Sábado, 19 de Fevereiro de 2011
Sílvio Castro
Almeida Garrett é, quase certamente, o primeiro romântico na literatura portuguesa que incorpora a uma inicial predisposição individualista determinada consciência política. Daí a sua particular importância no quadro do Romantismo social português, para o qual traz marcantes contribuições.
Escritor de evidente formação árcade e iluminista, ele assiste à passagem do tempo setecentista, marcado particularmente pela política cultural do regime pombalino, àquele oitocentista, começado pelas crises institucionais que principiam com o reinado de D. Maria I, se alarga com a invasão napoleônica, o fim da mesma, a revolução de 1820 e a fase do “vintismo”, até chegar às lutas fraticidas culminadas com a vitória de D. Pedro IV e correspondente restauração de uma certa estabilidade nacional.
O jovem Garret, partindo de suas raízes neo-clássicas, vive intensamente o período da revolução liberal e da passagem àquela outra, do Romantismo, revelando-se extremo partecipante de ambas e, consequentemente, sempre traduzindo uma personalidade fortemente capaz de ação política e de criatividade artística. Serão essas qualidades que lhe permitirão absorver as novidades internacionais do novo tempo romântico, ao qual dá uma contribuição historicamente essencial, inaugurando-o na literatura portuguesa com a publicação, em 1825, de seu poema Camões.
Nos versos do Camões, ainda que mais ligado às lições românticas inglesas,
Garrett traduz em maneira coerente a tópica “Nação“, e derivadas, próprias da doutrina schleguiana. A idéia de “Pátria“, enquanto valor sentimental, de grande intensidade civil, com o poema garrettiano entra a fazer parte da essencialidade do Romantismo nacional.
Filho da alta burguezia, o autor de Adozinda revela, entretanto, desde sua juventude, ideais revolucionários nascidos de clara personalidade forjada nas lições do Liberalismo mais avançado. Ainda aqui, nas manifestações de seu alto espírito liberal, Garrett traduz a sua inicial formação árcade. O mesmo Iluminismo setecentista que o conduz à prática literária, serve-lhe de guia na formação de sua personalidade política.
O Liberalismo garrettiano é constantemente atento e revolucionário. Nos momentos mais dramáticos da vida do país, nas primeiras décadas do difícil século XIX, logo depois dos atormentados tempos napoleônicos, o civismo ativo de Garrett sabe manifestar-se de forma tal a marcar a história do pensamento político português. O seu espírito de participação demonstra excepcional exemplo na sua Carta de guia para eleitores em que se trata da opinião pública, das qualidades para deputado e do modo de as conhecer, feita para orientação do eleitor partecipante ao pleito de 1826, em plena efervecência dos novos tempos de D. Pedro IV.
O ativismo político de Garrett, encontra um seu correspondente literário nas páginas inovadoras de as Viagens na Minha Terra. Nessas páginas marcantes da literatura portuguesa, umas das tópicas mais típicas do Romantismo internacional, a da “questão da língua”, aliada aos conceitos de “Pátria” e de “Nação”, se traduz em uma obra-prima. A tópica é manifestada de modos diversos nas várias literaturas nacionais, conforme às correspondentes condições linguísticas: fortemente distinta no Manzoni dos Promessi Sposi, produto de uma decidida escolha por uma das muitas expressões dialetais da península itálica, ao par de quanto não fosse a comedida ação linguística da operação garrettiana, ou da ainda mais medida operação da prosa de José de Alencar, no Romantismo brasileiro. Ainda que quase somente limitada a um uso estilisticamente literário da linguagem oral e da fala popular portuguesa, com rápidas ousadias no plano lexical, as Viagens demonstram uma consciente modernização da língua em confronto com as pedagógicas fixações promulgadas pela não-indiscutível reforma pombalina:
“Também são chegados os outros companheiros; o sino dá o último rebate. Partimos.
Numa regata de vapores o nosso barco não ganhava de-certo o prémio. E se, no andar do progresso, se chegarem a instituir alguns ístmicos ou olímpicos para êste gênero de carreiras – e se para elas houver algum Píndaro ansioso de correr, em estrofes e antistrofes, atrás do vencedor que vai coroar de seus hinos imortais – não cabe nem um triste minguado épodo a êste cansado corredor de Vila-nova. É um barco sério e sisudo que se não mete nessas andanças.”
Quinta-feira, 14 de Outubro de 2010
Carlos LouresA primeira vez que fui ao Porto, viajei com os meus pais, pois era um miúdo pequeno, com seis ou sete anos. Chegámos num sábado, numa manhã de Primavera, fria, mas luminosa. Saímos do comboio na Estação de São Bento e logo fiquei maravilhado com as diferenças – o empedrado das ruas, os eléctricos não eram amarelos, mas acastanhados e (pareceram-me) mais largos do que os de Lisboa, os prédios escuros… Via muito cinema e a Baixa do Porto, pareceu-me um cenário londrino. O incêndio da guerra lavrava ainda. A falta de combustível obrigava os carros a usar uns depósitos de gasogénio. Já os tinha visto em Lisboa, mas pareceu-me haver mais no Porto. Tudo era ou me parecia diferente.
O meu pai era o único que conhecia a cidade (acho que a visitara anos antes de casar com o seu grupo de escoteiros) e, orgulhosamente, servia de cicerone. Mas não a conhecia tão bem como dizia. No dia seguinte, um domingo, andámos muito a pé e quando quisemos regressar à pensão ou pequeno hotel da Avenida dos Aliados tivemos de apanhar um táxi (equipado com os tais depósitos de gasogénio). E foi ao taxista que, quando o meu pai se queixou de que a cidade estava muito grande, usou uma expressão que iria ouvir pelos tempos fora (com registos diferentes): «O Porto é uma nação!».
Passei pelo Porto de comboio numa viagem que, mais de dez anos depois, adolescente, fiz a Vigo. No regresso, no mesmo compartimento viajava um casal inglês. Eram gente “entrada” na minha perspectiva o que queria dizer com 40 anos ou mais. Conheciam bem a cidade e vieram-me a fazer o seu elogio. «Cidade muito romântica» foi a frase que fixei da longa conversa. Eram professores, gente com cultura acima da média e a expressão «very romantic» pode ter tido uma abrangência que na altura não captei – pois interpretei no sentido corrente (é de facto uma cidade romântica) e não na acepção erudita de cidade com muita arquitectura do romantismo, sobretudo do realismo tardio – mas não só, pois o Porto é rico em barroco, neo-gótico, na arquitectura do ferro (as duas pontes), arte nova (com o esplendoroso Café Majestic).
E passado pouco tempo fui ao Porto num grupo de estudantes – estive ontem a ver as minhas fotografias com a torre dos Clérigos atrás (não fosse alguém duvidar) e fui ao então recente Estádio das Antas – tenho foto também. Um colega portuense que fez de cicerone, elogiou tudo. Houve uma altura em que já não sabia o que mais dizer e elogiou os passeios em cimento, «muito mais bonitos do que os de Lisboa» (não são mais bonitos, mas a minha mulher, um dia em passeávamos pelo Porto, gabou-mos noutra perspectiva: os saltos altos não se prendem entre o empedrado).
Na Praça D. João I, o “cicerone” mostrou-nos orgulhosamente um «fura-nuvens», com nove andares ou assim – em Lisboa chamávamos «arranha-céus» ao prédio da Praça do Areeiro e tínhamos inveja de Madrid onde na Praça de Espanha havia um verdadeiro arranha-céus – 24 andares, salvo erro. O colega de que não me lembro o nome, mas que aparece numa das fotos, ao fim de um dia de deambulação pela cidade, nos comentou - «O Porto é uma nação!»
