Quarta-feira, 5 de Janeiro de 2011

Os cambaleantes - por Carla Romualdo

Alguém duvida que a mera forma como se caminha pelas ruas constitui, por si só, todo um manifesto de uma situação vital? A saúde, a harmonia familiar, os sobressaltos económicos, o estado dessa coisa etérea a que alguns chamam espírito, tudo se revela nas passadas. E, por isso mesmo, os desapossados da sorte, aqueles que, por qualquer que seja a razão, se encontram diminuídos face aos outros, facilmente se distinguem.

Andam devagar, consumidos pela depressão ou pela crise renal, raramente levantam os olhos do chão, a não ser para espreitar a custo o mundo que avança apressado. Ou para reconhecer um semelhante, que se deteve no outro lado da rua, e com ele trocar um olhar cúmplice.

Tendo ficado limitada recentemente, e por razões que pouco interesse têm, a uns passinhos de gueixa, dei por mim num novo mundo, onde a pressa de pouco vale. Abranda-se o passo, olha-se para os lados a cada paragem, descobrem-se as fendas que se vão abrindo nos prédios da baixa, espreita-se para dentro do tasco que vai cumprindo a sua função social inestimável, reconhecem-se traços novos nos rostos olhados diariamente: o velho doente dos pulmões que passa o dia a cravar cigarros, a lojista avinagrada que não gosta que as crianças encostem o rosto ao vidro da montra, o guardião da sala de bilhar, que cumpre a função com a seriedade de quem defende um palácio.

Ah, a irmandade que se descobre entre os que vão abrandando, que vivem atormentados pela sufeca, que sofrem de reumatismo, que vêem o mundo a andar à roda e têm de se encostar nas bordas. Trôpegos e lentos, vêem o mundo através de uma lente de ampliar.

Lição aprendida, agora que retomei o passo estugado, procuro pretextos para abrandar.

publicado por CRomualdo às 20:00
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Segunda-feira, 30 de Agosto de 2010

A Maria - A Maria nunca mais apareceu

Adão Cruz

Os olhos, vindos do outro lado do mundo, fundos de ausência, casavam o branco e o negro para dizerem o que a boca não conseguia. O nariz afilava de um só traço o rosto magro, e os cabelos errantes fugiam da testa, cada pedaço para seu lado. A pele transluzia uma imagem por detrás dos vidros, imagem baça do avesso da vida.

Uma dor subtil desenhava os lábios maduros, finamente trémulos, como se estivessem prestes a chorar. Nunca alguma lágrima por eles correu ou voou algum beijo. Apenas o cigarro acendia e consumia a sua virgindade.

A Maria olhava-me sempre fixamente, olhos cravados nos meus como que a dizer: - tu entendes-me, tu és capaz de me compreender -. Ela percebia o sim do meu silêncio por baixo dos olhos vencidos.

Conheci duas mulheres iguais à Maria, fotocópias da Maria, ambas se chamavam Maria, uma brasileira e outra francesa, uma pisava o teatro, outra o anfiteatro. Inquilina de soleiras e vãos, a Maria pisava a grande cidade da noite.

As mulheres da fama e da ciência derivavam a vida por entre a lanugem dos cardos e a tangência do sentimento. A mulher da vida era vertical e secante como folha de piteira. A Maria mijona não tinha idade nem tempo, nem antes nem depois, era apenas instante.

Nunca se sentara na mesa do canto fugindo de si mesma. Escolhia sempre a mesa central, desafiando os olhares, vidrando o espaço em seu redor. Comia a sopa, o prato de sempre, como quem tocava violino. Apesar da mão trémula nem um pingo deixava cair no desbotado regaço, sumido de cores pelo uso e abuso. Se moedas cresciam da sopa não dispensava o brande, sua única bebida.

Por detrás do corpo sujo de Maria mordiscava uma beleza intrigante. Tivesse ela banheira e emergiria da espuma, como sereia das águas. Penso que nunca vi a Maria fora deste retrato, para cá da sombra. Por outro lado, tenho a certeza de que já dormi com ela...ou terá sido um sonho?

A Maria nunca mais apareceu. A última vez que a vi não tinha olhos nem boca nem cigarro. Não tinha sopa nem brande, apenas falta de ar. Engolira o violino e a música era uma dispneia sibilante, cântico fúnebre gemido pelas entranhas.

Toquei-lhe no ombro e ela percebeu que eu queria levá-la. Levantou a ponta de um sorriso e esboçou um gesto negativo com a mão. Afastei-me com a sensação de que tinha profanado um sacrário.

A Maria nunca mais apareceu.
publicado por Carlos Loures às 11:00
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