Paulo Rato
III – A Democracia não é redutível à existência de organizações partidárias, de uma instância de poder legislativo e fiscalizador legitimado pelo voto popular e de instituições representativas de diversos estratos da população, incluindo os sindicatos.
Daí a afirmar, tão peremptoriamente como o Carlos Loures, que "O sistema parlamentar é anacrónico e disfuncional, tal como o são os sindicatos e os partidos" vai uma enorme distância, intransponível sem aniquilar a própria Democracia.
Mesmo os momentos de ruptura histórica têm raízes no passado, inconfundíveis com epifanias. E os avanços científicos e tecnológicos, à excepção de algumas raríssimas e geniais "intuições" (cada vez menos prováveis, mas que, ainda assim, não brotaram de um vazio absoluto, antes da meditação sobre questões concretas) inscrevem-se num movimento contínuo, de tal modo que a constância do progresso científico é uma das poucas certezas que podemos ter, dentro dos limites do pensamento humano. Isto é, o estado da ciência, no tempo do desenvolvimento da informática, não existiria sem o prévio estado científico que permitiu a invenção e desenvolvimento da máquina a vapor (cujos "descendentes" ainda hoje têm aplicação). Foi a Alquimia, que muitos acreditarão ser uma espécie de feitiçaria – com que, de facto, por séculos se misturou -, que permitiu chegar à Química...
O problema não está nos "instrumentos": está na sua adequação às tarefas para que foram criados e, sobretudo, em quem os usa e como.
"Ritornello": os sindicatos (como outras organizações dos trabalhadores) só serão anacrónicos no dia em que se invente outro sistema...
Neste caso, como o "defeito" não está no nome, duvido que essa invenção alguma vez surja...
De facto, como o próprio Carlos acaba por dizer, citando Rousseau, "falta reinventar o Homem"! Ou, como o Luís afirma, logo a seguir, reconhecendo a dificuldade da tarefa, "melhorar o homem".
Com letra maiúscula ou minúscula - tanto faria, se a história das línguas, em sociedades patriarcais, não impusesse a primeira versão como menos incorrecta -, também eu fui sendo obrigado a recuar para esse difícil e incómodo reduto: o maior problema está no ser humano, na predominância do seu instinto predador, que impede que cada indivíduo se guie, voluntariamente e sem constrangimentos alheios, por princípios éticos, procurando que os seus próprios interesses não esmaguem os interesses de outrem e se harmonizem com um mínimo denominador de interesses comuns, nunca decididos arbitrariamente, mas encontrados através de mecanismos que não ponham em causa a área em que a liberdade de cada um é imperativa. Uma equação difícil de resolver!
Quando o Luís alerta para o respeito pela liberdade e pelo "estado de direito", eu, globalmente de acordo, pergunto: que liberdade, para os mais desprotegidos, para um desempregado, um trabalhador precário, ou mesmo um efectivo, sujeito a sobrecargas de trabalho, às pressões constantes das hierarquias (que constam das novas cartilhas de "gestão"), para que não pense, se concentre "só no trabalho" e (acima de tudo!) não se organize, não confraternize, se torne no novo modelo ideal de escravo (mesmo pago)?
Estado de direito? E que direito? Quem idealizou, preparou, organizou, votou as leis que o enformam? Quem aplica essas leis? Como?
Tudo isto, sendo uma trincheira de onde se não deve recuar (não cuidar de defender a liberdade foi um dos erros fatais dos que, mesmo convictamente, tentaram construir sociedades socialistas), sofre das fragilidades intrínsecas a todas construções humanas.
IV – Josep Vidal fala-nos da degradação das palavras, num castelhano sedutor, que nos leva como uma corrente fluvial, ora branda, ora mais vigorosa. Lê-lo é um prazer de "gourmet".
Escrevi sobre essa degradação, há mais de vinte anos (e, decerto, com menos beleza), numa simples carta "colectiva" de despedida a alguém que era como a personificação de "uma" palavra, alguém que, pelas suas qualidades, restituía a essa palavra o seu mais autêntico significado.
Diria que só discordo do primeiro período, como uso discordar de quase todas as generalizações: nem todos os que se abrigam sob a capa do poder são corruptos; e não será casual que os que o não são, como o José Maria Carrilho, que por duas vezes, com sérias razões, se desabrigou dessa capa, se tornem vítimas de uns pseudo-vigilantes dos bons costumes, empoleirados em mediáticos veículos...
