Sábado, 28 de Maio de 2011

Um Novo Coração 5 - Sílvio Castro

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

Capítulo 5

 

 

Quando a luz da manhã esclarece definitivamente a presença do novo dia, contemplo da janela de meu quarto a paisagem que me está defronte. Como um quadro de grandes dimensões, a laguna veneziana se me oferece amplamente numa mistura equilibrada de formas que partem do mais concreto realismo ao mais difuso abstracionismo. Como oferta generosa do ambiente, tudo se revela em contrastes pela particular natureza da luz que se difunde nos muitos espaços. A manhã é ainda menina aos meus olhos, mas já a posso recolher quase em plenitude ajudado pela luz que se faz sempre e sempre mais diversa. Por detrás da janela envidraçada não sofro o frio do inverno que se propaga fora; ao contrário, sinto o calor constante do aquecimento do hospital e dele minha pele toma para si imensa satisfação. E assim minha vista pode percorrer com serenidade o grande quadro de muitos matizes colorísticos, quase como um arco-íris plano, largo, deitado nas águas, deles sabendo retirar formas e mais formas. Defronte, numa posição central e condicionadora da composição que realizo com meus olhos, o cemitério da ilha de San Michele se levanta aquático e pleno de poder figurativo com seus muros, torres, túmulos, alamedas, ruas, árvores e canteiros floreais, assim concreto que nele logo revejo, como se eu estivesse ao lado deles, amigos que lá estão, me parece e sinto, desde muito, Giacomo Cacciapaglia, Franco Meregalli, Angelo Maggiolo, Giulio Partesotti, Egisto Gastaldi (“Galileo”). Meu olhar passa pela janela fechada para as alamedas arborizadas que vão até eles. A paisagem se alarga percorrendo as águas de caminhos assinalados pelos troncos como postes de iluminação,  “bricole”, que se colocam organizados diretamente a preparar as estradas nas quais passam barcas e motoscafos em direção das ilhas interiores e vão até o continente ou entram pelas fozes dos rios que desaguam na laguna, entre os quais o Sile no qual penetro e subo para chegar até a villa mágica de Rincicotti com os seus muitos quadros que eu vi criar-se. Retorno, de novo atento, à  minha janela do hospital. Logo atrás do cemitério, à esquerda do meu olhar, aparece Murano que se encomprida de tal maneira a esconder-se em parte por detrás de San Michele, mas logo depois dando espaço, à direita do meu quadro, ao longilíneo próprio de Burano vista de tão longe. Quando a luz se amplia na manhã invernal, formando tons neutros, porém igualmente matizados, ao mais longe da perspectiva compositiva se figuram lenta, mas claramente, os contornos das primeiras montanhas dolomíticas.  

 

Este é um inverno muito semelhante àquele meu primeiro inverno veneziano de 1963 e este é um janeiro como aquele meu primeiro. Mas naquele já distante eu não me confinava atrás de uma janela para ver Veneza, ia procurá-la diretamente, a cada dia. O frio era intenso, um frio desconhecido para a minha pele, mas eu caminhava sempre pelo labirinto de ruas, campos, estradas; superava dezenas de pontes, navegava pelos canais contemplando ao nível d’água as casas venezianas, os palácios, como se debaixo da cidade mesma; depois subia nos campanários das igrejas para ver tudo também do alto e logo me transferia para as outras ilhas da laguna, dali descobrindo Veneza em novas e distintas perspectivas. Caminhando nesse janeiro, fui colhido pela primeira vez pela neve e nela deixei-me ficar, sem medo de nada, nem mesmo da experiência nova que me banhava, mas que igualmente me esculpia como um ser invisível, perambulante, sem necessidade de bússolas por estradas e labirintos aparentemente desconhecidos.

 

Aquele era certamente um inverno cruel, como este que vivo no janeiro de 2005. Mas era um outro.

 

(continua)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 22:00
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Quinta-feira, 26 de Maio de 2011

Um Novo Coração 3 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

 

 

 

Capítulo 3

 

 

Mas urge não esquecer que antes de chegar a Arco muitas coisas me aconteceram em pouco mais de dois meses e se fizeram razão de minha procura da “Casa de Saúde”. Somente contando tudo quanto foi então vivido poderei transmitir o sentido mais profundo dos dezesseis dias que passarei em Arco e das ressonâncias mais indistintas do quase mistério desses dias.

