Segunda-feira, 4 de Outubro de 2010
(Continuação)
Romagem às campas dos regicidas.Segundo parece, o acordo estabelecia que os republicanos contribuíssem com os homens dispostos a sacrificar a vida (porque todos sabiam que disso se tratava) e os monárquicos com o dinheiro para reunir os meios necessários à execução do plano. Eram necessárias armas de grande qualidade e, portanto, caras.
Meses antes, ainda em 1907, a fábrica norte-americana Winchester lançara um novo modelo de carabina semiautomática, com bloco de culatra reforçado de modo a suportar o elevado calibre 351. Era uma arma de grande fiabilidade, certeira, com um acabamento de grande qualidade, com inovações muito avançadas para a época. Dava garantias de precisão e eficácia, desde que utilizada por um bom atirador, naturalmente.
O armeiro Heitor Ferreira, estabelecido no actual Largo D. João da Câmara (a loja ainda existe) encomendou, pois, à sucursal europeia da Winchester, a casa Monkt, de Hamburgo, nove carabinas desse novo modelo. Cada uma custava uma pequena fortuna.
Mal a encomenda chegou, vendeu três carabinas a gente conhecida (e rica). As vendas foram sendo registadas num livro que, durante as investigações do processo do regicídio, desapareceu. As restantes seis ficaram reservadas. A outra arma encontrada no local do atentado, a pistola FN Browning de calibre 7,65, usada pelo Alfredo Costa era igualmente de um modelo muito avançado, portátil, funcional. Foi realmente adquirida no estabelecimento de Heitor Ferreira (com o número de registo 349-432). Na foto abaixo, podemos ver uma arma destas, produzida em 1906-1908.
Há quem afirme que Afonso Costa se gabava de ter sido ele a oferecer a arma ao Costa. Vemos que, ou se trata de um mito, ou Afonso Costa mentia. Pensando bem, por que iria Afonso Costa mentir? As armas dos regicidas mortos no local, foram devidamente identificadas e conhece-se a sua proveniência. Aliás, nesta matéria, na qual o factual, o documentadmente histórico, deveria prevalecer, a relativa proximidade temporal, leva a que haja sempre quem tenha ouvido do pai, do avô, versões sem qualquer consistência. Meros boatos, como os que hoje correm sobre as personagens da política actual - porém, a estes a patina de um século confere-lhes respeitabilidade. Principalmente os monárquicos, ãpoiando a sua versão histórica em
ses, alimentam muito as suas crenças ideológicas em mitos - denegrindo as personagens republicanas e esquecendo que a queda da Monarquia se deveu sobretudo á corrupção, à incompetência, quando não mesmo à mais rasteira traição, dos políticos monárquicos. Adiante.
Resolvido o problema das armas era necessário encontrar quem as usasse. É aqui que os serviços da «Coruja», uma célula ou canteiro que funcionava fora do controlo da Alta Venda, foram requisitados. Sabe-se que, entre 28 e 31 de Janeiro, houve depois da reunião da Quinta do Ché, houve outras em que todo o plano do Regicídio foi afinado. E terá sido neste ponto que a «Coruja» entrou em cena. O que era a «Coruja»? Era, segundo tudo o indica, uma estrutura paralela à Carbonária. À frente dela estava José Maria de Sousa, António José dos Santos, Coelho Bastos e Henrique Cordeiro, os quais, depois de recrutarem numerosos adeptos, a dissolveram, integrando estes na Carbonária, o que era, afinal, o fim que se propunham. Composta por gente corajosa e exaltada, era ideal para cumprir uma missão que se sabia implicar o sacrifício da vida, pelo menos aos elementos que iam actuar à vista de todos. Portanto, os conspiradores republicanos forneceram aquilo que, brincando com coisas sérias, podemos considerar a mão-de-obra.
Segundo o historiador Mendo Castro Henriques em «Dossier Regicídio», terá sido o visconde de Pedralva a comprar as seis armas. Tentou-se depois fazer passar a ideia de que, embora o alvo da operação fosse João Franco, não tendo conseguido apanhar este, o Buíça e o Costa, tinham de motu proprio decido assassinar a família real. Como se gente tão fanaticamente cumpridora de ordens fosse capaz de decidir uma alteração tão profunda que contrariava as ordens recebidas. Aquilino Ribeiro em «Um Escritor Confessa-se» sugere que terá sido uma inspiração de momento, uma decisão dos regicidas. Não faz qualquer sentido. Uma operação prevista ao segundo, com tiros disparados de diversos pontos da praça e com uma logística complicada, que parecia estar preparada para, caso o Buíça e o Costa falhassem, haver quem levasse a missão a cabo, não se improvisa do pé para a mão.
