Em 1961, o São Martinho calhou a um sábado. Com colegas da RTP fui festejar a data para um restaurante dos arredores. Cozido à portuguesa, vinho tinto, castanhas assadas e água pé... Ao meu lado sentou-se um jovem, uma meia dúzia de anos mais velho do que eu, mas com menos de trinta anos, trabalhava no Lumiar enquanto eu estava na rua de São Domingos à Lapa. Falámos durante o almoço. Chamava-se João. João Soares Louro. Era um simples funcionário, mas de categoria superior à minha, pois trabalhava na empresa desde a fundação. Brincámos com a semelhança do nome – Louro, Loures. Um colega tranquilizou-me discretamente. O Soares Louro era «dos nossos». E, antes das entradas, já percebêramos que estávamos do mesmo lado. Anos depois, viria a ser administrador da empresa. Em 1994, estive com ele numa reunião da RTC para combinar uma campanha publicitária. Não lhe recordei esse dia de três décadas atrás. Até porque, embora delicado, correcto, via-se que não estava bem disposto. Talvez já estivesse doente. Nesse São Martinho de 1961, no regresso, a Lisboa, fomo-nos despedindo e o Soares Louro recomendou, a mim e a outros três colegas de esquerda, que passássemos pela sede da candidatura da oposição democrática, instalada perto do Martim Moniz, salvo erro na rua do Socorro.
As eleições legislativas, realizavam-se no dia seguinte, mas a Oposição retirara-se pois não tinha condições mínimas para concorrer. Apesar disso, havia trabalho político a fazer. Lá fomos. Uma sala muita pequena cheia de gente. Uma senhora franzina, de cabelo claro, muito enérgica, atendeu-nos. Apresentámo-nos e logo nos arranjou que fazer. Nem mais nem menos que dinamizar na empresa uma subscrição nacional a favor da compra de uma nova rotativa para o jornal “República”. A senhora chamava-se Maria Eugénia Varela Gomes e era a esposa do então capitão, um homem que corajosamente, punha em risco a sua carreira, ao aceitar ser candidato pela Oposição. Após o assalto ao quartel de Beja em que o marido foi gravemente ferido, seria presa pela PIDE e barbaramente torturada. Durante a campanha, no Teatro da Trindade, assistira a uma sessão de esclarecimento em que falavam os candidatos pelo círculo de Lisboa. Entre eles o capitão Varela Gomes. Começara por ler a sua intervenção, mas depois, enervado, pôs os papéis de parte e fez um discurso de improviso de uma acutilância que era rara por aquela época. Atacou o ditador tacanho, a influência da Igreja Católica, a polícia política, a Guerra Colonial que começara nesse ano, a Censura, em suma pôs em causa os fundamentos da ditadura. A sala irrompia em frequentes e vibrantes aplausos.
Nós, aquele grupo de quatro oposicionistas, começámos logo na segunda-feira a nossa tarefa. Percorremos as secções, aproveitámos a hora do almoço (eu fora eleito para a comissão que dirigia o refeitório, a biblioteca e as actividades culturais e, fora das horas de serviço, movimentava-me pelo edifício sem que isso fosse notado). Da Alameda das Linhas de Torres chegou-nos um grande contributo. Conseguimos uma importância elevada, uns contos de réis, que não traduzo em euros porque ficaria ridícula. E não o era. Lá fomos os quatro um fim de tarde levar o dinheiro ao jornal em nome dos «Democratas da RTP».
O jornal, pela importância da doação e por vir donde vinha, do pessoal de uma empresa do Estado, logo na edição seguinte nos meteu na lista que, diariamente, era publicada. O presidente do Conselho de Administração andou uma manhã aos gritos pelos corredores: «Onde é que estão os democratas da RTP?» e agitava um exemplar do República. Foi um dia de juízo. Toda a gente sabia quem tinha recolhido os donativos. Os quatro do costume. Ninguém nos denunciou. E havia gente de direita, com legionários pelo meio, inclusive. O meu chefe de secção, que não se metia em política, mas contribuíra com um donativo, fez uma intervenção ameaçando quem falasse de passar a ser desprezado «como um cão», foi a expressão que utilizou. O director de serviços apoiou-o de forma discreta, mas firme. Este director, um economista, morreu jovem, pouco depois de eu ter saído (logo no mês seguinte, em Dezembro desse ano de 1961) e vejo agora que há um realizador com o seu apelido. Talvez um filho.