 

Tudo começa em Veneza na noite-véspera do Ano Novo de 2005. Anna Rosa e eu saímos de nossa casa prontos para conviver em grupo na casa de amigos a expectativa da passagem do Ano. Caminhando na direção do embarcadouro da parada de Ca’ Rezzonico não se poderia evitar notar a movimentação geral da gente movida pela festa. O frio é intenso, pré-anúncio de um inverno cruel. Pelo menos assim eu o sentia enquanto caminhava na direção do Canal Grande onde chegaria o vaporeto que nos traguetaria para a outra margem do canal e para a festa. O frio me tornava lento no caminhar pelos duzentos metros que vão de nossa casa ao embarcadouro, e meus passos não sabiam acompanhar a segurança daqueles de Anna Rosa. Os duzentos metros se faziam muito longos pela falta de ar que repentinamente me tomava e eu ignorava se me seria dado chegar à parada antes de ceder definitivamente ao mal-estar que me assaltava com o ar frio da noite e com o peso de uma crueldade que dela vinha. Meu estomago parecia ofendido por uma força que revoltava todos os meus movimentos e a cada difícil passo cada vez mais eu tomava consciência de que dentro em pouco não mais saberia que caminhava com minha mulher na direção de uma festa desejada, nem que então eu poderia dizer-lhe já não posso continuar, estou por perder os sentidos.

 

Volto a retomar os sentidos dentro de um motoscafo-sanitário de pronto-socorro que corre desabalado pelas águas do Canal Grande, em meio às meias-luzes de uma Veneza serena na expectativa do Ano Novo. O enfermeiro me assiste, me consola e me limpa de todos os vômitos que meu estômago revoltado verte sobre a coberta de lã que me protege contra o frio. Na noite aquática os vômitos se confudem com o lusco-fusco exterior da cidade e com a sirene incessante do motoscafo na corrida para chegar ao hospital. Por toda a corrida desabalada do motoscafo Anna Rosa me contempla aflita.

 

Chegados, já não mais vomito e me sinto com a leveza de um pintassilgo, certamente aquele do nosso jardim veneziano, o mesmo que voa e salta, voa e salta e  caminha na direção do nosso gato Mino que o espreita na serenidade de uma caça segura.

 

Agora é já o Ano Novo e me encontro deitado numa cama do hospital. Ao meu lado está uma segunda cama e ao fundo do quarto, uma terceira. Ainda não vejo aqueles que as ocupam porque me fixo tão somente sobre mim para tentar compreender aonde estou e como me sinto.

 

(continua)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Quarta-feira, 25 de Maio de 2011

Um Novo Coração 2 - Sílvio Castro

Sílvio Castro Um Novo Coração

 

 

 

 

Capítulo

 

 

Chega-se em Arco e logo ali se pára para ficar. Parados se está como se o sabor maior do momento presente se confundisse naturalmente com a inércia motora e assim, desde logo, se goza de delícias que a paisagem cria e o ar conduz. Nossa pele reconhece as delícias e sabe transmitir aos sentidos todos uma orgia de sensações. A vista de tudo toma o primeiro plano e carrega em confusão consigo mesma a ação do olfato que descobre cheiros odores perfumes, mas também do tato toque tato que acompanha os fluxos perfumados e se dinamiza em presas infindáveis à caça de cores quentes, modificadas agora em olhos pele boca nariz ouvido pele, mais que vistas.

 

Vê-se Arco e do alto da colina e do castelo o olhar banhado vai com o Sarça para integrar-se com a doce plácida amplidão do Garda espraiado em lago e largo.

 

Nas alturas arqueadas corre-se com o ar que voa para o lago e que retorna para as vistas das montanhas dentro do infinito e sempre próximas aos olhares. Arco é uma realidade física ou uma visão? Certo ela vem dos tempos longes, pétrea e firme na configuração de sua imagem benéfica. A tepidez deste inverno de 2005 diz que a realidade é o espaço que vai daqui às montanhas, volta em arco e se debruça a contemplar a beleza pousada do lago. Com os olivais que recobrem as colinas e se misturam com as videiras que florescerão em vinhos tintos e brancos e tintos e brancos e também com absurdos limoeiros florescidos aqui, longe dos grandes mais naturais espaços cítricos.

