Segunda-feira, 2 de Maio de 2011
O mundo do trabalho no capitalismo moderno, na economia financeirizada
Introdução
Dia 1 de Maio, dia dos Trabalhadores
Para este dia, uma nota simples. Um trabalhador suicidou-se, imolou-se em França. Drama, é certo, mas que a imprensa podia colocar ou tratar como um fait-divers, como o faz muitas das vezes. Mas este suicídio, segue-se a outros 17 suicídios mais, em 2010, e estes sucedem-se também a outros 35 mais, nos anos anteriores, e na mesma empresa.
Uma célula de apoio psicológico terá sido criada pela France Télécom, quarto operador mundial nas Telecomunicações mas mais uma vez a memória impõe-se-me, traz-me à frente do ecrã do meu computador imagens de um outro continente e de há um ano, apenas. Lembrei-me de que no quadro de uma iniciativa da Faculdade de Economia de Coimbra fizemos uma sessão especial com um filme bem especial, The last Train, sobre as migrações na China. Organizámos um caderno de textos de apoio sobre os trabalhadores na China. Mais um caderno, diremos. Neste caso, com a particularidade de nessa sessão publicarmos um grande texto sobre as características do capitalismo moderno sob o regime da financeirização da economia e assente num regime caracterizado por um duro capitalismo de Estado e caracterizado também pela inexistência de sindicatos capazes de agir na defesa dos trabalhadores.
Neste texto analisava-se as condições de trabalho numa das maiores empresas fabris mundiais, com globalmente mais de um milhão de trabalhadores, a trabalhar quase que exclusivamente para o Ocidente desindustrializado, e por isso mesmo, mas com margens brutas de lucro na ordem apenas dos 4 a 5 por cento. E esse exemplo, era uma das fábricas Foxconn e o texto de referência era uma análise detalhada das condições oferecidas ou impostas aos jovens chineses que para nós, consumidores no Ocidente, produzem dos melhores computadores, que para nós produzem os I PAD’s, os IPOD’s, e para as multinacionais ocidentais geram assim os lucros mirabolantes.
Lembrei-me que também há um ano que nesta empresa, de grande dimensão em que algumas das suas unidades fabris comportam 300.000 operários, também aqui os suicídios se deram em série, também aqui unidades psicológicas de apoio foram criadas e de urgência. Lembro-me bem que se tratava de jovens, muito jovens mesmo, e tenho ainda na retina e no ouvido também, agora que estas linhas escrevo, as palavras cheias de comoção de um estudante, Dino Alves de certeza, que daqui saúdo, que nos explicava a todos nós, com o Gil Vivente quase completamente cheio, como o texto que tinha ajudado a traduzir o tinha comovido e o tinha ajudado a perceber o absurdo dos fundamentos desta globalização.
Ensinou-o a ele e a mim também. Mas tenho também sobre os meus olhos a dureza do texto comentário do meu amigo Flávio, igual a tantos outros Flávio por esta Europa fora, vitimas que são da incapacidade ou da desonestidade de um conjunto de dirigentes que à lógica exclusiva dos mercados financeiros se submeteram ou a ela se venderam, ou até a ela não sequer se venderam porque dela são já eles mesmo um produto e dela são assim parte integrante.
Cremos mesmo que os suicídios de um lado e do outro correspondem às duas faces da mesma moeda, são o resultado da violência do capitalismo moderno onde todos os mecanismos de pressão e de exploração estão disponíveis e utilizáveis, onde a rentabilidade máxima e de curto prazo domina sobre todos os outros objectivos possíveis ou desejáveis, e em que a Ocidente se dispõe de técnicas ultra-refinadas de manipulação, como a gestão da crise o mostra à evidência, e a Oriente se dispõe da força brutal que a falta de democracia lhes pode conferir, sendo agora certo que quer a Ocidente e a Oriente, de um lado e de outro, surge ainda a precariedade como elemento comum a ambos, como arma quase absoluta de manipulação e, sobretudo, de contenção das lutas dos trabalhadores.
Não é por acaso que se dão os suicídios em série na France Télécom e não é por acaso que eles se dão igualmente na China e não é ainda por acaso também que para este longo texto sobre a China lhe foi dado como título Os suicídios como protesto para as novas gerações de trabalhadores migrantes chineses: Foxconn, Capital Global e o Estado. Mas a luta de classes não pode ser isto, mesmo que transitoriamente possa estar a ser isto e é nesta distância que se pode compreender o longo trabalho que pelos sindicatos haverá agora a percorrer, o que na linguagem de Marx poderíamos dizer que este trabalho sindical se insere na longa e dura passagem do em-si da classe operária à enorme força do para-si que a mesma classe terá que assumir face à sofisticação dos mecanismos de pressão pelos Estados modernos exercidos . Retomemos o texto editado na Faculdade de Economia relativamente a este tema:
“Como se assinala no caderno de textos de apoio: “As zonas recém-industrializadas e as cidades na China apresentam numerosos dormitórios colectivos, onde um prédio de cinco andares pode albergar várias centenas de trabalhadores. Nas noites ventosas, as roupas dos trabalhadores, nos corredores do dormitório, esvoaçam como as bandeiras coloridas das multinacionais nos mastros. Estas e essas bandeiras são as bandeiras da nova classe de trabalhadores da China, simbolizando o fluxo de capital sem fronteiras e a miséria na terra socialista”.
Bandeiras espalhadas por todo um grande país, a China, bandeiras que assinalam também o sacrifício de uma geração em que os seus anos de juventude como trabalhadores “são completamente queimados com o ritmo das máquinas, à medida que as suas peças e componentes vão funcionando, à medida que estas vão trabalhando. Os tempos livres e até mesmo as próprias vidas nisso são sacrificadas”. É neste contexto que se pode perceber um texto de um blogo de um operário chinês: “A morte serve apenas para certificar que estivemos vivos, sem dúvida, e que foi apenas no desespero que sempre vivemos.”
Segunda-feira, 27 de Dezembro de 2010
Florbela Espanca (1894-1930) - XIoetisa portuguesa, natural de Vila Viçosa (Alentejo). Nasceu filha ilegítima de João Maria Espanca e de Antónia da Conceição Lobo, criada de servir (como se dizia na época), que morreu com apenas 29 anos, «de uma doença que ninguém entendeu», mas que veio designada na certidão de óbito como nevrose. Registada como filha de pai incógnito, foi todavia educada pelo pai e pela madrasta, Mariana Espanca, em Vila Viçosa, tal como seu irmão de sangue, Apeles Espanca, nascido em 1897 e registado da mesma maneira. Note-se como curiosidade que o pai, que sempre a acompanhou, só 19 anos após a morte da poetisa, por altura da inauguração do seu busto, em Évora, e por insistência de um grupo de florbelianos, a perfilhou. É em Vila Viçosa que se desenrola a sua infância. Desde o seu nascimento, a infância de Florbela rodeou-se de circunstâncias invulgares.
Uma vez casado com Marina Inglesa, em 1887, João Maria Espanca, o pai de Florbela, continua a trabalhar como sapateiro e antiquário, tornando-se mais tarde num dos pioneiros do cinematógrafo em Portugal.
Ao descobrir que Mariana não pode dar à luz, João Maria consegue convencê-la de uma regra medieval, segundo a qual, quando a mulher não pode ter filhos, o homem está autorizado a cometer adultério, de modo a ter, através de outra mulher os filhos que a esposa não lhe pode dar, filhos esses que depois traria para o lar.
Com o consentimento de Marina, em 1894, João Maria procura Antónia Lobo, uma mulher humilde, vistosa e desejada na vila, que trabalhava como criada de servir, raptando-a uma noite para a engravidar e mantendo-a escondida durante toda a gravidez.
Finalmente, a 8 de Dezembro, Florbela nasce e é baptizada como Flor Bela Lobo, filha de Antónia e de pai incógnito; a madrinha é Mariana, que depois levará Florbela para casa e a tratará como filha. É a casa de Mariana e João Maria Espanca que a Mãe de Florbela se vai dirigir para a amamentar.
Em Outubro de 1899, Florbela começa a frequentar o ensino pré-primário, passando a assinar Flor d'Alma da Conceição Espanca (algumas vezes, opta por Flor, e outras, por Bela). Em Novembro de 1903, aos sete anos de idade, Florbela escreve a sua primeira poesia de que há conhecimento, «A Vida e a Morte», mostrando uma admirável precocidade e anunciando, desde já, a opção por temas que, mais tarde, virá a abordar de forma mais complexa. Ainda no mesmo ano, Florbela começa a escrever uma poesia sem título, o seu primeiro soneto.
Conclui a instrução primária em Junho de 1906, entrando para o actual sexto ano de escolaridade em Outubro do mesmo ano. No ano seguinte, Florbela aponta os primeiros sinais da sua doença, a neurastenia; além disso, escreve o seu primeiro conto, «Mamã!». Em 1908, Antónia Lobo, a mãe de Florbela morre vítima de neurose, após o que a família se desloca para Évora, para Florbela prosseguir os seus estudos no Liceu André Gouveia, com o chamado Curso Geral do Liceu, cuja sexta classe (próxima do 10º ano actual) completa em 1912.
Entretanto, em 1911, começa a namorar com Alberto Moutinho, mas acaba por se afastar deste, em virtude de uma nova paixão por José Marques, futuro director da Torre do Tombo. Após romper com este, no ano seguinte, Florbela reata o namoro com Alberto Moutinho e, a 8 de Dezembro, uma vez emancipada, casa com ele, pelo civil, aos 19 anos.
Em 1914, apesar de algumas dificuldades económicas, o casal muda-se para o Redondo, na Serra d'Ossa, onde abre um colégio e lecciona. Numa festa do colégio, Florbela recita, pela primeira vez, versos seus em público. É no ano seguinte que Florbela inicia o seu caderno «Trocando Olhares», que completa ao longo de cerca de um ano e meio. Em 1916, a revista «Modas e Bordados» publica o soneto Crisântemos, cheio de alterações ao original, e Florbela torna-se amiga da directora e da sub-directora da revista, Júlia Alves, com quem, aliás, inicia correspondência.
Em 1917, após ter regressado a Évora, Florbela completa o actual 11º ano do Curso Complementar de Letras, com catorze valores; apesar de querer seguir essa área, acaba por se inscrever, em Outubro, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o que a obriga a mudar-se para Lisboa, onde começa a contactar com a vida boémia.
Na sequência de um aborto involuntário, em 1919, Florbela tem de se mudar para Quelfes, perto de Olhão, onde apresenta os primeiros sintomas sérios de neurose. Pouco depois, o seu casamento desfaz-se e Florbela decide ir para Lisboa prosseguir o curso, separando-se do marido, e passando a conhecer a rejeição da sociedade. Na capital, contactou com outros poetas da época e com o grupo de mulheres escritoras que então procurava impor-se. Colaborou em jornais e revistas, entre os quais o Portugal Feminino. Em Junho de 1919, depois de alguma correspondência trocada com Raul Proença, sai a lume o «Livro de Mágoas»; posteriormente, completa o terceiro ano de Direito. No ano seguinte inicia «Claustro das Quimeras».
Em 1921, divorciou-se de Alberto Moutinho, de quem vivia separada havia alguns anos, e voltou a casar, no Porto, com o oficial de artilharia António Guimarães. Nesse ano também o seu pai se divorciou, para casar, no ano seguinte, com Henriqueta Almeida. Em 1923, publicou o Livro de Sóror Saudade. Em 1925, Florbela casou-se, pela terceira vez, com o médico Mário Laje, em Matosinhos.
De volta a Lisboa, em 1923, Florbela tem de se mudar rapidamente para Gonça, perto de Guimarães, para se tratar de um novo aborto. Assim, Florbela separa-se do marido, que pede o divórcio, oficializado em 1924; isso leva a que a família de Florbela não lhe fale durante dois anos, o que a abala muito.
Em 1925, depois de se ter mudado para a casa de Mário Lage em Esmoriz, casa com ele, pelo civil e, depois, pela Igreja. Dois anos depois, enquanto Florbela traduz romances franceses para a Livraria Civilização no Porto (que publica oito trabalhos seus), e prepara «O Dominó Preto», o seu irmão falece, o que a torna uma mulher triste e desiludida e inspira «As Máscaras do Destino».
Enquanto a relação com o marido se desgasta progressivamente, a neurose de Florbela agrava-se bastante; é neste período que, possivelmente, se apaixona pelo pianista Luís Maria Cabral, a quem dedica «Chopin» e «Tarde de Música»; talvez por isso, tenta suicidar-se.
Em 1929, Florbela passa por Lisboa, onde lhe é recusada a participação no filme «Dança dos Paroxismos», de Jorge Brum do Canto, e segue para Évora, onde, em 1930, começa a escrever o seu «Diário do Último Ano». Passa, então a colaborar nas revistas «Portugal Feminino» e «Civilização», e trava conhecimento com Guido Battelli, que se oferece para publicar «Charneca em Flor». Já em Matosinhos, Florbela revê as provas do livro, depois da segunda tentativa de suicídio, em Outubro ou Novembro, período em que a neurose se torna insuportável e lhe é diagnosticado um edema pulmonar. A 8 de Dezembro, dia do nascimento e do primeiro casamento, Florbela suicida-se, cerca das duas horas, com dois frascos de Veronal. Ao completar 35 anos, na noite de seu aniversário não suportou mais e suicida-se, atirando-se no oceano Atlântico, nas costas de Matosinhos, no norte de Portugal.
