Terça-feira, 31 de Maio de 2011

A República nos livros de ontem nos livros de hoje - CXXXIX e CXL, por José Brandão

Perfil de Sidónio Pais

 

Bruno de Montalvão

 

Lisboa, 1942

 

Sidónio Pais ocupa lugar de relevo no conjunto de valores da nossa Raça.

 

O seu nome pode inscrever-se na galeria dos mártires e, por isso, tem um lugar escolhido no meu coração,

 

Nunca recebi qualquer benesse da política ou da obra sidonista e no entanto, à medida que o tempo passa mais se afervora o meu culto e a minha admiração por essa nobre figura de português.

 

Se este pequeno e singelo preâmbulo à «Vida e Obra de Sidónio Pais», trabalho a que pacientemente me tenho dedicado, for agora bem acolhido pelo público, não me furtarei a lançar à luz da publicidade essa obra em que procuro focar, com a maior clareza possível, a vida, a obra e as intenções do desventurado Presidente.

 

O AUTOR

 

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O Poder e o Povo

 

(A Revolução de 1910)

 

Vasco Pulido Valente

Moraes Editores, 1982

 

Da revolução de 1820 à queda da Monarquia, em 1910, a Coroa apoiou invariavelmente os partidos moderados «cartistas» contra o perigo do jacobinismo urbano. E excepto por breves intervalos, estes conseguiram prevalecer sobre as forças «democráticas» e radicais, a que apenas se aliaram nos mais negros dias da guerra civil Entre 1847 e 1852, a esquerda pequeno-burguesa dissolveu-se em dúzias de facções impotentes ou foi absorvida e domada pela Regeneração. A nova burguesia terra-tenente, financeira e comercial dos «barões» liberais dominou o Estado, quase sem desafio, até 1903-1905. Os médicos, advogados, professores, oficiais, funcionários públicos, comerciantes, pequenos empresários da indústria oficinal e médios proprietários rurais, que haviam dirigido a ala intransigente do «Vintismo», a revolução de Setembro e a revolta da Patuleia ficaram sessenta anos numa posição subordinada.

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publicado por João Machado às 17:00
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Segunda-feira, 2 de Maio de 2011

A República nos livros de ontem nos livros de hoje - LXXXVIII, por José Brandão

A Igreja Católica e Sidónio Pais

 

 

Cunha e Costa

 

Coimbra Editora, 1921

 

Essa hora virá, ma só quando a Providência entender que a expiação colectiva suficientemente resgatou os graves pecados de que nenhum de nós está inocente.

 

Estou, entretanto, convencido, de que a tragédia da noite de 14 de Novembro de 1918 muito contribuiu para adiantar essa hora.

 

Em torno dessa memória se está lenta mas seguramente, refazendo a Nação, como, devagar, mas com firmeza, após Alcácer-Quibir se refez.

 

O erro dos que ainda hoje a mera invocação do seu nome enfurece, consiste em não se aperceberem de que o chamado Sidonismo não pôde ser um partido político precisamente porque é a religião cívica de todos os bons portugueses.

 

Assim considerado, ele é invencível. Pode-se, em rigor, exterminar uma facção politica;

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Segunda-feira, 28 de Março de 2011

A República nos livros de ontem nos livros de hoje - XLI, por José Brandão

Elogio Académico ao Dr. Sidónio Pais

 

Fernandes Costa

 

Lisboa, 1919

 

 

 

Sidónio Pais, o malogrado Presidente da Republica, que a mão criminosa de um desvairado prostrou sem vida, quando desta e do seu pessoal prestigio tantos problemas nacionais dependiam, tornados agora a ser outras tantas interrogações temerosas e sinistras, era um sábio, um estudioso, um pensador, um homem de gabinete, um professor; e, fundamentalmente, um académico; embora não tivéssemos a honra, ainda, de engrandecer a relação luminosa dos antigos e modernos membros desta Academia, com o seu nome ilustre.

 

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publicado por João Machado às 17:00
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Segunda-feira, 7 de Março de 2011

A República nos livros de ontem nos livros de hoje - 9, por José Brandão

A Cadeira de Sidónio

Ou a Memória do Presidencialismo

 

José Freire Antunes

 

Publicações Europa-América, s. d.

 

Onde ia esse homem buscar um tal fascínio?

 

Durante muitos anos, depois da sua morte, continuaram a acender-se lamparinas de azeite em sua memória. Nas juntas de freguesia do interior viam-se fotografias de Sidónio penduradas na parede, ao lado das de Salazar.

 

A sua figura tem sido evocada nestes anos de brasa, em que o espectro da I República vem pairando sobre o Terreiro do Paço, São Bento e Belém, antigo triângulo da classe política.

 

Forçadas analogias irrompem da pena dos colunistas mais avisados. Brande-se o risco do sidonismo para vestir uma pele de autocrata ao actual presidente da República. E este já se viu obrigado a jurar: nunca os caminhos de Sidónio trilharei.

 

É sabido como Fernando Pessoa viu em Sidónio Pais, num clássico poema, o chefe nacional em que, por uma efémera hora, «encarnou el-rei Dom Sebastião.

publicado por João Machado às 17:00
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Sábado, 11 de Dezembro de 2010

O Reino da Traulitânia (o episódio da Monarquia do Norte)

Carlos Loures




No dia 14 de Dezembro de 1918, quando entrava na Estação do Rossio para fazer uma viagem de Estado ao Porto, o presidente Sidónio Pais foi assassinado. Com os sidonistas divididos em monárquicos e republicanos e digladiando-se entre si, as duas Câmaras, Parlamento e Senado, no dia 16 desse mês, elegeram o almirante Canto e Castro como presidente da República, seguindo a Constituição de 1911. No dia 23, o presidente convocou Tamagnini Barbosa para formar Governo.

O objectivo era desenvolver uma política prudente, de compromisso entre a direita e a esquerda, tentando evitar-se o perigo iminente de uma guerra civil. Por direita entendia-se os defensores sidonistas da «República Nova», por esquerda os que eram pela «República Velha», ou seja, pelo regresso aos princípios de 1910. No dia 3 de Janeiro de 1919, no Porto, constituiu-se uma Junta Governativa Militar, que se reivindicava da herança do sidonismo.

Em consonância com esse levantamento, em Lisboa, o coronel João de Almeida concentrou algumas unidades militares em Monsanto. O fantasma da guerra civil ensombrava o País.
No dia 8 de Janeiro de 1919, Tamagnini Barbosa apresentou perante as Câmaras a formação do novo gabinete. Logo no Parlamento, Cunha Leal verberou violentamente a cedência que o novo chefe do Governo fizera às Juntas Militares de Lisboa e Porto. No Senado, Machado Santos, o herói da Rotunda, reagiu de forma similar. No noite de 10, eclodiram revoltas militares, quase simultaneamente em Lisboa – a guarnição do castelo de S. Jorge e o Arsenal de Marinha, na Covilhã e em Santarém. A sedição logo foi dominada em Lisboa e na Covilhã. Em Santarém os militares resistiram e exigiram que o presidente constituísse um «Governo de Concentração Republicano», com representação dos partidos democráticos da chamada «República Velha».

Os pronunciamentos que visavam o regresso à normalidade constitucional republicana e que, aqui e ali, se iam verificando, foram todos eles sendo neutralizados pelas forças leais ao Governo. Mas essas forças «leais» não estavam coesas., pois o quadro da direita sidonista apresentava-se diverso no Norte e no Sul: a Sul predominavam os republicanos enquanto que no Norte, os monárquicos eram amplamente maioritários. As duas facções, inspiradas pelo Integralismo Lusitano de António Sardinha, estavam unidas no desejo de impedir o regresso dos políticos de 1910, mas divididas quanto ao regime a instaurar após o seu eventual triunfo.
Até que no dia 19 de Janeiro, sob a liderança de Paiva Couceiro, novo golpe militar no Porto proclamou a restauração do regime monárquico. Foi constituída uma Junta Governativa do Reino. Em Lisboa, o Governo da República apressou-se a decretar, para todo o território continental, o estado de sítio. Por toda a cidade surgiram manifestações de apoio à República e começaram a constituir-se batalhões de voluntários. O Batalhão Académico, formado por estudantes do ensino superior foi muito falado. José Gomes Ferreira, que esteve integrado na coluna comandada pelo general Abel Hipólito, com quartel-general em Viseu, faz uma colorida descrição da sua intervenção militar em «A Memória das Palavras-I». O Governo lançou um dramático apelo aos militares do CEP, recém desmobilizados da frente de batalha, para que lutassem em defesa da República.
https://1.bp.blogspot.com/_FF1Oh7g-A visita ministerial à frente da Batalha. – Na praça principal de Albergaria-a-Velha. Um acampamento das tropas fieis ao governo, que têm prestado assinalados serviços à República.
No dia 23 foi a vez de rebentar em Lisboa um golpe monárquico. Chefiado por Aires de Ornelas, concentrou novamente na serra de Monsanto importantes efectivos. O Governo tomou medidas de excepção, libertando os presos políticos – anarquistas, republicanos e socialistas, para que engrossassem as fileiras de defensores do regime. No dia 24, cercados e flagelados pela artilharia, os monárquicos de Monsanto renderam-se. No rescaldo, contaram-se trinta e nove mortos e aproximadamente trezentos feridos. Navios de guerra de países estrangeiros foram fundeando no Tejo, prontos a intervir.

