João MachadoO humor e a política em Portugal
A presente crise política é muito séria. Contudo o humor pode ajudar-nos a suportá-la e, mais importante ainda, a entendê-la. Ricardo Araújo Pereira, na sua coluna
Boca do Inferno, na revista
Visão n.º 915, saída a 16 de Setembro último, mostra-o brilhantemente. Peço a compreensão do autor e da
Visão para o transcrever a seguir, e propor a sua inserção no blogue
Estrolabio. Ora leiam:
We all live in a expensive submarine
Imagine que um misterioso submarino captura três homens, que são obrigados a permanecer no seu interior e a participar em aventuras incríveis, entre as quais se conta uma luta sangrenta com lulas gigantes. Agora imagine que dois misteriosos submarinos não capturam ninguém, embora haja cerca de uma dezena de arguidos à beira de ser capturados por causa deles, e que, até chegarem ao seu destino, participam em aventuras incríveis, entre as quais se conta uma luta sangrenta com uma fatura gigante. A primeira história é ficção científica; a segunda história é Portugal – que é como a ficção científica, mas menos verosímil. A primeira foi inventada por Júlio Verne; a segunda saiu da cabeça de Paulo Portas, que também efabula com talento.
Afinal é a ficção que imita a vida ou a vida que imita a ficção? No resto do mundo, não sei. Em Portugal, é a vida que imita a ficção científica. No livro de Júlio Verne, o submarino bate-se com lulas gigantes. A compra dos submarinos portugueses, ao que parece, teve a intervenção de um polvo razoavelmente grande. As boas histórias de submarinos acabam sempre por envolver cefalópodes de grande porte, tanto na realidade como na ficção. A diferença é que, nas Vinte Mil Léguas Submarinas, a tripulação do submarino consegue matar as lulas – o que maravilhou de igual modo os entusiastas da ficção científica e os apreciadores de calamares. Em Portugal, o polvo continua a operar em várias áreas. O lince da Malcata e o polvo da administração pública são as duas espécies mais protegidas do País. Só a primeira é que está em vias extinção.
Outra semelhança: ficção e realidade são igualmente imprevisíveis. Nas aventuras do Nautilus, somos surpreendidos a todo o momento por peripécias inesperadas. Na história do Arpão e do Tridente, ninguém conseguiria prever que dois submarinos orçados em 769 milhões fossem acabar por custar mais de 1000 milhões.
Enfim, a afeição dos grandes artistas pelos submarinos é conhecida. Mas, em certos setores artísticos, o público é menos tolerante com as extravagâncias subaquáticas dos autores. Quando os Beatles lançaram a canção Yellow submarine, na qual proclamavam que vivemos todos num submarino amarelo, a generalidade da crítica supôs que os versos tinham origem não tanto numa intenção metafórica quanto numa relativamente prolongada exposição a substâncias alucinogénias. No entanto, não há muita gente que ponha em causa a lucidez dos autores da aquisição de dois submarinos por 1000 milhões de euros em tempo de crise. Curiosamente, os Beatles devem ter faturado quase tanto com o seu submarino amarelo como nós gastámos nos nossos dois submarinos pretos.
O investimento em submarinos imaginários revela-se mais ajuizado do que a compra de submarinos reais. Fossem os governos de Portugal compostos por músicos toxicómanos, em lugar de políticos ponderados, e teríamos um país mais próspero. Aqui está uma ideia que os manuais de ciência política têm ignorado.
Este texto delicioso deve ter feito rir à gargalhada os seus leitores. Reflecte, claro, o talento do autor, no confronto de três histórias de submarinos, o que é um achado espantoso, mas também evidencia a gravidade da situação em que os portugueses se encontram, nas mãos de pessoas que cometem descalabros como a aquisição do Arpão e do Tridente, de pouquíssima utilidade, mas enorme custo para as finanças de um país falido. É um exemplo excelente do que é o tratamento de um assunto muito sério com graça, sem deixar de nos fazer sentir a sua gravidade. A comicidade da conclusão não impede o sentimento de preocupação muito fundamentada.