A causa da morte de Florbela tem sido motivo de estudo para vários dos seus biógrafos, ocupando parte significativa das obras a seu respeito. As opiniões dividem-se, e mesmo alguns dos seus mais incisivos estudiosos, como Rui Guedes ou Agustina Bessa Luís contrapõem diversos argumentos que justificariam poder falar-se de suicídio premeditado (recorrendo nomeadamente a excertos da sua obra, do seu diário ou à correspondência enviada pela poetisa) a outros, que apontam para o facto de se ter tratado de um acidente, ou simplesmente, do culminar das doenças que afectavam a poetisa.
Suicídio premeditado?
Na opinião de alguns estudiosos, o desejo de morrer de Florbela está claramente expresso na sua obra, no modo como aborda constantemente o tema da morte, quase que parecendo persegui-la. Seria a consumação de uma fuga, fuga a um amor, fuga à vida e aos sofrimentos que lhe traz. Além disso, seria uma saída fiel aos preceitos românticos. Há, inclusive, a ideia de que na sua obra estaria enunciado uma espécie de programa de despedida: A morte pode vir quando quiser: trago as mãos cheias de rosas e o coração em festa (Ana Marques Gastão, «Cem anos: Sonetos fora de época»). Sobretudo na fase final, os acontecimentos exteriores, como a viagem de Guido Battelli, e os interiores, nomeadamente a perda de capacidades, poderiam agitá-la excessivamente, aumentar o potencial de auto-destruição, e conduzir ao suicídio.
A possibilidade de suicídio é igualmente aceitável, se atendermos ao que Florbela confessou à sua amiga de infância Milburges Ferreira, a Buja, dias antes de falecer: Se passar do dia dos meus anos, morrerei de velha. Foi, aliás, às amigas que Florbela deixou algumas disposições especiais no seu testamento, que, para tanto, teve de alterar dias antes de falecer. Foi também entre os amigos que, no dia anterior à morte de Florbela, correram supostos rumores de que esta estaria à beira da morte, rumores que Mário Lage, o terceiro marido da poetisa, também espalhou depois do funeral. Acresce que esses rumores se firmaram com base na coincidência de que Florbela se matou a 8 de Dezembro, dia do seu aniversário e do seu primeiro casamento. Por outro lado, a atitude de Lage não deixa de ser curiosa: após terem encontrado a poetisa morta no quarto, onde se tinha fechado no dia anterior (pedindo que não a incomodassem até ao dia seguinte), o marido conseguiu manter uma espantosa lucidez, localizando rapidamente os amigos de Florbela para os informar do ocorrido. Mais a mais, é estranho que um médico permita que alguém viva rodeado de barbitúricos, quando sofre de uma neurose e já, por duas vezes, se tentou suicidar, a última das quais dois meses antes. Referência ainda à declaração de óbito da poetisa, que, embora indique como causa da morte o edema pulmonar de que sofria, foi assinada por um carpinteiro.
Por último, há que ter em conta a hipótese sugerida por Agustina Bessa Luís de que Florbela se teria suicidado, em virtude de estar novamente apaixonada, possivelmente por Ângelo César, a quem dedica os seus últimos sonetos, como «Quem Sabe?».
Acidente?
Em primeiro lugar, a neurose de que a poetisa sofria agravou-se significativamente nos últimos meses da sua vida, provocando comportamentos estranhos que escandalizaram a família do marido, Mário Lage, em cuja casa vivia na altura. Além disso, foi-lhe diagnosticada uma apendicite, que faz com que Florbela se arrependa da sua natureza amante e ambiciosa, sentindo-se culpada de todas as polémicas que se geraram em seu torno. Em terceiro lugar, um edema pulmonar (talvez derivado de hipertensão provocada por algum anti-depressivo), descoberto pouco antes da morte, debilitou ainda mais o seu estado de saúde, agravado com um tratamento errado, baseado em refeições pequenas e demasiado repouso.
De facto, é possível que se tenha tratado de um acidente, motivado pela mistura de drogas muito fortes com certos alimentos, ou pela ingestão excessiva de Veronal.
O Veronal, que Florbela passou a usar em 1930, era um sonorífero extremamente forte, usado ao tempo, e particularmente nocivo para doentes pulmonares ou cardíacos, o que era o caso de Florbela. Provavelmente, a associação deste remédio com o tabaco que Florbela fumava constantemente, numa altura em que quase não consegue suportar a neurose, poderá ter ajudado a precipitar a sua morte.
No entanto, não deixa de ser verdade que os dois frascos de Veronal encontrados debaixo da cama da poetisa, completamente vazios, depois da sua morte, podiam ter sido tomados com a intenção premeditada de suicídio.
Por outro lado, há também a considerar o facto de que se aproximava a data da publicação de «Charneca em Flor», esperada pela poetisa com manifesta ansiedade, a par da anestesia e sofrimento prolongados em que Florbela vivia, em virtude da constante ingestão de soníferos, e que impediriam que tivesse um mínimo de vontade de se suicidar. A este respeito, Agustina Bessa Luís cita, inclusivamente, psicólogos da área do suicídio, que consideravam esse acto pouco provável, no caso de Florbela. (Agustina Bessa Luís, «A Vida e a Obra de Florbela Espanca»).
Finalmente, não foi pedida para o enterro da poetisa qualquer disposição eclesiástica, o que era quase impossível naquele tempo se houvesse suspeita de suicídio.
Os casamentos falhados, assim como as desilusões amorosas, em geral, e a morte do irmão, Apeles Espanca (a quem Florbela estava ligada por fortes laços afectivos), num acidente com o avião que tripulava sobre o rio Tejo, em 1927, marcaram profundamente a sua vida e obra. Em Dezembro de 1930, agravados os problemas de saúde, sobretudo de ordem psicológica, Florbela morreu em Matosinhos, tendo sido apresentada como causa da morte, oficialmente, um «edema pulmonar».
Postumamente foram publicadas as obras Charneca em Flor (1930), Cartas de Florbela Espanca, por Guido Battelli (1930), Juvenília (1930), As Marcas do Destino (1931, contos), Cartas de Florbela Espanca, por Azinhal Botelho e José Emídio Amaro (1949) e Diário do Último Ano Seguido De Um Poema Sem Título, com prefácio de Natália Correia (1981). O livro de contos Dominó Preto ou Dominó Negro, várias vezes anunciado (1931, 1967), seria publicado em 1982.
A poesia de Florbela caracteriza-se pela recorrência dos temas do sofrimento, da solidão, do desencanto, aliados a uma imensa ternura e a um desejo de felicidade e plenitude que só poderão ser alcançados no absoluto, no infinito. A veemência passional da sua linguagem, marcadamente pessoal, centrada nas suas próprias frustrações e anseios, é de um sensualismo muitas vezes erótico. Simultaneamente, a paisagem da charneca alentejana está presente em muitas das suas imagens e poemas, transbordando a convulsão interior da poetisa para a natureza.
Na opinião de António José Saraiva e Óscar Lopes, Florbela Espanca é uma das mais notáveis personalidades literárias isoladas (António José Saraiva e Óscar Lopes, «História da Literatura Portuguesa»). Porquê?
Em primeiro lugar, porque a poética e a prosa de Florbela dificilmente se enquadram numa única corrente literária, seja uma corrente dominante no seu tempo ou anterior. De facto, a poetisa soube construir uma linguagem muito própria, quase uma mitologia lírica (António José Saraiva e Óscar Lopes, «História da Literatura Portuguesa»), ao revelar, no espaço da poesia, sentimentos e desejos próprios, anseios e aspirações muito suas, conquistando na literatura um espaço de libertação de instintos sensuais, sem precedentes até então; sobretudo, revelou, através da linguagem poética o seu ser e a sua intimidade.
No entanto, são evidentes em Florbela os traços e as influências de diversas correntes literárias que atravessaram o século XIX, apesar de acusar igualmente proximidades a estéticas do século XX. Diga-se, a propósito, que grande parte da singularidade da obra de Florbela reside no facto de a sua estética literária se enraizar no cruzamento de várias tendências do lirismo do século passado: Florbela admirava Júlio Dantas, Guerra Junqueiro, Antero de Figueiredo, José Duro e, sobretudo, António Nobre. Foi nesse universo artístico, que tentou conciliar a renovação com a tradição poética, que Florbela encontrou elementos para definir a sua linguagem.
Entre as principais influências, há a destacar:
Proximidade de Mário de Sá-Carneiro:
Apesar de não se ter deixado influenciar pela estética modernista proposta por Fernando Pessoa e pelo restante grupo do «Orpheu», o ideário e a temática da obra de Florbela Espanca contém uma curiosa proximidade com a escrita de Mário de Sá-Carneiro, um desses membros do inovador grupo do «Orpheu».
Em primeiro lugar, há uma proximidade ao nível dos dramas pessoais (que Sá-Carneiro revela em «Esfinge» e «Esfinge Gorda»), onde se evidencia a moderna problemática da dispersão, do desdobramento da personalidade, que Florbela partilha em alguns poemas. Além disso, Florbela insere na sua obra a complexa temática da alteridade, bem como a da relação entre o eu poético e os outros, aproximando-se muito do universo temático de Sá-Carneiro, o que se acentua com as referências à crise de identidade do sujeito e à estratégia de fingimento do poeta (enunciada por Fernando Pessoa). Tanto um como o outro, procuravam uma identidade profunda.
Por outro lado, os dois autores têm em comum uma poética de excessos, de estados de espírito extremos, que oscila constantemente entre o desejo de amor e de morte (que encaram de modo semelhante), momentos de loucura e lucidez, luxo e sombras, plenitude e incompletude. Ambos vagueiam, em versos, por claustros, sombras e cenários decadentistas, oscilando entre a realidade e um mundo indefinido.
Como Sá-Carneiro, Florbela quis aliar a vida e a arte, a realidade e o sonho, mostrando-se o resultado desastroso para ambos. Aliás, há que sublinhar que ambos morreram jovens e pelo mesmo motivo: suicídio.
Influência de Antero de Quental:
Em relação à linguagem de Antero de Quental, a poesia de Florbela evidencia semelhanças estilísticas, estruturais e ideológicas.
Uma delas é a referência frequente ao tema da dor, uma dor existencial, que leva à constante ânsia pela morte e pelo não-ser; trata-se de uma dor existencial próxima daquela que Antero e Camilo Pessanha repetidamente abordaram na sua obra.
Por outro lado, o uso da forma clássica do soneto é outro factor de aproximação entre Florbela e Antero, se bem que a aproxime igualmente de outros sonetistas, nomeadamente Camões e Bocage.
Herdada de Antero é, também, a expressão de uma visão eminentemente pessimista do mundo, bem como de uma relação difícil com a vida.
Em termos estilísticos, e à semelhança do que fez Antero, Florbela tende a imprimir um sentido alegorizante aos seus poemas, através de imagens de castelos, palácios, cavaleiros, torres de névoa e de marfim, algumas das quais presentes em «Castelã». Aliás, é nítida a proximidade entre o verso de Florbela Sonho que sou a poetisa eleita (Florbela Espanca, «Vaidade», in «Livro de Mágoas») e o de Antero Sonho que sou um cavaleiro andante.
Marcas anterianas apresentam, igualmente, os sonetos «Em Busca do Amor», que lembra o «Mors Amor» de Antero (cujo tom alegre é um pouco mais vigoroso), «Não Ser», «A Voz da Tília» e «Deixai Entrar a Morte».
Influência de António Nobre:
São muitos os pontos de contacto entre António Nobre, o autor de «Só» (apresentado, ainda hoje, como o livro mais triste que há em Portugal) e Florbela Espanca, que confessa ter pelo escritor intensa admiração, referindo-se, implicitamente, a «Só» na abertura do «Livro de Mágoas» e, depois, explicitamente, na languidez do soneto «Tardes da Minha Terra». Aliás, Nobre era para a jovem escritora o único poeta.
Um desses pontos comuns é o tom confessional dos versos, intimamente ligado à temática da dor, da mágoa que encontramos nas obras dos dois autores; mais do que a mágoa, Florbela, no soneto «Este Livro...», que abre o «Livro de Mágoas», como que propõe um espaço de comunicação entre os tristes, a que ela chama os Irmãos na Dor. É uma intenção próxima da de Nobre em «Só».
Por outro lado, também o pessimismo e a espera da morte, bem como a ideia da predestinação, recorrente em Florbela, aproximam as suas obras, em paralelo com a temática da saudade e um certo neogarretismo, ambos típicos de Nobre.
Comum aos dois autores é, igualmente, a relação que encetam com a vida, a par de um progressivo distanciamento que ambos efectuam em relação ao mundo que os rodeia, o que fará agravar a sua solidão.
Finalmente, há que sublinhar a proximidade na maneira de ver Portugal: ou é um país ou uma forma de estar no mundo (dada a cultura e história portuguesas); ao mesmo tempo, refira-se um certo lusitanismo de Nobre, que Florbela também evidencia e que a aproxima do ideário saudosista do seu tempo.
Ultra-romantismo sepulcral, próximo de Soares de Passos:
O Ultra-romantismo é uma corrente literária da segunda metade do séc. XIX, e que se caracterizou por levar ao exagero, e por vezes até ao ridículo, as normas e ideais preconizadas pelo Romantismo, nomeadamente, a exaltação da subjectividade, do individualismo, do idealismo amoroso, da Natureza e do mundo medieval. Os ultra-românticos geram torrentes literárias de qualidade muito discutível, sendo algumas dela considerada como «romance de faca e alguidar», dada a sucessão de crimes sangrentos que invariavelmente descreviam e que os realistas vão caricaturar de forma feroz.