Em 27 de Janeiro tomou posse um governo de «concentração republicana» encabeçado por José Relvas. Por todo o País, sobretudo no Norte e no Centro, iam-se verificando confrontos entre forças monárquicas e republicanas. O perigo de uma guerra civil generalizada é potencialmente grande. E a situação instável manteve-se até que em 13 de Fevereiro as tropas monárquicas comandadas por Paiva Couceiro, se renderam. As unidades leais à República afluíam de todos os lados e avançavam para o Porto sem encontrar grande resistência pelo caminho. No interior da cidade, o capitão Sarmento Pimentel comandou a revolta da «Guarda Real», como fora crismada a GNR, apoiado por civis armados e ajudou a derrotar as forças de Paiva Couceiro.


Tropas fiéis à República em Albergaria-a-Velha
Embora ainda subsistissem focos insurreccionais pelo Norte, que foram sendo jugulados, a revolta monárquica foi dominada. O Estado deu começo aos julgamentos dos cidadãos envolvidos na tentativa de restaurar a Monarquia. As liberdades, direitos e outros mecanismos constitucionais suspensos pelo golpe de Sidónio Pais em Dezembro de 1917, foram postos novamente em vigor. Chegara ao fim a Monarquia do Norte – a que também se chamou o «Reino da Traulitânia», devido aos maus tratos e sevícias infligidos aos prisioneiros republicanos caídos nas mãos dos couceiristas. Foi, em cem anos de República, a mais forte tentativa verificada no sentido de restaurar o regime abolido em 5 de Outubro de 1910.
publicado por Carlos Loures às 12:00
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Segunda-feira, 18 de Outubro de 2010

Noctívagos, insones & afins: O homem que assassinou Sidónio Pais - por José Brandão

No que respeita ao homem que assassinou Sidónio País as coisas não são muito claras. Libertado, em 19 de Outubro de 1921, por um grupo ligado à revolta da Noite Sangrenta, só muito mais tarde José Júlio da Costa voltará a ser preso, e desta vez para sempre. Um indivíduo chamado António Maria Fernandes, morador no Bairro de Alfama, decidira dar caça ao matador de Sidónio Pais. Na posse de um salvo-conduto passado pelo Ministério do Interior, que lhe permitia, se necessário, requisitar o auxílio da Guarda Republicana, este ignorado funcionário público pôs-se a percorrer o País e, depois de ter estado em Garvão e no Algarve, consegue saber que José Júlio da Costa se encontrava numa pensão para os lados de Matosinhos, para onde se dirige, acompanhado de um irmão de Júlio da Costa.


Na sexta-feira, 14 de Janeiro de 1927, o prédio onde se situa o Hotel e Café Central de Matosinhos está cercado pela Guarda Republicana e o proprietário, Alberto Midões, não terá muitas dúvidas em resolver o assunto, entregando José Júlio da Costa aos seus captores.


Na manhã de sábado, Júlio da Costa segue preso para Lisboa num compartimento reservado numa carruagem de segunda classe, e, ao chegar à Estação de Entrecampos, deixa tudo espantado com o seu aspecto trôpego e extravagante. Curvado, pálido, com uma mão no bolso, vestindo um sobretudo engelhado, por detrás do qual se vê um colete branco e uma camisa alaranjada, a completar com um chapéu alvadio amarrotado e umas botas amarelas, José Júlio da Costa é metido num carro celular, que segue em direcção à Avenida Duque de Ávila, para depois tomar o caminho do quartel de Caçadores, em Campolide. À frente vai uma companhia da GNR a cavalo e atrás segue outra. O homem que comanda esta operação chama-se Agostinho Lourenço. Fora governador civil de Leiria no tempo de Sidónio e era agora chefe da Polícia Política que a ditadura do Estado Novo começava a ensaiar.

Às oito horas da noite de 28 de Janeiro de 1927, José Júlio da Costa dá novamente entrada na Penitenciária de Lisboa, vindo a morrer louco, 19 anos depois, no dia 16 de Março de 1946, no manicómio Miguel Bombarda, em Lisboa, referindo a sua certidão de óbito que se tratou de morte por «esquizofrenia».

Como se comportou durante esses anos? Que conversas teve com carcereiros e enfermeiros? Que impressões guardaram dele os companheiros de cárcere ou das horas de passeio na cerca do Miguel Bombarda? Não se sabe. Guardas e enfermeiros, presos e loucos todos morreram, entretanto. E os que não morreram esqueceram-se. A morte e o esquecimento são as duas grandes notas dominantes na história do carrasco do presidente Sidónio Pais. O homem que, na noite de 14 de Dezembro de 1918, conseguiu a celebridade que procurava não a pagou com a vida, como seria de esperar, como ele próprio esperava. Pagou-a com o aniquilamento da sua personalidade e do seu nome e com a dúvida que deixou para sempre a seu respeito. Alguém quis que assim fosse. Mas quem?

Diz-se que Júlio da Costa foi durante muito tempo protegido e amparado por Ana de Castro Osório, ilustre republicana, colaboradora de Afonso Costa e fundadora da «Liga Republicana das Mulheres Portuguesas».

Outros, como Rocha Martins, acusam destacadas figuras do Partido Democrático de estarem por detrás da cobertura que durante longos anos protege o assassino de Sidónio Pais.


publicado por Carlos Loures às 03:00
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Sábado, 16 de Outubro de 2010

Leva da Morte – 16 de Outubro de 1918

Carlos Loures




Local onde ocorreu a chacina da "Leva da morte"

92 anos depois, há quem queira descrever o consulado sidonista como um oásis de ordem no meio do caos da I República. Esquecem-se, entre outros actos de despotismo, os que pretendem branquear o sidonismo, do sinistro episódio da «Leva da Morte», ocorrido em 16 de Outubro de 1918. No ano anterior tinham acontecido muitas coisas – em Janeiro partira para França a primeira brigada do Corpo Expedicionário Português. Portugal entrava na Grande Guerra. Os contingentes continuariam a seguir para a frente de batalha. Em 25 de Abril formou-se o terceiro governo de Afonso Costa. Em Maio noticiavam-se as primeiras «aparições» de Fátima, logo aproveitadas pelas forças conservadoras.

O pano de fundo, eram os motins, as greves, mas esse caos social, económico e político serviu de trampolim ao major e professor Sidónio Pais que, mobilizando algumas unidades militares e, sobretudo, os cadetes da Escola de Guerra, e com algum apoio popular, desencadeou em 5 de Dezembro uma revolta. Mais uma. Afonso Costa foi preso, o ministério demitiu-se, o presidente Bernardino Machado partiu para o exílio. Instaurou-se uma ditadura militar, apoiada pelo Partido Unionista. O Congresso foi dissolvido, destituído o presidente da República, a constituição alterada. Instalou-se um regime presidencialista – aquilo a que se veio a chamar o sidonismo. A Sidónio, muitos chamavam o «Presidente-Rei». Era a «República Nova».