Depois, ao longo da vida estive no Porto com frequência, as mais das vezes em serviço. Mas nessas deslocações reunia sobretudo com gente da literatura (fui mais do que uma vez a casa do Professor Óscar Lopes, num perpendicular da Avenida da Boavista, reuni uma boa meia-dúzia de vezes com o Professor Carlos Alberto Ferreira de Almeida, que morava em Gaia, perto da Avenida da República, mas que quase sempre vinha ter comigo ao Majestic…
O Porto é uma cidade única. Mais tipicamente europeia do que a meridional Lisboa, brumosa e não luminosa como a capital, é bela de outra maneira. São duas cidades muito bonitas e a beleza de uma não ofusca a da outra, nada impedindo, no entanto, que se goste mais de uma delas, sobretudo se for aquela em que se nasceu. As comparações são, geralmente, tendenciosas e disparatadas (ia a dizer estúpidas). Infelizmente, ouço-as não só na boca dos ranhosos das claques, mas feitas por pessoas inteligentes ou, pelo menos, cultas.
Quando chego (sobretudo se vou de comboio, porque de carro tenho de atravessar subúrbios de pesadelo que impedem, ou prejudicam, o encantamento), recordo sempre a minha primeira viagem, há tantos, tantos anos, e a agradável surpresa de percorrer um mágico caminho ao encontro da infância. O Porto não será uma nação – para mim é um universo.
Domingo, 22 de Agosto de 2010
Sílvio CastroCesário Verde, nascido em 1855 e morto em 1886, representa um singular fenômeno no quadro geral do romantismo português. Com ele a poesia de Portugal ganha improvisamente uma modernidade desconhecida. Seus poemas, mesmo participando de uma longa tradição, rompe com os tempos e se projeta muito além de uma época pessoal, ainda que sendo principalmente fruto dela.
Filho de uma rica família de comerciantes, desde muito cedo ligou a própria existência à atividade do pai, para nela criar e desenvolver uma personalidade quase anônima, mas que cedo se projeta como uma revolução. Nasce assim um intelectual e um criador lírico que, aparentemente integrado a um ambiente burguês insuperável, de natureza mercantil, dele jamais faz parte.
A poesia de Cesário nasce no silêncio da vida que realmente não é aquela sua aparente. Mas os poemas que ele vai criando na sua curta existência lentamente o projetam num novo mundo, fantástico ainda que imediatamente real e reconhecível. Nasce com esta poesia um novo sistema de linguagem, inicialmente em contraposição a qualquer possibilidade de receptividade, mas que cedo irá desvendar a própria força no forjar diálogos e sentimentos novos.
A língua poética do poeta revolucionário é feita com a aparente sintaxe da
comunicação comum, na qual o poeta intromete a genialidade criadora de novos ritmos e de morfemas que corroem qualquer forma de indiferença e incompreensão. Novos mundos são então projetados aos que desde logo sabem penetrar na complexidade de uma nova semântica poética, na qual a metalinguagem é presença copiosa.
Partindo da tradição romântica dos sentimentos mais pessoais e da participação
serena com a natureza, o poeta cedo alarga o seu cenário sentimental ao plano urbano. A partir daí, com o surgir de uma Lisboa inédita aos ritmos poéticos portugueses e ao gosto geral de uma época, a poesia de Cesário Verde se faz revolucionária. A aparente dicção prosaica se revela fonte de invenções e de liberdade. Com ela, a receptividade se faz conquista de liberdade partecipativa.
Tudo se origina das mais profundas raízes do poeta, alimentadas de forte universalismo e de uma mágica capacidade de criar mundos inicialmente encubertos aos olhos, prontos a serem vividos na perfeita receptividade.
O sentimento do mundo do poeta é universal, ainda que sempre ligado ao seu mundo
urbano. Este se faz renovador a cada canto de uma praça ou à descoberta da gente mais simples que caminha pelas ruas pedregosas:
“ Nas nossas ruas, ao anoitecer,Há tal soturnidade, há tal melancolia,Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresiaDespertam-me um desejo absurdo de sofrer...............................................................................
Toca-se as grades, nas cadeias. SomQue mortifica e deixa umas loucuras mansas!O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!..............................................................................
E os guardas, que revistam as escadas,Caminham de lanterna e servem de chaveiros;Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.E
, enorme, nesta massa irregularDe prédios sepulcrais, com dimensões de montes,A Dor humana busca os amplos horizontes,E tem marés, de fel, como um sinistro mar!”O mais consciente hino tradutor de “O sentimento dum ocidental” português é significativamente dedicado ao poeta que comovia Portugal com os seus gritos pela liberdade e a favor dos simples, dos humildes, dos desgraçados: Guerra Junqueiro. Como acontece com o poeta de Os Simples, a complexa e revolucionária poética de Cesário Verde é ela igualmente um canto da liberdade sempre reconhecida. Com esse canto a poesia de língua portuguesa se projeta no futuro enquanto um tempo real e concreto.
A partir da poesia de Cesário Verde o romantismo cumpre um longo percurso, atingindo o mais amplo sentido social e desde então fazendo-se uma constante no processo de evolução dos tempos criativos. Com ela estavam abertas as portas de todos os realismos.
Sábado, 21 de Agosto de 2010
Sílvio CastroPossivelmente Guerra Junqueira será o mais popular poeta do romantismo comparticipante do social em Portugal, não somente preso pelo seu público nacional, mas igualmente entre os brasileiros de seu tempo. No Brasil como que se ombreia com Castro Alves, o mais amado dos poetas românticos brasileiros; ambos, Junqueiro e Castro Alves guiados pela exuberante linguagem lírica de origem huguiana.
Guerra Junqueiro vive de certo modo à parte, mas intensamente, as experiências da Geração de 70. Nele poesia e consciência política se abraçam em forma absolutamente pessoal.
O lirismo do autor de Oração à Luz resulta de uma formação fortemente religiosa, cedo transformada em experiência pessoal intensa. A religiosidade juqueiriana se aproxima então da participação com a natureza, dela se reapropiando e fazendo de tudo uma própria metafísica.
As dimensões de uma religiosidade panteista original e a logo adquirida consciência política da realidade social, em que vive, fazem de Guerra Junqueiro um poeta especial. Surgem assim vozes aparentemente contraditórias, mas eficazes: cantos feitos de subjetividade profundamente religiosa e uma viva batalha contra o poder temporal da Igreja e as deformações produzidas pelo mesmo no ambiente social, sob uma semântica poética resultada da linguagem corrente e de forte espírito satírico, como no poema “O Baptismo”:
Batipzais: arrancais dum anjo um satanás.
Desinfectais Ariel banhando-o em aguarrás
De igreja e no latim que um malandro expectora.
Dizeis à noite – limpa a túnica da aurora,
E ao rouxinol dizeis: pede a bênção da c’ruja.
Dais os lírios em flor ao rol da roupa suja.
Representais a farsa estúpida e sombria
Dum cônego a lavar um astro numa pia,
Finalmente extrais da inocência o pecado,
Que é o mesmo que extrair duma rosa um cevado,
E tudo isto porquê?
- Porque na bíblia um mono
Devora uma maçã sem licença do dono!
