ela quis tentá-lo definitivamente. Olhou bem em volta, com extrema atenção. Mas só conseguiu encontrar uma pêra pequenina e pálida.
Ficaram os dois numa desesperante frustração.
Não há dúvida que o Paraíso está a tornar-se cada vez mais chato!
CONTABILIDADE FINAL
Parece mentira, mas ainda não recebi os rublos moscovitas. E esta, ein! Só tenho coisas que me ralem.
RIFÃO QUOTIDIANO
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece
EXAGEROS
O Alfredo atirou o jornal ao chão, irritadíssimo, e virou-se para mim:
- Estes jornalistas! Passam a vida a inventar coisas, é o que te digo. Então não afirmam que, no Sardoal, foi encontrado um frango com três pernas! Vê lá tu! É preciso ter descaramento.
Ajeitou-se melhor no sofá e, realmente indignado, coçou a tromba com a pata do meio.
CASAMENTO
“Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe.”
Perfeitamente.
Sempre cumpri o que assinei.
Portanto estrangulei-a e fui-me embora.
HISTÓRIA EXEMPLAR
Entrei.
- Tire o chapéu – disse o Senhor Director.
Tirei o chapéu.
- Sente-se – determinou o Senhor Director.
Sentei-me.
- O que deseja? – investigou o Senhor Director.
Levantei-me, pus o chapéu e dei duas latadas no Senhor Director.
Saí.
O COISO Mário-Henrique Leiria é o chefe de redacção de O COISO, suplemento do diário A REPÚBLICA.
Com Rui Lemus, Carlos Barradas, Couto e Santos e uns tantos outros, congeminas e a 7 de Março de 1975 és o chefe de redacção de O COISO, novo suplemento semanal do diário A REPÚBLICA. Provocação e humor negro a acelerar nas curvas, entrevistas apócrifas com Spínola, Kissinger, Hitler, Pinochet, Salazar, Marcelo Caetano, etc. e fotomontagens a ilustrá-las; por exemplo, Kissinger a dançar empunhando uma foice e um martelo; ou o Spínola convertido em musculoso “cabo de mar” na praia de Copacabana... Mas a irreverência incomoda muitos dos jornalistas teus colegas. Nem sequer os comunistas a aparam lá muito bem, porque estás sempre a gozar com tudo e com todos, até com os chapéus, os gorros, os bonés, os barretes e as carapuças do camarada Brejnev... Na Redacção, por entre gargalhadas, quem frontalmente te apoia é o Fernando Assis Pacheco, também o Álvaro Belo Marques e poucos mais. Um dia preparas-te para publicar na primeira página de O COISO uma violenta caricatura não só à boina, mas também à cabeça do Raul Rego, o director d’A REPÚBLICA. Caricatura congelada pela direcção do jornal e eis a gota que faz transbordar a hostilidade entre o radicalismo m-l dos operários gráficos e o socialismo bem comportado da administração e da maioria dos redactores. Extremam-se posições. Na rua, frente ao jornal, enfrentam-se piquetes ora aplaudidos, ora vaiados pelo público que, de hora a hora, vai mudando conforme as mobilizações partidárias. A REPÚBLICA acaba por ser suspensa, fechada mesmo em 19 de Maio de 1975. Também O COISO, está-se a ver. Do suplemento lançaste 11 números. O último foi em 16 de Maio de 1975.
A fome começa a rondar-te porque os direitos autorais dos teus Contos e Novos Contos do Gin chegam sempre tarde e a más horas ao teu bolso.
VODKA & CIA. LDA.
Apesar de cada vez mais empenado, ainda vais escrevendo e publicando: Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças, Casos de Direito Galáctico (de tradutor passas a autor de ficção científica) seguido de O Mundo Inquietante de Josela (fragmentos), Lisboa ao voo do pássaro.
Para te ajudar a ultrapassar as dificuldades financeiras, uma jornalista reúne uns tantos amigos para, em conjunto, te comprarem mantimentos. Quando eles batem à tua porta, atiras as provisões pela escada abaixo e tratas de insultá-los. Não aceitas esmolas, de ninguém!
Sim, aquela escada da mesma e velha vivenda em Carcavelos. Ali moras agora com a tua mãe e uma tia, duas velhotas que já rondam os 90 anos. Também com o Vodka, um cão-linguiça todo preto e encorpado, em cujo pescoço de vez em quando armas um laçarote encarnado, pois os canitos também têm direito à Revolução. Porém o Vodka não está muito interessado em revoluções, prefere abocanhar e fugir com as tuas peúgas. Corres, ou tentas correr atrás dele. Levantas a bengala, erras o alvo e acertas a porrada mas é nos costados da tua tia. Lá vai a velha de charola para o hospital de Cascais. Por cima do cancro que a devora, tem agora uma costela partida... Um sarilho!
DERRADEIRO FAX
A 25 de Novembro de 1975 o General Eanes e o Grupo dos Nove dão um golpe militar para travar Abril montado no esquerdismo galopante. Ficas muito preocupado, temes o regresso ao tempo da Outra Senhora, ao fascismo. Tratas logo de aderir ao PRP - Partido Revolucionário do Proletariado - da Isabel do Carmo e do Carlos Antunes, que insistem na acção armada para defender a Revolução.