Segundo o que tenho conseguido apurar, da parte dos republicanos não existia um ódio particular ao rei D. Carlos. Atacavam-no, insultavam-no, aproveitavam os seus mínimos deslizes, os escândalos que ele protagonizava, o despesismo de que fazia alarde… Inventavam escândalos, se fosse necessário. No entanto, não era uma questão pessoal. Fosse outro o rei e fariam o mesmo. Como se viu nos dois anos e meio em que D. Manuel reinou – não houve escândalos e nem por isso a propaganda republicana deixou de atacar o rei.
O Partido Republicano queria derrubar o regime. Se em vez de D. Carlos, estivesse um santo, um modelo de virtudes, seria transformado pela propaganda republicana num monstro. Não temos que nos admirar. Ainda hoje é assim .
Ao contrário dos republicanos, que atacavam o rei só por ele ser o representante de um regime que queriam derrubar, os monárquicos, José de Alpoim, mais do que ninguém. Odiavam profundamente a pessoa de D. Carlos. Quando numa entrevista ao diário parisiense
Le Temps, em Novembro de 1907, d. Carlos dissera ao jornalista que tinha inteira confiança em João Franco, lhe elogiara a inteligência e que fora o único político com carácter que encontrara, criara numerosos inimigos entre os monárquicos – então não havia mais ninguém com carácter?
Raul Brandão no volume I das suas «Memórias» afirma que José de Alpoim e os dissidentes forneciam bombas explosivas, armas e dinheiro aos republicanos e, cita João Chagas: «O Alpoim foi quem nos forneceu as armas para a revolução» (…) «Nós tínhamos homens, eles deram-nos armas e bons contos de réis». Como diz Miguel Sanches de Baêna na obra referida: «A sanha contra as instituições monárquicas e contra o rei não parecia ter limites». Como conta Rocha Martins em «D. Carlos», entrando Alpoim na oficina tipográfica do jornal «O Dia», de que era director, dirigiu-se ao tipógrafo Teixeira Severino e perguntou: «Vocês não acham que D. Carlos deve ser morto? E pusera-se a assobiar».
A assinatura do decreto que permitia ao governo deportar os líderes republicanos presos no dia 28, terá tido a sua importância, mas não pode ter sido decisiva. A engrenagem que conduziu ao Regicídio já estava em marcha. Não era possível da noite de 31 para a tarde de 1 de Fevereiro, ter montado todo aquele complexo sistema.
Embora seja evidente que o plano foi bem preparado, a verdade é que houve uma displicência muito grande por parte do Governo no que se refere à segurança do chefe de Estado e dos seus familiares. Não faz sentido que, com o clima pré-revolucionário que se vivia em Lisboa, o transporte se tenha feito em landau e não em automóvel fechado e com uma escolta reforçada. Nem João Franco, nem o rei acreditavam que fosse possível haver um atentado.
A verdade completa sobre o Regicídio, dificilmente virá a ser conhecida. Com o desaparecimento do respectivo processo, restam as conjecturas, as suposições, as teorias. José de Alpoim disse em diversas ocasiões «Só há duas pessoas em Portugal que sabem tudo – eu e outra». Soube-se depois que a pessoa a quem ele se referia era ao visconde da Ribeira Brava. Muito mais haveria a dizer sobre este tema.
Domingo, 3 de Outubro de 2010
(Continuação)Carlos LouresA fórmula do juramento que os neófitos pronunciavam perante a assembleia de iniciados encapuçados, era a seguinte: «Juro, pela minha honra de cidadão livre, guardar segredo absoluto dos fins da existência desta sociedade, derramar o meu sangue pela regeneração da Pátria, obedecer aos meus superiores e que os machados dos rachadores de cada canteiro se ergam contra mim se faltar a este solene juramento.
Os populares iniciados, operários quase todos eles, foram colocados nas Choças que com o abandono dos académicos tinham ficado muito desguarnecidas. A primeira Choça, exclusivamente formada por trabalhadores, recebeu o nome de “República”.