A camaradagem, e também o medo do desprezo geral, sobrepuseram-se às convicções políticas. Nenhum dos (poucos) salazaristas assumidos nos denunciou. Até porque se os oposicionistas activos eram conhecidos, os salazaristas também e se houvesse denúncia, mesmo que estivessem inocentes, seriam acusados. E o Presidente esqueceu a questão. Não me recordo se a rotativa foi comprada nessa altura ou se isso só aconteceu quando o jornal foi reformulado no começo da década seguinte. Não é importante. Onde quero chegar é à seguinte questão - que jornal era este pelo qual nos arriscámos a ser presos e a perder o emprego? Era um vespertino que eu não apreciava (embora tenha, uma ou outra vez, publicado colaboração minha), muito agarrado aos republicanos históricos e, na sua última fase, disputado por pecepistas e «socialistas». Mau aspecto gráfico, artigos geralmente respeitáveis, mas enfadonhos. Era, em todo o caso, um jornal importante.
Fora fundado em 1911, por António José de Almeida. Nos anos da ditadura o "República" manteve-se sempre na oposição. Tenho para mim a convicção de que Salazar o conservou como amostra do seu «liberalismo». Carvalhão Duarte, José Magalhães Godinho e Raul Rêgo, personalidades importantes na área republicana, maçónica e socialista, foram os seus últimos directores. Pouco antes da nossa tarefa política, estivera em evidência durante a campanha para a eleição presidencial de 8 de Junho de 1958, em que dera grande cobertura à candidatura de Humberto Delgado.
Mas, no final da década de 60, o "República" atravessava um acentuado período de decadência, comentando-se a inevitabilidade da sua extinção, pois não passava dos 10 mil exemplares de tiragem diária. Contudo, em 1972, foi reanimado por um aumento do capital social. Renovado o equipamento, para os seus quadros entraram pessoas ligadas ao movimento que iria dar lugar ao Partido Socialista, militantes da Acção Socialista Portuguesa, fundada em Genebra, em Novembro de 1964: Mário Soares, Raul Rêgo (que substituiu Carvalhão Duarte na direcção), Gustavo Soromenho… A equipa redactorial foi rejuvenescida com gente da mesma área: Mesquita, Arons de Carvalho, Jaime Gama, António Reis e Álvaro Guerra e outros. As tiragens subiram e o jornal assumiu uma maior visibilidade.
Todavia, após a Revolução de Abril, o jornal foi sacudido por uma tremenda agitação, pois a uma administração e a uma equipa redactorial conotadas com o Partido Socialista, opunham-se os trabalhadores gráficos e administrativos, ligados a partidos de esquerda. A crispação foi-se acentuando e quando no princípio de Maio de 1975 a administração tentou admitir mais redactores ligados ou conotados com o PS, foi convocada uma Reunião Geral de Trabalhadores que condenou a crescente hegemonia socialista, boicotando a saída do jornal no dia seguinte.
Esta situação foi depois ultrapassada, mas, dias depois, novo impasse - O destaque dado pela redacção a uma visita da delegação de um grupúsculo maoísta à China, movimento adversário do PCP, e um artigo condenando a posição dos trabalhadores da Radiotelevisão Portuguesa ligados ao PCP, foram a gota que fez transbordar a taça. Desencadeou-se um irreversível processo de ruptura que colocou em confronto, de um lado, a Administração, a Direcção e os redactores e, do outro lado da barricada, a Comissão Coordenadora de Trabalhadores dos gráficos e trabalhadores dos serviços administrativos e comerciais. E o «República» que resistira durante os quase 50 anos de ditadura, não resistiu à luta política, após o advento da democracia.
Situado no Palácio de Belém, o museu procura oferecer aos visitantes uma informação ampla e rigorosa sobre a instituição presidencial, a sua história e os seus titulares. Essa informação é dada com suportes tecnológicos inovadores.
O Museu está dividido segundo as seguintes matérias. 1 - A Implantação da república e os Símbolos nacionais ; 2- A República e os seus Presidentes , 3 - Presentes do Estado, 4 - Os Presidentes da república, 5 - Palácio de Belém, 6 - Ordens Honoríficas, 7 - Os Poderes e a actividade do Presidente da República.
Vá até Belém, a praça mais bonita do mundo, almoce num daqueles restaurantes ao ar livre defronte de casas do século XVII, coma dois (só,dois) pastéis de Belém e a seguir faça a digestão num jardim maravilhoso, visitando o Palácio e o Museu.
