Talvez Shakespeare pudesse ter formulado a famosa dicotomia deste modo – To have or not to be – thatis thequestion. Para que assim tivesse sido, teria de conhecer a sociedade actual onde, para se ser, para se existir, é preciso ter. Nos nossos dias, introspecções sobre o ser ou o estar? Perda de tempo – uma olhadela à conta bancária resolve a questão. Se tem, é e está. Não tem? Não existe, é como se não estivesse.
E, no entanto, o bom William já vivia na época em que os dados estavam a ser lançados. O protestantismo vinha impor o dever da riqueza, o pecado de ser pobre e de um homem não poder prover todas as necessidades da sua família, por oposição ao catolicismo que defendeu sempre (e persiste) na pobreza como virtude. Esta mentalidade, plantada no Novo Mundo, resultou naquilo que sabemos – uma nação que impõe os seus valores, em última instância a ferro e fogo.
No entanto, no interior da sociedade norte-americana, todos os estigmas que a mentalidade ianque espalhou estão presentes – consumismo feroz e acéfalo, marginalidade, tóxico-dependência, violência, subvalorização da cultura. Tudo o que de nefasto os E.U.A. exportam, existe no seu interior. É o que se chama provar do próprio veneno.
Quando se fala tanto no magno problema do Ensino, pareceu-me oportuno lembrar Être et avoir (Ser e Ter) um filme realizado por Nicholas Philibert em 2002 e interpretado por George López. Vi-o em DVD, não me recordo, mas penso que não foi exibido comercialmente. Conta a história de um ano lectivo numa pequena escola de aldeia, em França. Um jovem professor candidata-se ao lugar e é aceite. O seu objectivo é ensinar, mas um problema se lhe depara – tem de ministrar o ensino numa sala onde há crianças de várias idades (entre os quatro e os onze anos), graus de conhecimento e de educação diferentes, etnias também distintas, pois há filhos de emigrantes.
A maneira engenhosa, metódica, profissional, como resolve o problema (os problemas), constitui uma lição magnífica sobre a arte de ensinar. Há outros filmes como, por exemplo, o «Clube dos Poetas Mortos» que nos chamam a atenção para essa dimensão de qualquer espécie – transmitir os conhecimentos adquiridos ás crias. Generosidade é um conceito humano. Deveria ter dito antes, o sentido da sobrevivência. Só sobrevivem as espécies que transmitem o saber acumulado às novas gerações. Nesta medida o que está em perigo não é a sobrevivência do homo sapiens, é a sua transformação em homo ignarus ou em homo nescius.
No filme de Nicholas Philibert, narra-se de forma exemplar a forma como este professor programava as aulas e as preparava, sempre sem esquecer as capacidades de cada um dos alunos, fixando objectivos, prazos. É evidente que tem consciência de que os mais velhos o deixarão no Verão para acederem ao segundo ciclo, ao liceu.
Sabendo que o acompanhamento aos seus alunos estava limitado no tempo, o professor conversava com cada um deles, ajudava-os a vencer a angústia de enfrentar o grupo nas idas ao quadro e as risadas que cada erro despertava nos que sabiam, com os mais pequenos fazendo eco. O pânico de enfrentar multidões, de falar em público, acompanha-nos muitas vezes até à idade adulta.
Naturalmente que este professor dispunha de autoridade, não enfrentava um grupo disposto a incinerá-lo. Esta sociedade de grandes superfícies, sexo e violência, transpira ódio à cultura. É uma atitude da imbecilidade perante a inteligência, um confronto em que a estupidez procura vencer o saber, tornando-o ridículo e risível. É um sentimento que passa de pais para filhos. O professor enfrenta pequenos energúmenos arrogantes, crianças que podiam ser normais, mas que a falta de educação em casa, substituída pela função deletéria da televisão, transforma em aberrações.
Em «O Clube dos Poetas Mortos», outro exemplo de como ensinar, o professor John Keating, ensaia a sua pedagogia pouco ortodoxa perante um grupo de alunos com características pessoais diferentes, mas não existem exemplares como os que o professores actualmente enfrentam. A exortação do verso de Horácio, carpe diem quam minimum credula postero (Colhe o instante, sem confiar no amanhã), teria nas colmeias suburbanas, uma leitura diferente e de efeitos imprevisíveis, pois os conceitos de fruição são completamente diferentes.
Ter ou não ser. Se não tens um carro topo de gama não és ninguém.
Carlos Loures Talvez Shakespeare devesse ter reformulado a famosa frase de Hamlet deste modo – To have or not to be – that is the question. Para que assim tivesse sido, teria de conhecer a sociedade actual onde, para se ser, para se existir, é preciso ter. Nos nossos dias, introspecções sobre o ser ou o estar? Perda de tempo – uma olhadela ao património e à conta bancária resolve a questão. Se tem, é e está. Não tem? Não existe, é como se não estivesse. E, no entanto, o William viveu a época em que os dados estavam a ser lançados. O protestantismo vinha impor o dever da riqueza, o pecado de ser pobre e de um homem não poder prover todas as necessidades da sua família, por oposição ao catolicismo que defendeu sempre (e persiste) na pobreza como virtude. Não me querendo desviar do essencial, diria que para que o ser se sobrepusesse ao ter era preciso criar pessoas com uma nova mentalidade – educadas em casa, ensinadas na escola, a colocar os valores morais acima dos materiais. Na formação dessa nova mentalidade, a escola teria de assumir um papel central. Quando se fala tanto no magno problema do Ensino, pareceu-me oportuno lembrar Ètre et avoir (Ser e Ter) um filme realizado por Nicholas Philibert em 2002 e interpretado por George López. Vi-o em DVD, não me recordo, mas penso que não foi exibido comercialmente. Conta a história de um ano lectivo numa pequena escola de aldeia, em França. Um jovem professor candidata-se ao lugar e é aceite. O seu objectivo é ensinar, mas há um problema – tem de ministrar o ensino numa sala onde há crianças de várias idades (entre os quatro e os onze anos), graus de conhecimento e de educação diferentes, e de etnias distintas, pois há filhos de emigrantes.