 

Este é um fevereiro de grandes neves e gelos por toda a parte, se pode ver nos cumes das montanhas arqueadas não longe, mas Arco faz do inverno mais que branco fora uma surpresa de tepidez acolhedora quando chego na “Casa de Saúde”. E nela entro.

 

(continua)

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 22:00
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Terça-feira, 24 de Maio de 2011

Um Novo Coração 1 - Sílvio Castro

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

 

 

 Capítulo 1 

 

 

                                                                                      Anna Rosa,

                                                                                                          da te rifiorito

                                                                                                          nuovo

                                                                                                          il mio cuore

                                                                                                                      batte.

 

 

 

                               Toda a cura, toda Baden se transformaram em

                               coisas odiosas para mim. A maioria dos clientes do

                               nosso hotel, pelo que eu o soube, não estão aqui

                               pela primeira vez, muitos deles retornam pela

                               sétima, pela décima vez , e conforme o cálculo das

                               possibilidades acontecerá o mesmo também comigo.

 

                               Hermann Hesse

                               Cura da Terma de Baden

 

 

Esta Casa na qual cheguei depois de renovadas surpresas, mais do que um hospital, se trata de uma “Casa de Saúde”: grande, ampla, quase imensa. Mais do que um hospital, também se mostra como um absurdo hotel, ocupado sempre por doentes internados, mas circulantes nas salas salões corredores, até mesmo no bar de mais de sessenta lugares, no andar térreo, de vistas para  o jardim.

 

No bar se convive como em qualquer bar de uma qualquer cidade, como coisa da vida comum: se bebe, come-se, joga-se baralho, se conversa com as visitas ou com os companheiros de cura, lá no fundo, no ângulo do salão organizado com poltronas e mesas, distante do balcão do bar. Quem não conversa pode estar lendo algum livro exposto na estante suspensa na parede lateral, livros não catalogados, como que oferecidos não só à leitura.

 

Vou contar-lhes detalhadamente desta “Casa de Saúde” vista sob ângulos diversos a partir da experiência da doença mortal. Me prometo de fazê-lo não com intenções técnicas e científicas, mas como uma expressão literária e por isso mesmo com maior adesão à realidade, porque somente a literatura pode figurar experiências sem janelas, como esta,  a um só tempo conviviais com a idéia da morte e com uma total participação com a vida que deve ser preservada no seu ritmo maior de afirmações e consumo.

 

A “Casa de Saúde” é uma instituição particular, mas convencionada com o Estado. Os internados podem usufruir de três tipos de hospedagem: com quartos de três, duas ou uma cama, sendo aqueles de três camas isentos de qualquer pagamento fora do valor do convênio que cobre a cura; a escolha daqueles de 1 ou 2 hóspedes corresponde a pagamento à parte de uma quota adicional e diária, logicamente muito mais cara quanto aos quartos particulares, em verdade oferecidos em número reduzido e também por essa razão praticamente inacessíveis.

 

No comportamento dos internados, como é possivelmente óbvio já que de certo humano, circulam reações ligadas a estas três condições de hospedagem, quase como novas formas de classes sociais movidas por reações oníricas, nem sempre patológicas. Tudo expresso entre os extremos da resignação passiva e da auto-exaltação de um atribulado eu pessoal.

 

A população que tem acesso à “Casa de Saúde” é predominantemente italiana, mas com presença de muitos estrangeiros, em particular europeus dos diversos países da Comunidade.

 

O hospital que é esta “Casa de Saúde” mostra-se como um mundo que se cria em si mesmo. Parece o mundo comum, mas para o doente em recuperação ele aparece em mutações indefinidas, em configurações de novas expressões do mundo: isolado, em um primeiro momento; levemente atraente, quase logo depois; centralizante, mas igualmente rechaçante, em seguida. É como o viver num espaço sabido à maneira de todos os dias já vividos e numa realidade que, mais do que capaz de revelar-se enquanto tal, figura aquele eu que em verdade somos, mas que está sempre por detrás e irrevelado do eu que acreditamos  ser.

