Terminada a viagem do Estrolabio, boa parte dos seus antigos autores lança-se em nova aventura, por outros mares. Poderão encontrar-nos em http://aviagemdosargonautas.blogs.sapo.pt/. Prometemos que todos serão bem-vindos a bordo, sejam marujos inexperientes ou velhos lobos do mar.
tudo porque depois do texto da Andreia Dias ficámos apaixonados pelo batráquio. Estamos mesmo convencidos de que em cada sapo há um principe pronto a revelar-se (ou vice-versa).
Leiam este belo texto da Andreia e digam lá se não temos razão:
Sapo-parteiro-ibéricoComo prometido, desta vez falo de sapos. Augusta, perdão…
Certa vez recebi um e-mail que se intitulava “Como compreender um biólogo”. Entre outras coisas referia: “ […] entenda que o conceito de beleza de seu amigo biólogo é um tantinho diferente do seu. Sapos verdes, gosmentos e verruguentos são lindos.
Escorpiões, aranhas, opiliões (hein??), ay-ays são todos lindos. Tente não vomitar quando ele te mostrar as fotos da última necrópsia feita num golfinho […].
E este sapo… não sei se será encantado, mas é encantador… este foi o meu único encontro com um sapo-parteiro-ibérico. O meu pai, a quem devo o “bicho da bicharada”, tinha-o encontrado timidamente oculto entre paus e lama. Ali estava, o pobre coitado “baby-sitter”, à espera que o deixassem em paz… o tempo suficiente para tirar a fotografia. Admitamos que lá fotogénico é!
Por momentos apeteceu-me beijá-lo, não fosse às vezes transformar-se em príncipe… mas atempadamente me lembrei que se carregasse com ele filhos machos, poderiam transformar-se todos ao mesmo tempo em muitos príncipes o que seria bem mais complicado do que um só…
O Sapo-parteiro-comum é uma espécie semelhante. Ao contrário do Sapo-parteiro-ibérico, a sua distribuição em Portugal é praticamente contínua em toda a região Norte e Centro até ao rio Tejo (apresentando distribuição fragmentada numa zona litoral desde o Baixo Vouga até Sintra). Distinguem-se, por exemplo, pelo facto do Sapo-parteiro-ibérico apresentar dois tubérculos palmares e o Sapo-parteiro-comum, três.
É uma espécie endémica do Centro e Sudoeste da Península Ibérica e em Portugal apresenta uma distribuição praticamente contínua a Sul do rio Tejo (excepto península de Setúbal e pequena orla do litoral algarvio).
A reprodução ocorre no Outono e na Primavera, altura em que os machos cantam à noite. Após fecundação, os machos enrolam os cordões de ovos nos membros posteriores. O mesmo macho pode transportar a postura de várias fêmeas. Após 3 semanas de incubação, os machos deslocam-se até uma massa de água e os ovos eclodem de forma sincronizada. As larvas completam a metamorfose em 3 a 5 meses.
Os adultos capturam presas vivas: formigas, caracóis, escaravelhos e aranhas. As larvas alimentam-se essencialmente de matéria vegetal e de invertebrados aquáticos.
As principais ameaças são a alteração e destruição dos habitats onde possa ocorrer a espécie, e a presença de predadores introduzidos. As medidas de conservação passam pela preservação de charcos e ribeiros de pequena e média dimensão.
Curiosidades: É conhecido como “parteiro” pelo facto de ser o macho quem transporta os ovos nas costas, até que estejam prestes a eclodir, altura em que os deposita na água.
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Carla RomualdoSua Alteza Real,
Queridíssimo Príncipe
Fosse eu uma sapa sensata, cumpridora do pouco que se espera de uma criatura da minha espécie, e jamais me atreveria a dirigir-me a Vossa Majestade.