A Alta-Venda, comando supremo da Carbonária, era composta pelo Grão-Mestre eleito na Venda Jovem-Portugal e por mais quatro Bons Primos nomeados e escolhidos por este de entre os membros da Carbonária Portuguesa. Os nomes eram conservados como secretos. Esta Alta-Venda era a instância máxima da Carbonária Portuguesa.
Para além da estrutura civil acima descrita, havia em paralelo uma outra organização constituída por militares, com um organograma similar ao do ramo civil. Por ser gente mais disciplinada e enquadrada hierarquicamente, o ritual de iniciação era bastante simplificado, quase se limitando ao juramento.
Após a implantação da República, a Carbonária ainda foi útil na mobilização popular contra as incursões monárquicas. Porém, as lutas internas nos partidos, nomeadamente a divisão do Partido Republicano Português em diversas outras formações políticas, determinou a extinção do «exército secreto da República»
Por diversas vezes, até ao golpe militar de 1926 que veio a dar lugar à ditadura, várias diligências foram feitas no sentido de recuperar a Carbonária, todas elas sem resultado. Alguns núcleos de carbonários subsistiram – gente que foi recrutada para a «Formiga Branca» de Afonso Costa, por exemplo. A organização enquanto tal, esgotou-se no processo de luta pela República. Implantada esta, deixava de fazer sentido a sua existência.
Foi, portanto desta organização secreta que saíram as ordens para eliminar os membros da família real. Os seus responsáveis máximos sempre negaram ter a Carbonária alguma coisa a ver com o Regicídio. No entanto, os dois regicidas eram membros da Carbonária.
O que se terá passado? Quem mentia? identificados e mortos no local do atentado, Manuel dos Reis da Silva Buíça, 32 anos, natural de Vinhais, professor do Colégio Nacional, e Alfredo Luís da Costa, 28 anos, natural de Casével, Alentejo, comissionista comercial, eram indiscutivelmente republicanos e carbonários. O que se passara?
Bandeira da Carbonária Portuguesa.Pelos últimos dias do ano de 1907, por ocasião do Congresso Internacional de Imprensa que se realizou em Paris, tiveram lugar algumas reuniões entre políticos republicanos portugueses e revolucionários franceses. Os encontros realizaram-se no café de um hotel, que creio ainda existir, pois não há muitos anos fiquei lá hospedado uns dias – o Hotel Brébant, no Boulevard Poissonière (um hotel relativamente barato, mas que não recomendo – um rato resolveu fazer-me companhia e comer parte de uma tablete de chocolate que deixei sobre a mesa da televisão…).
Nessa reunião de há 103 anos o assunto em agenda era, nem mais nem menos do que a supressão física de João Franco, chefe do Governo português. Na sequência dessa e doutras reuniões, foi criado o «Grupo dos 18», com a missão especifica de organizar a execução de João Franco. Um mês depois, em 28 de Janeiro de 1908, eclodiu a chamada «Revolta do Elevador», da qual falei aqui. Como disse, a revolta falhou e muitos dos líderes foram presos.
Entre os republicanos que a polícia encarcerou, estava Luz de Almeida, o comandante supremo da Carbonária. Grandes vultos do Partido Republicano Português – João Chagas, França Borges, António José de Almeida e muitos outros, foram também presos. Alguns conseguiram fugir, como os monárquicos dissidentes do Partido Progressista, entre eles José Maria de Alpoim e o visconde da Ribeira Brava. Como é que monárquicos estavam ligados a republicanos e com eles conspiravam para derrubar a Monarquia?
Pode dizer-se que a tragédia começou no interior do Partido Progressista de onde Alpoim saíra, rompendo com o líder José Luciano de Castro. Com duas dezenas de deputados que o seguiram na ruptura, criou a Dissidência Progressista. Deixando de ter uma participação activa na vida política, terá concluído que só derrubando o regime voltaria a ter poder. Em Maio de 1907, acompanhado pelo visconde da Ribeira Brava, terá tido as primeira reuniões conspirativas com Afonso Costa. Em Junho do mesmo ano, reúnem-se com o jornalista João Chagas e, depois, haverá uma reunião em casa de Alpoim, onde, segundo Chagas, citado por Rui Ramos, estiveram, os republicanos Afonso Costa e Alexandre Braga, dois militares e, pelo lado dos monárquicos dissidentes, José Maria de Alpoim, líder da Dissidência Democrática e ex-ministro da Justiça de Luciano de Castro, Francisco Correia Herédia, visconde da Ribeira Brava e o médico Egas Moniz, futuro prémio Nobel. Segundo Chagas, disse ainda havia também entre os conspiradores políticos regeneradores.