 

(continua)

 

                                                                                             

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publicado por Augusta Clara às 22:00
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Segunda-feira, 23 de Maio de 2011

Um Novo Coração - Introdução de Carlos Loures

 

Sílvio Castro  Um Novo Coração

 

(romance)

 

(Adão Cruz)

 

 

Introdução de Carlos Loures

 

 

 Meu coração aparece nítido na tela, agora que o contemplo fixo. Mas não o sei ler .(página 35 de Um Novo Coração)

 

Sílvio Castro publicou em Novembro passado o romance Um Novo Coração, (Rio de Janeiro, 2010). Muito bem escrito, num português límpido, narra uma experiência do autor, uma dolorosa experiência, diga-se – na noite de fim do ano de 2004, quando saía de casa com sua esposa para conviver em grupo em casa de amigos, Sílvio sofreu um acidente cardio-vascular e nas 180 páginas do livro relata-nos em pormenor como navegou esses dias de reclusão e de incerteza – os companheiros de quarto na clínica, os médicos e os enfermeiros, a paisagem que se vê da janela, o que se come, os exames, as cirurgias – enfim, o universo nebuloso de quem vê a vida em perigo.

 

Ao longo da vida construímos um labirinto com paredes intransponíveis, falsas passagens, obstáculos feitos de convenções, de conceitos abstractos. Quando colocados numa situação limite – prisão ou hospital, por exemplo – temos uma visão mais panorâmica do nosso labirinto. E se esta situação-limite ocorre com um escritor, acontecem obras como A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Enfermaria Prisão e Casa Mortuária, de Domingos Monteiro, o De Profundis, Valsa Lenta, de José Cardoso Pires e Um Novo Coração, de Silvio Castro - uma experiência dolorosa é convertida em obra literária.

 

Um pormenor – tal como Ernesto Sábato, Sílvio Castro não esconde o seu fascínio pelo futebol. Numa conversa com um dos médicos da clínica recorda a tragédia de Superga, quando a equipa do Torino-Calcio pereceu num desastre de aviação. E a subtileza e conhecimento que revela transportou-me até essa manhã de Maio de 1949, quando miúdo escolar, subindo a Rua da Madalena, vi grupos parados pelos passeios, gente de expressões fechadas. Só quando cheguei ao dorso da rua e entrei na escola 44, soube – o Torino que na véspera jogara em Lisboa com o Benfica  na festa de despedida do grande Francisco Ferreira, perdera 18 jogadores, o treinador, três dirigentes… Era a espinha dorsal da selecção italiana, capitaneada por Valentino Mazzola, o mítico Mazzola.

 

Apoteótico o capitulo em que o regresso à vida normal é festejado por um opíparo banquete – devemos ser mais de 300 os convidados. «Devemos» porque lá apareço, entre o Manuel Simões e o José Saramago, chegados de avião para degustar, devorar, uma ementa que começa por arenque norueguês defumado, com maçãs grannysmith num tapete de saladas, e com iogurte aromatizado às cebolinhas e se prolonga por mil e um acepipes. Já entrei noutros romances – por exemplo, em O Amor Tem Tantos Nomes, da Maria Rosa Colaço e no Querença do Fernando Correia da Silva. Em nenhum deles me serviram tais iguarias.

 

Não revelarei mais nada sobre o romance. Ele vai ser lido por todos e não vos quero retirar o prazer da descoberta. Pasmo que haja críticos e jornalistas literários que ao apreciarem um romance, revelem o desfecho. Também é verdade que não estou a fazer uma crítica formal, apenas uma reflexão após ter lido a da primeira à última as páginas deste excelente livro. Waldir Ribeiro do Val, o editor da obra, diz «A narrativa de Sílvio Castro é densa e verdadeira. Não é romance de aventuras ou de amor inconsequente. Foi, entretanto, escrito com amor. Amor denso e verdadeiro que ressalta de quase todas as páginas» (…) «Verdade e densidade parece ser o binómio sobre o qual este romance de Sílvio Castro foi construído». Subscrevo inteiramente.

 

Uma última nota: Adão Cruz, médico cardiologista, escritor e pintor, é o autor do quadro que reproduziremos aqui diariamente como ícone de abertura de cada capítulo. Um quadro muito bonito, na minha opinião, e que hoje se reproduz em dimensões que permitam avaliar devidamente essa beleza.

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 22:00

editado por Luis Moreira às 20:59
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Domingo, 22 de Maio de 2011

A partir de 3ª. feira, Um Novo Coração (romance) - Sílvio Castro

UM NOVO CORAÇÃO

(romance) 

 

de 

 

Sílvio Castro

 

 

 

A partir da próxima terça-feira no Estrolabio

 

No dia 24, terça-feira, às 22:00, iniciaremos a

publicação do romance Um Novo Coração, de

Sílvio Castro, poeta, romancista e professor de

Língua e Literatura Portuguesa na Universidade

de Pádua.