Saiba, porém, Vossa Alteza que tentei certa vez chamar-vos a atenção, quando, a caminho da fonte de S. Bento, passou a real comitiva junto ao meu pequeno charco. Mas a passarada andava inquieta nesse dia, com uma invasão de gaivotas dadas à ladroagem, acabadas de chegar do litoral, e o ruído era tanto que Vossa Alteza não pôde ouvir o meu humilde coaxar. Afastastes-vos com passos rápidos, e com tamanha pressa, que das vossas reais botas saltaram uns salpicos de lama, que me acertaram em cheio.
Sou, como todas os seres que conheço, vossa súbdita. Habito no charco abrigado entre o olival e a fonte, e desde o qual, para minha fortuna, se avista o vosso palácio. Habituei-me a ver-vos percorrer o pátio de entrada, assomar à varanda do vosso quarto, sair cavalgando pela manhã, e de tanto assim vos ver, formoso e intrépido, enamorei-me de Vossa Majestade.
Bem sei, Alteza, que vós sois humano e eu anfíbia, e que nunca se viu uma união assim desde que o mundo é mundo. Sei que a muitos da vossa espécie repugnam os meus semelhantes, mas por certo não esquecerá Vossa Alteza que somos nós a afastar dos vossos jardins os malévolos moscardos ou os calculistas gafanhotos.
Diz-se que no vosso palácio abundam os quadros vindos de países longínquos, os ornamentos de ouro, os ricos tecidos, e as mulheres com vestidos de seda vaporosa e ombros nus, e que com elas dançais noites sem fim, e que todas por vós se apaixonam, afinal.
Não serei formosa, como essas damas que ornamentam os vossos bailes, admito até que possa repugnar-vos a minha pele verde e rugosa, a longa língua peçonhenta, ou o meu papo inflado. Tenho visto que aos humanos causa repulsa ver-me caçar o meu alimento e que vêem com nojo como estendo, sem que o corpo me estremeça, a língua elástica, e com ela paraliso num abraço mortífero qualquer insecto que me pareça apetitoso. Mas tampouco me parecem bonitas de ver as vossas caçadas - um alvoroço de gritos, tropel de cavalos e tiros - e menos bonitas ainda as figuras dos caçadores (entre os quais Vossa Majestade), quando, ao fim da manhã, regressam com os cintos carregados dos cadáveres dos meus irmãos do bosque. Pouco custará, afinal, a cada um se ambos desviarmos o olhar das imperfeições do outro, não vos parece?
Alteza, se eu pudesse mostrar-vos as noites de Verão, quando o charco se aquieta, e as águas estagnadas reflectem a cintilação das estrelas… Se vos sentásseis a meu lado, eu cantaria toda a noite, e até deixaria passar incólume algum mosquito que se atrasasse do passeio, para vos poupar o enojo. Nas manhãs de Primavera, poderíamos atravessar sem pressas o souto, aspirando o ar ainda húmido da alvorada, e eu, instalada no vosso ombro protector, deixar-me-ia levar por Vossa Senhoria. Na dança dos nenúfares, exibiria para vós toda a minha graciosidade, saltitando, com harmonia mas sem descurar a destreza e a audácia, de nenúfar em nenúfar, arriscando, a cada salto, o brio de uma sapa ante o seu enamorado.
E vós, Majestade, levar-me-íeis, enfiada no bolso maior da vossa casaca, a ver os grandes tesouros das terras reais, e decerto nos deteríamos frente ao maior de todos, a ala das íris no vosso jardim. E, quem sabe aí, à sombra do seu intenso azul, poderíeis olhar-me nos olhos e ver que há mais, bem mais em cada criatura do que a máscara que lhe tocou envergar.
Tenho, para oferecer-vos, o meu amor, que pouco vos pede, e este meu acanhado mundo, que vos pertence por inteiro e no qual reinais.
Conto que a vossa magnanimidade saberá perdoar a ousadia desta missiva e que o vosso coração ditará a resposta que aguardo com ânsia.
Da sempre vossa,
Sapa