Os decretos eram publicados a velocidade estonteante. A máquina administrativa, a lei da imprensa, o ensino, tudo ia sendo reformulado. Foram restabelecidas as relações com o Vaticano e restituído ao clero privilégios que a República lhe retirara. As sucessivas revoltas contra a ditadura sidonista iam sendo dominadas. Em Janeiro de 1918, foi neutralizado um levantamento de marinheiros da Armada. Em 28 de Abril houve eleições presidenciais. Sidónio, único candidato, foi eleito. Em La Lys, as tropas portuguesas sofreram uma pesada derrota o que reforçou a germanofobia do presidente e dos seus apaniguados. A direita rejubilava - em Julho surgia a «Cruzada Nun´Álvares» formada por monárquicos e sidonistas católicos com o objectivo de unir a direita anti-republicana.

Tudo isto ocorria sem que os problemas fulcrais do País se resolvessem – continuava a miséria, a carestia da vida, o racionamento de bens essenciais… O descontentamento, mesmo dos que tinham saudado o aparecimento de Sidónio, reavivava-se. Recomeçavam as greves, os motins, os levantamentos populares. O benefício da dúvida terminara. Sidónio apenas resolvera problemas da hierarquia da Igreja, de terra-tenentes e industriais. O povo não figurava nos seus planos. Gente ligada ao Partido Democrático, agitava-se. As prisões enchiam-se de opositores ao «presidente-rei». A «lei-da-rolha» estendia-se a todos os domínios. Tudo estava tão mal como antes, só que agora nem sequer se podia protestar. E chegamos ao 16 de Outubro de 1918.

Uma revolução constitucionalista eclodiu em Coimbra na manhã de 12 de Outubro. O comandante da Divisão sediada na cidade foi preso pelos revoltosos e o alferes Sidónio Pais, o filho do presidente, perseguido pela cidade. Em Lisboa e no Porto, o movimento não encontrou eco, a revolta foi jugulada Face à rebelião que alastrava por todo o País, o governo decretou o estado de sítio. As prisões encheram-se de presos políticos, gente do Partido Republicano Português na sua generalidade.

Às 3 da tarde, não cabendo mais presos nos calabouços do Governo Civil de Lisboa, foi decido transferir parte deles para os fortes do Campo Entricheirado – São Julião da Barra, Alto do Duque e Caxias. O comboio especial que os iria transportar, sairia às 18 horas do Cais do Sodré, sendo a partida adiada para as 21 horas. Ao cair da tarde, 153 detidos foram concentrados no pátio central do Governo Civil e, rodeados por 253 guardas sairam do edifício. Pormenor bizarro - o cortejo era aberto por corneteiros e tambores.

Entre os presos, destacava-se a figura enorme de Francisco Correia Herédia, um sexagenário forte e combativo. Fora deputado e fizera, antes do Regicídio, parte do grupo da dissidência Progressista, liderado por José Maria de Alpoim. Estava filiado no PRP de Afonso Costa e voltara ao Parlamento, agora como deputado republicano. Deixara de usar o título de visconde e usava apenas o nome civil. Os guardas armados, apontando as armas aos curiosos, gritavam:

- Fechem as janelas! Afastem-se das ruas!

Quando o cortejo, vindo da Rua Serpa Pinto, atravessando o Largo da Biblioteca e chegando a cabeça da coluna à Rua Vítor Córdon soou um tiro. Estabeleceu-se o pânico e desencadeou-se um forte tiroteio com os guardas a disparar quase à toa em todas as direcções. Quando a calma e o silêncio se restabeleceram a rua estava juncada de mortos e de feridos, alguns agonizantes. No rescaldo, apuraram-se sete mortos, seis presos e um guarda, sessenta feridos, sendo trinta e um preso e vinte e nove guardas. Entre os mortos, na valeta junto à Rua Vítor Córdon, estava o visconde de Ribeira Brava, degolado pelo que parece ter sido um golpe de baioneta.

No dia seguinte, o Governo emitiu um comunicado em que se dizia que tudo começara quando Francisco Herédia disparou sobre os guardas, tentando evadir-se. A disparatada versão pormenorizava que a pistola entrara na prisão dentro de um tacho de açorda! - a pistola nunca foi encontrada. Dizia-se também que dos bordéis da Calçada do Ferragial tinham sido disparados tiros contra a polícia. Foi preso um garoto de 12 anos, acusado de cumplicidade no ataque. No entanto, a versão em que toda a gente acreditou era a mais óbvia: o massacre fora preparado pela polícia sidonista. Os insólitos tambores e cornetas abrindo o cortejo foi interpretado como uma forma de referenciar a marcha da coluna aos olhos de quem do exterior iria intervir.

No sábado, 14 de Dezembro de 1918, regressando o ditador de uma viagem ao Norte, foi abatido a tiro na Estação do Rossio por um atirador que, ao que parece, não fazia parte de qualquer grupo político. Um tal José Júlio da Costa que, apesar de todos os esforços da polícia, do avultado número de prisões efectuado, nunca se provou estar organizado fosse em que partido fosse.

A chamada República Nova morrera com Sidónio. Nunca se diga que os doze meses da ditadura sidonista foram um hiato na violência e no caos da I República. A «Leva da Morte», episódio ocorrido faz hoje 92 anos, foi apenas um dos muitos crimes cometidos pelas autoridades nesse período.
publicado por Carlos Loures às 12:00
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Quinta-feira, 7 de Outubro de 2010

Que República!?

José Brandão

Desde os primeiros dias do novo regime saído da revolução de 5 de Outubro de 1910 que os principais dirigentes republicanos eram vistos com preocupante desconfiança por um cada vez mais numeroso lote de críticos, de indiscutível autoridade e de comprovado passado histórico.

Poucos ou nenhum dos grandes nomes que vão assumir a condução da República em 1910 irão conseguir escapar ilesos a uma das mais formidáveis e avassaladora vaga de ataques de que há memória num regime de colegialidade governativa. Nuns casos mais justos, noutros não tanto, toda essa avalanche acusatória acabava desgraçadamente por ter sempre alguma razão de ser.

Uma paciente e interessada observação do que foram alguns desses intermináveis clamores de reprovação pode dar ideia da «doença infantil» que terá atingido, logo à nascença, a República portuguesa.

A começar precisamente pelo pai, fundador, implantador, herói e tudo o mais que se entenda para o papel de Machado Santos em 5 de Outubro de 1910, a sua República morreu quase antes de ter nascido.

O Governo que acompanha a proclamação solene da República, do alto das varandas da Câmara Municipal de Lisboa, põe logo indisposto o comandante revolucionário. Estava quase todo trocado. Ainda durante a manhã do dia 5, Machado Santos volta para junto dos seus carbonários na Rotunda, e, não fora a feliz ideia de Brito Camacho de promover a ida do novo Governo ao acampamento do alto do Parque Eduardo VII, talvez as comemorações da Revolução republicana não fossem hoje exactamente no dia 5 desse mês.

Os homens que haviam sido promovidos a Governo Provisório da República, uma inacreditável colecção de mediocridades glorificadas, representavam várias tendências dentro do PRP, tinham opiniões diferentes sobre o que devia ser o novo regime e nem sequer especialmente se estimavam. O Governo Provisório não era um Ministério no sentido usual da palavra, isto é…, não era formado por um grupo de pessoas com ideias comuns ou, pelo menos, um programa comum. O presidente, o filósofo, historiador, crítico e sociólogo Teófilo Braga, «não passava de uma nulidade política, ali posta com propósitos puramente decorativos.»

«Um tronco ressequido, que nunca deu flor!» — dizia Guerra Junqueiro.

Afonso Costa que mereceu de Fernando Pessoa classificações como: «José do Telhado de revenda». «O perfeito tipo de salteador político». «Um dos maiores bandidos que têm aparecido à superfície da política lusitana». «Um escroque-nato, uma besta, um piolho da política, um tirano de caca, comparado com João Franco, que seria um tirano de merda».

Pessoa nunca fora muito dado a grandes simpatias pela causa republicana. Afora a sua adoração por Sidónio Pais — a quem chama de «presidente-rei» — o poeta da Mensagem não poupa o regime de 5 de Outubro de 1910. Para Pessoa «A situação em Portugal, proclamada a República, é a de uma multidão amorfa de pobres-diabos, governada por uma minoria violenta de malandros e de comilões.»

Infelizmente para a República e para Portugal não era só Fernando Pessoa que pensava desta maneira. Longe disso. Se Pessoa podia ser distante desses ideais, outros, a que ninguém podia pôr em causa o seu verdadeiro republicanismo, condenaram de forma não menos contundente os caminhos porque enveredava a I República portuguesa.