Existe, todavia, literatura ultra-romântica de qualidade inquestionável. Além de João de Deus, são também autores ultra-românticos Camilo Castelo Branco, Soares de Passos e Castilho. Em algumas obras de Almeida Garrett e de Alexandre Herculano é já possível detectar alguns traços de ultra-romantismo, apesar de serem dois dos introdutores do Romantismo em Portugal.
Parnasianismo:
O parnasianismo é um movimento literário desenvolvido na poesia portuguesa do século XVIII, que se aproxima das tendências realista e naturalista registadas na narrativa.
Originário de França, o parnasianismo tem como principais mestres Théophile Gautier, Leconte de Lisle e Théodore Bauville, defensores do princípio da importância da arte pela arte. As raízes do parnasianismo encontram-se no romantismo, embora o parnasianismo exclua a tendência para o sentimentalismo, valorizando a dimensão estética da literatura, nomeadamente através de uma linguagem precisa e do uso da rima rica (rima entre palavras de diferentes classes gramaticais).
Em Portugal, a estética parnasiana difundiu-se não só entre autores como João Penha, Gonçalves Crespo e António Feijó, ligados pela revista coimbrã A Águia (que o primeiro dinamizou entre 1868 e 1873), mas também Cesário Verde, Joaquim de Araújo e Eugénio de Castro.
Como movimento, o parnasianismo era uma reacção anti-romântica, cuja objectividade contrastava com a subjectividade romântica. Entre as principais características deste tipo de poesia, referência à perfeição dos versos, bem como ao tom descritivo, à referência a obras de arte e paisagens.
Em Florbela, o parnasianismo evidencia-se, sobretudo, em sonetos como «Toledo» e «Charneca em Flor».
Influências simbolistas e decadentistas:
Nos versos de Florbela, encontramos frequentemente uma necessidade, quase desesperada, de viver o instante, o momento, o tempo efémero que passa, sobretudo quando se trata de um tempo feliz, como no soneto «Hora que Passa», de onde se depreende a referência à transitoriedade do tempo e da vida. Esta temática, abordada quase obsessivamente por Florbela, aproxima-a da corrente simbolista e, sobretudo, da poesia de Camilo Pessanha.
Em segundo lugar, também a referência constante a estados de espírito marcados pela dor e pelo tédio apontam para uma forte influência decadentista – simbolista na poética de Florbela, bem como a imagem das torres de marfim, onde se quis refugiar da mediocridade da vida quotidiana.
Por último, destaque para os traços da assimilação da linguagem simbolista – decadentista, bem patentes nas imagens e no mistério implícito do soneto «Outonal», e também, menos acentuadamente, em «Charneca em Flor».
Florbela Espanca não se ligou claramente a qualquer movimento literário. Está mais perto do neo-romantismo e de certos poetas de fim-de-século, portugueses e estrangeiros, que da revolução dos modernistas, a que foi alheia. Pelo carácter confessional, sentimental, da sua poesia, segue a linha de António Nobre, facto reconhecido pela poetisa. Por outro lado, a técnica do soneto, que a celebrizou, é, sobretudo, influência de Antero de Quental e, mais longinquamente, de Luís de Camões.
Florbela Espanca colaborou no jornal Notícias de Évora juntamente com Irene Lisboa (1892-1958) onde foi precursora do movimento de emancipação feminina português. Apesar da rigidez católica e das leis de Portugal, foi casada duas vezes e sua obra possui um acento erótico incomum aos padrões precedentes à emancipação feminina lusitana.
Florbela era, de facto, uma jovem mulher muito atraente, o que também terá sido motivo de inveja para muitas das mulheres do seu tempo, que não hesitaram em caluniá-la. Nas palavras de Maria Alexandrina, Florbela era esbelta, graciosa, de porte senhoril, fartos cabelos negros, pele fina e transparente, sedosa e bela (Maria Alexandrina, «A Vida Ignorada de Florbela Espanca»), a que se juntava um culto do traje e um guarda-roupa moderno, com peles e saia-calça (uma novidade francesa da altura) incluídas, totalmente inovador e diferente do que a sociedade portuguesa estava acostumada a ver.
Com a sua capeline e o seu colar de pérolas, uma das suas fotografias mais conhecidas e que oferecera a Guido Battelli, Florbela fixa um tipo social que perdurará no tempo: segundo Agustina Bessa Luís, trata-se da figura da vagabunda letrada (Agustina Bessa Luís, «A Vida e a Obra de Florbela Espanca»).
Temperamento nostálgico e infinitamente triste, pelo resto da vida Suportou a dor da morte do irmão, Apeles Demóstenes da Rocha Espanca, ocorrida em Junho de 1927 num acidente aéreo, quando ela então começou a consumir estupefacientes.
Após uma sucessão de crises depressivas passou a ficar cada vez mais dependente de Veronal, droga que tomava para dormir. Apeles, o irmão com quem mantinha uma relação quase incestuosa, morrera há três anos e a insónia a abatia ainda mais.
Poetisa de excessos, cultivou exacerbadamente a paixão, com voz marcadamente feminina (em que alguns críticos encontram dom-joanismo no feminino). A sua poesia, mesmo pecando por vezes por algum convencionalismo, tem suscitado interesse contínuo de leitores e investigadores.
É tida como a grande figura feminina das primeiras décadas da literatura portuguesa do século XX.
Domingo, 19 de Dezembro de 2010
António Soares dos Reis (1847-1889) -IFilho de um tendeiro, nasce na freguesia de Mafamude, Vila Nova de Gaia, Soares dos Reis cursou a Academia Portuense de Belas Artes onde foi aluno de Fonseca Pinto, tendo concluído o curso de escultura em 1866.
Em 1867 foi para Paris, tendo vencido o concurso com um busto, Firmino, com espírito romântico que a escultura portuguesa não conhecera ainda. De Paris, onde foi aluno de Jouffroy, regressou em 1870, por causa da guerra. No ano seguinte parte para Roma, onde estaciona ano e meio sem assumir qualquer professor. De Roma traz, ainda inacabado, O Desterrado, sua obra maior. Obra formalmente clássica, O Desterrado é também a nostalgia da Pátria distante uma «estátua da saudade». De inspiração classicista, a obra (na altura tida como plágio, o que iria angustiar durante muito tempo o escultor) é um notável trabalho dos volumes, permitindo jogos de luz e sombra, a acentuarem o sentido do título. A obra exerceu influência directa sobre obras da subsequente geração de escultores.
Resultado do seu contacto com a escultura europeia da época, a fase seguinte da obra de Soares dos Reis, para além do virtuosismo técnico da sua execução, iria ser marcada pelos valores do realismo, patentes, em várias obras.
Em 1872 regressa ao Porto. É nomeado académico de Mérito da Academia do Porto em 1873. Em 1875, é nomeado Académico de Mérito pela Academia de Belas Artes de Lisboa. E em 1878 recebe uma Menção honrosa na Exposição Universal de Paris.
Contudo, Soares dos Reis será acusado de plagiar a estátua de Ares do Museu das Termas — e mais tarde dir-se-á mesmo que não era ele o autor d’O Desterrado, acusações que atingiram profundamente o artista. A obra é exposta em 1874 na Academia e em 1881 obtém uma medalha de ouro em Madrid sendo agraciado com o Grau de Cavaleiro da Ordem de Carlos III.
Obra revolucionária para a época, revelando qualidade e inspiração pessoal, O Desterrado é bem a expressão de uma certa ideia de Pátria a que os Vencidos da Vida se acordarão. Soares dos Reis fará posteriormente a estátua do conde de Ferreira (1876), de D. Afonso Henriques (1887), de Brotero (1888), os retratos de Hintze Ribeiro, Correia de Barros e Fontes Pereira de Melo e os bustos da viscondessa de Moser (1884) e «da Inglesa» (1887). Aceitou outras encomendas menores, por desespero e falta de outras — santos para confrarias, ornatos para estuques, gravuras para O Ocidente, etc. Em 1880 é um dos criadores do Centro Artístico Portuense, que terá papel de relevo na vida do Porto. Em 1881 é nomeado professor da Escola de Belas-Artes do Porto, onde pretende reformar o ensino da escultura, contando com a oposição obstinada dos seus colegas. Expõe em Paris, em 1881, na Exposição Universal.
O seu ecletismo revelou-se na escultura de temática religiosa, onde também deixou uma marca naturalista (Cristo Crucificado, 1877) ou evocadora de um certo goticismo (São José e São Joaquim, peças esculpidas para a frontaria da capela da família Pestana, no Porto).
Em 1885, casa com Amélia Macedo. Dedicado à divulgação da escultura, leccionou nos cursos nocturnos do Centro Artístico Portuense, de sua iniciativa. Sofrendo, na sua intenção de renovar o ensino da escultura, a oposição de outras figuras ligadas às instituições da época, o escultor, de temperamento depressivo, abandona o Centro Artístico Portuense em 1887 e, dois anos depois, em 1889, suicida-se no seu atelier em Vila Nova de Gaia. É encontrado apoiado à sua mesa de trabalho. Desfechara um tiro de revólver contra a cabeça. Na parede branca atrás da cadeira onde ficou sentado, escrevera: «Sou cristão, porém, nestas condições, a vida para mim é insuportável. Peço perdão a quem ofendi injustamente, mas não perdoo a quem me fez mal».
Impressionante prova de impotência perante as adversidades da vida? Não procuremos julgar a partir da máscara que o próprio suicida legou, pois se o fizéssemos correríamos o risco de cair no moralismo, sem nada saber sobre as condições em que a vida se pode tornar «insuportável» para a pessoa concreta de Soares dos Reis. O que nos interessa é que se tratou de uma morte que se assume como protesto e, ao mesmo tempo, castigadora: «não perdoo a quem me fez mal». Morrer sem perdoar, de propósito, eis o protesto!
Incapaz de se sobrepor à incompreensão e ao descrédito lançados contra o valor da sua actividade artística e de arrostar com a obstrução sistemática ao seu esforço inovador como docente, recorreu ao suicídio, deixando uma obra ímpar na escultura da segunda metade do século XIX.
Com a sua morte perdeu-se o melhor escultor entre o mundo romântico e o subsequente realismo.
«Porto, 16 – Suicidou-se hoje às 08h00 da manhã, na sua casa da Rua de Luís de Camões, em Vila Nova de Gaia, disparando dois tiros de revólver na cabeça, o eminente estatuário Soares dos Reis, lente de escultura na Academia de Belas Artes e autor de verdadeiras obras primas. (...) São desconhecidas as causas que determinaram o suicídio.»
(In "Diário de Noticias " de 17 Fev. 1889)
Sexta-feira, 17 de Dezembro de 2010
Na sua anterior apresentação, esta série, da autoria do historiador José Brandão, obteve um grande êxito. Por isso, Estrolabio reedita-a, agora com nova apresentação gráfica.
O suicida não é um homem que odeia a vida, como
à primeira vista pode parecer. Pelo contrário: é
um homem que a quer prolongar de qualquer
maneira, nem que seja no remorso dos outros.
Miguel Torga
Introdução
Se em todas as épocas existem suicidas, nem todas elas os produzem saídos da mesma massa. Os que vamos ver nestas páginas são pessoas que viviam intensamente os problemas, estavam no centro deles e foram mesmo origens de alguns. Não foi, pois, a incomunicabilidade que os empurrou para a morte, mas talvez o excesso de comunicação com o Portugal que viam e que desfilava por eles como um funeral.Para eles, a morte estava presente no mais despreocupado despregar de mãos. Viver a vida e cortá-la ao primeiro transtorno, após uma série de outros que já não se suportaram mais, corroídos pelo banal dia-a-dia gastos pela «doença de pátria», não era estado de incomunicabilidade.O período que medeia a passagem do século XIX para o XX, factualmente compreendido entre o Ultimatum Inglês, de 11 de Janeiro de 1890 e a implantação da República, de 5 de Outubro de 1910, retrata uma longa e múltipla carência da sociedade portuguesa quanto ao seu papel cultural para com os seus escritores e os seus escritos.