- Ó Mário-Henrique: mas se nem uma bengala tu consegues segurar como deve de ser, quanto mais uma espingarda ou metralhadora...
Que te importa! O que é preciso é agitar a ideia da acção armada, ai Carbonária, Carbonária...
Muitas vezes vou bater à tua porta a convidar-te a dar uma volta de carro. Aceitas sempre. De Carcavelos vamos à praia do Guincho e depois subimos à Serra de Sintra. Gostas muito de ir até ao Cabo da Roca. Será por causa da paisagem agreste, ou por ser ali a ponta mais ocidental da Europa? Sabe-se lá o que se passa pelos teus miolos...
Em Janeiro de 1980 és internado no hospital de Cascais. Um lampejo, a Fipsy, a Isabel e, sem dares cavaco aos amigos, passas-te. És um chato!
Bem, acho que já acabei a evocação da tua vida e da tua obra, vou botar aqui um ponto final.
Espera, espera aí um instante que está a chegar um fax. Não me surpreende: é o São Pedro a lamentar-se que não desistes de converter o Império do Céu em República Popular do Purgatório.
* Nota sobre a "Operação papagaio" - Este magnífica biografia de Mário-Henrique Leiria, foi uma das fontes que utilizei na feitura de um texto que aqui publiquei. Contém, no entanto, uma imprecisão pequena, mas importante. Talvez o Fernando Correia da Silva tenha interpretado mal o que lhe disse o Mário-Henrique, pois a "Operação Papagaio" não passou da fase conspirativa. Houve uma tentativa frustrada porque o recinto desportivo do Rádio Clube Português estava cheio de uma multidão que inviabilizou a operação, que foi adiada uma semana. Entretanto, os conspiradores foram presos pela PIDE. De resto, tudo se passou como o Fernando conta. É mesmo uma das melhores descrições da «Operação.( CL)
Todos conhecem «Leitaria Garrett», a bela canção de Vitorino, com que abrimos este post, mas o que nem todos sabem é que o autor da letra foi António José Forte. Falemos então do «mano Forte», como lhe chamava o Luiz Pacheco.
António José Forte nasceu em 1931, na Póvoa de Santa Iria. Ligado ao movimento surrealista, fez parte nas décadas de 50 e 60 do chamado grupo do Café Gelo. Colaborou no segundo número da revista Pirâmide (1959) e em diversos jornais, tais como A Rabeca, Notícias de Chaves, O Templário, Diário de Lisboa, A Batalha, JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, publicou o seu primeiro livro, «40 Noites de Insónia de Fogo de Dentes Numa Girândola Implacável e Outros Poemas», em 1958. A sua poesia está reunida em «Uma Faca nos Dentes» (Parceria A. M. Pereira, 1983), com prefácio de Herberto Helder e desenhos de Aldina Costa, artista plástica e sua companheira. Trabalhou durante quase trinta anos na Fundação Calouste Gulbenkian. Entre a sua obra, destacam-se, além dos já citados, os livros «Uma Rosa na Tromba do Elefante (1971)» – livro para crianças, «Azuliante» (1984), «Caligrafia Ardente» (1987), «Corpo de Ninguém», que reúne a sua obra poética (1989) e a 2ª edição de «Uma Faca nos Dentes» (2003), que inclui alguns poemas inéditos. Luiz Pacheco publicou «Mano Forte» – correspondência entre ele e A. J. Forte (2002. António José Forte faleceu em Lisboa no dia 15 de Dezembro de 1988.
De Uma «Faca nos Dentes», este poema
AINDA NÃO
Ainda não não há dinheiro para partir de vez não há espaço de mais para ficar ainda não se pode abrir uma veia e morrer antes de alguém chegar
ainda não há uma flor na boca para os poetas que estão aqui de passagem e outra escarlate na alma para os postos à margem
ainda não há nada no pulmão direito ainda não se respira como devia ser ainda não é por isso que choramos às vezes e que outras somos heróis a valer
ainda não é a pátria que é uma maçada nem estar deste lado que custa a cabeça ainda não há uma escada e outra escada depois para descer à frente de quem quer que desça
ainda não há camas só para pesadelos ainda não se ama só no chão ainda não há uma granada ainda não há um coração
Francisco Relógio é o artista plástico que hoje trazemos ao Terreiro da Lusofonia. Cores e formas de Portugal, portanto. Nasceu em Beja em 1926 e faleceu em Lisboa em 1997. Pelo final dos anos 40 estava ainda ligado ao movimento neo-realista, seguindo depois por uma linha mais ligada ao surrealismo. Senhor de um traço muito característico, talvez inspirado nas pinturas aztecas, Relógio foi, sobretudo um grande desenhador. Além da pintura, realizou belos cenários para diversas peças de teatro e cultivou também a cerâmica, o desenho e o azulejo. Existem vários painéis seus de azulejos em Lisboa, mas o mais conhecido é o que se encontra no edifício do Banco Nacional Ultramarino de Maputo (cuja fotografia podemos ver acima).
