Quinta-feira, 3 de Fevereiro de 2011

Solidão - por Ethel Feldman

Sara está na cozinha. Augusto no quarto na internet. Na sala a TV está ligada para ninguém. O volume do som é alto para que Sara cozinhe acompanhada e Augusto navegue ao som da publicidade. Na rua, o motociclista desce e sobe com grande aparato, num ruído tão ensudercedor que faz Augusto ir à sala subir o som da televisão. Na cozinha, o som do exaustor abafa todos os outros. Sara vai  para a sala, senta no sofá, folheia o jornal, baixa o som da televisão. Augusto dá um berro:

- Não baixes o som que quero saber quando começa o futebol...

Irritada vai para a net, coloca os auscultadores, aumenta o som do computador para que ele seja mais alto do que o relato da TV.

Sara e Augusto sofrem de insónias. Só adormecem se tiverem a televisão ligada.

Sozinha no campo, Sara chora com medo do silêncio. Augusto ouve o futebol com o rádio colado ao ouvido.

Vejo este quadro vezes sem conta. O encontro com nós mesmos sempre adiado. Lembro de Rilke:

Só existe uma solidão. É grande e difícil de suportar. E quase todos nós conhecemos horas em que de bom grado a cederíamos a troco de qualquer convivência, por muito trivial e mesquinha que fosse; até pela simples ilusão de uma pequena coincidência com qualquer outro ser, mesmo com o primeiro que aparecesse, ainda que assim resultasse talvez menos digno. Mas acaso sejam estas, precisamente, as horas em que a solidão cresce – pois o seu desenvolvimento é doloroso como o crescimento das crianças e triste como o início da Primavera – ela, sem embargo, não deve desconcertá-lo, pois o único que, por certo, nos faz falta é isto: Solidão, grande e íntima solidão. Mergulhar em si mesmo e, durante horas e horas, não encontrar ninguém…Isto é o que importa conseguir. Estarmos sós, como estivemos sós quando éramos crianças, enquanto á nossa volta andavam os grandes de um lado para o outro, enredados em coisas que pareciam importantes e grandes, só porque eles se mostravam muito atarefados, e porque nós não entendíamos nada dos seus afazeres.

“Ora bem, se um dia os adultos acabarem por descobrir quão pobres são as suas ocupações, e como as suas profissões são vazias e falhas de qualquer nexo com a vida, porque não seguir, então, olhando todas essas coisas com os olhos da infância, como se fosse algo exterior e estranho? Porque não olhar tudo de longe, da profundidade do nosso próprio mundo, desde os extensos domínios da nossa própria solidão, que é também trabalho e dignidade e ofício?”.

(Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, sexta carta, de 23 de Dezembro de 1903)

publicado por Carlos Loures às 10:00

editado por Luis Moreira em 02/02/2011 às 22:48
link | favorito
Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2011

Um assassínio suculento

Tudo o que são jornais, televisões e, até aqui o escriba, tomaram como assunto do dia a morte do jornalista Carlos Castro. Não por ser um caso de homosexualidade, mas porque se trata de um exemplo do pior para que nos empurrou a sociedade em que vivemos.

 

Olhamos em volta e o que é que vemos como futuro para os nossos jovens? O desemprego ou a desilusão num emprego que corta cerce os sonhos ou investe-se, muito para além do que é admissível para gente tão jovem.

 

Na moda é o que se percebe com sexo, alcool, drogas e o que mais vier para não se perder um minuto que seja das festas em ritmo contínuo. No circuito profissional do ténis, as jovens (lançadas às feras da pressão e da solidão) têm namorados estratégicamente distribuídos a nível mundial ou, na sua própria equipa, há quem se encarregue do assunto como mais um serviço que é prestado e, são variadíssimos os casos de lesbianismo; na natação as jovens nadadores Alemãs faziam sexo, na véspera das provas com o treinador e outros elementos da equipa para aumentar as "performances" ( descrição de uma das maiores campeãs alemãs); no ciclismo jovens de 25 anos correm 250 Kms, em cima de uma bicicleta durante 6 horas e sobem e descem quatro montanhas de 2 000 metros, como se fosse possível a um ser humano "limpo" de drogas e de "transfusões sanguíneas; no futebol, jovens originários da América do Sul ao fim de 6 meses na Europa, têm musculação nos sítios certos...

 

Um amigo meu, médico há muitos anos, contou-me que um certo dia, em serviço nas urgências de um hospital lhe apareceu um júnior de uma equipa de futebol, com um quadro clínico grave, horas depois do jogo o seu ritmo cardíaco atingia números perigosos colocando em perigo a sua vida. Feito o protocolo médico ajustado para a situação, o resultado não foi o esperado, pelo que o enfermeiro que o acompanhava teve que confessar o "inconfessável". O rapaz estava cheio de "doping" até às orelhas...