A inexistência de meios, a falta de estímulos, a incompreensão e o desapego a que foram sujeitos, os homens da “bela arte de escrever”, como um Antero de Quental, um Camilo Castelo-Branco, um Soares dos Reis, um Júlio César Machado ou um José Fontana, entre muitos outros, provoca-lhes um sentimento de decepção para com a comunidade em que vivem. A morte apossara-se-lhe das vidas. Ninguém sabe doutra coisa, ninguém tem outra maneira de se afirmar — de protestar, de procurar a resignação — senão através do suicídio.Sãos os tempos das crises de consciência, em que o mundo e a sua moral subvertida nos transportam, tendo sempre como sombra o ruir dos velhos alicerces, a uma sociedade feita de angústia, opressão e instabilidade. São as ditaduras veladas do rotativismo político, ou declaradas como o franquismo. São as viciações e as desonestidades do aparelho governativo e dos seus resultados eleitorais, com o consequente descrédito total do parlamentarismo monárquico. São as desconfianças permanentes do sistema económico e financeiro, a par do desespero, da impotência e da derrota das questões internacionais. São os desânimos pelo crescimento do obscurantismo e da ignorância, acompanhados pelo desenraizamento de quem se identifica como responsável e portador de uma natureza defeituosa, da qual, apenas se conhece a doença, mas não a cura. Em suma, são os tempos em que apenas se vivia a renúncia, a indiferença, o cansaço e o pessimismo.Miguel Unamuno, logo após o regicídio, em 1908, viaja até Portugal onde conta com a amizade de algumas das mais destacadas figuras da vida cultural e política. Das impressões dessa deslocação, o prestigiado escritor espanhol haveria de publicar um livro que só passados setenta e cinco anos seria traduzido e publicado em Portugal.Por Terras De Portugal E Da Espanha, é dos mais interessantes documentos que alguma vez foi escrito sobre este pedaço de chão que tem Lisboa por capital. Ler este livro de um estrangeiro ajuda a conhecer melhor quem somos e o que somos. Unamuno fala deste País com palavras de uma verdade crua, sincera e ao mesmo tempo arrasadora. Diz este autor:«Portugal representa-se-me como uma formosa e doce jovem camponesa que, de costas para a Europa, sentada à beira-mar, com os pés descalços na praia onde a espuma das gemebundas ondas os banha, os cotovelos fincados nos joelhos e o rosto entre as mãos, olha como o sol se põe nas águas infinitas. Porque para Portugal o sol não nasce nunca: morre sempre no mar que foi teatro das suas façanhas e berço e sepulcro das suas glórias. […]É o oceano um vasto cemitério, sobretudo para Portugal. O mar, essa é a «campa», esse é o cemitério desta desgraçada pátria de Vasco da Gama, de João de Castro, de Albuquerque, de Cabral, de Magalhães, de todos os maiores navegadores do mundo, desta pátria do infante D. Fernando, do rei D. Sebastião, que além do mar morreram. Nesse imenso cemitério vivo, que vem a murmurar fados beijar as praias deste «Jardim da Europa, à beira-mar plantado,»Nesse imenso cemitério descansa a glória de Portugal, cuja história é um trágico naufrágio de séculos. E este murmúrio do oceano, estas queixas que vêm do seu seio quando o sol nele se deita, — não são acaso as vozes das pobres almas portuguesas que vagueiam errantes nas suas ondas? Não pedem sufrágios aos vivos? Não é aqui o mar do Purgatório?»E, naquela que é seguramente a parte mais eloquente do seu testemunho sobre Portugal e sobre o povo que nele vive, ficaria o registo de um capítulo a que o autor quis dar o título de UM POVO SUICIDA:«Portugal é um povo triste, e é-o até quando sorri. A sua literatura, inclusive, a sua literatura cómica e jocosa, é triste. Portugal é um povo de suicidas, talvez um povo suicida. A vida não tem para ele sentido transcendente. Querem viver talvez, sim; mas para quê? Vale mais não viver.»Neste mesmo capítulo, e com a data de Novembro de 1908, Miguel de Unamuno dá a conhecer uma carta de Manuel Laranjeira, seu amigo de grande afecto:«Em Portugal chegou-se a este princípio de filosofia desesperada o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção da moral. Neste malfadado país, tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa.Chegámos a isto, amigo. Eis a nossa desgraça. Desgraça de todos nós, porque todos a sentimos pesar sobre nós, sobre o nosso espírito, sobre a nossa alma desolada e triste, como uma atmosfera de pesadelo, depressiva e má. O nosso mal é uma espécie de cansaço moral, de tédio moral, o cansaço e o tédio de todos os que se fartaram — de crer.
Crer...! Em Portugal, a única crença ainda digna de respeito é a crença na morte libertadora.
É horrível, mas é assim.
[…]
Eu, por mim, não sei, não sei: em boa verdade, amigo, não sei para onde vamos. Sei que vamos mal. Para onde? Para onde nos levarem os maus ventos do destino. Para onde? Vamos...
[…]
Não falta mesmo quem diga que isto não é já um povo, mas sim — o cadáver de um povo.»Manuel Laranjeira haveria de se suicidar passados menos de quatro anos sobre esta carta a Unamuno. Seria o último de uma lista aterradora de suicidas que começa em 1876 com José Fontana e que continua com o médico Francisco da Cruz Sobral, em 1888, com o escultor Soares dos Reis, em 1889, Camilo Castelo Branco, Júlio César Machado e o sertanejo Silva Porto em 1890, Antero de Quental, em 1891, o militante operário Luís de Carvalho, em 1893, o escritor operário Henrique Verdial, em 1900, Mouzinho de Albuquerque, em 1902, o escritor e jurista Trindade Coelho e o jornalista Alberto Costa, o «PadZé», em 1908, o almirante Cândido dos Reis, membro da Carbonária Portuguesa, em 1910, Guedes Quinhones, velho militante socialista e jornalista operário, em 1911. E, depois de Manuel Laranjeira, em 1912, suicida-se o poeta Mário de Sá-Carneiro, em 1916, e Florbela Espanca, em 1930.Portugal é um desespero trágico que aflige os melhores filhos do seu possível orgulho nacional. Alexandre Herculano exclamara: «isto dá vontade da gente morrer!». Rodrigo da Fonseca murmurara: «nascer entre brutos, viver entre brutos e morrer entre brutos é triste»? E no final de um soneto António Nobre apregoa: «Amigos, que desgraça nascer em Portugal! [...] Todos nós falhamos… Nada nos resta. Somos uns perdidos. Choremos, abracemo-nos, unidos! Que fazer? Porque não nos suicidamos?»As dez histórias de suicídios aqui apresentadas são apenas uma parte de tantos outros que ocorreram durante esse mesmo período.
São famosos e são do melhor que Portugal tem na sua História.
Ao suicidarem-se é um pouco de Portugal que se suicida.José Brandão
Sexta-feira, 17 de Setembro de 2010
Luis Moreira
Desde o início do ano, 23 colaboradores da France Télécom decidiram pôr fim à própria vida.As mortes ocorreram em diferentes regiões, entre trabalhadores com funções diferentes e sem que, aparentemente, tenham relação entre si.
Afectada por uma grande onda de suicídios, o que lhe valeu críticas até do governo francês, a France Télécom comprometeu-se a substituir a direcção geral.
A mudança resultou na chegada ao grupo de Stéphane Richard, que anunciou um plano para melhorar as condições laborais dos trabalhadores.
No entanto, os sindicatos entendem que as alterações realizadas pelo novo director não foram suficientes e denunciaram, em particular, que o anterior diretor, Didier Lombard, se mantém na presidência do grupo.
Os representantes dos trabalhadores consideraram que os suicídios estão ligados às condições laborais do grupo e sobretudo à obrigatoriedade de mudar de local de trabalho ou de região a que os trabalhadores estavam submetidos, no âmbito de uma reestruturação impulsionada por Lombard.
Eu creio que a mudança de local de trabalho possa ser uma chatice, ou até uma preocupação, ou mesmo um drama, mas não creio que seja um drama tão grande que a única saída seja o suicídio. Será para pessoas em crise existencial, conjugal, familiar ou padecendo de doenças que fragilizam a pessoa, mas não creio que uma pessoa normal, gostando do que faz e gostando da sua vida em pleno, reaja desta forma última, a uma simples mudança de local de trabalho.
A ser assim, normal, até onde irá um trabalhador que caia no desemprego? ou um desempregado de longa duração? e se lhe juntarmos o facto de ter pessoas a seu cargo? Há pessoas que acham normal aos trinta e tal anos terem um emprego para toda a vida, nunca mais sairem da sua terra natal, progredirem na carreira, uma vida sem sobressaltos e sem dúvidas. Temos que lhes dizer que não há, não é essa a vida que o futuro lhes reserva.
A dimensão de ambições pouco sensatas e não alcançadas são capazes de explicar melhor aqueles actos últimos. Na verdade, desde os objectivos cada vez mais ambiciosos das empresas,no que se refere à produtividade, aos objectivos e metas impostos aos trabalhadores, as remunerações cada vez maiores para o capital investido, o acenar com vencimentos elevados e mordomias, são uma máquina "trituradora" que afunda os mais fracos.
As árvores tambem crescem mas não chegam ao céu...
PS: a partir de uma notícia enviada pela Ethel.
Quarta-feira, 11 de Agosto de 2010
Florbela Espanca (1894-1930) - XIoetisa portuguesa, natural de Vila Viçosa (Alentejo). Nasceu filha ilegítima de João Maria Espanca e de Antónia da Conceição Lobo, criada de servir (como se dizia na época), que morreu com apenas 29 anos, «de uma doença que ninguém entendeu», mas que veio designada na certidão de óbito como nevrose. Registada como filha de pai incógnito, foi todavia educada pelo pai e pela madrasta, Mariana Espanca, em Vila Viçosa, tal como seu irmão de sangue, Apeles Espanca, nascido em 1897 e registado da mesma maneira. Note-se como curiosidade que o pai, que sempre a acompanhou, só 19 anos após a morte da poetisa, por altura da inauguração do seu busto, em Évora, e por insistência de um grupo de florbelianos, a perfilhou. É em Vila Viçosa que se desenrola a sua infância. Desde o seu nascimento, a infância de Florbela rodeou-se de circunstâncias invulgares.
Uma vez casado com Marina Inglesa, em 1887, João Maria Espanca, o pai de Florbela, continua a trabalhar como sapateiro e antiquário, tornando-se mais tarde num dos pioneiros do cinematógrafo em Portugal.
Ao descobrir que Mariana não pode dar à luz, João Maria consegue convencê-la de uma regra medieval, segundo a qual, quando a mulher não pode ter filhos, o homem está autorizado a cometer adultério, de modo a ter, através de outra mulher os filhos que a esposa não lhe pode dar, filhos esses que depois traria para o lar.
Com o consentimento de Marina, em 1894, João Maria procura Antónia Lobo, uma mulher humilde, vistosa e desejada na vila, que trabalhava como criada de servir, raptando-a uma noite para a engravidar e mantendo-a escondida durante toda a gravidez.
Finalmente, a 8 de Dezembro, Florbela nasce e é baptizada como Flor Bela Lobo, filha de Antónia e de pai incógnito; a madrinha é Mariana, que depois levará Florbela para casa e a tratará como filha. É a casa de Mariana e João Maria Espanca que a Mãe de Florbela se vai dirigir para a amamentar.
Em Outubro de 1899, Florbela começa a frequentar o ensino pré-primário, passando a assinar Flor d'Alma da Conceição Espanca (algumas vezes, opta por Flor, e outras, por Bela). Em Novembro de 1903, aos sete anos de idade, Florbela escreve a sua primeira poesia de que há conhecimento, «A Vida e a Morte», mostrando uma admirável precocidade e anunciando, desde já, a opção por temas que, mais tarde, virá a abordar de forma mais complexa. Ainda no mesmo ano, Florbela começa a escrever uma poesia sem título, o seu primeiro soneto.
Conclui a instrução primária em Junho de 1906, entrando para o actual sexto ano de escolaridade em Outubro do mesmo ano. No ano seguinte, Florbela aponta os primeiros sinais da sua doença, a neurastenia; além disso, escreve o seu primeiro conto, «Mamã!». Em 1908, Antónia Lobo, a mãe de Florbela morre vítima de neurose, após o que a família se desloca para Évora, para Florbela prosseguir os seus estudos no Liceu André Gouveia, com o chamado Curso Geral do Liceu, cuja sexta classe (próxima do 10º ano actual) completa em 1912.
Entretanto, em 1911, começa a namorar com Alberto Moutinho, mas acaba por se afastar deste, em virtude de uma nova paixão por José Marques, futuro director da Torre do Tombo. Após romper com este, no ano seguinte, Florbela reata o namoro com Alberto Moutinho e, a 8 de Dezembro, uma vez emancipada, casa com ele, pelo civil, aos 19 anos.
Em 1914, apesar de algumas dificuldades económicas, o casal muda-se para o Redondo, na Serra d'Ossa, onde abre um colégio e lecciona. Numa festa do colégio, Florbela recita, pela primeira vez, versos seus em público. É no ano seguinte que Florbela inicia o seu caderno «Trocando Olhares», que completa ao longo de cerca de um ano e meio. Em 1916, a revista «Modas e Bordados» publica o soneto Crisântemos, cheio de alterações ao original, e Florbela torna-se amiga da directora e da sub-directora da revista, Júlia Alves, com quem, aliás, inicia correspondência.
Em 1917, após ter regressado a Évora, Florbela completa o actual 11º ano do Curso Complementar de Letras, com catorze valores; apesar de querer seguir essa área, acaba por se inscrever, em Outubro, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o que a obriga a mudar-se para Lisboa, onde começa a contactar com a vida boémia.
Na sequência de um aborto involuntário, em 1919, Florbela tem de se mudar para Quelfes, perto de Olhão, onde apresenta os primeiros sintomas sérios de neurose. Pouco depois, o seu casamento desfaz-se e Florbela decide ir para Lisboa prosseguir o curso, separando-se do marido, e passando a conhecer a rejeição da sociedade. Na capital, contactou com outros poetas da época e com o grupo de mulheres escritoras que então procurava impor-se. Colaborou em jornais e revistas, entre os quais o Portugal Feminino. Em Junho de 1919, depois de alguma correspondência trocada com Raul Proença, sai a lume o «Livro de Mágoas»; posteriormente, completa o terceiro ano de Direito. No ano seguinte inicia «Claustro das Quimeras».