Na Quinta do Ché, perto dos Olivais, em Lisboa, realizou-se uma reunião onde terão estado presentes alguns dos elementos do chamado «Grupo dos 18», criado na sequência da reunião de Paris, grupo que tinha como missão executar João Franco. Não se sabe o que terá sido resolvido nessa reunião, mas parece ter sido aí que se tomou a decisão de abater, não João Franco, como estava previsto, mas sim o rei e outras pessoas da família real.
Carbonários em 5 de Outubro de 1910. (Continua)
Quinta-feira, 30 de Setembro de 2010
Um Ano de Ditadura – Discursos de Sidónio PaisJoão de CastroLisboa, 1924Os canhões da Rotunda em 8 de Dezembro de 1917, dia de Nossa Senhora, sagravam o Libertador.
O que era ele e o que queria? Isso não importa. Era o Libertador. Era o homem capaz de congregar numa só energia todas as energias, num só sonho de esperança todas as desventuras. Era alguém que sozinho, desacompanhado, sem preparação nem génio político, acordou um país para a esperança de viver. Era um Messias, um desejado, mas trabalhando como devia contra as falsas ideologias, contra os estrangeiros, contra a indisciplina e a anarquia, contra a horda invasora contra tudo o que se congregara na demagogia. Era o Desejado, o entusiasmador do povo, mas ao mesmo tempo aquele que pelo seu aparecimento e existência mostraria o novo caminho.
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Um Escritor Confessa-seAquilino RibeiroLivraria Bertrand, 1974Penso às vezes – por poesia, claro está – que talvez tivessem cometido esse intrigante e ilógico disparate por respeito fidalgo pela população lisboeta – em 1919 republicana até ao fundo dos ossos. Pressentiram possivelmente que seria criminoso conquistar pela astúcia uma cidade em que os homens e as mulheres, quando tomaram consciência da situação, vieram para as ruas aos gritos de horror entusiástico, a rebuscar nos museus e nos recantos dos alçapões as poucas armas existentes.
Qualquer servia para os grupos combatentes improvisados: mosquetes com azebre, espetos de assar carne, bacamartes de carregar pela boca, pistolões ferrugentos, paus de vassoura afiados e, principalmente, essas espantosas balas de água que são as duras lágrimas dos olhos determinados.
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Domingo, 26 de Setembro de 2010
A Sinfonia da Morte
Carlos Loures
Âncora Editora, 2008
A Sinfonia da Morte , terceiro romance do autor, utilizando como pano de fundo o tema do Regicídio de 1908 e a escaldante situação política em Portugal na primeira década do século XX, traça-nos uma interessante trama ficcionística, onde são colocadas questões eternas, tais como a existência ou a inexistência de Deus, a prevalência (ou não) do amor sobre os interesses materiais, a vitória ou a derrota da bondade na sua luta contra a ferocidade que o homem herdou da sua condição animal. Esta obra é uma co-edição com as Edições Colibri.
Carlos Loures nasceu em 1937 em Lisboa. Entre 1958 e 1960, foi um dos organizadores da Revista Pirâmide, na qual colaboraram numerosos escritores. Com Manuel Simões, organizou uma série de antologias temáticas de poetas portugueses. Talvez um Grito (1985) e A Mão Incendiada (1995), são as suas anteriores incursões no território da ficção.
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A Situação PolíticaAlfredo PimentaLisboa, 1918…como o regímen republicano que é diferente da pessoa do sr. Sidónio Pais, não merece confiança á Nação, esta, nas eleições de 28 de Abril, manifestando-se como se manifestou, deu provas evidentes do seu sentir monárquico, cercando os deputados e senadores, monárquicos de uma votação bem significativa.
A situação politica só se esclarecerá definitivamente no dia em que a Nação puder responder livremente á pergunta que se lhe faça sobre as instituições politicas que prefere. Por ora, sabemos isto apenas: a Nação é conservadora, e aclama quem lhe garantir, eficazmente e honradamente, o princípio da Autoridade. Nada mais.
l0 de Maio de 1918.