A irreverência tenaz contra o poder temporal da igreja é apenas uma face do amplo lirismo junqueiriano. Igualmente forte e expressivo é o tom de sua luta contra a monarquia e o poder monárquico que condena Portugal ao mais absurdo subdesenvolvimento. O espírito civil do poeta se manifesta então numa linguagem poética de exaltação sentimental de sua Nação subjugada pela política retógrada. Nesse nacionalismo sentimental, em Junqueiro ocupa posição essencial a adesão aos destinos dos pobres, dos deserdados, dos simples. Como em poemas da dimensão de “o Cavador” –
“
Dezembro, noite canta o galo…Rouco na treva canta o galo...- Oh, dor! oh, dor! –Aldeão não durmas!... Vai chamá-lo,Miséria negra, vai chamá-lo!...Oh, dor! oh, dor!”Ou nos comoventes versos de “Os pobrezinhos” –
“Pobres de pobres são pobrezinhos,Almas sem lares, aves sem ninhos...Passam em bandos, em alcateias,Pelas herdades, pelas aldeias........................................................”
Forte espírito liberal, Guerra Junqueiro se divide igualmente com a prática política, representando o Partido Progressista no parlarmento e lutando nas praças civis contra a opressão do poder monárquico aos fracos e oprimidos. Esta luta encontra o maior espaço depois do episódio do Ultimato. O nacionalista orgulhoso que sempre viveu em Guerra Junqueiro não poderia aceitar tamanhas ofensas à sua pátria –
“Cospe o estrangeiro afrontas assassinasSobre o rosto da Pátria a agonizar...Rugem nos corações fúrias leoninas,Erguem-se as mãos crispadas para o ar!...”
Sexta-feira, 20 de Agosto de 2010
Sílvio CastroA história civil e cultural de Teófilo Braga está sempre muito ligada àquela de Antero de Quental. Ambos filhos da mesma Ponta Delgada, se distinguem inicialmente pelas correspondentes origens familiares. Enquanto Antero nasce e cresce num ambiente de elevadas condições materiais e sociais, Teófilo é filho de pais pobres, e na pobreza cresce, o que o leva a sacrifícios desde a mais jovem idade. Porém, mesmo dentro das maiores dificuldades, assistido sempre pelos genitores que com sacrifícios conseguem fazer com que o filho encete a carreira dos estudos superiores.Assim, pode o moço Teófilo deixar o seu natio Açores para o curso de Direito na Universidade de Coimbra. Ali encontra, já gozando a fama de grande poeta, Antero de Quental, mais velho do que ele de apenas um ano, sendo Teófilo Braga de 1843.
À natural liderança anteriana, já forte em todo o ambiente acadêmico conimbrense,
adere o sempre decidido e firme espirito do futuro lider socialista e republicano. Essa adesão correspondia a uma grande admiração pelo poeta e pelo pensador, como desde então se apresentava o autor das Odes Modernas.
As lutas próprias da Questão coimbrã servirão para unir definitivamente os dois
açorianos. Porém, enquanto depois de concluídos os respectivos cursos acadêmicos Antero de Quental se dedica às mais internacionais experiências da Era nova que se avizinhava, Teófilo Braga tendia a batalhar inicialmente para colmar de modo especial os espaços materiais negativos de sua vida de moço pobre. Começa então um longo percurso de estudioso insone, guiado pelo desejo da conquista de todos os títulos que o elevassem sempre e mais nos planos social e financeiro. Dessa grande atividade nasce uma numerosa bibliografia de estudos, a começar pela tese Teoria da História da Literatura Portuguesa, publicada em 1881, com a qual, em 1872, conquista por concurso a cadeira de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras da Universidade de Coimbra; bibliografia continuada em títulos como a monumental História da Literatura Portuguesa, em 11 volumes (Porto, 1896-1907). Além desse ângulo de produção erudita, Teófilo Braga pratica igualmente a poesia, começada com a juvenil coletânea de Folhas Verdes, de 1860, e culminada com A Visão dos Tempos. Epopeia da Humanidade (1894-95).
Porém, ainda que preso por esses intentos, não deixa de ser em momento algum o
batalhador incansável pelas idéias novas. Então a sempre grande admiração sentida pela guia ideológica anteriana passa por significativas mudanças: de um certo modo menos diretas ao início, mas logo em seguida vivida não mais sempre no grupo geracional, mas em ativo isolamento. Ao espírito conciliador muitas vezes demonstrado por Antero de Quental na vida política, em particular a afirmação de uma linha predominantemente liberal capaz de colaborar com o regime, até mesmo em nível de governo, encontra clara oposição da parte de Teófilo. Entretanto, seguindo sempre e coerentemente um percurso em favor dos ideais republicanos, subordinados às lições socialistas, ele conduzirá as suas atividades dentro das ações próprias da Geração de 70. A trágica morte de seu mestre de sempre deixará Teófilo Braga ferido profundamente, como o demonstra o seu admirável ensaio escrito para o livro In Memorian de Antero.
Teófilo Braga se mostra desde sempre um socialista convicto e inabalável. Suas convicções nascem de profundos estudos de autores socialistas, em particular em confronto com a obra de Proudhon. Esses estudos levam o grande pensador e ensaísta que sempre foi Teófilo Braga a um dos seus mais significativos livros, O Socialismo, estudos de rara importância para a história das idéias políticas portuguesas, e que teve a sua edição prefaciada pelo polígrafo baiano Almáquio Diniz, primeiro tradutor do Manifesto Futurista marinettiano, tradução publicada na Bahia no mesmo ano da saída do manifesto fundador do Futurismo, 1909.
Dois são os episódios que marcam a acentuação da linha radicalizada de Teófilo Braga na direção eletiva absoluta pela República. No plano mais diretamente pessoal, a morte trágica de Antero de Quental, em 1891. Assim como esse episódio pode ser tomado como o momento conclusivo da ação dos componentes da Geração de 70, o mesmo serve para a definitiva afirmação da ação política de Teófilo Braga. No plano ideológico o movente direto é o episódio do Ultimato. Teófilo Braga se associa à luta contra o fraco regime monárquico abandonando qualquer e impossível adesão à liberdade do Liberalismo, para pugnar intensamente pela democrática e ampla liberdade socialista. Socialismo e República se fundem numa única convicção nas ações do patriota Teófilo Braga.
Hoje, quando todo o Portugal comemora e festeja o centenário da República, mais do que nunca é indispensável realçar a figura do inaugural Presidente Provisório republicano que em 1910, nos plenos ares burrascosos dos novos tempos, soube dedicar-se inteiramente ao bem de seu País. Capacidade por ele diretamente renovada quando a 29 de maio de 1915, pelo Dec.-D.G. n° 100, em substituição do Presidente Manuel de Arriaga que resignara do cargo, vem proclamado Presidente da República, com mandato até 5 de outubro do mesmo 1915, quando passa a direção do Estado ao novo Presidente, Bernardino Machado.
Quinta-feira, 19 de Agosto de 2010
Sílvio CastroA exaltação da utopia enquanto fator de existência informa praticamente toda a vida de Antero de Quental. Com uma conclusão aparentemente contraditória, o suicídio, a procurada solitária morte no banco do jardim público de Ponte Delgada, em 11 de Setembro de 1891. O mesmo suicídio que aterrorizou o religioso João de Deus, mas que não o impediu de dedicar ao mais jovem amigo o belíssimo epitáfio, “No túmulo de Antero”:
“Aqui jaz pó: eu não; eu sou quem fui,
- Raio animado dessa Luz celeste,
À qual a morte as almas restitue,
Restituindo à terra o pó que as veste.”