Magalhães Lima, por exemplo. Numa carta que em 1923 escreve a Teófilo Braga diz de sua justiça: «Os meus princípios de filosofia política, decerto um pouco radicais, evidentemente excedem a orientação dada à República, que nem é a dos insignes enciclopedistas de 89, nem a dos grandes homens de 48, nem sequer a que lhe imprimimos em 5 de Outubro de 1910.»

Aos olhos de muitos e grandes nomes da luta histórica pelo ideal republicano, isto já não é República não é nada:

— É uma bacanal de percevejos num colchão podre — Diz Guerra Junqueiro, gigante incomparável da propaganda revolucionária durante os anos da Monarquia. — Afora meia dúzia, o resto devora. Os homens são cada vez pior, cada vez mais pequenos. Tirem-lhes a política e ninguém dá por eles — acusa o poeta, cansado e desiludido com um rumo que tem já destino inevitável para uma esperança de tantos anos.

— A Monarquia, nesta altura […], seria de fugir... E a República? A República — diz Junqueiro — não se atura nem se pode aturar!

Não temos estadistas, não temos políticos... — reclama, em conversa com Lopes de Oliveira, que interpõe:

— Mas quem sabe se.

— Não, não; o peixe anda na água; se não aparece, é que o não há.

Mais perto do nosso tempo, Eduardo Lourenço escreve sobre a I República. Em Portugal como Destino, publicado em 1999, expõe o seguinte: «O triunfo da primeira República, em 1910, a ter durado mais que os seus escassos dezasseis anos, e pelo simples facto de ter posto fim a uma Monarquia de oito séculos de existência, merecia — outros dizem merece — aceder a um estatuto mítico, ser uma referência profunda e íntima da memória nacional»

[…]

«Sem dúvida que o assassinato do rei D. Carlos e do herdeiro do trono, D. Luís, em 1908, num povo tão sentimental como o português não contribui pouco para esse obscurecimento da República. Curiosamente, sem que a Monarquia ou a sua lembrança beneficiassem com isso. Portugal é um povo de longa memória (historial), mas sem memória profunda. O regicídio provocou naturalmente, uma grande emoção. Os assassinatos reais eram moeda corrente na época numa Europa que não sabia que caminhava para a catástrofe. Mas, na nossa história, esse género de dramas pareciam copiados de outros, ininteligíveis. Tiveram consequências políticas, mas não tinham conteúdo político.»

E, falando também de Sidónio Pais, o autor do notável livro O Labirinto da Saudade, acrescenta: «A República democrática, como se fosse uma pequena Weimar, sonha com uma nova ordem. Em 1918, o primeiro de uma longa série de «caudilhos» dispostos a porem ordem na «desordem» europeia estabelece uma breve ditadura em Portugal. Chamava-se Sidónio Pais e, talvez por ter sido assassinado um ano depois, transformou-se num dos raros personagens lendários da medíocre história portuguesa deste século. Uma vez mais ressuscitou-se nele o espectro regenerador de D. Sebastião. Deste, tinha a coragem e o garbo. Adorado pelas mulheres, em plena aurora do cinema, foi a primeira star da nossa moderna mitologia. Suscitou paixões, de nítido fundo anti-republicano e pré-ditatorial. Para que nunca mais fosse esquecido, entusiasmou Fernando Pessoa, que nunca morreu de amores pela «democracia à portuguesa».

[…] «A sua maneira, a República foi para muita gente, sobretudo poetas, um acontecimento «sebastianista». Uma nova era se abria para Portugal. O jovem Pessoa, o próprio Pascoais, tiveram o seu momento «republicano». Portugal descera, com as últimas convulsões da Monarquia, a uma situação dolorosa e intolerável. Era necessário resgatá-lo, não dos seus maus pastores (como dissera Guerra Junqueiro), mas de si mesmo. A ideia de que Portugal, tendo percorrido a senda da sua decadência, para não dizer da sua expiação, devia e estava em condições de renascer tornou-se uma ideia fixa das novas gerações.»

Com 45 Governos em menos de dezasseis anos e tanta tragédia a persegui-la, a I República ficaria para a História como o regime parlamentar mais instável da Europa ocidental.

Começou pela morte de um rei (D. Carlos) que deixou um político (João Franco) governar como queria. Viu matar um presidente (Sidónio Pais) que não quis que os políticos governassem como queriam. Assistiu ao assassinato de um governante (António Granjo) que não deixaram que governasse como lhe cabia.

Era um monarca tutelar mas constitucionalista na sua essência. Era um presidente ditatorial mas o único que foi sufragado por voto popular. Era um chefe de Governo odiado mas que pela segunda vez era solicitado a formar Ministério.

Era, era, era…

Era Portugal. É Portugal!
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Quinta-feira, 30 de Setembro de 2010

República nos livros de ontem nos livros de hoje - 191 e 192 (José Brandão)

Um Ano de Ditadura – Discursos de Sidónio Pais

João de Castro

Lisboa, 1924


Os canhões da Rotunda em 8 de Dezembro de 1917, dia de Nossa Senhora, sagravam o Libertador.

O que era ele e o que queria? Isso não importa. Era o Libertador. Era o homem capaz de congregar numa só energia todas as energias, num só sonho de esperança todas as desventuras. Era alguém que sozinho, desacompanhado, sem preparação nem génio político, acordou um país para a esperança de viver. Era um Messias, um desejado, mas trabalhando como devia contra as falsas ideologias, contra os estrangeiros, contra a indisciplina e a anarquia, contra a horda invasora contra tudo o que se congregara na demagogia. Era o Desejado, o entusiasmador do povo, mas ao mesmo tempo aquele que pelo seu aparecimento e existência mostraria o novo caminho.

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Um Escritor Confessa-se

Aquilino Ribeiro

Livraria Bertrand, 1974

Penso às vezes – por poesia, claro está – que talvez tivessem cometido esse intrigante e ilógico disparate por respeito fidalgo pela população lisboeta – em 1919 republicana até ao fundo dos ossos. Pressentiram possivelmente que seria criminoso conquistar pela astúcia uma cidade em que os homens e as mulheres, quando tomaram consciência da situação, vieram para as ruas aos gritos de horror entusiástico, a rebuscar nos museus e nos recantos dos alçapões as poucas armas existentes.

Qualquer servia para os grupos combatentes improvisados: mosquetes com azebre, espetos de assar carne, bacamartes de carregar pela boca, pistolões ferrugentos, paus de vassoura afiados e, principalmente, essas espantosas balas de água que são as duras lágrimas dos olhos determinados.

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publicado por Carlos Loures às 18:00
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Segunda-feira, 27 de Setembro de 2010

República nos livros de ontem nos livros de hoje - 185 e 186 (José Brandão)


A Situação Política

Alfredo Pimenta

Lisboa, 1918

…como o regímen republicano que é diferente da pessoa do sr. Sidónio Pais, não merece confiança á Nação, esta, nas eleições de 28 de Abril, manifestando-se como se manifestou, deu provas evidentes do seu sentir monárquico, cercando os deputados e senadores, monárquicos de uma votação bem significativa.

A situação politica só se esclarecerá definitivamente no dia em que a Nação puder responder livremente á pergunta que se lhe faça sobre as instituições politicas que prefere. Por ora, sabemos isto apenas: a Nação é conservadora, e aclama quem lhe garantir, eficazmente e honradamente, o princípio da Autoridade. Nada mais.

l0 de Maio de 1918.
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Suicídios Famosos em Portugal

José Brandão

Europress, 2007

As histórias dos suicídios aqui apresentadas são apenas uma parte de tantas outras que ocorreram durante esse período que medeia entre o início da segunda metade do século XIX e vai até aos anos Trinta do século XX.

São figuras que se destacaram nos diversos campos da vida nacional e que optaram por pôr termo à vida recorrendo ao suicídio.

Apresentadas em dois blocos, em que o primeiro, de José Fontana a Florbela Espanca, contem exposição mais detalhada de cada uma das histórias, esta relação de 17 suicidas famosos ocupa a maior parte deste trabalho.

O segundo bloco, que começa em 1856 e se estende até 1934, resume-se a pequenas notas de cada uma das 30 ocorrência expostas.

São pois, um total de 47 vultos envolvidos num final de vida que é comum a todos eles.