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Sexta-feira, 10 de Setembro de 2010
Carlos LouresJá aqui falei deste assunto, mas iria referir hoje alguns aspectos e pormenores que não foquei nesse texto anterior. Em cima, vemos uma "reconstituição" do atentado´, fantasiosa como todas as muitas que por esse mundo fora se fizeram.
Embora se saiba que uma conjura de monárquicos, mais concretamente de gente da Dissidência Progressista, liderada por José de Alpoim e pelo visconde da Ribeira Brava, esteve na base da conspiração, há pontos obscuros - uns que podem ser esclarecidos, outros que, muito provavelmente, nunca o serão. Diz José Luciano de Castro, em «Documentos Políticos»: «Os dissidentes, que para a generalidade do país, são os principais responsáveis da tragédia do 1 de Fevereiro de 1908, e que, se não destruíram a monarquia foi porque não puderam». No meu romance «A Sinfonia da Morte» encontro uma explicação plausível e na qual acredito; mas trata-se de uma ficção, onde as suposições são permitidas. Inclusivamente, nos chamados romances históricos, são pelos hiatos da documentação histórica que a teia da ficção passa e se constrói. Hoje vou falar do que se passou no Terreiro do Paço em 1 de Fevereiro de 1908, cerca das 17 horas.
Com o auxílio do livro que o meu amigo, o historiador Miguel Sanches de Baêna, publicou em 1990, «Diário de D. Manuel - e estudo sobre o Regicídio) nomeadamente com algumas das suas excelentes ilustrações e recorrendo à peritagem a que ele procedeu, com envolvimento do Laboratório de Polícia Científica, vou tentar reconstituir a posição dos principais intervenientes no drama, os seus passos, o que fizeram durante aquele terrível minuto. A atenção dos peritos incidiu sobre três elementos:
a) O landau em que a família real viajava.
b) Asa roupas vestidas pelo rei e pelo príncipe real.
c) A análise balística.
Recorrerei ainda a um ou outro pormenor das autópsias aos dois cadáveres.
No desenho abaixo pode ver-se a posição correcta da família real no landau.
Vejamos agora como Buíça e Costa se movimentaram na praça. Já sabemos que Buíça saiu de junto do quiosque e se dirigiu calma mas rapidamente para junto das arcadas do lado poente. Colocando-se à retaguarda do landau, aproximadamente a 5/8 metros puxou da carabina que trazia escondida pelo gabão (uma Winchester calibre 351) e começou a fazer fogo.
O primeiro tiro foi mortal. Tomando a gola do uniforme de generalíssimo de D. Carlos como referência, acertou-lhe na coluna vertebral, provocando-lhe morte imediata.
Um outro atirador, munido de carabina também, disparou da placa central, de junto do pedestal da estátua. Os impactos são ainda visíveis na 13ª coluna das arcadas, a aproximadamente três metros de altura. Ao mesmo tempo, Buíça dispara o segundo tiro. Atingiu o rei no ombro esquerdo a 15 cm do primeiro, a bala rasgou a o capote e desfez a charlateira do dólman que vestia por baixo, atravessando ainda o lanternim esquerdo da carruagem. Foi este impacto que projectou o corpo do rei, já sem vida, sobre D. Amélia. Foi então que Alfredo Costa interveio. Empunhando uma pistola Browning FN, calibre 7,65m, saltou para o estribo esquerdo e disparou sobre o corpo inerte do rei atingindo-o nas costas, debaixo da omoplata direita. O segundo disparo atravessou o capote à altura do antebraço, mas sem perfurar o corpo. D. Luís Filipe puxou do seu Colt, calibre 38. Costa disparou sobre ele, atingindo-o à altura do pulmão, mas não o matando. O príncipe, por seu turno, desfechou quatro tiros sobre o Costa, que caiu, ferido de morte, gritando.
Na fotografia acima, em que o modelo veste o capote do rei, a primeira seta aponta sobre a gola vermelha o ponto de entrada do projéctil disparado pelo Buíça. Como medida de segurança, este acertou-lhe ainda no ombro esquerdo. O tiro mais abaixo, que se alojou no pulmão direito, foi o disparado pelo Costa com o rei já morto. A foto mostra os pontos de entrada dos três projécteis.