João de Deus constituiu para Antero uma referência primordial. Ainda que aparentemente entre os dois poetas as distinções sejam claramente visíveis, assim aconteceu. O mesmo Antero capaz da mais profunda participação com o lirismo condicionado preferencialmente pela reflexão filosófica, o mesmo Antero que diante da complexidade dos fenômentos sociais procurava através da experiência direta e prática as possíveis soluções para os mesmos, percorrendo o mundo a procura de novas possibilidades do agir coerente, esse mesmo Antero é aquele que admira irrestritamente o poeta de Flores de Campo e que dele partira seja para a conquista lírica, seja para uma visão específica da mensagem do liberalismo.
O Antero que elege João de Deus como fator de modernidade é o jovem estudante, mas já poeta consagrado, que desecadeia a rebelião contra a anti-modernidade predominante em Portugal, rebelião sintetisada na chamada Questão coimbrã, de 1865. Já então Antero de Quental se apresenta como exemplo de uma síntese rara de união entre poesia e política. Já desde então faz-se ver como verdadeiro lider social, condicionando toda uma geração de grandes intelectuais.
Os arrebates dos tons usados contra a hegemonia cultural de António Feliciano de Castilho está o mesmo Antero que mais adiante saberá conduzir mentes como as de Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Jaime Batalha Reis, Eça de Queirós e outras na participação civil com a difícil realidade portuguesa da segunda metade do século XIX.
A partir de então Antero de Quental como que se desdobra em dois: aquele que se debruça inteiro na complexidade da condição humana e aquele outro que procura soluções políticas de equilíbrio sob o difícil regime monárquico que apesar de tudo continua a guiar o país. Essa luta de equilíbrios aparentemente contraditórios fará com que os fundadores da ação organizada do socialismo em Portugal cheguem até mesmo a participar da política oficial do governo monárquico. Antero então se prodigaliza em manter a serenidade ativa dos seus companheiros, entre os quais surgiam as mais profundas discussões. A capacidade de levar a visão utópica de suas convicções às maiores consequências faz com que Antero possa mediar entre a praticidade comportamental civil de um Oliveira Martins e a irreverente, incontida ação de um Teófilo Braga, inimigo crônico do poder da monarquia e acertor infatigável dos ideais republicanos.
Antero de Quental então é a voz capaz do maior, quase inconcebível equilíbrio. O mesmo poeta que traduz os mais altos problemas da existencialidade individual sabe atingir o polo oposto da absoluta participação, quando a traduz liricamente em poemas como o “A um poeta”:
Surge et ambula!Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levitã à sombra dos altares
Longe da luta e do fragor terreno,
Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...
Escuta! é a grande voz das multidões!
São seus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!
Tudo isso como que tem um fim na tragicidade daquele 11 de Setembro de 1891. Um dia fatal para toda uma geração que praticamente encontra seu ponto conclusivo no episódio solitário banco de um jardim público de Ponta Delgada.
O Romantismo social português: 7- Teófilo Braga
Sílvio Castro
A história civil e cultural de Teófilo Braga está sempre muito ligada àquela de Antero de Quental. Ambos filhos da mesma Ponta Delgada, se distinguem inicialmente pelas correspondentes origens familiares. Enquanto Antero nasce e cresce num ambiente de elevadas condições materiais e sociais, Teófilo é filho de pais pobres, e na pobreza cresce, o que o leva a sacrifícios desde a mais jovem idade. Porém, mesmo dentro das maiores dificuldades, assistido sempre pelos genitores que com sacrifícios conseguem fazer com que o filho encete a carreira dos estudos superiores.Assim, pode o moço Teófilo deixar o seu natio Açores para o curso de Direito na Universidade de Coimbra. Ali encontra, já gozando a fama de grande poeta, Antero de Quental, mais velho do que ele de apenas um ano, sendo Teófilo Braga de 1843.
À natural liderança anteriana, já forte em todo o ambiente acadêmico conimbrense,
adere o sempre decidido e firme espirito do futuro lider socialista e republicano. Essa adesão correspondia a uma grande admiração pelo poeta e pelo pensador, como desde então se apresentava o autor das Odes Modernas.
As lutas próprias da Questão coimbrã servirão para unir definitivamente os dois
açorianos. Porém, enquanto depois de concluídos os respectivos cursos acadêmicos Antero de Quental se dedica às mais internacionais experiências da Era nova que se avizinhava, Teófilo Braga tendia a batalhar inicialmente para colmar de modo especial os espaços materiais negativos de sua vida de moço pobre. Começa então um longo percurso de estudioso insone, guiado pelo desejo da conquista de todos os títulos que o elevassem sempre e mais nos planos social e financeiro. Dessa grande atividade nasce uma numerosa bibliografia de estudos, a começar pela tese Teoria da História da Literatura Portuguesa, publicada em 1881, com a qual, em 1872, conquista por concurso a cadeira de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras da Universidade de Coimbra; bibliografia continuada em títulos como a monumental História da Literatura Portuguesa, em 11 volumes (Porto, 1896-1907). Além desse ângulo de produção erudita, Teófilo Braga pratica igualmente a poesia, começada com a juvenil coletânea de Folhas Verdes, de 1860, e culminada com A Visão dos Tempos. Epopeia da Humanidade (1894-95).
Porém, ainda que preso por esses intentos, não deixa de ser em momento algum o
batalhador incansável pelas idéias novas. Então a sempre grande admiração sentida pela guia ideológica anteriana passa por significativas mudanças: de um certo modo menos diretas ao início, mas logo em seguida vivida não mais sempre no grupo geracional, mas em ativo isolamento. Ao espírito conciliador muitas vezes demonstrado por Antero de Quental na vida política, em particular a afirmação de uma linha predominantemente liberal capaz de colaborar com o regime, até mesmo em nível de governo, encontra clara oposição da parte de Teófilo. Entretanto, seguindo sempre e coerentemente um percurso em favor dos ideais republicanos, subordinados às lições socialistas, ele conduzirá as suas atividades dentro das ações próprias da Geração de 70. A trágica morte de seu mestre de sempre deixará Teófilo Braga ferido profundamente, como o demonstra o seu admirável ensaio escrito para o livro In Memorian de Antero.
Teófilo Braga se mostra desde sempre um socialista convicto e inabalável. Suas convicções nascem de profundos estudos de autores socialistas, em particular em confronto com a obra de Proudhon. Esses estudos levam o grande pensador e ensaísta que sempre foi Teófilo Braga a um dos seus mais significativos livros, O Socialismo, estudos de rara importância para a história das idéias políticas portuguesas, e que teve a sua edição prefaciada pelo polígrafo baiano Almáquio Diniz, primeiro tradutor do Manifesto Futurista marinettiano, tradução publicada na Bahia no mesmo ano da saída do manifesto fundador do Futurismo, 1909.
Dois são os episódios que marcam a acentuação da linha radicalizada de Teófilo Braga na direção eletiva absoluta pela República. No plano mais diretamente pessoal, a morte trágica de Antero de Quental, em 1891. Assim como esse episódio pode ser tomado como o momento conclusivo da ação dos componentes da Geração de 70, o mesmo serve para a definitiva afirmação da ação política de Teófilo Braga. No plano ideológico o movente direto é o episódio do Ultimato. Teófilo Braga se associa à luta contra o fraco regime monárquico abandonando qualquer e impossível adesão à liberdade do Liberalismo, para pugnar intensamente pela democrática e ampla liberdade socialista. Socialismo e República se fundem numa única convicção nas ações do patriota Teófilo Braga.