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publicado por Carlos Loures às 18:00
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Domingo, 26 de Setembro de 2010

República nos livros de ontem nos livros de hoje - 183 e 184 (José Brandão)

A Sinfonia da Morte

Carlos Loures

Âncora Editora, 2008


A Sinfonia da Morte , terceiro romance do autor, utilizando como pano de fundo o tema do Regicídio de 1908 e a escaldante situação política em Portugal na primeira década do século XX, traça-nos uma interessante trama ficcionística, onde são colocadas questões eternas, tais como a existência ou a inexistência de Deus, a prevalência (ou não) do amor sobre os interesses materiais, a vitória ou a derrota da bondade na sua luta contra a ferocidade que o homem herdou da sua condição animal. Esta obra é uma co-edição com as Edições Colibri.

Carlos Loures nasceu em 1937 em Lisboa. Entre 1958 e 1960, foi um dos organizadores da Revista Pirâmide, na qual colaboraram numerosos escritores. Com Manuel Simões, organizou uma série de antologias temáticas de poetas portugueses. Talvez um Grito (1985) e A Mão Incendiada (1995), são as suas anteriores incursões no território da ficção.

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A Situação Política

Alfredo Pimenta

Lisboa, 1918


…como o regímen republicano que é diferente da pessoa do sr. Sidónio Pais, não merece confiança á Nação, esta, nas eleições de 28 de Abril, manifestando-se como se manifestou, deu provas evidentes do seu sentir monárquico, cercando os deputados e senadores, monárquicos de uma votação bem significativa.

A situação politica só se esclarecerá definitivamente no dia em que a Nação puder responder livremente á pergunta que se lhe faça sobre as instituições politicas que prefere. Por ora, sabemos isto apenas: a Nação é conservadora, e aclama quem lhe garantir, eficazmente e honradamente, o princípio da Autoridade. Nada mais.

l0 de Maio de 1918.
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Noctívagos, insones & afins - Se eu não me sentisse confuso de como fui feito

Raúl Iturra

...o que um filho diria a um pai que se importa com ele, toma conta e é feliz…por ter um pai por perto….e não compra o filho e vai-se embora….ensaio de etnopsicologia da infância…

À minha descendência


Feito

Porque de certeza não foi o espírito que me criou. Faz já dez anos. Não foi o espírito que entrou no corpo da minha mãe e depositou aí o meu corpo. Diz a minha mãe que foi ela quem me trouxe ao mundo. Que me pôs neste mundo. Que me deu à luz. Que entregou o meu corpo à família e ao pai. E aos vizinhos. Que me viram no dia do baptismo. Diz a mãe que me levou-me no seu ventre durante cumprido tempo. Diz a mãe. A mãe sempre diz todo o que ela sofreu comigo dentro. Diz que sofreu por ter que acordar à noite para me amamentar. Diz a mãe que teve de mudar as minhas fraldas milhares de vezes quando era pequeno e não sabia usar penico. Diz a mãe.



O pai não fala. Ouve o lê o jornal, ou mexe as mãos como tesouras para arranjar os papéis do seu trabalho. O pai trabalha no Concelho ou numa escola ou escreve livros ou faz contas para pagar ordenados. Em tanto assunto mexe que eu não entendo o que faz. Tanta coisa faz, que nem tempo tem para comentar. Trabalha num sítio qualquer. Ainda não é claro e certo para mim, o que o pai faz. Ele nunca fala em casa e a mãe só fala dele ao preparar as comidas, do que ele gosta, do que ele prefere, do que ele detesta e de como ele vai-se zangar se não está tudo pronto, a horas e bem temperado. E engole caladamente, a olhar os seus papéis. Ou a recortar. Nem sei o que faz o pai. Inveja tenho do Zé e a Maria, que falam à mesa e os pais discutem o trabalho, a casa, os estudos deles. Eu, tenho essa sorte. Só sei que o pai não me teve no seu corpo nem me amamentou, nem mudou as minhas fraldas. Nunca olhou para mim, embora pedisse cumprimentos. Beijo não queria, os homens não se beijam, dizia ele. Diz a mãe, essa que me come com beijos, diz a mãe que o pai olhava e me acarinhava quando eu era pequeno, quando já tinha um ano ou dois. E que brincava à bola comigo. Diz que eu teimava pegar a bola com a mão, o pai teimava a pegar com o pé. Nunca consegui aprender, ao que se parece, e o pai disse-me maricas, nunca mais jogou comigo e eu entrei pelo mundo da fantasia a inventar os meus próprios jogos. Jogos nos quais o pai sempre aparecia. O que fazia o pai? O que fez para ser o meu pai? Porquê existe esse homem que eu quero, é o que chamo pai? Sempre espero por ele, com carinho, com temor, nunca sei se anda feliz ou zangado. A mãe é a que sabe: ou abre a boca para estabelecer uma eterna falhada conversa, ou come em silêncio para não interromper os trabalhos do pai.



Pai



Pai. Uma palavra esquisita. Não é como a palavra mãe. Mãe faz sentido. Por acaso, não andou no seu ventre, comigo? Por acaso, não me teve no seu colo quando sugava o seu peito? Por acaso, não me cantava canções de embalar ao me amamentar? Por acaso, até com raiva pelo cansaço do trabalho, não mudava as minhas fraldas? A palavra que digo, não fora retirada das suas? Não é, porém, a minha língua, uma linguagem materna? Emotiva? Amorosa? Palavras que me aparecem sempre com carinho e eu aponto-as, anoto-as, para as não esquecer mais. É a mãe a que me fez. Até ao ponto de eu entender as pessoas que vinham a casa. Casa na qual a mãe sempre estava, contava os jogos que eu fazia. E os trabalhos da escola. O bem ia a minha vida escolar. Mesmo que não tivesse notas famosas. A mãe dava-me confiança. Fazia de mim uma pessoa. Que não tinha medo de falar com as pessoas amigas. Excepto, quando estava também o pai. E os seus amigos. Que iam falando e bebendo enquanto debatiam. De coisas. De coisas que eu não entendia. E eu, sei lá, se ele não punia a mãe nessas noites, porque ele arfava e ela gemia. Quando estava com os copos. Coisa estranha. Desde bem pequeno, eu ouvia esses ais! Às noites, ou na sesta aos domingos, quando o pai mandava entrar a mãe para o quarto. Esses dias que apenas ele arfava e ela não gemia. Ele ficava a dormir, e ela saía do quarto para os afazeres de casa. E, às tantas, a sua barriga ia alargando, crescendo, e outro bebé nascia. Como é que ele era feito? Na catequese e no Natal, falavam sempre do nascimento. Do menino que a gente punha no presépio. E até presentes tínhamos para festejar esse nascimento. Nascimento acontecido pelo anjo que anunciou a essa mãe que o espírito ia entrar nela. Criancinha assim nascido, diziam eles, na minha idade mais adulta. Será que o arfar do pai suga o espírito anunciado pelos anjos e outro bebé entra no corpo da mãe, que no seu ventre dá forma aos olhos, às mãos, aos pés, ao corpo todo? E tão pequeninos que são quando nascem! Como se ainda não estivesse todo feito. Deve ser por isso que o levam à Igreja, para pôr óleos na sua testa a escorregarem até ter o tamanho para poder brincar comigo. Esses meus irmãos que iam aparecendo aos meus quatro, aos meus cinco anos, ou antes. Mas, de antes não lembro. Todos, de certeza, filhos do espírito que faz crianças. Como dizem em casa. Como diz o pai que dizem outros povos do mundo. Em outros continentes. Sei lá. Se é a mesma história, então é o espírito mais uma vez que voa entre pai e mãe.



