Só tinha um filho ao colo, mas tiveram que matá-la
Podia chamar-se Rosa...
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) Catarina Eufémia
O primeiro tema da reflexão grega é a justiça E eu penso nesse instante em que ficaste exposta Estavas grávida porém não recuaste Porque a tua lição é esta: fazer frente Pois não
deste homem por ti E não ficaste em casa a cozinhar intrigas Segundo o antiquíssimo método ubíquo das mulheres Nem usaste de manobra ou de calúnia E não serviste apenas para chorar os mortos Tinha chegado o tempo Em que era preciso que alguém não recuasse E a terra bebeu um sangue duas vezes puro Porque eras a mulher e não somente a fêmea Eras a inocência frontal que não recua Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste E a busca da justiça continua
...e este era o mês das rosas,
Carlos Aboim Inglez (1930-2002) Ao retrato de Catarina
Esses teus olhos enxutos Num fundo cavo de olheiras Esses lábios resolutos Boca de falas inteiras Essa fronte aonde os brutos
Vararam balas certeiras Contam certa a tua vida Vida de lida e de luta De fome tão sem medida Que os campos todos enluta
Ceifou-te ceifeira a morte Antes da própria sazão Quando o teu altivo porte Fazia sombra ao patrão Sua lei ditou-te a sorte Negra bala foi teu pão E o pão por nós semeado Com nosso suor colhido Pelo pobre é amassado Pelo rico só repartido
Tanta seara continhas Visível já nas entranhas Em teu ventre a vida tinhas Na morte certeza tenhas Malditas ervas
daninhas Hão-de ter mondas tamanhas Searas de grã estatura De raiva surda e vingança Crescerão da tua esperança Ceifada sem ser madura
Teus destinos Catarina Não findaram sem renovo Tiveram morte assassina Hão-de ter vida de novo Na semente que germina Dos destinos do teu povo E na noite negra negra Do teu cabelo revolto nasce a Manhã do teu rosto No futuro de olhos posto
mas chamava-se Catarina...
José Carlos Ary dos Santos (1937-1984) Retrato de Catarina Eufémia
Da medonha saudade da medusa que medeia entre nós e o passado dessa palavra polvo da recusa de um povo desgraçado.
Da palavra saudade a mais bonita a mais prenha de pranto a mais novelo da língua portuguesa fiz a fita encarnada que ponho no cabelo.
Trança de trigo roxo Catarina morrendo alpendurada do alto de uma foice. Soror Saudade Viva assassinada pelas balas do sol na culatra da noite.
Meu amor. Minha espiga. Meu herói Meu homem. Meu rapaz. Minha mulher de corpo inteiro como ninguém foi de pedra e alma como ninguém quer.
O quadro é de Maluda (1934-1999), o poema da Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) e a voz da Dulce Pontes - três femininas visões de uma cidade (também ela feminina, segundo a opinião da maioria dos poetas). Lisboa
Digo: "Lisboa" Quando atravesso - vinda do sul - o rio E a cidade a que chego abre-se como se do meu nome nascesse Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna Em seu longo luzir de azul e rio Em seu corpo amontoado de colinas - Vejo-a melhor porque a digo Tudo se mostra melhor porque digo Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência Porque digo Lisboa com seu nome de ser e de não-ser Com seus meandros de espanto insónia e lata E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro Seu conivente sorrir de intriga e máscara Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata Lisboa oscilando como uma grande barca Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência Digo o nome da cidade - Digo para ver
Não cinco, mais que seis sentidos são todas as linhas primárias do poema nascente no tempo e em seu espaço de claridade onde sempre escorre.
O primeiro fulgor todo indistinto, mas lampejante como a certeza do encoberto caminho pressentido, logo ilumina o vagar da luz insone.
Fulgor caminho corrida e luz concorrem unidos no espaço aberto como nuvens ácidas doces verdes.