Hoje, quando todo o Portugal comemora e festeja o centenário da República, mais do que nunca é indispensável realçar a figura do inaugural Presidente Provisório republicano que em 1910, nos plenos ares burrascosos dos novos tempos, soube dedicar-se inteiramente ao bem de seu País. Capacidade por ele diretamente renovada quando a 29 de maio de 1915, pelo Dec.-D.G. n° 100, em substituição do Presidente Manuel de Arriaga que resignara do cargo, vem proclamado Presidente da República, com mandato até 5 de outubro do mesmo 1915, quando passa a direção do Estado ao novo Presidente, Bernardino Machado.
O Romantismo social português: 8 – Guerra Junqueiro
Sílvio Castro
Possivelmente Guerra Junqueira será o mais popular poeta do romantismo comparticipante do social em Portugal, não somente preso pelo seu público nacional, mas igualmente entre os brasileiros de seu tempo. No Brasil como que se ombreia com Castro Alves, o mais amado dos poetas românticos brasileiros; ambos, Junqueiro e Castro Alves guiados pela exuberante linguagem lírica de origem huguiana.
Guerra Junqueiro vive de certo modo à parte, mas intensamente, as experiências da Geração de 70. Nele poesia e consciência política se abraçam em forma absolutamente pessoal.
O lirismo do autor de Oração à Luz resulta de uma formação fortemente religiosa, cedo transformada em experiência pessoal intensa. A religiosidade juqueiriana se aproxima então da participação com a natureza, dela se reapropiando e fazendo de tudo uma própria metafísica.
As dimensões de uma religiosidade panteista original e a logo adquirida consciência política da realidade social, em que vive, fazem de Guerra Junqueiro um poeta especial. Surgem assim vozes aparentemente contraditórias, mas eficazes: cantos feitos de subjetividade profundamente religiosa e uma viva batalha contra o poder temporal da Igreja e as deformações produzidas pelo mesmo no ambiente social, sob uma semântica poética resultada da linguagem corrente e de forte espírito satírico, como no poema “O Baptismo”:
Batipzais: arrancais dum anjo um satanás.
Desinfectais Ariel banhando-o em aguarrás
De igreja e no latim que um malandro expectora.
Dizeis à noite – limpa a túnica da aurora,
E ao rouxinol dizeis: pede a bênção da c’ruja.
Dais os lírios em flor ao rol da roupa suja.
Representais a farsa estúpida e sombria
Dum cônego a lavar um astro numa pia,
Finalmente extrais da inocência o pecado,
Que é o mesmo que extrair duma rosa um cevado,
E tudo isto porquê?
- Porque na bíblia um mono
Devora uma maçã sem licença do dono!
A irreverência tenaz contra o poder temporal da igreja é apenas uma face do amplo lirismo junqueiriano. Igualmente forte e expressivo é o tom de sua luta contra a monarquia e o poder monárquico que condena Portugal ao mais absurdo subdesenvolvimento. O espírito civil do poeta se manifesta então numa linguagem poética de exaltação sentimental de sua Nação subjugada pela política retógrada. Nesse nacionalismo sentimental, em Junqueiro ocupa posição essencial a adesão aos destinos dos pobres, dos deserdados, dos simples. Como em poemas da dimensão de “o Cavador” –
“Dezembro, noite canta o galo…
Rouco na treva canta o galo...
- Oh, dor! oh, dor! –
Aldeão não durmas!... Vai chamá-lo,
Miséria negra, vai chamá-lo!...
Oh, dor! oh, dor!”
Ou nos comoventes versos de “Os pobrezinhos” –
“Pobres de pobres são pobrezinhos,
Almas sem lares, aves sem ninhos...
Passam em bandos, em alcateias,
Pelas herdades, pelas aldeias.
...........................................................”
Forte espírito liberal, Guerra Junqueiro se divide igualmente com a prática política, representando o Partido Progressista no parlarmento e lutando nas praças civis contra a opressão do poder monárquico aos fracos e oprimidos. Esta luta encontra o maior espaço depois do episódio do Ultimato. O nacionalista orgulhoso que sempre viveu em Guerra Junqueiro não poderia aceitar tamanhas ofensas à sua pátria –
“Cospe o estrangeiro afrontas assassinas
Sobre o rosto da Pátria a agonizar...
Rugem nos corações fúrias leoninas,
Erguem-se as mãos crispadas para o ar!...”
O Romantismo social português: 9 – Cesário Verde
Sílvio Castro
Cesário Verde, nascido em 1855 e morto em 1886, representa um singular fenômeno no quadro geral do romantismo português. Com ele a poesia de Portugal ganha improvisamente uma modernidade desconhecida. Seus poemas, mesmo participando de uma longa tradição, rompe com os tempos e se projeta muito além de uma época pessoal, ainda que sendo principalmente fruto dela.
Filho de uma rica família de comerciantes, desde muito cedo ligou a própria existência à atividade do pai, para nela criar e desenvolver uma personalidade quase anônima, mas que cedo se projeta como uma revolução. Nasce assim um intelectual e um criador lírico que, aparentemente integrado a um ambiente burguês insuperável, de natureza mercantil, dele jamais faz parte.
A poesia de Cesário nasce no silêncio da vida que realmente não é aquela sua aparente. Mas os poemas que ele vai criando na sua curta existência lentamente o projetam num novo mundo, fantástico ainda que imediatamente real e reconhecível. Nasce com esta poesia um novo sistema de linguagem, inicialmente em contraposição a qualquer possibilidade de receptividade, mas que cedo irá desvendar a própria força no forjar diálogos e sentimentos novos.
A língua poética do poeta revolucionário é feita com a aparente sintaxe da
comunicação comum, na qual o poeta intromete a genialidade criadora de novos ritmos e de morfemas que corroem qualquer forma de indiferença e incompreensão. Novos mundos são então projetados aos que desde logo sabem penetrar na complexidade de uma nova semântica poética, na qual a metalinguagem é presença copiosa.
Partindo da tradição romântica dos sentimentos mais pessoais e da participação
serena com a natureza, o poeta cedo alarga o seu cenário sentimental ao plano urbano. A partir daí, com o surgir de uma Lisboa inédita aos ritmos poéticos portugueses e ao gosto geral de uma época, a poesia de Cesário Verde se faz revolucionária. A aparente dicção prosaica se revela fonte de invenções e de liberdade. Com ela, a receptividade se faz conquista de liberdade partecipativa.
Tudo se origina das mais profundas raízes do poeta, alimentadas de forte universalismo e de uma mágica capacidade de criar mundos inicialmente encubertos aos olhos, prontos a serem vividos na perfeita receptividade.
O sentimento do mundo do poeta é universal, ainda que sempre ligado ao seu mundo
urbano. Este se faz renovador a cada canto de uma praça ou à descoberta da gente mais simples que caminha pelas ruas pedregosas:
“ Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
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Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!
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E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!”
O mais consciente hino tradutor de “O sentimento dum ocidental” português é significativamente dedicado ao poeta que comovia Portugal com os seus gritos pela liberdade e a favor dos simples, dos humildes, dos desgraçados: Guerra Junqueiro. Como acontece com o poeta de Os Simples, a complexa e revolucionária poética de Cesário Verde é ela igualmente um canto da liberdade sempre reconhecida. Com esse canto a poesia de língua portuguesa se projeta no futuro enquanto um tempo real e concreto.
A partir da poesia de Cesário Verde o romantismo cumpre um longo percurso, atingindo o mais amplo sentido social e desde então fazendo-se uma constante no processo de evolução dos tempos criativos. Com ela estavam abertas as portas de todos os realismos.