Em 1921, divorciou-se de Alberto Moutinho, de quem vivia separada havia alguns anos, e voltou a casar, no Porto, com o oficial de artilharia António Guimarães. Nesse ano também o seu pai se divorciou, para casar, no ano seguinte, com Henriqueta Almeida. Em 1923, publicou o Livro de Sóror Saudade. Em 1925, Florbela casou-se, pela terceira vez, com o médico Mário Laje, em Matosinhos.
De volta a Lisboa, em 1923, Florbela tem de se mudar rapidamente para Gonça, perto de Guimarães, para se tratar de um novo aborto. Assim, Florbela separa-se do marido, que pede o divórcio, oficializado em 1924; isso leva a que a família de Florbela não lhe fale durante dois anos, o que a abala muito.
Em 1925, depois de se ter mudado para a casa de Mário Lage em Esmoriz, casa com ele, pelo civil e, depois, pela Igreja. Dois anos depois, enquanto Florbela traduz romances franceses para a Livraria Civilização no Porto (que publica oito trabalhos seus), e prepara «O Dominó Preto», o seu irmão falece, o que a torna uma mulher triste e desiludida e inspira «As Máscaras do Destino».
Enquanto a relação com o marido se desgasta progressivamente, a neurose de Florbela agrava-se bastante; é neste período que, possivelmente, se apaixona pelo pianista Luís Maria Cabral, a quem dedica «Chopin» e «Tarde de Música»; talvez por isso, tenta suicidar-se.
Em 1929, Florbela passa por Lisboa, onde lhe é recusada a participação no filme «Dança dos Paroxismos», de Jorge Brum do Canto, e segue para Évora, onde, em 1930, começa a escrever o seu «Diário do Último Ano». Passa, então a colaborar nas revistas «Portugal Feminino» e «Civilização», e trava conhecimento com Guido Battelli, que se oferece para publicar «Charneca em Flor». Já em Matosinhos, Florbela revê as provas do livro, depois da segunda tentativa de suicídio, em Outubro ou Novembro, período em que a neurose se torna insuportável e lhe é diagnosticado um edema pulmonar. A 8 de Dezembro, dia do nascimento e do primeiro casamento, Florbela suicida-se, cerca das duas horas, com dois frascos de Veronal. Ao completar 35 anos, na noite de seu aniversário não suportou mais e suicida-se, atirando-se no oceano Atlântico, nas costas de Matosinhos, no norte de Portugal.
A causa da morte de Florbela tem sido motivo de estudo para vários dos seus biógrafos, ocupando parte significativa das obras a seu respeito. As opiniões dividem-se, e mesmo alguns dos seus mais incisivos estudiosos, como Rui Guedes ou Agustina Bessa Luís contrapõem diversos argumentos que justificariam poder falar-se de suicídio premeditado (recorrendo nomeadamente a excertos da sua obra, do seu diário ou à correspondência enviada pela poetisa) a outros, que apontam para o facto de se ter tratado de um acidente, ou simplesmente, do culminar das doenças que afectavam a poetisa.
Suicídio premeditado?
Na opinião de alguns estudiosos, o desejo de morrer de Florbela está claramente expresso na sua obra, no modo como aborda constantemente o tema da morte, quase que parecendo persegui-la. Seria a consumação de uma fuga, fuga a um amor, fuga à vida e aos sofrimentos que lhe traz. Além disso, seria uma saída fiel aos preceitos românticos. Há, inclusive, a ideia de que na sua obra estaria enunciado uma espécie de programa de despedida: A morte pode vir quando quiser: trago as mãos cheias de rosas e o coração em festa (Ana Marques Gastão, «Cem anos: Sonetos fora de época»). Sobretudo na fase final, os acontecimentos exteriores, como a viagem de Guido Battelli, e os interiores, nomeadamente a perda de capacidades, poderiam agitá-la excessivamente, aumentar o potencial de auto-destruição, e conduzir ao suicídio.
A possibilidade de suicídio é igualmente aceitável, se atendermos ao que Florbela confessou à sua amiga de infância Milburges Ferreira, a Buja, dias antes de falecer: Se passar do dia dos meus anos, morrerei de velha. Foi, aliás, às amigas que Florbela deixou algumas disposições especiais no seu testamento, que, para tanto, teve de alterar dias antes de falecer. Foi também entre os amigos que, no dia anterior à morte de Florbela, correram supostos rumores de que esta estaria à beira da morte, rumores que Mário Lage, o terceiro marido da poetisa, também espalhou depois do funeral. Acresce que esses rumores se firmaram com base na coincidência de que Florbela se matou a 8 de Dezembro, dia do seu aniversário e do seu primeiro casamento. Por outro lado, a atitude de Lage não deixa de ser curiosa: após terem encontrado a poetisa morta no quarto, onde se tinha fechado no dia anterior (pedindo que não a incomodassem até ao dia seguinte), o marido conseguiu manter uma espantosa lucidez, localizando rapidamente os amigos de Florbela para os informar do ocorrido. Mais a mais, é estranho que um médico permita que alguém viva rodeado de barbitúricos, quando sofre de uma neurose e já, por duas vezes, se tentou suicidar, a última das quais dois meses antes. Referência ainda à declaração de óbito da poetisa, que, embora indique como causa da morte o edema pulmonar de que sofria, foi assinada por um carpinteiro.
Por último, há que ter em conta a hipótese sugerida por Agustina Bessa Luís de que Florbela se teria suicidado, em virtude de estar novamente apaixonada, possivelmente por Ângelo César, a quem dedica os seus últimos sonetos, como «Quem Sabe?».
Acidente?
Em primeiro lugar, a neurose de que a poetisa sofria agravou-se significativamente nos últimos meses da sua vida, provocando comportamentos estranhos que escandalizaram a família do marido, Mário Lage, em cuja casa vivia na altura. Além disso, foi-lhe diagnosticada uma apendicite, que faz com que Florbela se arrependa da sua natureza amante e ambiciosa, sentindo-se culpada de todas as polémicas que se geraram em seu torno. Em terceiro lugar, um edema pulmonar (talvez derivado de hipertensão provocada por algum anti-depressivo), descoberto pouco antes da morte, debilitou ainda mais o seu estado de saúde, agravado com um tratamento errado, baseado em refeições pequenas e demasiado repouso.
De facto, é possível que se tenha tratado de um acidente, motivado pela mistura de drogas muito fortes com certos alimentos, ou pela ingestão excessiva de Veronal.
O Veronal, que Florbela passou a usar em 1930, era um sonorífero extremamente forte, usado ao tempo, e particularmente nocivo para doentes pulmonares ou cardíacos, o que era o caso de Florbela. Provavelmente, a associação deste remédio com o tabaco que Florbela fumava constantemente, numa altura em que quase não consegue suportar a neurose, poderá ter ajudado a precipitar a sua morte.
No entanto, não deixa de ser verdade que os dois frascos de Veronal encontrados debaixo da cama da poetisa, completamente vazios, depois da sua morte, podiam ter sido tomados com a intenção premeditada de suicídio.
Por outro lado, há também a considerar o facto de que se aproximava a data da publicação de «Charneca em Flor», esperada pela poetisa com manifesta ansiedade, a par da anestesia e sofrimento prolongados em que Florbela vivia, em virtude da constante ingestão de soníferos, e que impediriam que tivesse um mínimo de vontade de se suicidar. A este respeito, Agustina Bessa Luís cita, inclusivamente, psicólogos da área do suicídio, que consideravam esse acto pouco provável, no caso de Florbela. (Agustina Bessa Luís, «A Vida e a Obra de Florbela Espanca»).
Finalmente, não foi pedida para o enterro da poetisa qualquer disposição eclesiástica, o que era quase impossível naquele tempo se houvesse suspeita de suicídio.
Os casamentos falhados, assim como as desilusões amorosas, em geral, e a morte do irmão, Apeles Espanca (a quem Florbela estava ligada por fortes laços afectivos), num acidente com o avião que tripulava sobre o rio Tejo, em 1927, marcaram profundamente a sua vida e obra. Em Dezembro de 1930, agravados os problemas de saúde, sobretudo de ordem psicológica, Florbela morreu em Matosinhos, tendo sido apresentada como causa da morte, oficialmente, um «edema pulmonar».
Postumamente foram publicadas as obras Charneca em Flor (1930), Cartas de Florbela Espanca, por Guido Battelli (1930), Juvenília (1930), As Marcas do Destino (1931, contos), Cartas de Florbela Espanca, por Azinhal Botelho e José Emídio Amaro (1949) e Diário do Último Ano Seguido De Um Poema Sem Título, com prefácio de Natália Correia (1981). O livro de contos Dominó Preto ou Dominó Negro, várias vezes anunciado (1931, 1967), seria publicado em 1982.
A poesia de Florbela caracteriza-se pela recorrência dos temas do sofrimento, da solidão, do desencanto, aliados a uma imensa ternura e a um desejo de felicidade e plenitude que só poderão ser alcançados no absoluto, no infinito. A veemência passional da sua linguagem, marcadamente pessoal, centrada nas suas próprias frustrações e anseios, é de um sensualismo muitas vezes erótico. Simultaneamente, a paisagem da charneca alentejana está presente em muitas das suas imagens e poemas, transbordando a convulsão interior da poetisa para a natureza.
Na opinião de António José Saraiva e Óscar Lopes, Florbela Espanca é uma das mais notáveis personalidades literárias isoladas (António José Saraiva e Óscar Lopes, «História da Literatura Portuguesa»). Porquê?
Em primeiro lugar, porque a poética e a prosa de Florbela dificilmente se enquadram numa única corrente literária, seja uma corrente dominante no seu tempo ou anterior. De facto, a poetisa soube construir uma linguagem muito própria, quase uma mitologia lírica (António José Saraiva e Óscar Lopes, «História da Literatura Portuguesa»), ao revelar, no espaço da poesia, sentimentos e desejos próprios, anseios e aspirações muito suas, conquistando na literatura um espaço de libertação de instintos sensuais, sem precedentes até então; sobretudo, revelou, através da linguagem poética o seu ser e a sua intimidade.
No entanto, são evidentes em Florbela os traços e as influências de diversas correntes literárias que atravessaram o século XIX, apesar de acusar igualmente proximidades a estéticas do século XX. Diga-se, a propósito, que grande parte da singularidade da obra de Florbela reside no facto de a sua estética literária se enraizar no cruzamento de várias tendências do lirismo do século passado: Florbela admirava Júlio Dantas, Guerra Junqueiro, Antero de Figueiredo, José Duro e, sobretudo, António Nobre. Foi nesse universo artístico, que tentou conciliar a renovação com a tradição poética, que Florbela encontrou elementos para definir a sua linguagem.
Entre as principais influências, há a destacar:
Proximidade de Mário de Sá-Carneiro:
Apesar de não se ter deixado influenciar pela estética modernista proposta por Fernando Pessoa e pelo restante grupo do «Orpheu», o ideário e a temática da obra de Florbela Espanca contém uma curiosa proximidade com a escrita de Mário de Sá-Carneiro, um desses membros do inovador grupo do «Orpheu».
Em primeiro lugar, há uma proximidade ao nível dos dramas pessoais (que Sá-Carneiro revela em «Esfinge» e «Esfinge Gorda»), onde se evidencia a moderna problemática da dispersão, do desdobramento da personalidade, que Florbela partilha em alguns poemas. Além disso, Florbela insere na sua obra a complexa temática da alteridade, bem como a da relação entre o eu poético e os outros, aproximando-se muito do universo temático de Sá-Carneiro, o que se acentua com as referências à crise de identidade do sujeito e à estratégia de fingimento do poeta (enunciada por Fernando Pessoa). Tanto um como o outro, procuravam uma identidade profunda.
Por outro lado, os dois autores têm em comum uma poética de excessos, de estados de espírito extremos, que oscila constantemente entre o desejo de amor e de morte (que encaram de modo semelhante), momentos de loucura e lucidez, luxo e sombras, plenitude e incompletude. Ambos vagueiam, em versos, por claustros, sombras e cenários decadentistas, oscilando entre a realidade e um mundo indefinido.
Como Sá-Carneiro, Florbela quis aliar a vida e a arte, a realidade e o sonho, mostrando-se o resultado desastroso para ambos. Aliás, há que sublinhar que ambos morreram jovens e pelo mesmo motivo: suicídio.
Influência de Antero de Quental:
Em relação à linguagem de Antero de Quental, a poesia de Florbela evidencia semelhanças estilísticas, estruturais e ideológicas.
Uma delas é a referência frequente ao tema da dor, uma dor existencial, que leva à constante ânsia pela morte e pelo não-ser; trata-se de uma dor existencial próxima daquela que Antero e Camilo Pessanha repetidamente abordaram na sua obra.
Por outro lado, o uso da forma clássica do soneto é outro factor de aproximação entre Florbela e Antero, se bem que a aproxime igualmente de outros sonetistas, nomeadamente Camões e Bocage.
Herdada de Antero é, também, a expressão de uma visão eminentemente pessimista do mundo, bem como de uma relação difícil com a vida.
Em termos estilísticos, e à semelhança do que fez Antero, Florbela tende a imprimir um sentido alegorizante aos seus poemas, através de imagens de castelos, palácios, cavaleiros, torres de névoa e de marfim, algumas das quais presentes em «Castelã». Aliás, é nítida a proximidade entre o verso de Florbela Sonho que sou a poetisa eleita (Florbela Espanca, «Vaidade», in «Livro de Mágoas») e o de Antero Sonho que sou um cavaleiro andante.
