Ontem, dia 1 de Julho, ao fim da tarde, Estrolabio assistiu ao lançamento do livro mais recente do nosso amigo e colaborador, Prof. Doutor Manuel G. Simões, Tempo com Espectador. A sessão decorreu na Livraria Bulhosa, ao Campo Grande, em Lisboa, pelas 18.30. Na mesa estiveram, para além do autor, o Prof. Roberto Vecchi, estudioso das nossas língua e literatura (com relevo para a literatura sobre a guerra colonial), já várias vezes referido no nosso blogue, e que fez a apresentação da obra, e o editor, Dr. Fernando Mão de Ferro, também nosso amigo e colaborador.
O Prof. Roberto Vecchi fez uma aprofundada apresentação do livro do seu antigo professor, salientado, por um lado, a diversidade dos temas incluídos nos 15 ensaios que contém, e que, temporalmente, vão desde o fim da Idade Média até ao tempo presente, e por outro lado, a unidade que esses mesmos temas nos apresentam. Prometeu-nos no final da sessão que nos forneceria uma cópia da sua intervenção, que aguardamos com ansiedade, e que incluiremos no nosso blogue, num post especial.
Recordamos que o Prof. Manuel Simões foi professor em Itália de língua e literatura portuguesa, durante mais de trinta anos. Também ensinou literatura brasileira. A sua enorme e diversificada experiência fez com que desenvolvesse um olhar original sobre o nosso país e a nossa cultura, bem patente nesta obra.
Um projecto com as dimensões desta Antologia (178 poetas, sem contar com o conhecido “Cancioneiro do Niassa”, 646 pp.) e que nasceu no âmbito das realizações do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, onde foi objecto de estudo nos últimos anos, teria que envolver uma ampla equipa com a supervisão de dois organizadores, Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi. Tal projecto desenvolveu-se tendo em consideração quatro objectivos essenciais: recolha e análise crítica da poesia da guerra colonial; avaliação do impacto da guerra na poesia portuguesa contemporânea; organização de uma antologia da poesia sobre a guerra colonial; e contribuição para o debate e a memória pública da guerra, através de diversos colóquios, de que o último teve como tema “Os filhos da Guerra Colonial: pós-memória e representações” (14 e 15 de Junho de 2011). E, como afirmam os organizadores, a partir de três eixos: «(1) perceber a intersecção poética entre o individual e o colectivo nos aspectos vivenciais e traumáticos da Guerra Colonial; (2) reflectir sobre as relações entre poesia, memória e memória poética; (3) avaliar o impacto da poesia nas memórias públicas da Guerra Colonial e do fenómeno da memória da guerra na sociedade portuguesa e nas suas representações» (p.23).
Na transparente e documentada introdução à Antologia, os organizadores assumem por inteiro o “desafio científico” de seleccionar, a partir de uma floresta de textos poéticos, heterogéneos e que muitas vezes cumpriam uma função documental e pragmática, um corpus que obedecesse a um critério exigente saído de um debate crítico «sobre a poética, a memória, o esquecimento, as suas relações com a poesia e, em particular, a poética em tempo de guerra» (p.23). A memória, como se vê, constitui o núcleo dos critérios metodológicos, com a consciência de que, através da poesia, se pode construir uma memória poética de um facto histórico, o que pressupõe a hermenêutica da memória.
Tendo que seguir um critério de arrumação dos materiais, os organizadores conceberam uma divisão temática, distribuindo os poemas por blocos que obedecem aos temas “Partidas e Regressos”, “Quotidianos”, “Morte”, “Guerra à guerra”, “O dever da guerra”, “Pensar a guerra”, “Memória da guerra”, “Cancioneiros”, “Cancioneiro Popular” e “Ainda”, secção esta que inclui dois belíssimos poemas, o primeiro de Fernando Assis Pacheco e o segundo de Manuel Alegre, extraído de “Nambuangongo, Meu Amor: Os Poemas da Guerra” (2008):
As nossas frases estão cheias de picadas
de minas a explodir nos substantivos
por dentro do silêncio há emboscadas
não sabemos sequer se estamos vivos.
Os helicópteros passam nas imagens
a meio de uma vírgula morre alguém
e os jipes destruídos estão nas margens
do papel onde talvez para ninguém
se vão escrevendo estas mensagens. (p.550)
Não é difícil, portanto, perceber a importância e o alcance desta Antologia, que constitui um marco fundamental para se poder “ler” criticamente a guerra colonial a partir de textos poéticos provenientes de vários quadrantes e de acordo com a visão dos autores referenciados, o que mostra como aquele evento controverso e desamado tocou profundamente a poesia portuguesa contemporânea. No seu não menos importante “posfácio”, os dois organizadores proporcionam ao leitor uma moldura crítica que só pode enriquecer a apreensão do texto na sua globalidade. E assim referem os momentos fundamentais: «Tempo um: Requiem por um império ou sombras da guerra entre nós – Poesia 61»; «Tempo dois: Requiem por um império ou a reinvenção retórica do império»; «Tempo três: Requiem pela guerra – Três vozes da Guerra Colonial»; «Tempo quatro: A dimensão performativa do canto na poesia da Guerra Colonial» (Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, José Mário Branco, Luís Cília e outros).