Ao lado, vemos a gravata e, abaixo, a camisa de D. Luís Filipe, manchadas com o seu sangue. O disparo do Costa sobre o príncipe, não foi mortal, mas provocou uma ferida muito sangrativa. Buíça, embora professor, tinha sido sargento em Lanceiros 2 e era um atirador de elite. Foi ele quem, com um tiro disparado já de longe, porque entretanto o landau ia a atingir a esquina com a Rua do Arsenal, disparou um tiro que acertou no rosto do príncipe e o matou. Perfurando-lhe a face, o projéctil saiu pela nuca.
Foi então que o efeito surpresa se desvaneceu e a escolta reagiu. Um soldado de Infantaria 12, Henrique Alves da Silva Valente, atacou o Buíça que, já sem ângulo de tiro ainda o feriu na coxa esquerda. O tenente Francisco Figueira Freire, oficial às ordens do rei, de sabre desembainhado acutilou o Costa, já tombado e depois caiu sobre o Buíça e atravessou-o à altura dos rins. Apesar de muito ferido, rodeado por populares e soldados, ainda mordeu na mão um dos soldados que o atingiu à queima-roupa na cabeça. Quando analisaram a carabina, verificaram que o carregador foi integralmente usado. Buíça não falhou um único tiro.
O relatório médico do exame externo aos cadáveres do rei e do príncipe, revelaram que:
a) – o corpo de D. Carlos apresentava o vestígio de duas balas – uma que atravessou o corpo, deixando orifício de entrada e de saída, e outra que não saiu. A primeira bala, a mortal, penetrou a região dorsal a 2 cm da linha mediana; a segunda entrou na região infra-escapular direita e ficou alojada dentro do corpo.
b) – No corpo do príncipe foram encontradas lesões provocadas por duas balas, uma de efeitos insignificantes e outra causadora da morte. Sabemos que a primeira foi a que Buíça disparou e a segunda foi a de Costa (embora a ordem de disparo seja a inversa).
Sobre as mortes dos dois principais regicidas (foi provada a existência de, pelo menos, mais três), há diversas versões, sobretudo sobre o Alfredo Costa que, segundo as descrições mais verosímeis, foi morto por D. Luís Filipe, mas que segundo outros, teria sido somente ferido pelo príncipe e teriam sido os agentes da polícia que teriam acabado com ele. É relativamente irrelevante. Nesta série de textos que tenho vindo a dedicar aos momentos capitais que antecederam a proclamação da República, voltarei ainda, uma terceira vez, a este tema.
Segunda-feira, 30 de Agosto de 2010
Páginas de SangueSousa Costa
Guimarães Editores, s. d.Por isso, ao começar o presente volume, relembro esses instintos e esses impulsos, lanço os olhos curiosos ao já vasto e agitado panorama da vida política portuguesa do meu tempo às suas convulsões através da ditadura franquista, aos quadros sangrentos das incursões monárquicas, aos quadros trágicos das revoluções republicanas, e observo, e concluo:
– Afinal, por mais que sobre a índole humana rolem as turvas torrentes ou as águas claras das idades, ideologias e apostolados, a índole humana é seixo que não amacia nem ao correr de dilúvios. Não há dúvida – o homem é o único animal indomesticável. Calmo na jaula das conveniências e interesses quotidianos, mal lhe ameaçam ou lesam interesses e conveniências – a mesa, o mando, a confraria – logo arreganha a dentuça primitiva, o ser humano volvido à fera bruta.
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Páginas do meu DiárioArmando Marques GuedesLisboa, 1957Um gentilíssimo espírito, que muito prezo, escreveu há pouco que detestava os livros de memórias por não passarem, em regra, de auto-elogios dos seus autores. O asserto tem uma parte de verdade, mas é excessivo pela sua generalização. Os livros dos memorialistas fornecem frequentemente subsídios valiosos para os historiadores. É ideia assente hoje que a História deve basear-se em documentos. Mas não é menos verdade que o documento é frequentemente coisa fria e morta; às vezes é tendencioso ou uma expressão de falsidade. Quantas vezes representam apenas a versão oficial e deturpada dos acontecimentos!...
E falta-lhe quase sempre o elemento subjectivo, o factor psicológico, que explicaria satisfatoriamente os homens e os acontecimentos.