 

(Adão Cruz)

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 21:55
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Quinta-feira, 31 de Março de 2011

A demissão do governo - depoimento de Sílvio Castro

 A demissão do Governo Sócrates - para quem acompanhava a situação político-econômica de Portugal, mesmo de longe, como é o meu caso - não provocou uma grande surpresa. Uma sensação de desilusão, isto sim. Certamente a posição do atual Governo socialista, desde o seu começo, não era das mais cômodas: minoritário em sede parlamentar; antogonista do Poder central guiado por uma política social-democrática que parece se perdida nos tempos, se por acaso jamais tenha existido. Porém, os problemas do Governo não se limitava tão somente a esses impecilhos. Tinha alguma coisa de mais profundo, algo de mais denso, vindo de dentro de si mesmo e alimentado por outras razões que lhe chegavam do exterior. Este algo eu, que desde sempre desejei ver na guia dos países democráticos a política socialista mais moderna possível, me via turbado por uma tendência geral dos governos socialistas europeus, ou das lideranças socialistas quando não diretamente na guia dos governos, tendência esta que inicialmente me parecia difícil definir.

 

Mas, com o continuar da minha indagação logo encontrei a explicação da razão das minhas intranquilidades. Tudo porque se via que as diversas lideranças socialistas, a partir de determinado momento da história contemporânea, e na política e no plano econômico, ia lentamente perdendo a sua identidade, num retorno que logo se revelou quase senil, às idéias liberais. Surgia assim o socialismo-liberal que, entretanto, não bebia das maiores lições históricas do liberalismo, mas se servia tão somente daquele liberalismo típico de um tempo que não sabia encontrar valores senão nas razões do mercado e do interesse dos grupos internacionais. O socialismo-liberal, principalmente a partir da explosão da recente Crise Econômica Internacional, poderia ter trazido para Portugal, assim como para outros países europeus, uma social-democracia avançada. Mas isto não aconteceu, a não ser em casos esporádicos, uns acabados como o de Blair, outros sempre em luta para não sucumbir definitivamente, como o de Zapatero. Infelizmente para Portugal, Sócrates não soube encontrar pelo menos a melhor estrada social-democrática. Hoje a situação é grave, como se sabe, ainda que muitos procurem escondê-la.

 

Haja vista, logo depois das decisões tomadas pelo último Conselho Europeu para o futuro da Comunidade, as resoluções da Standar&Poor’s (S&P) que rebaixa Portugal, quanto a categoria investimento, da anterior BBB àquela BBB-, o que quer dizer, apesar das contínuas negações de Sócrates, que o País deve pedir imediata ajuda à CE e ao FMI. A novidade é a imediata presença brasileira, através do Presidente Dilma Rousseff que declara estar o Brasil pronto a ajudar Portugal a sair da posição de grande devedor. E igualmente, creio que vem para ser escutada, a advertência do ex-presidente Lula que adverte Portugal a não cair nas mãos do FMI, e a ponderar muito sobre pedidos de ajuda a uma quase sempre inoperante, em casos semelhantes, CE. Quanto ao ambiente italiano, a não ser em breves notícias da sua melhor imprensa, a caída do Governo de Sócrates não causou maiores motivos de análises. Será porque, neste momento, a Itália se vê entre duas realidades: uma, aquela que vive e paga pela crise geral; a outra, a de um populismo político ao poder que sabe somente mostrar um mundo que não existe àquele que em outras épocas foi um povo tendente principalmente à realidade, ainda que a mais crua.

publicado por Carlos Loures às 23:00
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Domingo, 12 de Setembro de 2010

A Maratona Poética e a iniciativa que se segue: Os dez livros do século XX que merecem ser salvos

A "Maratona Poética" do dia 8 obteve um grande êxito, com os índices de leitura a atingir uma elevada expressão. Apresentámos 73 poetas e pensadores. 40 eram lusófonos (28 portugueses, 8 brasileiros, três galegos e 1 moçambicano). 14 de língua castelhana (peninsulares e latino-americanos), 7 franceses, 5 catalães, 3 de língua inglesa e mais 4 de línguas diversas. Durante 24 horas, desfilaram ante os nossos olhos, a um ritmo de um texto em cada 20 minutos, poemas, textos sobre a arte poética e as magníficas ilustrações de Adfão Cruz. Falemos de uma outra iniciativa.