Marcas anterianas apresentam, igualmente, os sonetos «Em Busca do Amor», que lembra o «Mors Amor» de Antero (cujo tom alegre é um pouco mais vigoroso), «Não Ser», «A Voz da Tília» e «Deixai Entrar a Morte».
Influência de António Nobre:
São muitos os pontos de contacto entre António Nobre, o autor de «Só» (apresentado, ainda hoje, como o livro mais triste que há em Portugal) e Florbela Espanca, que confessa ter pelo escritor intensa admiração, referindo-se, implicitamente, a «Só» na abertura do «Livro de Mágoas» e, depois, explicitamente, na languidez do soneto «Tardes da Minha Terra». Aliás, Nobre era para a jovem escritora o único poeta.
Um desses pontos comuns é o tom confessional dos versos, intimamente ligado à temática da dor, da mágoa que encontramos nas obras dos dois autores; mais do que a mágoa, Florbela, no soneto «Este Livro...», que abre o «Livro de Mágoas», como que propõe um espaço de comunicação entre os tristes, a que ela chama os Irmãos na Dor. É uma intenção próxima da de Nobre em «Só».
Por outro lado, também o pessimismo e a espera da morte, bem como a ideia da predestinação, recorrente em Florbela, aproximam as suas obras, em paralelo com a temática da saudade e um certo neogarretismo, ambos típicos de Nobre.
Comum aos dois autores é, igualmente, a relação que encetam com a vida, a par de um progressivo distanciamento que ambos efectuam em relação ao mundo que os rodeia, o que fará agravar a sua solidão.
Finalmente, há que sublinhar a proximidade na maneira de ver Portugal: ou é um país ou uma forma de estar no mundo (dada a cultura e história portuguesas); ao mesmo tempo, refira-se um certo lusitanismo de Nobre, que Florbela também evidencia e que a aproxima do ideário saudosista do seu tempo.
Ultra-romantismo sepulcral, próximo de Soares de Passos:
O Ultra-romantismo é uma corrente literária da segunda metade do séc. XIX, e que se caracterizou por levar ao exagero, e por vezes até ao ridículo, as normas e ideais preconizadas pelo Romantismo, nomeadamente, a exaltação da subjectividade, do individualismo, do idealismo amoroso, da Natureza e do mundo medieval. Os ultra-românticos geram torrentes literárias de qualidade muito discutível, sendo algumas dela considerada como «romance de faca e alguidar», dada a sucessão de crimes sangrentos que invariavelmente descreviam e que os realistas vão caricaturar de forma feroz.
Existe, todavia, literatura ultra-romântica de qualidade inquestionável. Além de João de Deus, são também autores ultra-românticos Camilo Castelo Branco, Soares de Passos e Castilho. Em algumas obras de Almeida Garrett e de Alexandre Herculano é já possível detectar alguns traços de ultra-romantismo, apesar de serem dois dos introdutores do Romantismo em Portugal.
Parnasianismo:
O parnasianismo é um movimento literário desenvolvido na poesia portuguesa do século XVIII, que se aproxima das tendências realista e naturalista registadas na narrativa.
Originário de França, o parnasianismo tem como principais mestres Théophile Gautier, Leconte de Lisle e Théodore Bauville, defensores do princípio da importância da arte pela arte. As raízes do parnasianismo encontram-se no romantismo, embora o parnasianismo exclua a tendência para o sentimentalismo, valorizando a dimensão estética da literatura, nomeadamente através de uma linguagem precisa e do uso da rima rica (rima entre palavras de diferentes classes gramaticais).
Em Portugal, a estética parnasiana difundiu-se não só entre autores como João Penha, Gonçalves Crespo e António Feijó, ligados pela revista coimbrã A Águia (que o primeiro dinamizou entre 1868 e 1873), mas também Cesário Verde, Joaquim de Araújo e Eugénio de Castro.
Como movimento, o parnasianismo era uma reacção anti-romântica, cuja objectividade contrastava com a subjectividade romântica. Entre as principais características deste tipo de poesia, referência à perfeição dos versos, bem como ao tom descritivo, à referência a obras de arte e paisagens.
Em Florbela, o parnasianismo evidencia-se, sobretudo, em sonetos como «Toledo» e «Charneca em Flor».
Influências simbolistas e decadentistas:
Nos versos de Florbela, encontramos frequentemente uma necessidade, quase desesperada, de viver o instante, o momento, o tempo efémero que passa, sobretudo quando se trata de um tempo feliz, como no soneto «Hora que Passa», de onde se depreende a referência à transitoriedade do tempo e da vida. Esta temática, abordada quase obsessivamente por Florbela, aproxima-a da corrente simbolista e, sobretudo, da poesia de Camilo Pessanha.
Em segundo lugar, também a referência constante a estados de espírito marcados pela dor e pelo tédio apontam para uma forte influência decadentista – simbolista na poética de Florbela, bem como a imagem das torres de marfim, onde se quis refugiar da mediocridade da vida quotidiana.
Por último, destaque para os traços da assimilação da linguagem simbolista – decadentista, bem patentes nas imagens e no mistério implícito do soneto «Outonal», e também, menos acentuadamente, em «Charneca em Flor».
Florbela Espanca não se ligou claramente a qualquer movimento literário. Está mais perto do neo-romantismo e de certos poetas de fim-de-século, portugueses e estrangeiros, que da revolução dos modernistas, a que foi alheia. Pelo carácter confessional, sentimental, da sua poesia, segue a linha de António Nobre, facto reconhecido pela poetisa. Por outro lado, a técnica do soneto, que a celebrizou, é, sobretudo, influência de Antero de Quental e, mais longinquamente, de Luís de Camões.
Florbela Espanca colaborou no jornal Notícias de Évora juntamente com Irene Lisboa (1892-1958) onde foi precursora do movimento de emancipação feminina português. Apesar da rigidez católica e das leis de Portugal, foi casada duas vezes e sua obra possui um acento erótico incomum aos padrões precedentes à emancipação feminina lusitana.
Florbela era, de facto, uma jovem mulher muito atraente, o que também terá sido motivo de inveja para muitas das mulheres do seu tempo, que não hesitaram em caluniá-la. Nas palavras de Maria Alexandrina, Florbela era esbelta, graciosa, de porte senhoril, fartos cabelos negros, pele fina e transparente, sedosa e bela (Maria Alexandrina, «A Vida Ignorada de Florbela Espanca»), a que se juntava um culto do traje e um guarda-roupa moderno, com peles e saia-calça (uma novidade francesa da altura) incluídas, totalmente inovador e diferente do que a sociedade portuguesa estava acostumada a ver.
Com a sua capeline e o seu colar de pérolas, uma das suas fotografias mais conhecidas e que oferecera a Guido Battelli, Florbela fixa um tipo social que perdurará no tempo: segundo Agustina Bessa Luís, trata-se da figura da vagabunda letrada (Agustina Bessa Luís, «A Vida e a Obra de Florbela Espanca»).
Temperamento nostálgico e infinitamente triste, pelo resto da vida Suportou a dor da morte do irmão, Apeles Demóstenes da Rocha Espanca, ocorrida em Junho de 1927 num acidente aéreo, quando ela então começou a consumir estupefacientes.
Após uma sucessão de crises depressivas passou a ficar cada vez mais dependente de Veronal, droga que tomava para dormir. Apeles, o irmão com quem mantinha uma relação quase incestuosa, morrera há três anos e a insónia a abatia ainda mais.
Poetisa de excessos, cultivou exacerbadamente a paixão, com voz marcadamente feminina (em que alguns críticos encontram dom-joanismo no feminino). A sua poesia, mesmo pecando por vezes por algum convencionalismo, tem suscitado interesse contínuo de leitores e investigadores.
É tida como a grande figura feminina das primeiras décadas da literatura portuguesa do século XX.
Segunda-feira, 9 de Agosto de 2010
Manuel Fernandes Laranjeira (1877-1912) - IXManuel Fernandes Laranjeira nasceu no lugar de Vergada, freguesia de Moselos, concelho de Vila da Feira, em 17 de Agosto de 1877.
A família é pobre e a marca das pestes físicas e espirituais da época pobreza, analfabetismo, alcoolismo e tuberculose deixou as suas sequelas, através do desaparecimento do progenitor e de cinco dos seus filhos (quatro rapazes e uma rapariga), guiando manifestamente os percursos do futuro médico de Espinho
É graças à herança recebida depois da morte de um tio brasileiro que Manuel Laranjeira prossegue estudos e consegue formar-se em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto.
Em 1904 concluiu as cadeiras do curso de Medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, apresentando a sua dissertação de licenciatura três anos mais tarde, trabalho a que deu o título algo invulgar de A Doença da Santidade — Ensaio Psicopatológico sobre o Misticismo de Forma Religiosa.
Anteriormente publicara na revista «O Porto Médico» o seu primeiro trabalho de índole científica: Nirvana — Interpretação Psicológica de um Dogma.
Posteriormente fixou-se em Espinho, de onde nunca mais sairia, onde exerceu clínica e prosseguiu uma constante actividade como periodista.
Médico, autor de uma obra diversa nos domínios do teatro, poesia, diário, cartas e jornalismo, em parte apenas conhecida após a sua morte, Manuel Laranjeira relacionou-se com algumas das principais figuras culturais do início do século XX, como António Patrício, António Carneiro, Amadeo de Souza-Cardoso ou o filósofo espanhol Miguel de Unamuno, de quem foi correspondente.
A obra de Manuel Laranjeira transmite-nos a sensibilidade profunda de um sonhador que percorre o seu tempo em constantes batalhas interiores, desesperando com as inúmeras leituras desconcertantes e desencantadas das realidades que os seus olhos identificam como produto do meio envolvente.
A uma poesia disciplinada pelo sentir do seu tempo, opõe-se uma prosa livre e circunstanciada pela pressão dos acontecimentos. A um teatro, humanamente problematizado como espelho dos dramas, risos, virtudes e desfavores da sociedade de então, surge-nos, em paralelo, o ensaio penetrante e demonstrativo de um espírito efervescente e rebelde de um oposicionista às situações impostas aos homens.
Interessou-se vivamente por estudos sobre diversos ramos da ciência, sobretudo Biologia, e escreveu com alguma regularidade sobre assuntos tão variados como Literatura, Crítica Literária, Arte, Estética, Filosofia Social e Pedagogia. Neste último domínio teve à época alguma ressonância o seu opúsculo sobre o valor educativo do método de João de Deus, A Cartilha Maternal e a Fisiologia, onde procurava relacionar aspectos do pensamento de Spencer e Felix Le Dantec com o método pedagógico do poeta do Campo de Flores.
A sua preocupação com a divulgação das ideias políticas, sociais e científicas modernas levou-o a proferir conferências, de que vale a pena destacar as que tiveram lugar na Universidade Livre do Porto, sob o tema «A Vida», em 1906, ano em que desenvolveu actividade bastante intensa e, um ano antes da sua morte, no Teatro Aliança de Espinho, sobre a protecção da vila contra as investidas do mar, que bem reflecte a sua preocupação com problemas de ordem social imediata.
Uma primeira impressão resultante da leitura do Diário e das Cartas dá-nos um Laranjeira céptico, fechado em si mesmo, descrente já da possibilidade da melhoria da mentalidade nacional e afastado da procura de soluções para os grandes ou pequenos problemas da sociedade portuguesa de então. É por isso um pouco difícil imaginar o homem que vamos encontrar por detrás da escrita ora amargurada ora entediada do Diário ser eleito Presidente da Comissão Municipal Administrativa de Espinho e exercer cargos públicos como o de Administrador do Concelho ou andar pelas ruas a abraçar efusivamente os amigos no dia da implantação da República.
Ainda no tocante à sua actividade literária temos notícia de um espírito interessado pelo teatro e possuidor de uma grande cultura teatral; faz crítica de teatro e escreve, influenciado por Ibsen, Strindberg, Hauptmann e Drieux o prólogo dramático ...Amanhã, publicado em 1902 e representado em Lisboa, dois anos depois, na récita inaugural do grupo «Teatro Livre» que tomou como modelo o «Théatre-Libre» de Antoine.
Este prólogo tem sido considerado, apesar de muitas imperfeições a melhor obra cénica da escola naturalista. Escreveu ainda o drama em um acto Às Feras, também representado pelo «Teatro Livre», em 1905; a farsa em um acto Naquele engano d’alma, igualmente representada e deixou inacabada a peça Almas Românticas, as três últimas ainda inéditas.
No domínio da poesia uma única incursão: o livro Comigo (versos dum solitário), publicado no Porto muito pouco antes da sua morte, em Janeiro de 1912, e que, com uma ou outra passagem de maior interesse pelo radicalismo invulgar com que os assuntos são tratados, é uma obra formalmente tradicionalista que se perde entre tantas outras colectâneas de poemas surgidos por esse tempo.
Esmagado pelo peso de uma «melancolia venenosa» que vai degenerando na apatia dum tédio irreversível de que darão conta as páginas do seu Diário Intimo e das Cartas, divide-se entre o várias vezes referido dever de apoio e assistência à família com que vive, e sobretudo a sua mãe, que parece ser tudo o que lhe resta duma infância sempre velada de que se sente nostálgico, e uma ânsia de evasão para algo indefinido, ambiguamente chamado Ideal, que nunca se determina, sendo raríssimas as vezes em que dá mostras de acreditar na possibilidade de sair da monotonia em que se sente submergido.