Confuso



Confuso ando eu. Com tanto rabisco que me entra pela cabeça dentro. Mal saio de casa, as explicações mudam. Os putos meus amigos andam sempre a olhar para as raparigas. Eu, com certa timidez o digo, também. Porque será que quando olho para elas ferve-me o sangue e o meu pénis fica mais crescido? Ficamos, os meus amigos e eu, com desejos da beijar. Especialmente essa rapariga que tem muito cabelo, onde gosto os meus dedos enredar. E passar as mãos pelas bochechas. E, mal posso, arranco um beijo. Ou cutuco as sua mamas crescidinhas. Não são grandes como as da sua mãe, ou da minha. São mamas pequenas que as minhas mãos agarram quando ela fica perto de mim. E ela até sorri! Não se zanga. Gosto de cheirar o odor do seu corpo. Mais ainda, quando fazemos ginástica. E ela sua, e eu também. E diz que suo bem, gosta do cheiro do meu corpo! Por isso, não deixo que em casa me mandem tomar banho. Guardo o cheiro para ela, a minha rapariga. Que me faz ferver o sangue sei lá porquê, nem como esse sangue ferve. Diz a rir o meu amigo João, que ando enamorado. Enamorado eu? Enamorar, se entendo bem o que a televisão mostra, são duas pessoas que estão juntas numa cama. Ele salta por cima dela e mexe o seu corpo. Ela agarra-o com as suas mãos, e passa as suas unhas pelas costas do homem que está com ela. E mais não posso ver, os lençóis tapam os corpos, os pais tiram-me do aparelho ou mandam-me ir para a cama. E na cama jogo com o meu corpo. Corpo que ferve por ter tocado no da minha amiga, por ter espreitado o que os pais proíbem que eu veja, o que torna a minha mente mais curiosa. Estes dez anos são uma pura complicação: nem para trás, nem para frente…essa idade que o sangue começa a fabricar sumos internos que, enquanto durmo, saem e eu acordo molhado…



Sorte a minha, essa de ter confiança no João, mais velho, com mais dois anos de idade. Esse que me conta que ele e os seus dois outros amigos brincam com a sua pila até sentir que do corpo sai um leite que salta à uma grande distância dos seus corpos. Leite que escondem num papel ou num lenço. Por vezes vão juntos à casa de banho e mexem neles próprios a brincar a quem lança o leite mais longe. Talvez, quando eu tiver a idade deles, possa acompanhá-los, digo. E o João diz que nem por isso, que eu, nem aí. Que é apenas para os mais velhos. Que eu não ia saber empurrar esse amigo que gostava de agarrar a pila deles e lhes dar beijos. Não percebi. Ainda não percebo. Queria perguntar à mãe, mas a mãe não tem pila, como ia entender? Será que o pai tem? E se falar com ele? Mas, como lhe digo? Não sei as palavras. Na escola ensinam biologia e dizem que vamos ficar lentos e perdidos quando chegar ao quê? Ah! diz o livro, à puberdade. Vamos ficar lentos, desabafados, meios parvos, sem balanço. E nada mais diz a professora que nos ensina. Essa que fala em grupo aparte com as raparigas, e oiço à distância, a palavra sangue mensal. Sangue nos seus corpos? Qual o motivo? Coitadas. Ao que parece, nós damos leite, elas, sangue. Quando, porquê, para quê? Os putos do Quinto e Sexto ano básico, têm aulas para encontrar palavras. Palavras que eles traduzem para palavras usadas para factos já vividos. Pelo menos, diz o João, aprendem a usarem o preservativo. O quê? Raios me partam, esses adultos pensam que eu sou um anjinho. Perigoso. Será que já estou na idade de anunciar às mulheres que vai aparecer o espírito e vão ter filhos?



Ai! Se eu não estiver confuso, para que serve o meu corpo. Se eu tiver palavras. Mas esses grandes pensam que eu não penso nem sinto. Que me coloco ao lado deles por puro carinho, sem repararem que junto o meu corpo ao de outro que me conheça intimamente, porque sinto prazer no meu. Como gosto de dar beijos a rapazes e raparigas que gosto e gostam de mim! Beijos a fazerem o meu coração saltitar. Como o outro dia, quando fiquei a olhar para essa minha rapariga no fundo dos seus olhos, e a minha mão esticou-se para a tocar, sem outra intenção que sentir o calor da sua. Peguei numa flor que crescia à beira do caminho e dei-lha. Ela deu-me um beijo na cara. Cara que não lavei para guardar o suave sentir desses lábios, tão diferentes dos da minha mãe. Desde esse dia, já nem quero que a mãe me beije. É um beijo tão diferente. Ai! Se eu soubesse para o que sirvo, como arde o meu sangue, se esses grandalhões entendessem o que eu sinto sem palavras. E sofro por sentir e não ter quem me ajude. Tudo se passa por eu ter a idade que tenho, um puto pequeno. Útil só para estudar e fazer o que mandam em casa. Ou ler livros de trabalho de escola, ou ver televisão às tardes. Ou ver histórias no cinema, que eu gosto, como a de Colombo. Aventuras da História, essas que não me explicam a História do meu corpo. Que começa cedo nas nossas vidas. Bem mais cedo do que os pais gostariam de aceitar. Que os professores, aceitam. Que os Padres e o raio dos que denominam o seu saber Direito Canónico, dizem: até à puberdade, toda criança é um ser inocente para ser orientado a viver com os outros.



Como? senhor leitor . Se não junto palavras com sentimentos ninguém pensa que eu também penso. Nem sabe que eu também sinto. Nem constroem uma conversa de casa para, docemente falar dos meus sentimentos. Essas conversas que tenho da rapariga, às vezes, do João outras, do meu irmão tantas, da senhora que toma conta de nós, quando a mãe deve estar ausente. E que eu espreito pelo espelho quando ela muda de roupa. E no espelho, se reflectem essas grandes mamas que detesto, tão pouco semelhantes às da rapariga dos meus amores…e desejos…



Nota: aula proferida aos meus discentes de Etnopsicologia da Infância, disfarçadas com palavra elípticas, porque esses adultos não tinham o hábito de falar publicamente destes temas, até a segunda o terceira aula ao perceber que não me escandalizava, bem ao contrário, ensinava-lhes como tratar as suas crianças. Ideias retiradas dos cadernos de trabalho etnográfico dos sítios pesquisados por mim, especialmente das notas escritas no Diário de Yarín Contardo, Pencahue, Chile; do Diário do Joel Ferreira, Vila Ruiva, Portugal, e de Pilar Medela, Vilatuxe, Galiza, diários que guardo comigo e outros tantos, que falta espaço.





Conclusão

Faz anos que estudo crianças. Elas ensinaram-me nos seus jogos e brincadeiras, nas suas confidências, nos seus sonhos, no seu agir quando eu, observador feito sombra, olhava para elas, sem ser visto. Quando aprendi a ver, ouvir e calar e a assistir à catequese que pouco diz, e às aulas que não falam dos assuntos que a estas crianças, acontecem. Muito se fala delas e do trabalho por jornadas, e do seu corpo mercadoria a ser vendida, pelas teias da pornografia. Quando aprendi a ouvir os pais que de tudo falavam, excepto do sentir erótico e emotivo das crianças. Conversas úteis para se falar enquanto os filhos são ainda novos e devem aprender a usar o seu corpo, mas raramente como seres autónomos e individuais, que desenvolve o corpo acompanhado pelo pensamento. Premissa horrorosamente cartesiana que todo investigador qualitativo, detesta. Investigador que também foi criança e lembra a sua infância. Adultos que sabe retirar dos factos, as lembranças, sem fazer da troca de opiniões, mais uma pesquisa, mais outro assunto, que confronta os adultos nos direitos humanos dos mais novos. Como Mozart soube fazer na sua ópera Apollo e Hyacinthus no seu Salzburgo de 1776, aos 11 anos de idade. Metaforicamente, há muitos Wolfangs que imaginam o amor, o carinho e a paixão, com a epistemologia que este rapaz soube fazer apesar das contrariedades do seu pai e dos encarregados da música na Corte do Cardeal Príncipe Colloredo, o seu patrão, mandado a boa parte quando o ofendeu, mostrando, ao se vergar para cumprimentar o público, as partes de trás do seu corpo. Facto que as crianças hoje fazem porque os adultos são, metaforicamente também, Colloredos que não percebem que a pequenada não é adulta de sentimentos que não identifica e desabafa com raiva contra os seus adultos. Ou fica a dar voltas ao seu pensamento fantasioso o que é que será o que sente quando sente o seu sangue ferver e os seus genitais, humedecer. Por um homem ou por uma mulher. Um Ego por um Outro que, já cedo, começa a retirar do seu lar, ao preparar para viver no social. Que entra no Século XXI com os mesmos princípios sobre a infância, debatidos já no Século de Rousseau e de Freud. Não doenças, mas formas naturais de agir que o adulto não sabe aceitar ao conceber sua criação, como pequeno que não sabe. Inocente do mais importante saber que todo ser humano, de toda cultura, desde a infância, adquire.