A forma engenhosa, metódica, profissional, como resolve o problema (os problemas), constitui uma lição magnífica sobre a arte de ensinar. Há outros filmes como o «Clube dos Poetas Mortos» que nos chamam a atenção para essa necessidade que todas as espécies enfrentam – transmitir os conhecimentos adquiridos ás crias. É uma imposição do sentido da sobrevivência. Só sobrevivem as espécies que transmitem o saber acumulado às novas gerações. Por isso, o perigo não é a extinção do homo sapiens, é o risco de a sua transformação em homo ignarus ou em homo nescius.
No filme de Philibert, narra-se exemplarmente a forma como este professor programa as aulas e as prepara, sempre sem esquecer as capacidades de cada um dos alunos, fixando objectivos, prazos. Sabe que os mais velhos o deixarão no Verá para acederem ao segundo ciclo, ao liceu e, por isso, conversa com cada um deles, ajuda-os a vencer a angústia de enfrentar o grupo nas idas ao quadro e as risadas que cada erro desperta nos que sabem, com os mais pequenos fazendo eco. O pânico de enfrentar multidões, de falar em público, acompanha-nos muitas vezes até à idade adulta.
O professor dispõe de autoridade, não está perante um grupo disposto a incinerá-lo. Esta sociedade transpira ódio à cultura. É uma atitude da imbecilidade perante a inteligência, um confronto em que a estupidez procura vencer o saber, tornando-o ridículo e risível. É um sentimento que passa de pais para filhos. O professor enfrenta pequenos energúmenos arrogantes, crianças que podiam ser normais, mas que a falta de educação em casa, substituída pela função deletéria da televisão, transforma em aberrações.
Em «O Clube dos Poetas Mortos», outro exemplo de como ensinar, o professor John Keating, ensaia a sua pedagogia pouco ortodoxa ante um grupo de alunos com características pessoais diferentes. Em todo o caso, não existem exemplares como os que os professores dos bairros periféricos de Lisboa, Porto ou Setúbal, enfrentam. A exortação do verso de Horácio, carpe diem quam minimum credula postero (Colhe o instante, sem confiar no amanhã), teria nessas colmeias suburbanas, uma leitura diferente e de efeitos imprevisíveis, pois os conceitos de fruição são completamente diferentes. Porque estamos a falar de duas concepções do mundo diferentes – uma em que os valores humanos, o ser, se sobrepõem ao consumo, ao ter. Outra, em que se não tens não és.
Nota sobre o mais recente filme realizado por Woody Allen - You Will Meet A Tall Dark Stranger
Carlos Loures
No sábado passado, em Cannes, Woody Allen apresentou o seu mais recente filme, a comédia romântica You Will Meet A Tall Dark Stranger, com actores como Anthony Hopkins, Antonio Banderas, Josh Brolin, Freida Pinto, Naomi Watts e Lucy Punch que substituiu a inicialmente prevista Nicole Kidman. No vídeo, podemos assistir a um memento da conferência de imprensa. You Will Meet a Tall Dark Stranger é o quarto filme que Allen roda em Londres, parecendo ter virado definitivamente as costas a Hollywood.
O tema do filme, ainda sem título em português, gira em torno da vida amorosa dos membros de uma família, e das suas tentativas para a tornar menos disfuncional. Isto, à superfície. Sob esta camada visível, subjaz a eterna obsessão de Allen – a morte. Com 74 anos, Woody Allen chega à conclusão de que a velhice não tem graça, nem traz qualquer vantagem, apenas dá problemas nas costas, vai-se perdendo a vista. A idade não nos torna mais inteligentes, nem mais generosos… «Não podem evitar a velhice?», pergunta. Interrogado sobre o que pensa sobre a morte, responde prontamente «- Sou contra!». Um casal divorciado (Anthony Hopkins e Gemma Jones) tem uma filha (Naomi Watts), com uma vida sentimental complexa, onde se cruzam o marido (Josh Brolin) e o dono de uma galeria de arte (Antonio Banderas). O título do filme, que se pode traduzir por “ irá encontrar um homem alto e escuro”, é uma alusão satírica às frases ditas por bruxas e videntes a mulheres que pretendem descortinar o seu futuro amoroso.
Como sempe faz nos seus filmes, Allen chama subtilmente a atenção para a face cruelmente absurda da vida. Por vezes, chega-se ao fim da caminhada e pergunta-se «para quê?», «porquê?». A resposta, dada no filme pela voz do narrador em off é colhida no famoso solilóquio de “Macbeth”:: “A vida é um conto cheio de som e fúria, narrado por um louco, e nada significa”. Na conferência de imprensa de sábado passado, Woody Allen responde a Shakespeare e dá uma solução para enfrentar a falta de sentido da existência: “- A única maneira de sobreviver é mentir, mentir” e acrescentou: “ De contrário, a vida torna-se insuportável”.
Um filme de Woody Allen. A não perder, ainda que seja para discordar dos pressupostos de um homem que provoca gargalhadas, mesmo quando põe tudo em causa.