Quarta-feira, 18 de Agosto de 2010
Sílvio CastroAo contrário de quanto sucede com Soares de Passos, ninguém, e não só em Portugal, se colocará contra a afirmação de que João de Deus é um dos mais representativos poetas do romantismo social português. Paradoxalmente, em aparência, o subjetivismo lírico presente em tantos poemas do autor de Ramos de flores, lirismo embebido de vida recolhida diretamente do quotidiano e traduzida numa linguagem que retoma o melhor ritmo da tradição lirica nacional, esse lirismo profundamente individualista, mas ao mesmo tempo de ressonâncias universais, não obscura a face partecipante do poeta. Desde a apoteose pública em Lisboa que foram os funerais de João de Deus, falecido no dia 11 de Janeiro de 1896, estando o poeta por completar os seus sessenta e seis anos, Portugal o considera como um doce, mas firme herói civil.
A partir diretamente da linguagem poemática, o lirismo de João de Deus é simples e direto. A simplicidade resulta da consciência do autor de que os sentimentos, ainda os mais pessoais, podem ser transmitido diretamente ao seu leitor sem necessidade de altos recursos retóricos. Mas no fundo o resultado alcançado por essa linguagem se faz igualmente um grandíssimo resultado de uma retórica expressiva. João de Deus produz uma poesia que recorda sempre o ritmo das falas existenciais. A ingenuidade percebida a partir delas não é a tradução de uma simplicidade conceitual do poema, mas a percepção de um ritmo poemático que se faz reconhecer comum a todos. Assim é quando o poeta se debruça sobre o seu direto sentimento amoroso ou quando se faz cantor em procura da tradução do sentido maior do ser individual:
Os olhos sempre que os pus
Fitos nos astros do dia
(Parece que se introduz
Tanta luz na fantasia...)
Sabem o que acontecia?
Fechava os olhos e via
Do mesmo modo essa luz.
Assim foi certa visão
Que tive por meus pecados!
Nunca uma breve impressão
Em meus olhos descuidados
Deu tamanhos resultados...
Que é vê-la de olhos fechados,
Ainda no coração!
(“Sol íntimo”)Esta mesma simplicidade encontramos na tradução que o poeta dá ao seu sentimento religioso, expresso liricamente em maneira tal a confundir-se com o de todo o mundo; ainda que, em circunstâncias e testemunhos diretamente pessoais do mesmo sentimento, o poeta adote uma ortodoxia católica quase paradoxal. Como acontece no momento da comemoração de Antero de Quental, uma das grandes admirações do poeta, com a publicação de um livro com testemunhos dos amigos. João de Deus se recusa participar na homenagem de um suicídio. Somente os pedidos dos confrades mais íntimos, o leva a contribuir com um belíssimo poema-epitáfio que faz parte do magnífico volume que é o Anthero de Quental – In Memorian.
A grande consciência de linguagem usada por João de Deus nos seus poemas, tanto naqueles da mais profunda subjetividade individual, quanto nos muitos de sentida participação com o mundo e com o “outro”, leva o poeta a uma de suas maiores criações, a Cartilha maternal, de 1876.
A poesia de João de Deus, principalmente naqueles poemas que passam do Flores do Campo (1868), ao Campo de Flores (1893), constituem um amplo e revelador sistema de metalinguagem. Este sistema encontrará na Cartilha maternal sua consequência lógica. Daí a surpreendente modernidade da pedagogia que caracterizou as últimas ações públicas de João de Deus. As crianças portuguesas, por diversas gerações, puderam aprender a língua já renovada por Garrett e muitas vezes compreendê-la e usá-la em diversos planos de linguagem. Possivelmente dela se originam alguns dos fatores que formam a ironia do falar de muitos portugueses. Ironia que o gênio de João de Deus traduzia principalmente nas suas composições satíricas, como em “Último suspiro”:
“Fui a semana passada
Visitar o hospital,
E vi numa enfermaria
O pobre de Portugal;"
................................
Segunda-feira, 16 de Agosto de 2010
Sílvio CastroAlexandre Herculano é a primeira grande figura literária inteiramente formada e integrada no Movimento romântico. O seu romantismo é total, pois envolve o autor em todas as suas manifestações e criações. Em Herculano, desde a mocidade, a expressão romântica tem a capacidade de traduzir tanto a mais recôndita, ainda que sempre muito ponderada, subjetividade lírica, quanto a mais ousada participação pública.
Filho dos tempos de grandes turbamentos porque passa a vida nacional, a estes dedica a mais profunda participação cívica e neles se incorpora para uma sempre atenta defesa das liberdades individuais e públicas.
Envolvido desde a mocidade nas lutas sociais de seu país, cedo realiza a experiência de um exílio que se faz mais difícil pelas limitadas condições materiais vindas das origens do muito moço Herculano. Inicialmente refugia-se na Inglaterra, mas ali não encontra o melhor correspondente aos seus sonhos de crescimento geral. Na França, logo em seguida procurada, ao contrário encontrará o refúgio positivamente desejado. Em contacto com a cultura francesa em plena efervecência romântica, Herculano saberá edificar a sua própria estrutura.
De retorno a Portugal, retoma as atividades políticas com o mesmo entusiasmo que o conduzira ao exílio. Será o rápido período no que a moderna personalidade liberal de Herculano se confrontará com as maiores dificuldades da ação política submetida a um tempo de perseverante instabilidade pública. Diante da forte personalidade polêmica do autor da História de Portugal mais profundamente integrada na melhor dimensão do pensamento liberal, o conflito com a política da instabilidade se radicaliza. Em seguida, o polemista democrático presente sempre nas atividades jornalísticas de Herculano arrefece em favor da vida privada rica de uma grande produção literária. Então, às primeiras experiências líricas já tradutoras de um poeta de alta dimensão criadora, sucede a fase maior da personalidade literária do poeta de
A Harpa dos Crentes, a do romancista.
Os romances históricos de Alexandre Herculano são os maiores depositários da sua capacidade de levar o romantismo a uma participação social de rara modernidade. Neles se eleva constantemente aquela personalidade que servirá de modelo à intelectualidade portuguesa, com derivações também para aquela brasileira.
Ao lado do romancista, o historiador Alexandre Herculano exprime então um Liberalismo que, partindo de uma aparente predominante posição conservadora, atinge pontos revolucionários capazes de iluminar as mais ousadas perspectivas ideológicas, atingindo mesmo aquelas do nascente espírito socialista português. Desde então, o criador do Eurico praticamente se faz mentor do espírito progressista nacional, envolvendo personalidades como Antero de Quental, Teófilo Braga e outras. Exemplo da importância do renovador do romance histórico de origem escottiana entre os intelectuais de seu tempo, mostra-se a troca de correspondência entre Oliveira Martins e Bulhão Pato nos dias precedentes à morte de Herculano. No dia 11 de Setembro de 1877, Oliveira Martins escreve ao seu confrade: “Chego ao Porto e vejo as notícias desoladoras da saúde do nosso Mestre. Estive para partir para Santarem, mas reflectindo, pensei que nenhum bem iria ahi fazer, e só porventura dar encommodo, em ocasião tão afflitiva. Tu que sabes quanto eu venero e estimo o nosso Homem podes imaginar a anciedade em que estou.” Bulhão Pato anuncia a Oliveira Martins a morte de Herculano: “Morreu o nosso querido Mestre. Deixe-o hontem às 5 da tarde, quando começou o delírio. Não pude mais! Nem agora posso. Estou aniquilado, conheces-me e sabes que te digo de verdade. Perdeste um grande amigo, posso affirmal-o. Era mais de que um talento, era um justo.“
Domingo, 15 de Agosto de 2010
Sílvio CastroAlmeida Garrett é, quase certamente, o primeiro romântico na literatura portuguesa que incorpora a uma inicial predisposição individualista determinada consciência política. Daí a sua particular importância no quadro do Romantismo social português, para o qual traz marcantes contribuições.