E com estas palavras, síntese do meu novo livro a aparecer em breve, deixo ao senhor leitor pensar e meditar no Verão. Para responder. Todo autor gosta do debate. Este autor, é fervoroso crente que, do debate, nasce o desenvolvimento do saber. Fervoroso em acreditar que não há tema tabu, excepto ideias que a vida social proíbe, diferentes em cada caso e grupo, esses temas que o social proíbe e que, em benefício da infância, é o nosso dever desabafar para conhecer o que os mais novos devem aprender desde a mais terna infância.

Este é, enfim o objectivo científico do que tenho andado a trabalhar com um grupo largo de investigadores pela Europa, África e América Latina: Antropologia da Educação, que defino como a procura da epistemologia da criança por baixo do que o adulto quer definir para as crianças, das aparências do que se vê, o entendimento das ideais da miudagem no processo educativo, processo de ensino e aprendizagem dentro da normal interacção social.
publicado por Carlos Loures às 02:00
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Sexta-feira, 24 de Setembro de 2010

O Mistério da camioneta fantasma, de Hélder Costa - 5

(Continuação)

Cena 5

1ª reunião dos conspiradores

(Reunião de conspiradores monárquicos. Padre Lima, Gastão de Matos, Carlos Pereira, Abel Olímpio ,Rudolph, agente alemão)

Gastão de Matos – O nosso movimento está mais forte do que se julga.

Carlos Pereira – Mas eu não vejo os pequenos comerciantes e industriais a reagir, não vejo essa gente a lutar pela monarquia.

Gastão de Matos – Não lutam pelo Rei, mas calam-se se a gente ganhar. Para esses, basta dar-lhes umas encomendas de meia tijela e começam logo a dizer que somos os salvadores da Pátria! (Risos).

Carlos Pereira – não tenho a certeza disso.

Gastão de Matos – é porque anda distraído. Essa gente que veio da ralé tem ódio aos mais pobres porque eles lhes lembram o buraco de onde sairam. É por isso que se juntam a nós; invejam-nos, mas andam da mão estendida à procura da migalha. E também querem mais polícia para os defenderem dos que são mais pobres que eles!

Carlos Pereira – oh Gastão!

Gastão de Matos – ainda não acabei. É por isso que nós, que não passamos de meia dúzia, mandamos nisto tudo.

Carlos Pereira – mas há revoltas na populaça.

(Ciclorama – carruagem ,chicote, som. Figura de cartola)

(Som de aldraba. Entra Rudolph)


Gastão de Matos – estávamos a dizer que o nosso movimento está mais forte…

Carlos Pereira - não tenho a certeza disso.

Rudolph - A dificuldade tem a ver com o dinheiro com que se compram as consciências. Pela Europa, ninguém aceita a situação portuguesa. O horrível crime dos assassinatos do rei D. Carlos e do príncipe assustou as monarquias. Todas nos querem ajudar e serão extremamente gratas em relação aos portugueses que conseguirem derrubar este regime. A situação tornou-se insustentável, principalmente depois da morte do nosso grande amigo Sidónio Pais.

Há dinheiro, muito dinheiro...

Gastão de Matos – Meu caro Rudolph, o dinheiro é indispensável, mas talvez precisemos de nos convencermos a nós próprios.

Rudolph – O Rei de Espanha também quer ajudar-vos... mas aqui não estão todos convencidos?

Gastão de Mato - Temos que ser realistas. Um golpe monárquico, é hoje completamente impossível. Os nossos grandes homens estão em Espanha, exilados. Outros fugiram para mais longe, até para o Brasil. Onde já encontraram apoios e empregos que os fazem desistir do regresso e da luta pela regeneração de Portugal.

Carlos Pereira– É uma vergonha nacional se não há homens capazes de atacar os inimigos da pátria.

Rudolph – Há dinheiro para pagar. Até os Estados Unidos querem ajudar!

Carlos Pereira – Eu quero que os vingadores sejam pagos. Mas bem pagos. Para evitar que quando a gente triunfar, nos venham pedir situações especiais e de favor. Até porque esses que hoje trabalham para nós, mais tarde podem trabalhar para eles.

Gastão de Matos – É isso mesmo, Carlos Pereira, é isso mesmo. Depende da maquia que receberem.

(toque de aldraba)

Carlos Pereira – É o padre Lima.

C. Pereira( risos) Vá abrir, vá depressa. Não faça esperar a voz do Senhor.



(Entram Padre Lima e Abel Olímpio, “Dente D’Ouro”)

Padre Lima – Boas tardes, muito boas tardes.

Vozes – Padre Lima, como vai? Como vão as ovelhas do seu rebanho? Deus vos tenha em boa guarda.

Padre Lima – Trouxe comigo um rapaz de muita confiança. É da Marinha, cabo, de toda a confiança. É de Estivais, Moncorvo, da minha terra. Trouxe-me umas alheiras. O meu pai enviou-mo, falámos, está de acordo com o que a gente pensa, e disposto a colaborar.

Gastão de Matos – Com certeza que precisará de dinheiro.

Abel Olímpio – Não é bem para mim, mas convinha ter alguns escudos para dar na Armada. Para saberem que eu não os estou a enganar.

Carvalho – E eles, não o enganam?

Abel Olímpio – A mim? Ao Abel Olímpio? Ao Dente D’Ouro?

C. Pereira – Você é homem rijo, vê-se logo.

Abel Olímpio – Muito obrigado, meu senhor. É a minha fama.

Gastão de Matos – Então faça provas disso, que não se há-de arrepender.

Abel Olímpio – Eu já sei o que os senhores querem, que o meu amigo senhor padre Lima, já me disse.

Gastão de Matos – E percebeu bem?

Abel Olímpio – Temos de rebentar com os malandros que estragaram isto tudo.

Gastão de Matos – Está bem... (risos)... mas não vamos fazer nenhum golpe.

Abel Olímpio – Não vamos fazer nenhum golpe?

Gastão de Matos – Senhor Padre, já vi que não lhe explicou tudo...

Padre Lima – Eu julguei...

Gastão de Matos – O senhor...

Abel Olímpio – Abel Olímpio, cabo de artilharia da Armada, nº 2170.

Gastão de Matos – O senhor cabo não vai organizar nenhuma revolução. Está calmo, vai informando os seus homens de confiança, vai sabendo em quem é que deve ter confiança...

C. Pereira – De quem é que deve ir desconfiando...

Gastão de Matos – E espera que o senhor padre lhe diga alguma coisa, lá mais para diante. E agora, pode retirar-se.

Abel Olímpio – Então, muito boa tarde.

C. Pereira – Espere um momento. Senhor Gastão, é melhor levar já algum dinheiro, não acha?

Gastão de Matos – Sim, sim.

(Agente Alemão dá dinheiro a Gastão, este passa a Carlos Pereira que dá ao padre Lima que o entrega ao Abel Olímpio)

Padre Lima –( piscando o olho) Abel, depois faz um apontamento de despesas, para se mostrar a quem de direito.

( Abel Olímpio faz o mesmo sinal e sai)

Gastão de Matos – Senhor Padre, para a outra vez, não nos traga esta gente para as reuniões. Isto não é para qualquer labrego. Está entendido?

Padre Lima – Eu julguei que os senhores gostassem de ver que o trabalho na Armada está a avançar.

Agente Alemão – Mas quem é esta gente?

Padre Lima – É uma grande confusão. Há de tudo, dos vários partidos Republicanos, há comunistas, anarquistas, e nós só precisamos de nos infiltrarmos. E temos o povo mais baixo, mais reles, são capazes de matar a mãe por cinco mil réis.

Gastão de Matos – Não se esqueçam. Nós não vamos fazer um golpe. Nós vamos aproveitar uma das lutas entre os republicanos, e depois empalmamos o movimento. Assim é que se trabalha. Está de acordo?

Padre Lima – Para convencer bem esta gente, é preciso pagar. E se fizéssemos um documento?

C. Pereira – Escreve-se que damos 100 contos, e depois logo se vê.

Padre Lima - Isto é um documento histórico (Começa a escrever)

Agente alemão – Penso que é o caminho justo. Sehr Gut!