Actas das Sessões Secretas da Câmara de Deputados e do Senado da República sobre a Participação de Portugal na I Grande Guerra
Este livro revela ao pormenor os temas mais importantes da vida nacional da época: a participação de Portugal no conflito europeu e toda a problemática da defesa e manutenção dos territórios portugueses em África. São documentos igualmente importantes para o estudo do parlamentarismo português e dos principais vultos políticos que intervieram nessas sessões.
Constituem dois livros manuscritos. O primeiro corresponde às Actas das Sessões Secretas da Câmara dos Deputados que decorreram de 11 a 31 de Julho de 1917, contendo 88 folhas manuscritas em diversos tipos de letra personalizada, pois, tratam-se de papéis colados que fazem parte integrante das actas e que são os extractos fornecidos pelos próprios oradores…
Há cem anos que nasceu Afonso Costa. Foi, porventura, entre 1910 e 1930, o mais querido e o mais odiado dos Portugueses. O seu nome simbolizou toda uma política, mesmo um regime, até. Endeusaram-no como talvez ninguém neste país, desde D. Miguel e até Salazar. Como eles, tornou-se um mito, um Messias, depois de ter sido arauto de uma situação e o estadista que, acaso mais a radicou em sete anos apenas de acção intermitente, mas fecunda. Esteve sempre entre os dois mais votados candidatos republicanos ao Parlamento, onde quer que se propusesse jamais perdendo uma eleição desde 1906. Ninguém lhe levou a palma em popularidade real e persistente, em presença viva junto de todas as camadas populares, do Minha ao Algarve, nem sequer Bernardino Machado com seu chapéu pronto a cumprimentar ou António José de Almeida com sua honestidade proverbial e seus arroubos…
De há já a tempo que se contava entre as minhas ocupações a de aproveitar o facto de haver na posse da minha família cartas régias para realizar um estudo histórico sobre um período que para mim tinha triplo interesse – o período durante o qual meu bisavó paterno, o almirante Ferreira do Amaral, presidiu ao ministério que foi o primeiro do reinado de D. Manuel II.
Triplo interesse porque três são os especiais motivos de atracção que me fizeram embrenhar nesse labor. Por um lado, o facto de estar na fruição de elementos inéditos de evidente valor histórico; por outro, o de se tratar de uma época de relevância acentuada no destino da Monarquia, instituição que já contou com as minhas simpatias; e, finalmente, por ser figura principal desse período um membro da minha família, para mais caluniado pelos que posteriormente analisaram o papel que desempenhou.
A partir de amanhã vamos voltar a publicar diariamente fichas de leitura das obras que fazem a história da República, da conspiração, da implantação, da sua conturbada existência…
José Brandão, o nosso colaborador que nos tem apresentado valiosas séries sobre vários temas históricos portugueses foi o autor. Revejam esta interessante série e procurem e leiam os livros que dela fazem parte.
A República nos livros de ontem nos livros de hoje
Uma das mais completas, senão a mais completa, das bibliografias sobre este importanta tema. (Começa às 17 horas de amanhã)
Um dos acontecimentos que mais contribuiu para o desgaste e descrédito da instituição monárquica foi a questão do Ultimato que, em 11 de Janeiro de 1890, faz hoje 121 anos, o governo britânico (que designava o documento por «Memorando») entregou ao governo português exigindo a retirada das forças militares existentes no território compreendido entre as colónias de Moçambique e Angola, a maior parte nos actuais Zimbabué e Zâmbia), a pretexto de um incidente ocorrido entre portugueses e Macololos. A zona era reclamada por Portugal, que a havia incluído no famoso Mapa Cor-de-Rosa (que vemos acima), editado pela Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1881, reivindicando, a partir da Conferência de Berlim de 1884/5, uma faixa de território que ia de Angola a Moçambique. Vejamos o mapa em versão simplificada.
Lembremos que a Sociedade de Geografia de Lisboa fora criada no ano de 1875 com o objectivo de «promover e auxiliar o estudo e progresso das ciências geográficas e correlativas». Surgira no contexto do movimento europeu de exploração e colonização, focando a sua actividade na exploração do continente africano.