 

Eu próprio, quando jogava futebol nos júniores me apercebi que ao intervalo me davam a beber um "chá" de limão que me punha a correr mais do que tinha corrido na primeira parte, apesar de já não poder com as botas...

 

Esta sociedade corre para o abismo, vale tudo, como é também exemplo o que está agora a acontecer com vários atletas no país vizinho com vários campeões acusados de "doping". Sob esta espantosa pressão acontecem mortes de atletas sozinhos em quartos de hotel, mortes súbitas, suícidios,  violência que vai até ao acto de matar.

 

E, nós, todos a fazer de conta que isto não é o resultado de termos transformado o objectivo olímpico "mais alto, mais longe, mais rápido)   num modo de vida que tudo destrói.

publicado por Luis Moreira às 22:00
link | favorito

Coordenação de Augusta Clara de Matos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Boas e Más Memórias

Vida e Obra de Um Poeta

Herberto Helder

Não descuido a minha obra. Deve-se velar por aqui­lo que conseguiu ascender, entre riscos e ameaças, às condições da realidade. Mas serão os meus poemas uma realidade concreta no meio das paisagens interio­res e exteriores? Não possuo um só dos papéis que enchi; interessa-me a forma acabada das minhas ex­periências, e suas significações, mantida numa espé­cie de memória tensa

e límpida. Os papéis, esses, estão em França (Paris ou Marselha), na Holanda, na África do Sul. Encontram-se nas mãos de conhecidos, desco­nhecidos, amigos, inimigos — e cada qual saberá usar deles de modo particular e, suponho, exemplar. Tira­rão daí indeclináveis razões para a moralidade dos seus pensamentos com relação a mim e a eles mesmos. Não, não sei de cor as pequenas composições de palavras. Retenho a fantasia, a objectividade delas — ponto onde me apoio para saber que sou sólido, e tenho (ou sou) uma obra. Avancei muito no conhecimento da divinda­de, desde o dia em que escrevi um dístico na parede de um urinol de Lisboa até à minha obra-prima (um po­ema dramático), oferecida com maliciosa ingenuidade a uma prostituta nas docas de Amesterdão (ela não sabia português). Um poema desesperadamente religi­oso que falava do corpo e da sua magnificência e pe­renidade.

 

publicado por Luis Moreira às 14:00
link | favorito
Terça-feira, 7 de Dezembro de 2010

Ah, look at all the lonely people

Carla Romualdo

Perder um cão diz-nos muito sobre as pessoas, é o que vos digo.

A Changui aproveitou uma porta deixada aberta e escapou-se de casa. Cadela já velhota, talvez se lembrasse dos anos de juventude que passou na rua, depois de um provável abandono, até ao dia em que foi adoptada, e quisesse recuperar algum do alvoroço juvenil desses anos irremediavelmente perdidos. Ou talvez tivesse confiado demasiado na sua capacidade de reencontrar o caminho e erre agora pelas ruas, amargurada menos por estar sem abrigo do que por ter descoberto que já não é a mesma cadela. Os bichos não fazem essas ponderações? Vá-se lá saber.

Perder um cão que leva anos connosco é uma tristeza. Nestas noites frias e chuvosas imagina-se o pobre bicho a vaguear por ruelas sombrias, a levar com os jorros de água que tombam das caleiras rotas, esfomeado… são negros os pensamentos de quem perde um cão.

Para afastá-los, lançamo-nos no afã da busca e pedimos ajuda. Há amigos que não têm cães nem querem tê-los e se dispõem a ajudar como podem, há os que nos olham com o embaraço com que se diagnostica uma precoce senilidade – embora ainda disfarçada sob a capa de uma excentricidade benigna – em alguém de quem esperávamos mais.

Colam-se centenas de cartazes, adquire-se uma destreza formidável a rodear os postes com fita-cola, a manobrar os dedos com agilidade apesar de estarem semi-congelados. Fala-se com toda a gente que passeia cães, como se fizessem parte de uma irmandade privilegiada, a daqueles que vêem, efectivamente vêem, os cães que vagueiam pelas ruas. Vai-se ao canil, o que por si só constitui castigo suficiente por se ter sido um dono negligente, publicam-se anúncios, tudo aquilo que for possível.

E é quando se lança mão a todas estas precárias estratégias que o telefone começa a receber chamadas de estranhos e se redescobre a solidão dos humanos.
A senhora sem família, prestes entregar-se às mãos do cirurgião que tentará salvar-lhe a vida, que nos quer deixar a sua cadelinha para poder deitar-se na marquesa sem temer o desfecho que a espera.

A activista que vive para os cães e se levanta de madrugada para procurar os animais perdidos do seu bairro, da cidade, do distrito, como se a salvação do mundo dependesse do seu despertador, dos quilómetros que comeram a sola às suas sapatilhas cinzentas, das fotocópias de cartazes de “Procura-se” que lhe tomaram conta da casa, que jorram das gavetas, que ocupam os sofás, que lhe engoliram toda a vida. 