Tudo se recolhe no edifício de abertas janelas ao verdor de um tempo túrgido de amor romã e aroma.
Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 1919- LIsboa, 2004)
ARTE POÉTICAV
Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado ‘Nau Catrineta’. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura. Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio. Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si. No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização. Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas –coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim. Tempos depois, escrevi estes trêsversos: “A voz sobe os últimos degraus/ Oiço a palavra alada impessoal/ Que reconheço por não ser já minha”.
(De “Ilhas”).
Pablo Neruda (Parral, 1904- Santiago do Chile, 1973)
ARTE POÉTICA
Entre sombra y espacio, entre guarniciones y doncellas, dotado de corazón singular y sueños funestos, precipitadamente pálido, marchito en la frente y con luto de viudo furioso por cada día de vida, ay, para cada agua invisible que bebo soñolientamente y de todo sonido que acojo temblando, tengo la misma sed ausente y la misma fiebre fría un oído que nace, una angustia indirecta, como si llegaran ladrones o fantasmas, y en una cáscara de extensión fija y profunda, como un camarero humillado, como una campana un poco ronca, como un espejo viejo, como un olor de casa sola en la que los huéspedes entran de noche perdidamente ebrios, y hay un olor de ropa tirada al suelo, y una ausencia de flores -posiblemente de otro modo aún menos melancólico-, pero, la verdad, de pronto, el viento que azota mi pecho, las noches de substancia infinita caídas en mi dormitorio, el ruido de un día que arde con sacrificio me piden lo profético que hay en mí, con melancolía y un golpe de objetos que llaman sin ser respondidos hay, y un movimiento sin tregua, y un nombre confuso.
E vamos ter o privilégio de ouvir este poema dito pelo autor:
Não cinco, mais que seis sentidos são todas as linhas primárias do poema nascente no tempo e em seu espaço de claridade onde sempre escorre.
O primeiro fulgor todo indistinto, mas lampejante como a certeza do encoberto caminho pressentido, logo ilumina o vagar da luz insone.
Fulgor caminho corrida e luz concorrem unidos no espaço aberto como nuvens ácidas doces verdes.
Tudo se recolhe no edifício de abertas janelas ao verdor de um tempo túrgido de amor romã e aroma.
Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 1919- LIsboa, 2004)
ARTE POÉTICAV
Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado ‘Nau Catrineta’. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura. Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio. Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si. No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização. Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas –coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim. Tempos depois, escrevi estes trêsversos: “A voz sobe os últimos degraus/ Oiço a palavra alada impessoal/ Que reconheço por não ser já minha”.
(De “Ilhas”).
Pablo Neruda (Parral, 1904- Santiago do Chile, 1973)
ARTE POÉTICA
Entre sombra y espacio, entre guarniciones y doncellas, dotado de corazón singular y sueños funestos, precipitadamente pálido, marchito en la frente y con luto de viudo furioso por cada día de vida, ay, para cada agua invisible que bebo soñolientamente y de todo sonido que acojo temblando, tengo la misma sed ausente y la misma fiebre fría un oído que nace, una angustia indirecta, como si llegaran ladrones o fantasmas, y en una cáscara de extensión fija y profunda, como un camarero humillado, como una campana un poco ronca, como un espejo viejo, como un olor de casa sola en la que los huéspedes entran de noche perdidamente ebrios, y hay un olor de ropa tirada al suelo, y una ausencia de flores -posiblemente de otro modo aún menos melancólico-, pero, la verdad, de pronto, el viento que azota mi pecho, las noches de substancia infinita caídas en mi dormitorio, el ruido de un día que arde con sacrificio me piden lo profético que hay en mí, con melancolía y un golpe de objetos que llaman sin ser respondidos hay, y un movimiento sin tregua, y un nombre confuso.
E vamos ter o privilégio de ouvir este poema dito pelo autor:
Às duas em ponto, chegam, além de Nicolas Boileau, José Saramago, Josep Anton Vidal e Hélia Correia.