E , já agora, uma pequena bravata de bibliófilo – em 1990, quando do centenário do Ultimato, procurei nos alfarrabistas o livro editado pela Sociedade de Geografia. Acabei por encontrar um em relativo bom estado e que adquiri, salvo erro, por quatro mil escudos. Há pouco tempo, numa reunião com o presidente da Sociedade, soube que a instituição não tem na sua biblioteca nenhum exemplar – apenas possui em arquivo uma série de fichas com páginas coladas de um exemplar do pequeno livro de 20 páginas e um mapa – o tal. É uma das jóias da minha colecção. Lembram-se do «Louco dos Livros» caricaturado por Sebastian Brant? Mas voltemos ao tema.
Estas pretensões portuguesas entravam em rota de colisão com o projecto britânico de construir uma linha de caminho-de-ferro ligando o Cairo à Cidade do Cabo, projecto megalómano que nunca se realizaria. Portanto, o governo da rainha Vitória não podia contemporizar com as pretensões de Portugal. Dizia o documento britânico:
«O Governo de Sua Majestade Britânica não pode dar como satisfatórias ou suficientes as garantias dadas pelo Governo Português… O que o Governo de Sua Majestade deseja e no que mais insiste é no seguinte: que se enviem ao Governador de Moçambique instruções telegráficas imediatas para que todas e quaisquer forças militares portuguesas no Chire e no País dos Macocolos e Machonas se retirem. O Governo de Sua Majestade entende que, sem isto, são ilusórias todas as garantias dadas pelo Governo Português.
Mr. Petre ver-se-á obrigado, tendo em consideração, as suas instruções, a deixar imediatamente Lisboa com todos os membros da sua legação se uma resposta satisfatória à precedente intimação não for por ele recebida esta tarde; e o navio de Sua Majestade «Encnentress» está em Vigo aguardando as suas ordens. Legação Britânica, 11 de Janeiro de 1890.» Linguagem clara, sem eufemismos, um ultimato – uma intimação, como se diz no texto .
Na própria noite de 11 reuniu-se o Conselho de Estado, sob a presidência de D. Carlos. Manifestaram-se diversas posições. Serpa Pimentel opôs-se a uma rendição incondicional. Mas prevaleceu a posição da aceitação das imposições inglesas, talvez a mais sensata, face à reduzida capacidade bélica das nossas forças armadas, mas a menos popular. O comunicado oficial tornado público pelo ministro Barros Gomes, depois de algumas considerações, terminava cedendo e informando que seriam expedidas para o Governo-Geral de Moçambique «as ordens exigidas pela Grã-Bretanha».
O País explodiu em ira. As manifestações de patriotismo e de apelo à guerra sucederam-se. Foi neste clima de exaltação nacionalista que Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça compuseram o actual hino nacional. O governo caiu e no dia14 foi empossado um novo ministério presidido por António de Serpa Pimentel, o conselheiro que defendera a resistência à imposição britânica. Os republicanos não desperdiçaram a ocasião e aproveitaram o clima quase insurreccional que se estabeleceu. Em 23 de Março, António José de Almeida, estudante em Coimbra e futuro presidente da República, foi preso por ter publicado um artigo com o título «Bragança, o último», ofensivo para com o rei. Em 11 de Abril foi publicado o Finis Patriae de Guerra Junqueiro, ridicularizando também a figura real.
Formalizando a cedência, em 20 de Agosto foi assinado o Tratado de Londres entre os dois «aliados», definindo os limites territoriais de Angola e Moçambique. Publicado no Diário do Governo de 30 de Agosto e apresentado ao parlamento nesse dia, desencadeou nova onda de protestos e, mais uma vez, a queda do governo. Na sequência deste humilhante episódio, foi criada em Lisboa a Liga Liberal, movimento de protesto contra o Tratado de Londres presidido por Augusto Fuschini com a participação de João Crisóstomo, que promoveu uma reunião, no Teatro de São Luiz, em que participaram cerca de 400 oficiais envergando os seus uniformes. Após 28 dias de crise política foi nomeado a 14 de Outubro um governo extra-partidário, presidido por João Crisóstomo, apoiado pela Liga Liberal. A calma foi regressando aos poucos.
Estes acontecimentos desencadeados pelo ultimato britânico de 11 de Janeiro de 1890 condicionaram irreversivelmente a evolução política portuguesa, desencadeando uma cadeia de acontecimentos que desembocou no Regicídio e, depois, no fim da Monarquia Constitucional. Houve, como se calcula, muita demagogia, mas não há dúvida que se verificou um acréscimo da consciência colectiva portuguesa. De sentimento patriótico e de orgulho nacional, digamos.