A louca que nos conta a história da sua vida pelo telefone, ainda que não tenha visto a cadela – “Não vi, mas posso ver, não é? A qualquer altura posso vê-la” – e que a verá, estou certa, mais cedo ou mais tarde, talvez na rua, talvez a erguer-se em direcção aos céus, talvez de fato e gravata no telejornal.

E os energúmenos das três da manhã, que telefonam para despertar-nos, para alinhar com esforço duas ou três frases: “Vi uma cadela, vi, tinha muito pêlo.” E que desligam quando vêem que não estamos a insultá-los porque irritar o outro é todo o intercâmbio com que se contentam.

Toda esta gente solitária espera uma oportunidade para sair da sua sombra e dar o melhor de si. Querem ser escutados, entendidos, querem sentir que fizeram a diferença, que algo foi possível graças a eles. Querem que olhemos para eles, que escutemos a sua voz do outro lado da linha, que partilhemos com eles uma fracção de tempo e espaço. Alguns aprenderam a relacionar-se com os animais e essa relação foi crescendo na precisa medida em que se derrubavam as pontes com os outros seres humanos. 

Sabemos que em algum momento alguém vai dizer a frase fatídica, alguém vai dizer-nos que prefere os animais às pessoas. E quando se ouve isto, ficamos com as mãos mais frias, com o estômago encolhido, as palavras fogem-nos, porque sabemos que estamos perante alguém que sofreu e está a ponto de desistir e espera que ainda o possamos convencer, o que é mais do que sabemos fazer. E isso entristece tanto quanto saber que a esta hora, com a chuva que cai lá fora, a nossa cadela ainda não apareceu.


publicado por CRomualdo às 14:00
link | favorito
Terça-feira, 27 de Julho de 2010

Partir - para onde?

Clara Castilho

Na continuação da reflexão, que partiu do texto publicado do Luiz Pacheco, passou pelo meu – “Lares- depósito de corpos à espera da morte?”, envio esta pequena curta metragem, de uma portuguesa (mas feito no Canadá….) sobre uma forma de “partir”.
A cor preta angustia, a reacção à “diferença” da criança, a solidão, também. Mas, mesmo sem asas, é um partir que parece não sofrido.

publicado por Carlos Loures às 11:00
link | favorito
Segunda-feira, 24 de Maio de 2010

A linha divisória

António Sales


Deixei o carro no largo à entrada da vila, onde está o pelourinho e a capela do século XVI, fui subindo devagar, olhos repousados e coração livre, por entre a névoa fina que cobria de mistério ruas e casas.
Linhares da Beira tem a marca da sua identidade no castelo que se eleva no topo da urbe sobranceiro ao cabeço serrano. É uma terra medieval de pedras volumosas escorregando pelas encostas a formarem ruas ladeadas por casas baixas e graníticas.

Becos, arcos, palacetes, largos, construções primárias, alpendres a respirarem cor no cimo de escadarias em pedra, confundem-se no tempo da história mas também no na vida com a capacidade de a representar a nosso gosto.

Aqui, nesta minha hora solitária paira o silêncio húmido do nevoeiro. Pálido, esfuma o contorno de edifícios e pessoas tornando-as uma espécie de testemunhas mudas da existência. Tudo está suspenso da sua passagem acariciadora que me conduz para longínquas paragens onde sobrevive a consciência por sobre a força material dos sentidos.

Porque o silêncio que desfruto em Linhares da Beira paira acima do tempo cronológico. Vive para lá dele numa dimensão intemporal do pensamento onde o ciclo dos dias perdeu o desenho ancestral da matéria.

Sento-me numa pedra próximo da muralha do castelo olhando o horizonte e não o vendo porque são densas as neblinas geladas que me submergem. Transformam corpos físicos em fantasmas, que é a forma de não terem forma. assim como nós somos os crentes materiais da felicidade anunciada sem data no calendário da eternidade.

Neste recanto modesto e solitário onde as casas são cinzentas e escondem os segredos de geraçõess, o gado vai para o pasto quando o sol desenha os primeiros cânticos de luz nos contrafortes da Serra da Estrela, encontrei o meu anjo da guarda. Não tinha asas nem vestia de branco, nem trazia consigo sinais do paraíso. Chegou por detrás de mim, quedou-se algum tempo em silêncio antes de perguntar: Em que pensas? Nem sequer me voltei porque seria quebrar o encanto daquele instante em que a paz subitamente habitava em mim: O dia que nos trás a luz, a noite que no-la rouba. Vida e morte, respondeu, ambas são filhas da mesma raiz mas a travessia a cada um pertence.

E desapareceu no nevoeiro.
publicado por Carlos Loures às 10:00
link | favorito

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links