Grupo Surrealista de Lisboa -I (Exposição dos Surrealistas, Junho/Julho, 1949). Na foto, da esquerda para a direita: Henrique Risques Pereira, Mário Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa e Fernando Alves dos Santos. Carlos Loures
A revista «Pirâmide» da qual, entre Fevereiro de 1959 e Dezembro de 1960, se publicaram três números, e da qual fui um dos coordenadores, teve uma história curta, mas atribulada. Na Primavera de 1958, passei a frequentar o Café Gelo, onde se reunia o grupo dos surrealistas, com figuras como Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Raul Leal, António José Forte, Ernesto Sampaio, Virgílio Martinho e tantos outros, surrealistas ou não. Havia os que não eram tão assíduos, como o João Vieira, o Gonçalo Duarte, o Mário Henrique Leiria, o Manuel D’Assumpção e muitos outros.
Participara na edição de um «poema-manifesto» - “O Menino que não saltou a Cancela”, coisa incipiente, reflectindo a confusão que me ia na cabeça: leituras apressadas, de Marx, Sartre, Breton, alguma determinação antifascista e pouco mais. Porém, o opúsculo serviu de cartão de ingresso naquela tertúlia tão elitista como permissiva. Bastava ser-se um pouco louco, ou mesmo apenas fingi-lo, para se ser aceite. A figura dominante era Cesariny, que funcionava como aglutinador de personalidades tão diferentes como Luiz Pacheco, Herberto Hélder, Raul Leal, Manuel de Castro, António José Forte, Ernesto Sampaio e outros. O deus tutelar, António Maria Lisboa, que morrera em 1953, deixando uma obra reduzida em extensão, mas plena de sugestões geniais.
Um depoimento que prestei ao Daniel Pires para o seu «Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa», diz o essencial. Daí transcrevo algumas linhas: «Com a impaciência, o pragmatismo e o voluntarismo próprios de quem quer resolver a sua confusão interior pela ordenação do mundo exterior, nós, os recém-chegados ao grupo, entendemos que era importante que aquela reunião quotidiana de talentos se traduzisse em algo de concreto - uma revista. A ideia foi acolhida com alguma ironia pelos elementos mais parasitários e com entusiasmo pelos mais valiosos, nomeadamente por Cesariny, que sugeriu o título e que organizou verdadeiramente o primeiro número, o mais ortodoxo dos três que se publicaram.» (…) «Dadas as vicissitudes de um grupo tão heterogéneo como aquele, onde a intriga representava um papel determinante, o segundo número, surgido em Junho de 1959 (quatro meses depois do primeiro), representava já uma contestação à “liderança” de Cesariny. «O número 3, publicado em Dezembro de 1960, estava já quase totalmente esvaziado do inicial conteúdo surrealizante. É, no entanto, o mais autêntico, pois é o único em que ninguém nos “segurou a mão”. Aliás, foi já realizado fora do grupo do Gelo, com gente que parava uns metros adiante, no Café Restauração». Grupo constituído pelo Alfredo Margarido, Edmundo Bettencourt, Manuel de Castro e outros.
Por mérito dos «conselheiros», a Pirâmide, apresentou colaboração literária notável. Entre outros, Antonin Artaud, «O Teatro e a Ciência» ; António Maria Lisboa, «Aviso a Tempo por Causa do Tempo»; Mário Cesariny de Vasconcelos, «Mensagem e Ilusão do Acontecimento Surrealista»; Herberto Hélder, «Poema»; Luiz Pacheco, «O Surrealismo e Sátira» e «A Pirâmide e a Crítica» ; Pedro Oom, «Um Ontem Cão»; Raul Leal, «Psaume»; Virgílio Martinho, «A Propósito do Movimento 57» Apresentou ainda colaboração literária inédita de Alfredo Margarido, Ángel Crespo, Manuel de Castro, Edmundo Bettencourt e de Ernesto Sampaio, bem como reproduções de obras de Amadeo de Souza-Cardoso e Manuel D’Assumpção. Eu colaborei com uma colagem no número 2 e, no número 3, com uma «Carta aos Ladrões de Fogo».
A crítica instalada não recebeu muito bem a revista. À direita. suspeitava-se que aqueles poemas estranhos e aqueles textos desconexos não podiam ser coisa boa. Pela esquerda, gente na sua maior parte, ligada ainda que só ideologicamente ao Partido Comunista, a recepção foi ainda pior. Havia velhas contas a ajustar com os surrealistas e a «Pirâmide» veio mesmo a calhar. João Gaspar Simões, um homem com quem podia não se concordar, mas que teve um papel extremamente positivo na divulgação da literatura portuguesa, nomeadamente de Fernando Pessoa que apenas era conhecido por uma elite, dedicou-nos uma crítica dura na sua página literária do Diário de Notícias. Mais incisivo foi António Ramos de Almeida que, no Jornal de Notícias, ia ao ponto de chamar a polícia ou alguém com um colete de forças.
Luiz Pacheco respondeu-lhes num vigoroso e satírico artigo publicado no número dois. Um dia destes, volto a este assunto.