O humor não tem sido muito apreciado em Portugal. É verdade que os portugueses são grandes contadores de anedotas, conseguindo gracejar com situações muito graves, nem sempre da melhor maneira, e evidenciando por vezes preconceitos graves. Contudo a prática do humor, não é de modo nenhum recente. Mais abaixo vou reproduzir um escrito de André Brun (1881 – 1926), que foi militar de carreira, mas também humorista, cronista, poeta e autor de várias peças de teatro. Participou com distinção na I Guerra Mundial, tendo chegado a major e recebido a Cruz de Guerra. Foi gravemente ferido (tanto quanto sei foi gaseado), tendo ficado com graves problemas de saúde. Foi fundador da Sociedade Portuguesa de Autores, em 1925. Da sua obra destacam-se as peças A Maluquinha de Arroios e A Vizinha do Lado, e A Malta das Trincheiras, sobre a sua experiência na guerra, Soldados de Portugal, sobre a guerra peninsular, e vários livros de crónicas. No campo do humorismo, são de referir Procópio Baeta, Os Meus Domingos, e Praxédes, Mulher e Filhos, colectâneas de crónicas. É do último o texto que segue, escrito em 1914, há portanto quase cem anos. Praxédes é um personagem inspirado com certeza nalgum conhecido de Brun, um modesto funcionário público, casado e com três filhos, com algumas pretensões e muitas limitações, em permanente espanto no mundo da I República Portuguesa, que vai fazer agora cem anos:
Semana Santa
Abriram-se num sorriso franco as faces rubicundas de Praxédes, ao ler hoje nas gazetas a tolerância de ponto concedida aos funcionários públicos amanhã e depois. Melhor seria dizer francamente que se dava feriado, pois todos nós sabemos a que equivale uma tolerância em Portugal; mas enfim …
- Parabéns, seu Praxédes. Duas folgas na roça, hei?
- É verdade, meu amigo. Não há dúvida nenhuma que a tragédia do Gólgota foi um grande acontecimento. Dois mil anos depois, no regime em que vivemos, ainda uma pessoa pode ler o jornal na cama e tomar banho geral, porque o Filho de Deus se deixou crucificar entre dois ladrões.
- Bem empregado tempo …
- O pior é que amanhã tenho de sair a ver as igrejas.
- Você? Livre pensador e ateu …
- Graças a Deus! Mas que quer que lhe faça? É uma ocasião de arejar gratuitamente a família. O meu pequeno, o Quico, não me largava para eu o levar aos anões do Coliseu. Prometi que o levava a S. Nicolau e à Conceição Velha. A pequena, a Fifi, precisa de namorar, - coitada! – e tem muita fé com isto da Semana Santa. Arranja sempre qualquer coisa, principalmente em S. Domingos, por causa do pé do Senhor e da escadinha. A minha mulher, enquanto não empregar a filha, não descansa. Que remédio senão fazer a diligência! De caminho arejo também a sobrecasaca, que não visto desde a inauguração do Centro 5 de Outubro lá da minha paróquia. Isto de semana santa, meu amigo, é ainda um dos divertimentos familiares mais honestos e económicos …
- A propósito, há de me dar licença para eu mandar um pacote de amêndoas à sua menina.
- Pois não! Até calha bem. São seis tostões que eu tinha orçamentados para essa despesa e que ficam em casa.
Limitei-me a actualizar a ortografia do original, que fui buscar a uma edição de 1916, da Guimarães & C.ª – Editores. Acho este texto muito engraçado, num estilo diferente do Ricardo Araújo Pereira. Apesar de quase um século ter passado sobre ele, não perdeu nem a graça, nem a actualidade. E tem uma ternura especial, que era característica do André Brun.