( Sai e atira notas para o chão que eles dividem)

(Continua)
publicado por Carlos Loures às 22:30
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República nos livros de ontem nos livros de hoje - 179 e 18 0 (José Brandão)

Sidónio Pais

Ídolo e Mártir da República

Rocha Martins

Bonecos Rebeldes, 2008

Na redacção da Luta, pelas noites quentes de Agosto, o senhor Brito Camacho jogava o bluff no jardim coberto, e pela sua frente, em cumprimentos respeitosos, passavam oficiais, de todas as Armas, alguns fardados, que iam conspirar com Sidónio Pais. O chefe unionista, fingindo-se atento às cartas, enviesava o olhar para essa gente nova que chegava, cheia de fé, e num furor mal contido contra o Governo democrático.

Desde 1913 que se amontoavam revoltas, se excitavam ânimos, se soltavam cóleras, se faziam envolvimentos, de todos os partidos, sempre fracassados, o que enchia de orgulhosa força os detentores do Poder e os fazia aguardar, desdenhosos e audazes, as explosões da rua, para as dominar aumentando o seu prestígio.

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O Sidonismo e o Movimento Operário Português

António José Telo

Ulmeiro, 1977

É inútil realçar a importância dos anos de 1917-1919 a nível da história mundial. Já na história portuguesa, contudo, a sua importância é geralmente desprezada, apesar de os acontecimentos então vividos terem então marcado profundamente todo o século XX português.

Em Dezembro de 1917, Sidónio Pais, oficial do exército praticamente desconhecido, é levado por um golpe militar vitorioso ao lugar cimeiro da política portuguesa, apoiado num amplo bloco de classes possuidoras, e mesmo no proletariado durante os primeiros meses. O que parecia ser mais um vulgar golpe militar não tarda muito em transformar-se numa experiência politica única e insólita em Portugal e mesmo no mundo, cujo total alcance só poderia ser compreendido a posteriori.

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publicado por Carlos Loures às 18:00
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Quinta-feira, 23 de Setembro de 2010

O Mistério da camioneta fantasma, de Hélder Costa - 4

(Continuação)

Cena 4


Ódios e necessidades



(Reunião de senhoras a tomar chá)

Ciclorama laranja, camponeses trabalham em contra-luz)



Condessa de Ficalho (com um rosário) - Deus me perdoe, não posso mais com tanta miséria que se vê aí pelas ruas.

Condessa de Tarouca – É no que deu esta República: crimes, roubos e fome.

Berta Maia – Desculpem, minhas amigas. Porquê acusar sempre a República? A miséria vem de muito longe, das injustiças que a monarquia praticava.

Condessa de Ficalho– Minha querida Berta, sei que é difícil, mas pense um pouco. Quem fez Portugal? Quem conquistou? Quem derrotou hereges? Quem espalhou a fé e o império? Fomos nós.

Condessa de Tarouca – Não é natural que tanto esforço tenha compensação? Queria que distribuíssemos riquezas pelos labregos e pelos cobardes que não derramaram o sangue na faina heróica dos nossos antepassados? Coma! Coma!

Condessa de Ficalho– Onde é que já se viu isso? Queria que os filhos dispersassem a fortuna que os pais lhes deixavam?

Condessa de Tarouca – Que falta de sensatez, minha amiga.

Berta Maia – Deus diz-nos para olharmos para os pobres e infelizes, e para remediarmos as desigualdades deste mundo.

Condessa de Tarouca – e por isso nós fazemos estes chás de caridade.

Condessa de Ficalho– E o que fazem os republicanos, os bolcheviques, quando nós queremos ir por esse caminho?

O que fizeram ao Sidónio Pais que tinha criado a sopa para os pobres e que, abençoado por Deus, ia pelos hospitais confortar os doentes da pneumónica?

Abateram-no com um tiro, como se faz a um cão raivoso.

Condessa de Tarouca – Berta, você sabe que isso foi um crime. Mataram um santo, e um belo homem.

O seu marido, o comandante Carlos da Maia, esteve com o Sidónio...

Berta Maia – Sim, esteve com o Sidónio. Ele, o Machado Santos e outros. Por pouco tempo. A esperança que havia numa política nova, para fazer renascer Portugal, desvaneceu-se rapidamente.

Condessa de Ficalho – Berta! Não me diga que defende aquele crime...

Berta Maia – Não defendo esse, nem qualquer outro crime. (Pausa). Eu nunca quis ser feliz com a infelicidade dos outros. E o meu marido, no dia 5 de Outubro, disse à sua mãe que estava feliz por não ter matado ninguém. Na minha casa só se cultiva o bem.

Condessa de Tarouca - Julgam vocês que fazem o bem.

Condessa de Ficalho– A resposta não vai demorar muito. Deus já nos deu o sinal do milagre de Fátima em 1917.

Berta Maia – A República tem de ser para o bem de todos e acredito que Deus nos guiará no bom caminho.

Condessa de Ficalho– Eu também acredito em Deus, mas nós é que temos que fazer o nosso caminho. Sabe como é que eu tratei da fome na minha casa?

(Condessa de Ficalho em reunião com os criados)

Condessa de Ficalho - como sabem, a nossa casa está com dificuldades. Desde que esses traidores à Pátria nos roubaram terras, vinhas, lagares e cavalos, estamos a viver com muitas dificuldades.

Eles dizem que fizeram essa revolução para vos defender, às pessoas que trabalham e que são exploradas. Mas vocês sabem que o nosso palácio se esforçou sempre por tratar de vocês o melhor possível. Já tinha ajudado os vossos pais e avós e nunca faltou nada aos vossos filhos e netos.

Éramos uma família. Cada um no seu lugar, com respeito, mas éramos uma família.

Hoje, só se ouve falar em ódio e vingança. E isto nunca trouxe nada de bom a ninguém.

O que tenho para dizer, é muito triste.

A minha casa não pode continuar a alimentar tanta gente. Se eu fosse sozinha, mas há os filhos, genros, noras, sobrinhos, primos, como é que isto se pode aguentar?

( murmúrios)

Custa-me muito, esta noite fartei-me de chorar, mas as coisas são assim. E a culpa é desses republicanos que nos vieram tirar o sossego e a paz em que vivíamos.

(murmúrios)

Não querem ir? Mas o que é que eu posso fazer?

Bem, eu pensei numa solução.. Vocês, hoje, os trabalhadores é que mandam no país. Têm empregos bem pagos, as fábricas têm que vos aceitar, mesmo que depois fiquem na falência (ri).

Eu proponho que vocês vão trabalhar e que tragam cá para casa o ordenado que ganharam. Assim, pode ser que eu consiga aguentar as minhas duas famílias, a de sangue e a vossa, que é para mim de grande amizade e muito sacrifício.

(murmúrios)

Não querem, não me digam que já andam influenciados com as ideias desses malandros... Pensem bem. Olhem que a minha casa continua a ser visita de oficiais e de toda a gente que mandava neste país. E olhem que eles não estão parados; estão a organizar a guerra contra esses ladrões e toda a gente sabe que nós vamos ganhar outra vez.

Se vocês se portarem bem, eu protejo-vos nessa altura; mas se começarem com revoltas e recusas e ingratidões para comigo, que tenho sido uma mãe para todos, então ajustamos contas.

(silencio absoluto dos trabalhadores)

De acordo? Assim é que eu gosto de ouvir.

Vá, mexam-se, arranjem trabalho depressa que a casa já não é como era dantes, que aguentava tudo, os que trabalhavam e os que não faziam nada.

Encontramo-nos na missa, que o senhor padre há-de abençoar este acordo entre nós.

E agora, a minha benção...

(Grupo vai ao beija-mão)

Berta Maia – E se eles não quiserem?

Condessa de Ficalho - Berta, Berta, tenha juízo. Perceba que vocês ganharam contra a monarquia por um mero acaso, por um acidente da história...

Nós ganharemos sempre, porque temos a força da tradição, a Igreja apoia-nos, temos séculos de experiência a saber mandar, os criados respeitam-nos e temem-nos. E sabem muito bem que o patrão, o senhor, nunca pode estar na miséria. Até para poderem ter algumas migalhas. E também sabem que se isso acontecer, a nossa vingança será sem dó nem piedade.

Por isso, nos obedecem.

E é por essa razão que eles não ouvem as vossas belas palavras, vos denunciam e se põem ao nosso serviço.

(Continua)
publicado por Carlos Loures às 22:30
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