Os momentos de entusiasmo e de relativa crença são raros. O cepticismo e o tédio vão minando aos poucos o seu pensamento. Os últimos anos aceleram o processo de crise constante da sua vida. Em 1909 rompe a sua ligação com a sua companheira Augusta, que povoa as páginas do Diário e é motivo para muitas e reveladoras reflexões que nele encontramos.
Um ano depois, a Implantação da República não será senão o começo de um lento desmoronar de sonhos, planos e expectativas. O agravamento da doença ajuda a fenecer o ânimo e Laranjeira junta o seu nome à lista dos suicidas como Camilo, Antero, Soares dos Reis e outros que, com «a morta» de que nos fala no Diário, exerceram sobre a sua sensibilidade um ambíguo mas persistente apelo e reforça assim o mito unamuniano da «raça de suicidas». Unamuno, seu companheiro de conversas e deambulações por Espinho a quem em Outubro de 1908 escrevia amargamente a propósito de Portugal: «Neste malfadado país tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa.»
Manuel Laranjeira seguiu as tendências do seu espírito. Na medicina percorreu os caminhos da nevrostenia, enquanto que na literatura e na palavra jornalística defendeu a ousadia de ser irreverente, imprimindo às suas críticas, à sua conversa e aos seus breves comentários, o encanto de uma vida intensa, o interesse e a paixão pela estética do seu tempo, independentemente se tratasse da cor de um risco de pincel ou de um conceito fulgurante de uma frase.
O poeta entrou no grande mistério pela mesma “porta” que Antero e Camilo, suicidou-se, ou por outras palavras, procurou encontrar a sua última verdade. Aquela que, nas suas próprias expressões, é descrita como o desmanchar da última ilusão, a ilusão da imortalidade.
A medida que lemos as linhas convulsionadas que vai escrevendo quotidianamente surge no nosso pensamento, ressuscitado das brumas espessas dessa praia do norte, uma figura indecisa, mal caracterizada que amamos e detestamos como tudo o que há de muito profundo em nós. Poderia ter sido um mito vivo, espécie de «escritor maldito» caseiro, não fosse ter-se suicidado num país que prefere alimentar o seu imaginário de poeirentos cavaleiros bélicos e desajeitadas sombras políticas.
Comecemos uma aproximação de Manuel Laranjeira antes de mais imaginando o seu retrato físico.
Alberto de Serpa imaginou-o assim:
« (...) carregado de fumo de tabaco e sonho, chegava a figura do suicida, trazida pelos passos incertos de tabético. Tomava uma das suas posturas descompostas: o tronco de magricelas desequilibrado na cadeira, a tombar sobre o mármore sujo de bebidas e cinzas, que enodoava mais a vestimenta desleixada; as pernas estiradas, em cruz nos joelhos inseguros; o chapéu mal sustido na floresta negra da cabeleira; a bengala em riste, a marcar o compasso dos pensamentos sem ou com ordem. Na face de prognata e tuberculoso hereditário, urna barbita rente sempre mal rapada, bigode fecundo que rimava com a cabeleira, olhos negros, enormes, avelulados. E bebia e fumava...»
Laranjeira sofria de tuberculose que provavelmente o acabaria por vitimar em pouco tempo, como aconteceu a seu pais seu irmão e outros familiares, se não se tivesse suicidado. Sofria também acentuadamente de tabes, doença que se caracteriza por urna ataxia progressiva dos membros locomotores. Encontram-se ainda nos seus escritos referências à sífilis.
Existem vários indícios de que a morte, longe de ter sido um acontecimento de último momento ou de gesto repentino foi, antes, uma atitude pensada e gerida num tempo mais ou menos longo.
O escritor sentir-se-á como mais um filho de uma pátria moribunda, onde a realidade vivida perdeu o significado e qualquer tipo de atracção.
Se se tivesse acomodado à ordem da cidade jacobina talvez houvesse conseguido uma cadeira nas «constituintes, com alguma dificuldade – mas sempre possível – uma «pasta» num ministério qualquer, apesar de tudo conseguiria com maior facilidade as gorjetas da propaganda, que distribuíam alguns lugares de destaque intermédio no aparelho de Estado e nas administrações de bancos, empresas públicas, governos das colónias. Porém, o médico de Espinho, tal como mostrara os punhos indignados à Monarquia, insistira em dizer do seu desdém intelectual pelos corifeus do novo regime. A República tinha pois que o marcar pela indiferença.
Fidelino de Figueiredo dirá dele:
«(...) em Espinho principalmente, viveu de 1877 a 1912 um homem de aguda sensibilidade intelectual e brava independência de carácter, o médico Manuel Laranjeira, curta vida de luta e amargura — luta com uma doença nervosa de quem quer viver em harmonia com a sua concepção da vida e esbarra em obstáculos intransponíveis. Ao seu drama não deveria ter sido estranha uma certa abulia mórbida. Não era um homem de laboratório. Era um amigo das ideias gerais e um curioso dos aspectos dramáticos da existência. A medicina proporcionou-lhe materiais para a sua interpretação pessimista do homem: um escravo das suas míseras limitações físicas; o seu temperamento pessoal e a exacerbação da doença explicam o resto: a coragem triste do suicídio».
Tomando o fio de Unanumo, seguindo a interpretação de Fidelino de Figueiredo, teremos um Manuel Laranjeira que procurava viver em harmonia com a sua concepção de vida, à qual não faltava a sensibilidade intelectual, portanto, um grande pensador e, por acréscimo, um grande «sentidor».
O que nem um nem outro disseram é que Manuel Laranjeira procurou viver de harmonia com a pátria que sentia doente e, por essa mesma razão, foi aos poucos sofrendo ele próprio os sintomas dessa doença, como se ela se houvesse corporizado em si. Poderia ter emigrado, exilar-se, mas não parece ter pretendido sobreviver. Procurou no suicídio terminar com a «doença de pátria» que em si corporizou uma doença física, real?
Em 1908, comunica a Unanumo a existência do império mental da morte: «Em Portugal chegou-se a este princípio de filosofia desesperada — o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção moral. Neste malfadado país, tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa». Na terra das amarguras só tinha então curso a carreira suicidária. Unanumo ficou pois informado de que em Portugal só haveria triunfo para o «canalha»:
«Chegámos a isto amigo. Eis a nossa desgraça. Desgraça de todos nós, porque todos a sentimos pesar sobre nós, sobre o nosso espírito, sobre a nossa alma desolada e triste, como uma atmosfera de pesadelo, depressiva e má. O nosso mal é uma espécie de cansaço moral, de tédio moral, o cansaço e o tédio de todos os que se fartaram — de crer.» Disto só se poderia sair arrancando-se à vida: «Crer...! Em Portugal, a única crença ainda digna de respeitar é a crença na morte libertadora/E horrível, mas é assim.»
Um cadáver adiado perfila-se. Manuel Laranjeira pretenderia autopsiar antecipadamente aquilo que já lhe parecia estertor do moribundo. O sentimento difuso da responsabilidade republicana escondeu-se muita vez atrás do sofrimento destes inquietos, cobrindo-os com o seu manto indiscriminadamente, como se todos eles fossem seus filhos legítimos.
A natureza da crise colocaria sobre os ombros destes inquietos um peso que eles consideravam insuportável. Era a revolta dos que se recusavam a ser escravos do meio ambiente e se apresentavam como gladiadores na Arena política, julgando que fugiam, assim, à planificação mortal. Manuel Laranjeira respeitava, portanto, o suicídio enquanto derradeiro grito libertador e regulador do que havia de melhor na constituição dos portugueses.
Manuel Laranjeira encontrava os talentos enferrujados devido à falta de carácter e, simultaneamente, os caracteres fortes a deixarem avançar a doença devido à falta de vontade para levarem a fundo a única revolução verdadeiramente importante. Daí desenvolvia o seu conceito moral de história, oposto à interpretação da política dinâmica do jacobinismo. A mudança de regime não pareceu curar os doentes nem salvar a pátria da derrocada.
«O mal da minha terra, amigo, não é a demagogia: é a inépcia. Em Portugal não há demagogia: falta-nos fanatismo cívico para isso. Em Portugal o que há é uma inverosímil colecção de idiotas.»
Para ele a qualidade da mudança centrava-se na transformação das mentalidades: «Fez a revolução. Foi uma verdadeira revolução? Não; foi apenas um povo que mudou de traje. Por dentro estamos na mesma.».
A mudança de regime não trouxera nada segundo Manuel Laranjeira alvitrava.
Após a implantação da República declarou-se que o país estava curado, o doente agradeceu a ideia, como quem aceita uma mentira piedosa, mas sabia que não estava definitivamente restabelecido. Os jacobinos afirmaram que a pátria convalescia. Manuel Laranjeira não se adaptou às convenções que esta mentira impunha. Em vez de fazer política, defendeu com independência o seu parecer sobre o estado do país. As suas ideias tornaram-se subversivas: «(...) É preciso refazer tudo, refundir a sociedade portuguesa de baixo para cima, incansavelmente, obstinadamente.».
O médico de Espinho recusava-se a encarreirar no rebanho republicano. Então, a República marcou-o e, mais do que isso, quando a sua voz se tornou impertinente, sem o perseguir nem perder tempo com avisos, votou-o à liquidação pela indiferença, procurou queimá-lo pelo desdém.
Em torno de Manuel Laranjeira traçou-se um círculo de silêncio, uma terra de ninguém povoada de vazio. A sua inquieta e preocupada visão do apocalipse lusitano tinha um cunho intervencionista demasiado vincado: a autoridade jacobina não era poupada. Para o médico de Espinho, ao envergonhar-se de confessar que errara, tanto mais errava o republicanismo ao dissimular os seus erros.
Portugal, sumindo-se, apagando-se na dispensa de se reformar em grande e profundo, obrigava Manuel Laranjeira a apagar-se também.
O crente na religião patriótica, ponderando sobre o estado de sítio, raciocionando, palpando as partes doridas da alma enferma, não poderia deixar de avaliar os progressos do mal. Pátria-hospital. Pátria-enfermaria, finalmente pátria-morgue, sem corpo clínico que a vigiasse, sem especialista que lhe identificasse a doença. Era pois um doente que tinha de experimentar, descobrir a terapêutica adequada. Um doente que se reflectia no país, por simpatia e solidariedade para com os outros. Deste paradoxo resultavam as inquietações do médico de Espinho.
Paulatinamente, vamos assistindo ao funeral da pátria, O cortejo funerário de Manuel Laranjeira tem todos os adereços da cena trágica. Com a pátria que se finava terminavam os seus dias meia dúzia de coisas que lhe serviam de amparo.
A doença predispô-lo para a solidão e para o pessimismo, manifestos numa visão trágica da existência e numa atitude de ensimesmamento, com explosões de revolta e desespero, de cepticismo e niilismo, culminantes no suicídio.
«Na noite de quinta-feira última, cerca das 23 horas, faleceu o dr. Manuel Laranjeira. Martirizado por horrível e desesperante sofrimento, o dr. Manuel Laranjeira pôs termos à existência, desfechando um tiro de revólver na cabeça!
O trágico desenlace desse drama acidentado da vida de Manuel Laranjeira deixou nos seus amigos uma nota contristadora de uma tremenda catástrofe. É indizível o espírito de consternação e lancinante mágoa que a todos foi transmitido.»
in «Gazeta de Espinho» 25/2/1912
Quarta-feira, 4 de Agosto de 2010
Júlio César Machado (1835-1890) - IVJúlio César da Costa Machado nasceu em Lisboa, em 1 de Outubro de 1835, filho de Luís Maria Cesário da Costa Machado e de Maria Inácia Machado. Aos 3 anos de idade foi com a mãe para uma casa de campo da família, na Durruivos, nas cercanias de Óbidos. Ali, «resguardado entre as saias da mãe, das tias e de um tio frade», ali pároco, cresceu o escritor numa imensa saudade pelo pai, quase sempre ausente. Refere-se-lhe desta forma, numa das suas melhores páginas:
«Vi aparecer um homem embuçado numa capa, alto, elegante, de uma fisionomia suave e inteligente, mãos compridas e delgadas, dedos finos, e o indizível quê da sedução nos olhos, no sorriso, nas maneiras... imagine-se a fusão da aristocracia da raça, aristocracia natural, com a burguesia digna e séria: foi o que eu senti, sem poder, sem saber exprimi-lo, olhando para meu pai e para minha mãe. Nem era fidalgo nem descendia de nobres, meu pai; mas tinha a nobreza que dão a inteligência, a fisionomia, a figura; havia nele o quid da superioridade, o tom especial do gosto. Minha mãe era uma mulher forte, que parecia moldada em bronze florentino, daquelas mulheres como que destinadas a alcançarem que suas filhas pareçam ser suas irmãs, por tal modo se conservam moças como as mulheres do Egipto, núbeis aos 10 para os 11 anos, avós aos 24, bisavós aos 26. Quantas vezes hoje, quando se admiram, os que me conhecem de há muito, por notarem que eu aguento, na minha movediça e fatigante vida que tenho levado, certa inverosímil mocidade, me lembro eu de minha mãe que aos 60 anos não tinha cabelos brancos e lhe atribuo o segredo desta serôdia e estranha primavera aparente! A nossa época é uma democracia de trabalho: a base dela reside no que produz cada um; aquele que adquira uma ideia, uma só ideia que seja, em toda a sua vida, vale mais do que o outro que se haja conservado na sombra, como numa fábrica, uma roda que não gira à vontade de quem a emprega: mas dantes não era assim; era a idade dos cadetes, dos filhos da viúva, dos herdeiros ricos, que começavam o viver novo, despendendo os haveres paciente e laboriosamente ganhos pelo viver velho.