O livro «O Ultimatum Inglês – Política externa e política interna no Portugal de 1890», de Nuno Severiano Teixeira (Publicações Alfa, Lisboa, 1990), constitui uma excelente e objectiva descrição dos factos anteriores e posteriores à apresentação deste ultimato que tanto influenciou o que ocorreu no País nas décadas seguintes. Iniciou-se um profundo movimento de descontentamento social, implicando directamente a família reinante, vista como demasiado próxima dos interesses britânicos, na decadência nacional patente no ultimato. Os republicanos capitalizaram este descontentamento, iniciando um crescimento e alargamento da sua base social de apoio que levou à implantação da república em 5 de Outubro de 1910.
Sou republicano e anti-monárquico, mas reconheço que se a questão do ultimato tivesse ocorrido depois da proclamação da República, a solução não poderia ter sido muito diferente. Afinal de contas, a Grã-Bretanha era a superpotência da época e entrar em guerra com os ingleses teria sido desastroso. Poder-se-ia ter cortado relações diplomáticas, mostrando ao mundo que éramos vencidos, mas não convencidos. Será que um governo republicano teria feito isso? Afinal, para além da sua força militar, a Grã-Bretanha era o nosso principal parceiro comercial, dependendo muito a nossa economia do que exportávamos para o Reino Unido. Não me parece que se pudesse ter feito algo de substancialmente diferente.
De uma coisa não há dúvida – o Ultimato de 11 de Janeiro de 1890 constituiu um importante marco na caminhada para a proclamação da República. Aqui fica, na forma simplificada, um vídeo com o fragmento de «A Portuguesa» que a República adoptou como hino nacional. A versão original e completa, que se compreende perfeitamente dentro do contexto em que os autores criaram o hino, dizia: I
O 31 de Janeiro foi a primeira tentativa de implantar a república em Portugal. A relevância histórica deste acontecimento é de primeira grandeza. E tem de se salientar que não aconteceu no Porto por acaso. Durante o século XIX, a vida política portuguesa foi agitada por numerosas convulsões, na sua maioria sob influência dos grandes conflitos internacionais do tempo. A disseminação das ideias progressistas propagadas na sequência da Revolução Francesa teve impacto considerável, os acontecimentos que iam ocorrendo em Espanha também, claro que sobretudo junto das pessoas mais instruídas, que mais facilmente se apercebiam do que se passava lá fora, e das consequências respectivas.
Evidentemente que foi sobretudo nos meios urbanos que essas ideias granjearam mais adeptos. O Porto, o centro mais importante do Norte, com muitas ligações ao estrangeiro, com destaque para o Reino Unido, desempenhou um papel de relevo na maioria das grandes movimentações políticas ocorridas em Portugal no século XIX. O desenvolvimento económico e cultural da cidade contribuiu poderosamente para que desempenhasse esse papel. Várias das acções promovidas pelos portuenses ao longo deste período foram decisivas para o avanço da democracia em Portugal. O seu desenrolar culminou no 31 de Janeiro, quase vinte anos antes do 5 de Outubro.
Há que destacar em primeiro lugar que o Porto foi o centro de onde o liberalismo (o liberalismo vintista) irradiou para todo o país. Foi a partir do Sinédrio, uma tertúlia política formada em 1818 por cidadãos portuenses, ou ligados intimamente à cidade, com destaque para o magistrado Manuel Fernandes Tomás (1771-1822), que se formou o movimento que levou à Revolução de 1820 e à elaboração da Constituição de 1820.
Grande número de cidadãos portuenses, ou de algum modo ligados ao Porto, tiveram participação notória na vida nacional nos anos seguintes, como Almeida Garrett, os irmãos Silva Passos, José Ferreira Borges, José da Silva Carvalho; Manuel Borges Carneiro e tantos outros. Manuel Fernandes Tomás, considerado como o patriarca da Revolução, integrou a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino e apresentou ao parlamento, em 1821, o Relatório do Estado Público de Portugal. A sua morte, no ano seguinte, afectou seriamente os acontecimentos políticos que se seguiram.
Manuel Fernandes Tomás
Em 1828 ocorreu a chamada Belfastada. Formou-se uma Junta no Porto para fazer frente a D. Miguel, que tinha entretanto assumido o poder, e regressado ao absolutismo puro e duro. Várias cidades a norte do Mondego aderiram ao movimento, e começou a formar-se um governo provisório. Um grupo de liberais, refugiado em Inglaterra, alugou o vapor Belfast, e veio para o Porto apoiar os revoltosos. Tendo-se desentendido, ante a aproximação dos miguelistas, voltaram para Inglaterra no mesmo barco.