Escritor de evidente formação árcade e iluminista, ele assiste à passagem do tempo setecentista, marcado particularmente pela política cultural do regime pombalino, àquele oitocentista, começado pelas crises institucionais que principiam com o reinado de D. Maria I, se alarga com a invasão napoleônica, o fim da mesma, a revolução de 1820 e a fase do “vintismo”, até chegar às lutas fraticidas culminadas com a vitória de D. Pedro IV e correspondente restauração de uma certa estabilidade nacional.
O jovem Garret, partindo de suas raízes neo-clássicas, vive intensamente
o período da revolução liberal e da passagem àquela outra, do Romantismo, revelando-se extremo partecipante de ambas e, consequentemente, sempre traduzindo uma personalidade fortemente capaz de ação política e de criatividade artística. Serão essas qualidades que lhe permitirão absorver as novidades internacionais do novo tempo romântico, ao qual dá uma contribuição historicamente essencial, inaugurando-o na literatura portuguesa com a publicação, em 1825, de seu poema Camões.
Nos versos do Camões, ainda que mais ligado às lições românticas inglesas,
Garrett traduz em maneira coerente a tópica “Nação“, e derivadas, próprias da doutrina schleguiana. A idéia de “Pátria“, enquanto valor sentimental, de grande intensidade civil, com o poema garrettiano entra a fazer parte da essencialidade do Romantismo nacional.
Filho da alta burguezia, o autor de Adozinda revela, entretanto, desde sua juventude, ideais revolucionários nascidos de clara personalidade forjada nas lições do Liberalismo mais avançado. Ainda aqui, nas manifestações de seu alto espírito liberal, Garrett traduz a sua inicial formação árcade. O mesmo Iluminismo setecentista que o conduz à prática literária, serve-lhe de guia na formação de sua personalidade política.
O Liberalismo garrettiano é constantemente atento e revolucionário. Nos momentos mais dramáticos da vida do país, nas primeiras décadas do difícil século XIX, logo depois dos atormentados tempos napoleônicos, o civismo ativo de Garrett sabe manifestar-se de forma tal a marcar a história do pensamento político português. O seu espírito de participação demonstra excepcional exemplo na sua Carta de guia para eleitores em que se trata da opinião pública, das qualidades para deputado e do modo de as conhecer, feita para orientação do eleitor partecipante ao pleito de 1826, em plena efervecência dos novos tempos de D. Pedro IV.
O ativismo político de Garrett, encontra um seu correspondente literário nas páginas inovadoras de as Viagens na Minha Terra. Nessas páginas marcantes da literatura portuguesa, umas das tópicas mais típicas do Romantismo internacional, a da “questão da língua”, aliada aos conceitos de “Pátria” e de “Nação”, se traduz em uma obra-prima. A tópica é manifestada de modos diversos nas várias literaturas nacionais, conforme às correspondentes condições linguísticas: fortemente distinta no Manzoni dos Promessi Sposi, produto de uma decidida escolha por uma das muitas expressões dialetais da península itálica, ao par de quanto não fosse a comedida ação linguística da operação garrettiana, ou da ainda mais medida operação da prosa de José de Alencar, no Romantismo brasileiro. Ainda que quase somente limitada a um uso estilisticamente literário da linguagem oral e da fala popular portuguesa, com rápidas ousadias no plano lexical, as Viagens demonstram uma consciente modernização da língua em confronto com as pedagógicas fixações promulgadas pela não-indiscutível reforma pombalina:
“Também são chegados os outros companheiros; o sino dá o último rebate. Partimos.
Numa regata de vapores o nosso barco não ganhava de-certo o prémio. E se, no andar do progresso, se chegarem a instituir alguns ístmicos ou olímpicos para êste gênero de carreiras – e se para elas houver algum Píndaro ansioso de correr, em estrofes e antistrofes, atrás do vencedor que vai coroar de seus hinos imortais – não cabe nem um triste minguado épodo a êste cansado corredor de Vila-nova. É um barco sério e sisudo que se não mete nessas andanças.”
Sábado, 14 de Agosto de 2010
Sílvio CastroMovimento de vanguarda, possivelmente o primeiro nesse sentido, o Romantismo se apresenta historicamente em forma complexa, englobando e propondo as mais diversas dimensões para a nova criação literária. Herdeiro dos melhores valores da tradição neo-clássica, entretanto logo se mostra contrário às mesmas e disponível à conquista de surpreendentes e inéditas dimensões artísticas.
‘ Inicialmente, e como elemento tradutor de sua dimensão inovadora, o Romantismo exalta a sua raiz predominante, a Iluminista, traduzindo-a através da elevação da liberdade de criação individual do novo homem romântico como valor inalienável. O novo homem então se mostra eterno enquanto universo referencial e único. Conjugando emoção e racionalidade, o artista romântico conduz a própria individualidade ao plano da total invenção, removendo todo e qualquer tipo de formas sedimentadas, na procura sem limites de invenção e revelação.
Afirmada uma tal dimensão na luta contra todas as forças reativas, o Romantismo conduz a sua consciência da individualidade a confins sem fronteiras, penetrando igualmente em territórios que aparentemente são possíveis negações do quanto afirmado programaticamente pela revolução estética operante e operada. Então, o individualismo romântico se faz capaz de atingir a dimensão de uma renovada consciência do social. Do social que não surge necessariamente de uma premeditada educação cívica, mas que resulta diretamente da iluminação do poeta individualista que se apropria de seu universo civil.
A passagem do Romantismo individualista àquele social é o resultado da totalização do poeta revolucionário em contacto com o seu universo de interrelações. O poeta conjuga então sua natural posição ético-estética com aquela outra, política. Uma das forças condutoras desse movimento giratório do poeta de origem iluminista ao pacto da convivência política se produz através das contribuições revolucionárias de um inicial Liberalismo, ele igualmente fruto da tradição iluminista. Então, o poeta romântico também social passa a ser o amadurecimento absoluto daquele cantor inicial preso às suas emoções reveladoras, agora submetidas ao mais profundo processo de racionalização da consciência pessoal do estar-no-mundo.
Com o desenvolvimento e evolução de seu processo histórico, o Romantismo alarga a sua inicial matriz liberal, de origem iluminista, ao nascente pensamento socialista, ainda este imbuído de lições iluministas, mas revitalizado pelos valores afirmados com a Revolução francesa de 1789.
O poeta unívoco se multiplica assim na atipicidade viva dos tantos valores
que compõem o seu ambiente existencial e social, levando-o a integrar-se conscientemente nele. Seria quanto a teoria schleguiana, uma das bases do Romantismo alemão, definia respectivamente como estágios “Ingênuo“ e “Sentimental” porque passa o poeta romântico na conquista de uma definitiva maturidade criadora.
Se desejarmos definir o conceito-valor que permite ao poeta romântico um tal grande salto criativo, o poderemos fazer, entre outros, a partir daquele de “Nação”. O romântico social exalta com esplendor os valores de sua nacionalidade, a tal ponto que a leva aos confins da universalidade.