Quinta-feira, 19 de Agosto de 2010
Carlos LouresContinuando a referir os marcos essenciais da caminhada para a queda da Monarquia e para a proclamação da República, chegamos hoje a um ponto capital desse processo – o Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908. É um tema fulcral e, por isso, já muita coisa foi dita. As versões são muitas e, raramente se aproximam da verdade. Por exemplo, o desenho que vemos acima, publicado na «Ilustração Portuguesa», aliás como todos os outros que foram aparecendo em publicações portuguesas e estrangeiras, dezenas e dezenas de versões iconográficas do atentado, são todas fantasiosas. Umas mais do que outras. Não existe nenhum documento iconográfico credível. Na época, as fotografias eram feitas com a máquina imobilizada, colocada num tripé. Quando a família real chegou à Estação do Sul e Sueste, os fotógrafos tinham as máquinas montadas e fizeram numerosas e irrelevantes fotos.
O barco “D. Luiz”, vindo do Barreiro, chegou pelas cinco da tarde à gare. Vinha com atraso relativamente à hora marcada, pois o comboio que trouxera desde Vila Viçosa a família real, descarrilara no apeadeiro da Casa Branca. Um mero acidente. A família real passara o princípio do ano no Paço de Vila Viçosa, como era hábito e um pouco depois das cinco da tarde daquele sábado, 1 de Fevereiro de 1908, chegara a uma Lisboa onde o clima político não podia ser pior. Na terça-feira anterior, dia 28 de Janeiro, tinha havido por parte dos republicanos aliados a alguns monárquicos dissidentes do Partido Progressista, uma tentativa revolucionária (que descrevi em texto anterior). Muitas prisões de altas figuras republicanas. O rei assinara em Vila Viçosa um decreto que ordenava a deportação desses presos para as colónias. O que incendiara ainda mais o espaço político, elevando a tensão a níveis insuportáveis.
Quando o rei, a rainha e os príncipes subiram para o landau descoberto e partiram ao longo das arcadas, dando por terminado o trabalho, fotógrafos, incluindo Joshua Benoliel, e jornalistas debandaram. Por isso não há fotografias do atentado e as descrições, baseadas em testemunhos oculares, são contraditórias e confusas quando analisadas em conjunto. Apurei o seguinte (utilizo parte de um texto que escrevi para outro trabalho):
A carruagem, seguida das outras em que vinham as demais personalidades, escoltada por um destacamento da Guarda municipal, quando passava em frente do Ministério da Fazenda (perto da esquina com a Rua do Arsenal, onde depois se instalou uma estação dos CTT), foi atingida pelos primeiros tiros, segundo testemunhas oculares, disparados de ambos os lados da praça. Houve uma primeira detonação, talvez o sinal convencionado para desencadear o atentado e, depois, subitamente, escutou-se um intenso tiroteio.
Um homem de estatura meã, moreno e barbudo (Buíça), vestindo um amplo varino, retirou do interior deste uma carabina e, ajoelhando atrás do landau real, atirou as abas do gabão para as costas para libertar os movimentos e fez pontaria, como se estivesse na carreira de tiro. A gola vermelha do capote do rei oferecia um excelente ponto de referência. Começou a disparar. Outro, um jovem esguio e alourado (Alfredo Costa), saltou para o estribo do landau e disparou uma pistola sobre o rei já inerte, atingido pelo primeiro tiro do homem do varino, com a cabeça pendente sobre o ombro da rainha, sendo logo abatido por um tiro disparado pelo príncipe real. Porém, o atirador do varino voltou a disparar, matando o príncipe com uma bala em pleno rosto. O regicida do varino e das barbas foi morto à cutilada pelos guardas da escolta. O outro, o jovem louro que saltara sobre o estribo do landau tombou varado pelas balas de Luís Filipe. Tudo se passou em pouco mais de um minuto.
Traçando uma cronologia dos factos que conduziram à proclamação da República, o Regicídio sempre me apareceu como um corpo estranho. Não é um elo da cadeia, é um acontecimento marginal. Foi um acto desnecessário. Parece ter sido uma consequência do clima de crescente tensão que perturbava a vida politica portuguesa, afectando a população em geral e não apenas os activistas republicanos.