Em 1832 ocorreu o desembarque dos liberais no Mindelo, vindos dos Açores, e que entraram no Porto sem encontrarem resistência por parte das tropas miguelistas. Mas depois tiveram que suportar o cerco da cidade durante um ano, em situação de grande desproporção de forças. As forças liberais conseguiram suportar o cerco, obviamente, porque dispunham do firme apoio da população portuense.
Anos depois, e na sequência das reformas tendentes à centralização administrativa decretadas por Costa Cabral, rebentou no norte de Portugal uma revolta popular, a Maria da Fonte (1846). A ela se seguiu um movimento de outra índole, mas também tendencialmente revolucionário, a Patuleia, que tinha à cabeça a Junta do Porto, aliando facções de vários quadrantes. A Junta organizou um Governo provisório, levou a guerra a todo o país e começou a preparar a marcha sobre Lisboa. Contudo, a derrota em Setúbal de uma coluna que marchava sobre Lisboa, a de outra em Torres Vedras, os choques entre miguelistas e setembristas e a intervenção estrangeira levaram à sua rendição, que ficou consumada na Convenção de Gramido, em 24 de Junho de 1847. Gramido fica em Valbom, Gondomar.
Em 1851, foi a adesão do quartel de Santo Ovídio ao movimento encabeçado por Saldanha (que tinha comandado a campanha contra a Patuleia) contra o governo de Costa Cabral que abriu caminho à Regeneração. O marechal tinha-se refugiado na Galiza por falta de apoio às suas pretensões a um lugar de destaque na corte, mas assim que soube do apoio daquela unidade militar regressou imediatamente a Portugal. Assim começou no país uma época de relativa estabilidade política, e de algum desenvolvimento económico, que culminou no chamado fontismo.
Em 1876, no Pacto da Granja, praia situada no concelho de Gaia, fundem-se o Partido Histórico e o Partido Reformista, para formarem o Partido Progressista. No mesmo ano aparece no Porto o Centro Eleitoral Republicano Democrático do Porto. Nas eleições de 1878 verifica-se o regresso à alternância partidária com o Partido Regenerador.
Foi pelo Porto, em 1878, que o Partido Republicano de Portugal conseguiu eleger o seu primeiro deputado, o engenheiro, professor catedrático e publicista José Joaquim Rodrigues de Freitas (1840-1896). Esta notável figura já anteriormente tinha ocupado o lugar de deputado pelo Partido Histórico, mas foi-se aproximando dos ideais republicanos, tendo mesmo, em 1874, feito na Câmara dos Deputados um discurso memorável, no qual defendia a superioridade do regime republicano sobre o monárquico.
J.J. Rodrigues de Freitas (Biblioteca Jaime Cortesão)
Em 1881, apareceu no Porto um importante jornal republicano, o Folha Nova, com Emídio de Oliveira como redactor principal, e um naipe de jornalistas que incluía, entre outros, Sampaio Bruno.
Em 1890 ocorreu o Ultimato inglês, que constituiu um rude golpe no orgulho do nosso país. A reacção foi enorme por todo o país, nos vários quadrantes políticos, e também no meio militar. Ficou claro o descrédito da monarquia, como sistema de governo, e também no aspecto de identificação do rei com o interesse nacional. Jovens militares do Porto começaram a pensar numa revolta, e a pedirem o apoio da população. Chegou mesmo a formar-se um directório civil, que incluiu o advogado Alves da Veiga (que chegou a proclamar a República das janelas da Câmara Municipal) e os jornalistas João Chagas e Sampaio Bruno. A má preparação da acção militar no terreno, conjugada com o abandono da maioria dos oficiais superiores, levou ao falhanço da revolta.
A República, quando foi proclamada, era uma aspiração de muitos portugueses havia já várias dezenas de anos. E nisso o Porto teve um papel muito importante, senão decisivo, ao manter essa chama acesa.
Em declarações a um semanário português (Expresso, 14/08/2010), Duarte Pio de Bragança, pretendente a um trono inexistente, afirmou: “Temos uma república que não é completa, onde o povo é tratado como ignorante. A nossa democracia limita muito o direito de escolha ao não permitir que se pronunciem sobre o tipo de chefia do Estado que querem. É este um dos limites materiais da nossa Constituição”.
Também julgo a república incompleta e, em abstracto, não recusaria um referendo ao tipo de chefia do Estado.