Os dois irmãos Schlegel, August Wilhelm von Schlegel (1767-1845) e Friedrich von Schlegel (1772-1829), elegem o “Nacional” como protótipo da dimensão social do Romantismo e para exemplicá-lo, principalmente a partir da teorização de Friedrich, colocam Os Lusíadas como a máxima criação épica possível. Tudo a partir da parcial tradução alemã da obra-prima camoniana realizada por August Wilhelm.
Um tal percurso, visto com todas as características próprias de um Romantismo nacional de claras linhas autônomas, como o é aquele português, o poderemos encontrar criticamente na apreciação direta da ação e da obra de autores como Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Soares de Passos, Antero de Quental, Teófilo Braga, Guerra Junqueiro e Cesário Verde. Verificação crítica que logo em seguida passamos a fazer.
Quinta-feira, 5 de Agosto de 2010
Carlos LouresAs utopias não se limitam ao universo literário. Os falanstérios, ideados pelo pensador francês Charles Fourier (1772-1837), reflectiam o desejo de passar à prática uma generosa utopia, baseada no pressuposto de que e o ser humano é intrinsecamente bom, depositário de uma harmonia natural que reflecte a harmonia do Universo, e que a maldade está na sociedade e não no homem. Edificaram-se algumas comunas que não poderiam albergar mais de 1600 pessoas e teriam de ser auto-suficientes, permutando com outros falanstérios os excedentes da sua produção.
Em França, nos Estados Unidos, no Brasil, no México, criaram-se falanstérios que foram dando com os burrinhos na água. Cada pessoa decidia a actividade a que se devia dedicar o que, desde logo deve ter causado problemas. E depois, os males do mundo poderão estar principalmente na sociedade, mas lá que o homem não é "intrinsecamente bom", todos os sabemos.
Os kolkhoses soviéticos (cooperativas de produção agrícola), as comunas populares chinesas, os kibutz israelitas (cooperativas rurais), são a passagem à realidade da teoria de Fourier. No entanto, em enquadramentos histórico-políticos de conflito que não permitiam a concretização do pacífico ideal dos falanstérios.
Os impérios nascidos do Romantismo, irmãos de óperas, romances e de uma pintura, de uma arte que, contrastando com a fealdade uniforme que a Revolução Industrial trouxera ao mundo real, se apresentava bela, idílica, inspirada frequentemente na Antiguidade Clássica, foram formulações utópicas. Do mesmo modo, o fascismo e o nazismo foram utopias antes de se transformarem em realidades distópicas. Ao contrário do axioma de Fourier («o homem é intrinsecamente bom») partiam ambas do princípio de que o homem é intrinsecamente mau e, portanto, era preciso criar estruturas sociopolíticas que controlassem e neutralizassem essa maldade inata. Porque além de mau o homem era como uma criança que deve ser vigiada para que não faça mal aos outros nem a si mesmo. Daí a Gestapo, a OVRA, a PIDE, o KGB… Da tortura ao campo de extermínio, foi tudo para bem da humanidade.
Dentro da cabeça louca de Hitler as ideias estavam arrumadas de forma que a ele lhe parecia perfeita. Os seus desenhos e projectos revelam a ânsia por converter uma sociedade capitalista, corrupta, sórdida, eivada de usura judaica, numa outra em que imperasse uma ordem absoluta, em que não houvesse imprevistos nem improvisações (a Gestapo não era mais do que um mecanismo para impedir essas surpresas).
A pureza da raça é ideia que poderia ter colhido em Campanella, pois na sua «Cidade do Sol» havia um ministro do Amor que zelava por que os casais fossem emparelhados de modo a produzirem uma «excelente prole». Encontrou os loucos e os oportunistas que o ajudaram a transpor para a escala nacional e depois para a continental a sua utopia e foi o que se viu. Estaline perseguia também a sua utopia. Salazar, para ir ao outro extremo do leque ideológico, quis transpor para o nosso país o seu conceito de perfeição, uma perfeição moldada à imagem do seminário de Viseu e da vila de Santa Comba.
Na RTP, conheci um motorista que tinha trabalhado na Presidência do Conselho. Contava ele que, por vezes, sobretudo no Verão, ao anoitecer, ia um criado chamá-lo ao anexo em que morava, pois o senhor Professor precisava de sair. E lá ia o motorista, com o presidente atrás, e três guarda-costas. As ordens eram para conduzir devagar o carro blindado que Hitler lhe tinha oferecido e que serviu a Álvaro Cunhal e a mais oito presos para fugirem de Caxias. Na Avenida da Liberdade havia muita gente espalhada pelas esplanadas. Salazar queria que o carro de vidros fumados e à prova de bala fosse devagar.
Perguntava ao motorista e aos agentes: - O que é que eles estão aqui a fazer? – A apanhar o fresco, senhor Professor, a beber. – A beber? O quê? – Eles lá respondiam: - «cerveja, gasosa, laranjada…» O presidente do Conselho queria saber os preços de cada uma daquelas bebidas. - «E o que estão a comer?» - «Amendoins, tremoços…». Estas respostas deixavam-no pensativo e curioso: - E eles têm dinheiro para beber e comer essas coisas? Às vezes resmungava: -« depois queixam-se que o dinheiro não lhes chega».
Em suma – Salazar criara a sua utopia – um país rural, com cidades que seriam conjuntos de aldeias, igrejas, fontanários e por aí fora. As esplanadas da Avenida, o consumo de cerveja e refrigerantes, não cabiam na utopia, faziam-lhe confusão. Diz-se que apreciava muito a «Casa Portuguesa», cantada pela Amália, um retrato perfeito do país utópico que tentou modelar.
As utopias pessoais dos ditadores do século XX, causaram milhões de mortos, miséria e sofrimento e, por reacção antinómica, o advento de democracias em que a maior parte dos crimes e injustiças imperantes nas ditaduras subsistem ao abrigo do princípio, ou sob a desculpa, de que as desigualdades sociais incentivam o desenvolvimento.
A era americana, desencadeada sobretudo após a II Guerra Mundial, é uma outra utopia - Todos podem ser ricos, desde que tenham espírito de iniciativa, capacidade de trabalho e essas tretas. E as pessoas acreditam. Todos, mesmo os que vivem em bairros degradados, acreditam que têm direito a todos os bens de consumo que o
marketing impinge. Moralmente, claro que têm. Mas a realidade não respeita a moral. The
american way of life, mais depressa nos transforma em sem-abrigo do que em milionários.
Para ter uma moradia com piscina, um carro topo de gama, um pequeno iate (sendo modesto) é preciso ter ou um bom e lucrativo negócio, ter estudos – o que exige espírito de sacrifício - e atingir um bom lugar numa boa empresa, ou não ter nada disso e escrúpulos muito menos e deitar-se aos negócios escuros, uma redezita de tráfico de droga, um barzito de alterne com raparigas brasileiras e de Leste...
Resumindo: ter espírito empreendedor. Nem todos o conseguem ter. Esqueci-me de outra possibilidade de vencer na vida – nascer rico – que é, dentro da ordem de valores em vigor, uma suprema prova de inteligência.
Este homem, por exemplo - vive numa sociedade que lhe permite ser tudo e ter tudo. Por que será que, com um leque tão sedutor de hipóteses, podendo fazer um doutoramento em nanotecnologia ou montar uma cadeia de supermercados, ter uma mansão na Quinta da Marinha, «escolheu» ser um
sem-abrigo. Há qualquer coisa nesta utopia que me soa mal.