A partir de amanhã começaremos a publicar, por ordem de chegada, os textos-resposta ao inquérito lançado por Sílvio Castro sobre os dez livros do século XX que merecem ser salvos. Publicamos mais uma vez o texto em que nos lança esse repto.

Publicamos de novo o texto de Sílvio Castro onde ele faz a todos os colaboradores do Estrolabio o desafio de escolherem os dez livros do século XX que, na opinião de cada um, devem ser salvos, preservados principalmente do esquecimento. Pondo a questão de outra maneira, se estivesse numa ilha deserta, quais os dez livros criados no século XX que gostaria de ter consigo. O nosso Sílvio Castro, professor catedrático de língua e Literatura Portuguesa na Universide de Pádua, diz-nos, através do seu texto, como podemos orientar o nosso depoimento. No entanto, podemos ter opiniões diferentes que obriguem a uma estrutura diferente. Imaginemos que algum de nós conhece a fundo as literaturas orientais e entre os dez livros, inclui obras chinesas ou indianas, por exemplo. A ordem que o Sílvio dá aos idiomas, também pode ser alterada e as próprias línguas e literaturas escolhidas poer ele também podem ser substituídas - não esqueçamos que em sueco, em flamengo, em grego moderno, em catalão, se escreveram obras-primas. Enfim, a única regra que se coloca é escolher dez obras literárias - e mesmo essa (como o Sílvio Castro fez) pode ser alterada.


Vamos então ler de novo o texto:




Os dez (14) livros do século XX que devem ser salvos





Sílvio Castro



Difícil e ingrato empenho assumem todos aqueles que aceitam o convite para indicar os 10 livros que devem ser salvos na produção literária relativa ao séc. XX. Isso porque todos nós sabemos de como foi rico, quanto à criatividade artística, esses tempos há pouco concluídos, mas que continuam a desaguar neste começo do séc. XXI; depois, porque quem faz uma tal escolha, o faz a partir de um determinado ponto de vista e de conhecimentos. Consequentemente, nos encontramos diante de claros limites de ação e prontos a muitas, infindáveis injustiças. Porém, de qualquer forma, já que essa é uma operação que pode ser proposta aos muitos, urge enfrentá-la. Se, como é claro, perfeitos não podemos ser, pelo menos seremos conscientemente empenhados...

Para começar, o empenho nos leva a indicar quatorze e não dez livros; depois nos conduz a enunciar claramente determinados critérios pelas escolhas feitas: 1) fixamos 7 grupos linguísticos preferenciais, com indicações de 2 livros para cada grupo; 2) quando o autor escolhido é um poeta, propomos o título “Poesia”, comum a todos mesmo quando não tenha sido publicada uma recolha de poemas de sua pessoal produção com este ou outros títulos; 3) em apêndice às singulares indicações, apresentamos nomes, somente os nomes, de autores da mesma família literária igualmente geniais. Assim procedendo confiamos de limitar as injustiças causadas pelos nossos limites críticos e de saber...

1 – Língua inglesa: a) Ulisse (1922), de James Joyce (1882-1941); b) “Poesia”, de T. S. Eliot (1888-1965).

O Ulisse, de Joyce, é possivelmente o máximo resultado da aventura relativa à linguagem assumida pelos grandes autores do Novecentos. Na obra-prima joyciana a narrativa da jornada dublinese de 10 de junho de 1904, vivida por Leopoldo Blum, transfigura-se no canto de um sentido radical da existência. O romance atinge tais graus de invenção ao ponto de conduzir o sitema do conhecimento do mundo e a sua corresponde expressão muito além da razão lógica, fazendo da palavra o núcleo narrativo por excelência. De tudo isso resulta uma escritura que descreve a existência do homem a partir de uma dimensão semântica geradora de uma nova poesia. Paralelamente à aventura de Ulisse se desenvolve uma parte significativa das literaturas de língua inglesa, em autores como John dos Passos, Faulkner, Virgínia Woolf, Ford Madox Fox, Synge, Katherine Mansfield, Nabokov.