Mas tenho para mim que não podemos deixar roubar as palavras sem luta. Elas e os conceitos que transmitem, tudo foi criado pelos homens e pelos homens bem ou mal usado. Mas com palavras e conceitos se há-de lutar, quando de palavras e conceitos se trata.
Espero do Josep um artigo autónomo, em que um maior aprofundamento do tema não engorde o meu congénito pessimismo...
V – Concordo em absoluto com o Carlos, num dos seus comentários (desculpa Adão): os ideais dos comunistas foram traídos; e por muita gente, acrescento. Doem-me os muitos que, incapazes de ultrapassarem a ignorância em que foram criados, se deixaram arrastar pela chusma dos videirinhos.
Mas discordo da sua "recusa das experiências históricas" para "a próxima avançada do ideal", a menos que esteja a interpretar mal o que preconiza no mesmo comentário. Estou convicto de que essa "avançada" terá de resultar do cruzamento de muita coisa, que se vai pensando e fazendo, pelo mundo, apesar da informação sobre todas essas reflexões e propostas ser mantida longe do conhecimento do público. Eu próprio só delas (de parte delas!) me apercebo pelo contacto directo com investigadores especializados, que vou mantendo, em colóquios ou lançamentos de livros. Mas a História tem de estar nessas reflexões: é o conhecimento dos erros que permite não os repetir. *
Leia-se André Chénier, o grande poeta francês da revolução de 1799, guilhotinado escassos dias antes do fim do Terror, vítima da sua integridade; e confirme-se, nas suas palavras tão actuais, como a pandórica boceta da infâmia sobrevive aos séculos.
Deixo-vos com um excerto do último dos seus "Iambes", escritos no cárcere, no original e numa pobre tradução minha.
Comme un dernier rayon, comme un dernier zéphyre
Animent la fin d'un beau jour,
Au pied de l'échafaud j'essaye encor ma lyre.
Peut-être est-ce bientôt mon tour ;
Peut-être avant que l'heure en cercle promenée
Ait posé sur l'émail brillant,
Dans les soixante pas où sa route est bornée,
Son pied sonore et vigilant,
Le sommeil du tombeau pressera ma paupière !
Avant que de ses deux moitiés
Ce vers que je commence ait atteint la dernière,
Peut-être en ces murs effrayés
Le messager de mort, noir recruteur des ombres,
Escorté d'infâmes soldats,
Ebranlant de mon nom ces longs corridors sombres,
Où seul, dans la foule à grands pas
J'erre, aiguisant ces dards persécuteurs du crime,
Du juste trop faibles soutiens,
Sur mes lèvres soudain va suspendre la rime ;
Et chargeant mes bras de liens,
Me traîner, amassant en foule à mon passage
Mes tristes compagnons reclus,
Qui me connaissaient tous avant l'affreux message,
Mais qui ne me connaissent plus.
(…)
Car l'honnête homme enfin, victime de l'outrage,
Dans les cachots, près du cercueil,
Relève plus altiers son front et son langage
Brillants d'un généreux orgueil.
S'il est écrit aux cieux que jamais une épée
N'étincellera dans mes mains ;
Dans l'encre et l'amertume une autre arme trempée
Peut encor servir les humains.
Justice, vérité, si ma main, si ma bouche,
Si mes pensers les plus secrets
Ne froncèrent jamais votre sourcil farouche,
Et si les infâmes progrès,
Si la risée atroce, ou (plus atroce injure)
L'encens de hideux scélérats
Ont pénétré vos cœurs d'une longue blessure,
Sauvez-moi ; conservez un bras
Qui lance votre foudre, un amant qui vous venge.
Mourir sans vider mon carquois !
Sans percer, sans fouler, sans pétrir dans leur fange
Ces bourreaux barbouilleurs de lois !
Ces vers cadavéreux de la France asservie,
Egorgée !… ô mon cher trésor,
O ma plume ! fiel, bile, horreur, dieux de ma vie !
Par vous seuls je respire encor :
Comme la poix brûlante agitée en ses veines
Ressuscite un flambeau mourant.