Parece-me, aliás, evidente que a maioria dos cidadãos preferiria continuar a sê-lo a tornar à condição de súbdito e perguntados entre a república e a monarquia, apesar das revistas do mundo rosa, votaria pela república.
Disse ainda sua alteza virtual: “O que a Constituição diz é que não se pode alterar a forma republicana de governo. O que deveria dizer é que não se pode alterar a forma democrática de governo”. É simpático ver quem se quer rei pugnar pela democracia, mas se o fosse, se em monarquia, pugnaria igualmente pela consulta do povo quanto ao tipo de chefia do Estado que quer? Aceitaria uma decisão democrática, expressa pela maioria dos portugueses, que o destituísse e à monarquia?
É possivelmente verdade que presidentes há que, uma vez eleitos, gostariam de ser reizinhos, e como tal se comportam, até na corte com que se fazem rodear e nas prebendas que distribuem.
A presidência da República fulanizada não é, outrossim, a única forma de chefia presidencial e será até, talvez, menos republicana e democrática que uma presidência colegial e, na representação, rotativa.
Sim, a democracia é uma questão inacabada, sempre em construção, e actualmente sujeita à deriva não democrática duma visão reducionista e exclusivamente representativista, que exclui e expulsa a dimensão da participação e poder de decisão popular em todos os assuntos de cidadania e reconhece apenas o direito de voto quadrienal.
Mas poderá a monarquia ser mais democrática, ou sequer democrática?
Quanto à monarquia, e apesar de agora nenhum partidário da mesma se atrever, ao menos publicamente, a defendê-la sem o adjectivo de constitucional, há perguntas essenciais para as quais ainda não vi, o pretendente ou qualquer dos seus acólitos da causa real, responder satisfatoriamente.
Quem escolhe o Rei? Como é escolhido o Rei? Quem sucede ao Rei?
(Por mim, onde está rei pode ser lido rainha; podê-lo-á também para os nossos monárquicos?)
A história mostra que de pretendentes está o inferno cheio e a frequência do fratricídio na gestão do assentar no trono – com os túneis, apitos dourados e claques do seu tempo.
Admitamos que alguns monárquicos, poucos serão se alguns, defendam a eleição do Rei pelo povo; que critérios e limites estabelecem para alguém poder ser candidato? Os constitucionalmente consignados hoje ou outros e quais? Genealógicos?
Suponhamos que a monarquia era reinstaurada e até que, pasme-se, o rei era livremente escolhido pelo povo. Por quanto tempo? Poderia ser destituído pelo mesmo povo? E quando morresse ou ficasse incapaz seria o seguinte, também ele, eleito?
E uma eleição, por si, não faz uma democracia. Infelizmente, conhecem-se os exemplos de ascensão democrática ao poder rapidamente transformada em exercício autocrático, ou mesmo totalitário (neo-absolutista), do poder.
Se encontrar monarquistas defensores da eleição do rei é tarefa de mais de uma vida, ainda mais difícil, senão impossível, será encontrar algum que não afirme o carácter vitalício, inamovível e hereditário do soberano.
E estas três características são, por natureza, não democráticas – para, educadamente, não dizer anti-democráticas.
Mas imaginemos, por absurdo, que, ao contrário, democraticamente, os monarquistas – esperá-lo do pretendente seria bipolar – defendiam, ou pelo menos aceitavam, que o rei fosse eleito, que fosse periodicamente eleito por todo o povo, que o seu mandato fosse limitado e que pudesse ser destituído; então, seria um presidente ou, vá lá, um Rei-presidente.
Não queremos deixar de assinalar a passagem do centésimo aniversário da proclamação da República e, assim, vamos dedicar a esse importante acontecimento da nossa História contemporânea alguns textos. Cada um deles focará um acontecimento que, na nossa opinião, tenha contribuído para a queda do regime monárquico.
De notar, que estes despretensiosos flashes não pretendem substituir a abundante bibliografia que existe sobre o assunto. Na sua maior parte, obras concebidas por pessoas que dedicaram as suas vidas a investigar o período histórico que abordam. Estes textos, cuja informação foi muitas vezes colhida nessas obras de referência, procuram despertar o interesse pelos temas abordados e levar a ler alguns livros fundamentais. Não são monumentos, mas sim modestas tabuletas que a eles pretendem conduzir. Um dos textos futuros, o último, será dedicado à enumeração das principais obras que consultei. Eis então alguns dados.