Esta monumental Antologia, limiar de um corpo de dimensões mais vastas a confluir num arquivo digital aberto (Arquivo Electrónico da Memória Poética da Guerra Colonial), encontrou nos dois organizadores os interlocutores qualificados, considerando os estudos anteriores sobre o tema, objecto de várias publicações de âmbito internacional: “Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo” (Afrontamento, 2004) de Margarida Calafate Ribeiro; e “Excepção Atlântica. Pensar a Literatura da Guerra Colonial” (Afrontamento, 2010) de Roberto Vecchi, entre outras.
O Autor tem-se ocupado, desde meados da década de 90, dos temas e problemas relacionados com a literatura da guerra colonial e do seu impacto no imaginário português, a ponto de se poder dizer que é hoje um dos grandes especialistas de uma matéria que remete para “um passado que ainda foge à fundação de uma memória compartilhada”. De facto, data de 1995 a publicação de dois importantes ensaios (“Literatura da guerra colonial: a melancolia como género” e “A guerra colonial entre género e tema: ‘Jornada de África’ de Manuel Alegre”), que constituíram o ponto de partida para esta abordagem global que é parte de uma investigação persistente de alguns anos sobre a guerra colonial e, de modo mais específico, sobre a literatura que procurou representá-la.
Ao longo de um preâmbulo e de oito capítulos de grande maturidade reflexiva, até do ponto de vista teórico, o Autor conduz o seu discurso no sentido de observar a literatura da guerra colonial como um modo, entre outros possíveis, para tentar um discurso crítico sobre Portugal, sobre o império colonial (ponto ainda fracturante da história portuguesa contemporânea), sobre o trauma, “sobre a relação entre a violência e a excepção para que sempre remete”.
Tal discurso assenta numa reflexão profunda sobre as questões subjacentes e implícitas à representação de mecanismos perversos que conduziram todo um percurso, de que destaco, por razões de espaço: “Usos e genealogia: os corpos despedaçados e a história”; “a melancolia como género”; “Restos, rastos, indícios e fantasmas. Tragédia e trágico” (capítulo 1); saudade, luto, melancolia na literatura da guerra colonial (capítulo 2); e, de modo particular, todo o capítulo 5, como se pode avaliar pela súmula que antecede o capítulo: “Memória e história […] (Quase) lutos, cicatrizes, epitáfios. Enterrar os mortos: as Antígonas trágico-modernas da guerra colonial. A condição póstuma do Autor: tal Império, qual conflito? Quem são as vítimas invisíveis de uma não guerra sem nome? Astúcias e incoincidências do autor póstumo na literatura da guerra colonial. Traumas transbordantes e políticas póstumas do trágico: ‘Enterrar os mortos e cuidar dos vivos’. Culpa e crueldade nas representações da guerra colonial”.
Na sua globalidade, o volume constitui um desafio que o Autor faz a si próprio e aos leitores no sentido duma leitura abrangente e iluminante, sob muitos aspectos, dos vários textos ficcionais que se produziram sobre a guerra colonial. Concordo plenamente com Margarida Calafate Ribeiro, prefaciadora do volume, quando afirma que este livro nos leva a reflectir “sobre Portugal de uma forma teoricamente provocante, absolutamente inovadora e distinta do que até agora tem vindo a ser feito”.
Roberto Vecchi é professor de Literatura Portuguesa e Brasileira, e de História das Culturas de Língua Portuguesa na Universidade de Bolonha. Para além dos dois ensaios já citados, de certo modo fundadores do que viria a ser a investigação futura, é autor de vários ensaios sobre o mesmo tema, publicados em Portugal, em Itália e no Brasil. Desses estudos destaco: “Mares coloniais, mares da memória. Algumas considerações sobre a literatura da guerra colonial” (1994); “Percursos. Fragmentos de uma ‘recherche’ da África perdida” (1996); “Barbárie e representação: o silêncio da testemunha” (2001): “Experiência e representação: dois paradigmas para um cânone literário da guerra colonial” (2001); “Restos de experiência, rastos de memória: algumas características da guerra colonial” (2001); “Das relíquias às ruínas. Fantasmas imperiais nas criptas literárias da guerra colonial” (2003); e “Império português e biopolítica: uma modernidade precoce?” (2007).
(Este livro foi apresentado na Livraria Barata no dia 25 de Outubro de 2010).
. Ligações
. A Mesa pola Normalización Lingüística
. Biblioteca do IES Xoán Montes
. encyclo
. cnrtl dictionnaires modernes
. Le Monde
. sullarte
. Jornal de Letras, Artes e Ideias
. Ricardo Carvalho Calero - Página web comemorações do centenário
. Portal de cultura contemporânea africana
. rae
. treccani
. unesco
. Resistir
. BLOGUES
. Aventar
. DÁ FALA
. hoje há conquilhas, amanhã não sabemos
. ProfBlog
. Sararau