Je souffre ; mais je vis. Par vous, loin de mes peines,
D'espérance un vaste torrent
Me transporte. Sans vous, comme un poison livide,
L'invisible dent du chagrin,
Mes amis opprimés, du menteur homicide
Les succès, le sceptre d'airain,
Des bons proscrits par lui la mort ou la ruine,
L'opprobre de subir sa loi,
Tout eût tari ma vie, ou contre ma poitrine
Dirigé mon poignard. Mais quoi ?
Nul ne resterait donc pour attendrir l'histoire
Sur tant de justes massacrés !
Pour consoler leurs fils, leurs veuves, leur mémoire !
Pour que des brigands abhorrés
Frémissent aux portraits noirs de leur ressemblance !
Pour descendre jusqu'aux enfers
Chercher le triple fouet, le fouet de la vengeance
Déjà levé sur ces pervers !
Pour cracher sur leurs noms, pour chanter leur supplice !
Allons, étouffe tes clameurs ;
Souffre, ô cœur gros de haine, affamé de justice.
Toi, Vertu, pleure si je meurs.
André Chénier (1762-1794)
IX
Como uma última aura, um último raio
Ornam dum bel'dia o declinar,
Ao pé do cadafalso a lira ainda ensaio.
A minha vez logo irá chegar;
Talvez antes que a hora em círculo percorrida
Pouse sobre o esmalte brilhante,
Nos sessenta passos que cingem sua estrada,
Seu pé sonoro e vigilante,
O sono do túmulo minha pálpebra há-de fechar!
Antes que, de suas metades,
O verso que inicio à última vá chegar,
Talvez nos muros assombrados
O arauto da morte, de sombras atro fautor,
Escoltado de infames soldados,
Com meu nome abale cada escuro corredor,
Onde só, na turba, a largos passos
Erro, afiando estes dardos perseguidores do crime,
Do justo tão frágeis esteios,
Em meus lábios, súbito, vai suspender a rima;
E de laços cingindo-me os pulsos,
Arrastar-me, em multidão juntando à passagem
Meus tristes, reclusos parceiros;
Todos me conheciam: a terrível mensagem
Já de mim os tornou alheios.
(…)
Porque o homem honesto, enfim, vítima do agravo,
Nas celas, do féretro já perto,
Reergue mais altiva sua fronte e palavra,
Brilhantes de orgulho oferto.
Se está escrito nos céus que jamais uma espada
Em minhas mãos vai refulgir;
Na tinta e na amargura uma outra arma molhada
Aos homens pode inda servir.
Justiça, verdade, se minha mão, minha boca,
Meus pensamentos mais secretos
Não franziram jamais vosso severo sobrolho,
Se a opulência dos abjectos,
E se a gargalhada atroz, ou (mais atroz afronta)
De gente vil a adulação
Vossos corações rasgaram em ferida extensa;
Salvai-me; conservai a mão
Que lança vosso raio, um amante que vos vinga.
Morrer sem esgotar minha aljava!
Sem trespassar, pisar, esmagar em sua lama
Cada algoz que leis rabiscava!
Esses vermes cadaverosos da França submetida,
Degolada! … oh meu caro tesouro,
Oh minha pena! fel, bílis, horror, deus da minha vida!
Por vós somente inda respiro:
Como resina ardente agitada em suas veias
Reaviva um facho agonizante,
Sofro; mas vivo. Por vós, longe de minhas penas,
De esperança uma vasta torrente
Me transporta. Sem vós, como lívido veneno,
Da aflição o invisível dente,
Meus amigos opressos, do falaz homicida
O êxito, o ceptro brônzeo,
Dos bons, por ele proscritos, a morte, a ruína,
O opróbrio de sofrer seu jugo,
Tudo me esgotaria a vida; ou contra meu peito
Meu punhal viria! Mas como?
Nada restaria então p'ra comover a história
Com tantos justos massacrados!
Para consolar seus filhos, suas viúvas, a sua memória!
P'ra que os bandidos detestados
Tremam nos negros retratos sua semelhança!
Para descer até aos infernos
Procurar o triplo açoite, açoite da vingança
Já erguido sobre tais perversos!
Para cuspir nos seus nomes, cantar seu suplício!
Afoga, pois, teu clamor forte;
Sofre, coração de ódio pleno, ávido de justiça.
Chora, Virtude, a minha morte.