A “Poesia” de T. S. Eliot se nos apresenta como um dos mais significativos exemplos da criação lírica do séc. XX. A investigação do poeta anglo-americano se mostra sempre ligada à linguagem, no desejo constante de um encontro entre criação lírica e racionalidade crítica. O poema que daí resulta é sempre amplo e completo, ainda que geralmente imbuído da dimensão estética do fragmento, uma herança da tradição romântica. Muitos poetas de língua inglesa podem ser colocados na esteira crítica eliotiana, mesmos aqueles mais claramente tendentes a uma integral investigação formal, como Pound, Cummings; até outros mais afins ao primado da imagem, como Yeats, Joyce, Sturge Moore, Roberto Lowell.

2 – Língua francesa : a) LaRecherche du temps perdu (1913/1927), de Marcel Proust (1871-1922) ; b) La Peste (1947), de Albert Camus (1913-1960). La Recherche, de Proust, é a obra-prima que traduz mais integralmente um dos elementos-guias da criação literária do Novecentos: a memória. A genial língua impressionista de Proust atinge o mais profundo da “duração” dos fenômenos e dos sentimentos transmetidos diretamente do ato de recordar. A revolucionária lição bergsoniana sobre a duração do tempo e as suas relações com a memória encontra nos personagens proustianos a maior equação entre criação artística e pensamento filosófico. O tempo de Proust é amplo e universal , o que nos permite de colocar ao seu lado obras de autores tão diversos como Romain Rolland, Blaise Cendrars, Gide, Mauriac, Bernanos, Céline.



La Peste,de Camus, é a obra-prima da narrativa francesa moderna que alarga a dimensão proustiana, sendo o seu oposto. Camus se propõe de revelar a realidade vivida diretamente. Para chegar a tal revelação ele se apropria da linguagem de um realismo renovado a partir da escritura, ela mesma. Somente a afirmação da primazia da razão objetiva e da lógica em favor da criação poética leva a uma tal linguagem, ao mesmo tempo insólita forma de revelação do mundo e instrumento de poesia.

3 – Língua alemã: a) O homem sem nenhuma qualidade (1952), de Musil (1880-1942); b) O Processo (1925), de Franz Kafka (1883-1924)

O homem sem nenhuma qualidade, de Musil, e O Processo, de Kafka, são duas diversas obra-primas, muito diversas, mas que têm em comum o sentido do absurdo. Trata-se porém de diferentes expressões da absurdidade predominante na vida do homem: enquanto na obra-prima austríaca o absurdo não reside nos acontecimentos, mas vem compreendido a partir da narrativa apoiada em um tempo que passa e que não mais se reconhece, nos sentimentos das coisas que mais e mais se distanciam deixando os homens que os vivem como se existissem despojados de tudo, na obra-prima kafkiana o sentido do absurdo é direto. O Processo faz viver a absurdidade da vida em um tempo privado da razão e tendente à auto-destruição. Ambos os romances são exemplos da máxima partecipação do homem moderno com o seu tempo. Brecht, Thomas Mann, Schwitters, Kraus, Roth, Doblin, Doderer, Ghunter Grass são expressões paralelas às vozes de Musil e Kafka.

4 – Língua russa: a) O Doutor Zivago (1957), de Boris Pasternak (1890-1960); b) O Mestre e Margarida (1967), de Michail Bulgakov (1891-1940)

O Doutor Zivago, de Pasternak, e O Mestre e Margarida, de Bulgakov, ainda que a partir de diversas estruturas literárias, são dois máximos exemplos de romances do Novecentos russo. A obra-prima de Pasternak é construída diretamente do testemunho histórico-político, sem fazer-se político. Pasternak permanece principalmente no plano da criação poética. O Maestro e Margarida se concentra principalmente no espaço onírico, na linguagem enquanto tal. Porém, ainda preso a uma maneira tendente ao literário, o autor não ignora a dimensão do empenho e do testemuno político. Os dois romances são duas obra-primas, pode-se dizer, complementares. Tão amplos ao ponto de poder ter ao lado escritores tão diversos como Belyj, Malevich, Babel, Eremburg, Solzenicyn.

5 – O italiano: a) A consciência de Zeno (1923), de Italo Svevo (1862-1928); b) “Poesia”, de Eugenio Montale (1896-1981)

A consciência de Zeno, de Svevo, permanece como um dos grandes romances do Novecentos porque é capaz de transferir a atenção da análise psicológica da tradição realista às lições de Freud. A história de Zeno Cosini não é o resultado final de acontecimentos exteriores, mas a análise que o personagem faz de si mesmo. Svevo encontra dessa maneira para a sua obra-prima endereços que não interessam tão somente à literatura italiana, mas igualmente a outros sistemas literários nacionais. O período inaugurado por uma obra-prima como A consciência de Zeno permite a exaltação de outros narradores italianos, de Pallazzeschi a Gadda, de Landolfi a Emanuelli, Savinio, Pavese, Calvino.