Um dos primeiros defensores da instauração da República em Portugal foi o jornalista, escritor e político, José Félix Henriques Nogueira ( 1825-1858). Nos seus textos defendia o republicanismo e o socialismo. Expondo as suas teses sobre a instauração de um regime republicano, o municipalismo, o federalismo e o associativismo, escreveu artigos para jornais - Eco dos Operários (1851), Revolução de Setembro (1852), sendo fundador do Almanaque Democrático (1852-1855). Publicou a obra Estudos sobre a Reforma em Portugal (1852). Fundou em 1854, o jornal Progresso , que se ocupava de política e questões económicas. Natural de Torres Vedras, Henriques Nogueira morreu com apenas 33 anos. Defensor do associativismo, do cooperativismo e do iberismo, precursor da República e adepto do socialismo inspirado em homens como Charles Fourier, Louis Blanc ou Proudhon. É, por alguns historiadores considerado como um dos primeiros teóricos do ideal republicano.
Numa fase posterior e num patamar intelectual mais elevado, surge outra figura importante na construção de uma filosofia republicana - Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894). Oliveira Martins avaliou a vida política nacional e as suas insuficiências no ponto de vista da relação entre os políticos e a sociedade civil e sobretudo das limitações da opinião pública (no que tinha toda a razão). Foi, sem dúvida, mesmo quando não formalmente, o grande mestre do pensamento liberal português, na segunda metade do século XIX, interpretando o socialismo de Proudhon numa acepção autoritária. O seu pensamento teve grande influência na evolução da historiografia portuguesa.
Em 10 de Janeiro de 1875, no reinado de D. Luís, fundava-se o Partido Socialista Português (Partido Operário Socialista). José Fontana, Azedo Gneco, Antero de Quental, figuravam entre os seus fundadores. O Partido surgia na sequência das decisões do Congresso de Haia da AIT - Associação Internacional de Trabalhadores. Entre as medidas preconizadas, incluía-se a «abolição do Estado em todas as suas formas históricas» e a preparação para o advento da «República Social».
.Em 25 de Abril de 1876, foi criado em Lisboa o Centro Eleitoral Republicano Democrático, onde se juntavam diversas sensibilidades do ideal republicano. No seguimento deste processo, eleger-se-ia o Directório do Partido Republicano. Alguns historiadores consideram que este foi o primeiro passo para a constituição do Partido Republicano, formado em 7 de Setembro 1875. Resultando do Pacto da Granja, nele se fundiram o Partido Reformista e o Partido Histórico, movimentos que, desde 1871, encabeçavam a oposição ao governo regenerador de Fontes Pereira de Melo. O espírito que presidia a esta nova formação política era o da tradição «setembrista», designação para os ideais da Revolução de Setembro de 1836 – digamos que o setembrismo era constituído pela esquerda democrática do liberalismo triunfante da Guerra Civil.
Em 1878, nas eleições de Outubro, o Partido Republicano apresentou-se pela primeira vez ao eleitorado, conseguindo eleger o deputado Rodrigues de Freitas pelo círculo do Porto. Em 2 de Janeiro de 1879, mercê das divergências existentes no seio do Centro Republicano Democrático, foi criado o Centro Republicano Federal.
Porém, seria em 1880, durante as comemorações do tricentenário da morte de Camões, que as instituições republicanas e o movimento ganhariam grande impulso e implantação entre a população. Principalmente o cortejo cívico que atravessou a capital no meio de grande entusiasmo popular. A trasladação dos restos mortais de Camões e de Vasco da Gama para os Jerónimos, foram outro momento alto das comemorações, não esquecendo as luminárias.
A presença de republicanos na comissão organizadora – Teófilo Braga, Magalhães Lima, Batalha Reis, entre outros, e o envolvimento do próprio Partido Republicano na iniciativa, marca a passagem do republicanismo das salas de reuniões, para as ruas; da discussão entre gente bem pensante, saltou para o meio do povo onde o ideal foi apreendido nas suas linhas gerais, baseado em oratórias geralmente simplificadoras e demagógicas (80% da população era analfabeta).
Essa compreensão básica e linear da ideia republicana, vendo-a como solução para todos os problemas nacionais, motivou, proclamada a República, a desilusão traduzida em revoltas, motins e em golpes militares sucessivos, que acabaram por destruir a I República e conduzir à ditadura. Mas não nos antecipemos. Por hoje, quedamo-nos em 1880.