«Meu pai vivera, divertira-se, despendera três fortunas no florescer daquela quadra. Em parte, porque lhe fosse natural, e em parte, porque a vida elegante dá um cunho especial, como que a sua marca, o seu selo, aos que a cultivam. Tudo nela respirava a cavalheiro; era um gentlemen, era um senhor. Olhava para ele pasmado, encantado; que diferença dos sujeitos de sobrecasaca, que apareciam às vezes na Durruivos, o administrador do concelho, o médico da vila próxima, o cónego que vinha visitar o pároco... Nunca vira um homem assim! Não sabia no que mais atentasse, se no bigode longo e assedado, se nos cabelos finos e compridos, se no casaco justo ao corpo, com alamares e debruado a peles, como era a moda de então, se no anel que lhe vi brilhar no dedo, se na capa, se nas botas altas... Direito, ágil, intrépido, cabeça erguida, em tudo o homem costumado a ver satisfeitos os seus desejos, e a quebrar as resistências todas [….]. Não existe a felicidade na sua plenitude, porque no adejar das asas frementes aspira sempre a ir mais longe do que a ilha encantada do momento; aliás, eu poderia dizer que fui feliz naquela noite... Mas a felicidade verdadeira nunca chega a servir senão para se lembrarem dela os que a desgraça instruir. Em todo o caso, a querer pôr em linha de conta o tempo em que em toda a minha vida tenho empregado em dormir, em esperar, em duvidar, em me enganar a mim, em errar, em prever, em evitar estar doente, em o estar deveras, em deplorar penas, que eram bens, e passar por mágoas verdadeiras, em desprezos e ilusões, em derrubar e erguer altares até se desfazerem em pó, talvez não vivesse completamente para a felicidade, absoluta, inteira, completa, mais do que essa hora! Nos compridos dias da Durruivos, ir para meu pai havia sido o meu sonho; e o meu sonho cumpria-se.»
Depois de uma breve passagem pelo Colégio Militar, de onde foge devido aos maus-tratos do professor de Latim, César Machado matricula-se no liceu. Datam dessa época as suas primícias literárias: Estrela de Alva, romance dos catorze anos, será publicado na revista A Semana, de Camilo Castelo Branco. A morte prematura do pai força-o a ganhar a vida com a escrita, tornando-se tradutor efectivo do Teatro do Ginásio.
Em 1844, com a mãe, vai, finalmente, juntar-se-lhe a Lisboa. Quatro anos depois, o empresário Silva Vieira apresentou no teatro do Salitre a comédia em um acto As Calças Listradas. E quando o pano desceu, o público reclamou a presença do autor. Entre os autores, um adolescente de 14 anos agradecia a ovação. Era Júlio César Machado, na estreia da sua carreira literária. Até ao final da vida, o teatro mereceria sempre um lugar de relevo na carreira de homem de letras, que cedo começara. É que ele, como praticamente todos os homens de letras, teve um emprego de sobrevivência, porém apenas a partir de 1864: secretário do Instituto Industrial de Lisboa.
Um dos mais destacados polígrafos da segunda metade do século XIX, jornalista, tradutor, autor de romances, contos e peças de teatro, Júlio César Machado salientou-se sobretudo como folhetinista e cronista.
Em 1852, com apenas dezassete anos, publica o romance Cláudio, confessadamente influenciado pelas Memórias de um Doido, de Pedro Lopes de Mendonça, que viria a ser o seu mestre, tanto no romance como no folhetim; a partir de 1858, César Machado substituiu-o como folhetinista regular em A Revolução de Setembro. Em 1864, ocupa o lugar de secretário do Instituto Industrial de Lisboa. Em 1870, é um dos co-fundadores da Associação de Homens de Letras.
Ao longo da sua vida, Júlio César Machado deixaria uma imensa colaboração dispersa por jornais e revistas como a Revista Universal Lisbonense, o Diário de Notícias, o Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, a Revista Ocidental, a Ilustração Portuguesa e o Eco Literário, de que foi co-fundador, em 1886, entre muitos outros. Muitos dos seus folhetins e crónicas de viagem seriam reunidos em volume.
Crítico de teatro durante muitos anos, «sempre de luva de pelica, com o sorriso nos lábios, mas ensinando o bom caminho a escritores e artistas», no dizer de Sonsa Bastos, Júlio César Machado biografou alguns dos mais notáveis artistas da sua época: Tasso, Taborda. Josefa Soller, Isidoro e Sargedas, os mais dos textos saídos na «Galeria Artística/Colecção de Biografias de Actores e Actrizes Portuguesas», da Livraria de A. M. Pereira.
Júlio César Machado escreveu ficções, viagens, comédias e chegou a abordar a comédia-drama. Porém, ontem, como agora, escrever para o teatro não seria uma actividade muito gratificante do ponto de vista financeiro, e o talento dispersou-se-lhe por outros géneros, especialmente o folhetim. Mesmo assim, deixou-nos as peças Amigos... Amigos, provérbio em um acto, O Tio Paulo, drama em três actos escrito expressamente para o Teatro das Variedades e para o cómico Isidoro, cuja biografia publicara em 1859, O Anel da Aliança, comédia em um acto, Amor às Cegas, comédia em um acto levada à cena, aliás com muito sucesso, no Teatro D. Maria II, e Primeiro Deter, comédia-drama em três actos, de parceria com Alfredo Hogan, que Sousa Bastos verbera por ter escrito precipitadamente todas as suas peças, mais interessado na edição que na representação. Outras comédias da sua autoria, no entanto, foram representadas, mas nunca impressas. É o caso de Antes das Eleições e Depois das Eleições, ambas levadas à cena no Trindade.
Estimado e festejado por todos, Júlio César Machado era um «coração de ouro». Camilo Castelo Branco, de quem fora amigo toda a vida — desde o dia em que o visitara na Rua do Ouro, numa dessas estadas lisboetas do romancista, quando este escrevia Anátema — não ocultava o que lhe parecia um «vazio» nos seus escritos: «minguavam em crítica, doutrina, conselho e ensinamento», mas, acrescentava, «essa falta não há-de arguir ao entendimento de Júlio César Machado é uma virtude nele, bondade do seu coração».
Frequentador dos teatros e visita dos camarins, dedicou muitos anos da sua vida a estudar e analisar o fenómeno teatral e conheceu todos os grandes e pequenos artistas do seu tempo.
«Quando, em 1857, a cólera caiu sobre Lisboa, escreve, em tanta maneira foi cortês para com as classes altas, que não atacou senão os pobres. Sucedia-me nessa ocasião uma pequena contrariedade, difícil de vencer — a de estar pobríssimo. Era tradutor do Teatro do Ginásio; dirigia a secção literária de um jornal, Doze de Agosto e era revisor da Revista Universal Lisbonense... Mas, logo que rompeu a cólera, o Teatro do Ginásio fechou, o jornal Doze de Agosto parou, e a Revista Universal Lisbonense morreu. Não se apresentava de um modo propriamente risonho o horizonte, para mim.»
É nessa altura que, apertado pela necessidade, inicia os seus famosos folhetins na Revolução de Setembro, onde substituiu Lopes de Mendonça, que trocava o jornalismo pela política. E o jornal esgotava-se às terças-feiras ou seja cada vez que o seu nome aparecia impresso como autor. Com pseudónimo — chegou a usar simplesmente Carolina! — o êxito era o mesmo, e assim colaborou noutros jornais. Aliás, na construção de pseudónimos utilizou os anagramas como Ochadam e Oiluj, assim como Zzzt, e outros. Mas conheciam-lhe o estilo, procuravam-no, pelo que foi compondo o seu pé-de-meia. Nos folhetins, Júlio César Machado arranjou fartos leitores para os seus livros. E estes tiveram êxito assegurado. Só Contos de Luar teve três edições em oito meses, num total de cinco mil exemplares — importante número para a época. «O mais elegante contista», chamou-lhe Alberto Pimentel. Mas as viagens seriam o seu gozo e, assim, depois de ter publicado um livro um tanto heterodoxo deste género, Passeios e Fantasias, no mesmo ano de 1862 em que saiu Cenas da Minha Terra, no ano seguinte apareceu com Recordações de Paris e Londres, em 1865 com Em Espanha, e, em 1867, com Do Chiado a Veneza, que antecedeu o curiosíssimo Quadros do Campo e da Cidade. Lisboa, apesar de tudo é a grande protagonista da sua obra em livro e em jornal. Lisboa é o cenário privilegiado dos textos e da própria vida de Júlio César Machado.
É de notar que um espírito extrovertido como o deste folhetinista, surpreendentemente, apenas uma vez falou em público. Foi no Colégio Artístico Comercial, que ficava ao Rato, onde proferiu uma palestra sobre Rossini. Convidou-o o director do estabelecimento, José Maria de Andrade Ferreira, seu antigo colega da Galeria Artística e o autor do Curso de Literatura Portuguesa, que Camilo concluiria.
Sousa Bastos, em O Biógrafo, de 15 de Maio de 1880, deixou-nos escrito que, a Machado, «a política meteu-lhe sempre horror, e por isso, possuindo um talento superior e uma popularidade extraordinária, tem até hoje conseguido não ser deputado. Todos os políticos o estimam; ele trata-os muito bem, felicita-os pelos seus triunfos, lastima-os pelos seus desastres, mas afasta-se deles o mais que pode, unicamente porque lhe cheiram a... política.» E no fecho de uma biografia, a cerca de dez anos da sua morte: «Como homem e como literato, Júlio César Machado é a individualidade mais simpática da nossa terra.» No mesmo sentido, Gervásio Lobato, em Contemporâneo, de Abril de 1875, abria o seu artigo publicando que «Júlio César Machado é uma das individualidades mais simpáticas e mais características das nossas letras. Espírito verdadeiramente superior, profundo na sua singeleza, artístico na sua simplicidade, elegante na sua funda filosofia, ninguém como ele pôde atingir entre nós as formas correctas, definitivas e características do folhetim.»
Ironicamente, a sua vida, consagrada à escrita humorística do quotidiano, terminaria num ambiente de tragédia familiar. Dois meses depois do suicídio do filho único, em 1890, no mesmo ano da morte do seu grande amigo Camilo Castelo Branco, Júlio César Machado, não resistindo à dor provocada pelo suicídio do único filho, pôs termo à vida na sua casa, um terceiro andar do número 2 da Travessa do Moreira, ao Salitre, em Lisboa. Mais tarde a artéria passou a chamar-se Rua de Júlio César Machado, ficando a casa assinalada com uma placa comemorativa da efeméride.
Foi na manhã de 12 de Janeiro, num gesto premeditado. O escritor e sua mulher, Maria das Dores, arranjaram-se como se fossem fazer uma visita. Júlio César chamou a velha criada, Maria José — há mais de meio século ao serviço da família —, e mandou-a à Rua do Ouro, comprar o «Le Fígaro». Quando a criada regressou com o jornal, um estranho quadro a aguardava: o casal jazia no chão, num lago de sangue — o patrão morto e a esposa moribunda. Ambos tinham golpeado os pulsos com tal violência que se viam os ossos. Como espectador daquela cena macabra, o retrato do filho, que propositadamente fora retirado da parede e colocado na mesa, ante a qual tudo se desenrolara. Maria das Dores resistiu. Durante mais de três meses obrigaram-na a lutar com a morte. Ficou-lhe o braço esquerdo paralisado e o luto pelo filho e pelo marido.
O jornalista e escritor vivia obcecado pelo filho. Criara-o, digamos assim, com excesso de enlevo. Estroina, muitos desgostos deu o moço ao pai, acabando por suicidar-se a tiro, dentro de um trem, a 13 de Outubro de 1889, ficando numa agonia que demorou dois dias. Tinha 17 anos. O desgosto prostrou Júlio César Machado e a esposa, que, desde então, até ao segundo acto da tragédia, deixaram de contactar com os seus amigos. Tanto quanto sabemos, antes de o casal cortar as veias, com uma grande raiva, o escritor, em vão, tentou enforcar-se.
O escritor morre, para consternação dos seus contemporâneos, que lhe admiravam o estilo claro e ligeiro, o tom coloquial e humorístico, a atenção aos temas do quotidiano. Ramalho Ortigão, como ele cronista, escreveria mais tarde (in Costumes e Perfis): "Em toda a sua obra, nos folhetins e nos livros, há uma larga claridade hospitaleira de toalha lavada, de jantar servido ao ar livre dos campos".
«Mas como pôde este Júlio, tão alegre, tão moço, sempre tão acostumado a rir, tão interessado pelo mundo, tão apegado à vida que até parecia disposto a não envelhecer jamais, tão delicado e gentil nos seus pensamentos e nos seus actos, acabar sinistramente, num drama de sangue que só de recordá-lo sente a gente o coração constranger-se?» Recordava assim Alberto Pimentel aquele domingo de Janeiro de há um século.
Hoje, podemos vê-lo, em estátua de bronze, da autoria de Simões de Almeida, no Cemitério do Alto de S. João, na capital. Foi essa a maior das homenagens póstumas que lhe prestaram os seus amigos.