A”Poesia” de Montale começa quase como que ignorando as perspectivas abertas pelas propostas das vanguardas históricas. O seu primeiro elemento de composição da voz lírica é a tradição, particularmente a lição leopardiana. Porém, logo sabe esclarecer as próprias intenções de modernidade, fundando sobre um particular endereço de linguagem a sua visão do mundo. As suas poesias, ainda que partindo de uma aparente visão negativa da existência, logo em seguida se faz um iluminante testemunho da mesma. Com Montale encontramos outros poetas da mesma dimensão: Quasimodo, Ungaretti, Penna, Luzi, Zanzotto.

6 – Língua castelhana: a) Névoa (1914), de Miguel Unamuno (1864-1936); “Poesia”, de Rafael Alberti (1902-1999)




Ao exaltar Névoa, de Unamumo, me permito de alargar a minha atenção a livros de autores espanhóis e hispano-americanos, como Borges, Cela, García Marquez, José Lezama Lima. Não que façam necessariamente parte da família unamuniana, mas porque são feitos com a mesma espessurra.




Névoa é uma dos romances mais especificamente ligados ao pensamento predominante do séc. XX. A trágica história de Augusto Péres, dominado por um sentimento de angústia existencial, corresponde a um dos traços mais profundos do homem moderno. Como afirmou o mesmo Unamuno, “Augusto Péres ameaçou todos os homens”, e assim fez com que permanecesse a sua história.


Na “Poesia” de Rafael Alberti podemos encontrar praticamente todos os endereços da produção poética de língua espanhola do Novecentos. Já na primeira criação de 1924 estão presentes as características fundamentais da sua poesia: ao lado de uma linguagem vinda da modernidade novecentista, o poeta visualiza a sua adesão à cultura popular e à tradição; bebe das lições do Ultraísmo futurista; atinge a nota principal de sua criação, o empenho social e político. Nestas variadas linhas da poesia albertina encontramos espaço para exaltar outros poetas espanhóis e hispanoamericanos do séc. XX: Antonio Machado, Juan Jamon Jimenez, Vicente Alexandre, Garcia Lorca, Gabriela Mistral, Neruda, Borges, Octavio Paz.

7 - Língua portuguesa: a) “Poesia”, de Fernando Pessoa (1888-1935); b) Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa (1908-1967)






Fernando Pessoa com a “Poesia”, distribuida na vastidão de uma personalidade mítica que vai da voz ortônima até os vários hererônimos – espelhos côncavos e convexos do poeta, sintetisa em si toda uma literatura. A aventura novecentista por uma nova linguagem poética encontra nos textos pessoanos dimensões que não permanecem somente ligadas à escritura, mas atingem a grandeza dramática da epopéia sem heróis e eventos maravilhosos, externamente até mesmo à própria linguagem. Na esteira mítica da poesia de Pessoa, ainda que quase sempre dele diferentes, podemos exaltar outros poetas portugueses e brasileiros: Mário de Sá Carneiro, Almada Negreiros, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto.

Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, é a obra-prima da narrativa brasiliana contemporânea e um dos maiores produtos da língua portuguesa. Sendo o romance da linguagem na mais ampla dimensão do conceito, é também o romance de uma humanidade – os habitantes do “sertão“, gente da imensidade espacial do interior do Brasil – que, ainda que confinada na dimensão do regional, assume aquela do universal. Romance de amor e epopéia do homem em confronto com um mundo duro e difícil, Grande Sertão rompe as barreiras antes existentes entre prosa e poesia, facendo-se história. A moderna lição rosiana nos indica sobre a existência de outros grandes narradores de língua portuguesa do séc. XX: Euclides da Cunha, Aquilino Ribeiro, Raul Brandão, Adelino de Magalhães, Mário de Andrade, Miguel Torga, Graciliano Ramos, Jorge Amado,Adonias Filho, José Cardoso Pires, José Saramago.
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publicado por Carlos Loures às 19:30

editado por Luis Moreira em 19/04/2011 às 18:09
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