Desde a sua fundação que o objectivo central do Partido Republicano era o da pura e simples substituição do regime, a tomada do poder. Esta atitude teve a sua quota parte de responsabilidade no atentado, mas os ânimos foram acirrados, não só pela acção demagógica dos republicanos, como também pelo estabelecimento de uma ditadura administrativa, por parte de João Franco, com o apoio do rei, em 1907. Ditadura que tomou medidas impopulares e que foram ao encontro da propaganda republicana e que desagradaram inclusivamente a monárquicos, aos da Dissidência Progressista. E o Regicídio encontra nesta situação criada pelo chefe do Estado e pelo responsável pelo Governo, não uma desculpa, mas uma parte substancial da sua explicação.
O progressivo desgaste do sistema político português, vigente desde a Regeneração, em parte devido à erosão política originada pela alternância de dois partidos no Poder: o Progressista e o Regenerador, agravou-se nos primeiros anos do Século XX com o surgimento de novos partidos, saídos directamente daqueles. Em 1901 João Franco, apoiado por 25 deputados abandonou o Partido Regenerador, criando o Partido Regenerador Liberal. Em 1905 surgiu a da Dissidência Progressista, fundado por José Maria de Alpoim, que entrou em ruptura com o partido Progressista, do qual se separou com mais seis deputados eleitos pelo mesmo partido. À intensa rivalidade entre os partidos, agravada por ódios pessoais, juntou-se a atitude e acções críticas do Partido Republicano, contribuindo para o descrédito do regime, já de si bastante desacreditado devido às dividas da Casa Real.
Era esta a conjuntura quando D. Carlos se decidiu a ter uma intervenção activa no jogo político, escolhendo a personalidade de João Franco para a concretização da sua estratégia de aumento do poder real. Este, dissidente do Partido Regenerador, solicitou ao Rei o encerramento do Parlamento para poder implementar uma série de medidas com vista à moralização da vida política. Este desiderato fora já evidenciado antes, mas D. carlos recusara, estribado no princípio de que o rei reinava, mas não governava. Mas, finalmente, o rei entendeu que era o momento de intervir e fê-lo entregando a chefia do Governo a um homem em que confiava. E encerrou o Parlamento.
As baterias da propaganda republicana, sem deixar de flagelar a figura do monarca, foram assestadas sobre João Franco. Como já recordei noutro texto, Brito Camacho afirmou, relativamente a João Franco, "havemos de obrigá-lo a transigências que rebaixam ou às violências que comprometem". As críticas dos dissidentes progressistas, embora fossem feitas de uma perspectiva diferente, dirigiam-se aos mesmos alvos.
A vida pessoal do rei não escapava à codícia de políticos e de jornalistas, com aventuras extraconjugais, prostitutas por conta em França, amantes, filhos bastardos - uma mina para crónicas e para a propaganda. Sobre D. Amélia não se podia dizer o mesmo. Porém, um fidalgo, D. António de Albuquerque, com o seu «O Marquês da Bacalhoa» veio lançar uma sombra infamante sobre a reputação da rainha. Foi mais uma acha para uma fogueira onde havia já muito material combustível: a questão dos tabacos, o problema dos adiantamentos à Casa Real… O falhanço do chamado «Golpe do Elevador da Biblioteca», de 28 de Janeiro, de que já aqui falei há dias atrás, tem mais a ver com o Regicídio do que propriamente a marcha da República para a sua proclamação. O Regicídio surge mais como uma compensação para essa tentativa frustrada do que como um degrau de ascensão no caminho para a mudança de regime.
Para um outro trabalho, consultei ampla bibliografia, testemunhos, memórias, jornais e revistas da época. As conclusões a que cheguei, não constituindo surpresa para investigadores deste período histórico, contradiz os clichés que se instalaram no imaginário popular. Em síntese, direi que D, Carlos e D. Luís Filipe foram vítimas de uma conspiração urdida por monárquicos. O Regicídio constituiu um acto marginal à acção política republicana. O que não significa que os republicanos estivessem totalmente isentos de responsabilidades no acto. Pode dizer-se, o Regicídio não fazia parte dos planos republicanos. O rei e o herdeiro do trono foram mortos em resultado de uma conjura de políticos monárquicos ligados à Dissidência Progressista de José de Alpoim. Com alguma clarividência, o povo logo lhes chamou os «buissidentes».
Apesar de não fazer parte da estratégia republicana para a tomada do poder, o Regicídio pode, ao deixar o trono ocupado por um jovem de 18 anos, pode ter acelerado o processo e permitido que o novo regime se implantasse mais cedo. Embora sendo um «dano colateral», constituiu um marco decisivo.
Domingo, 1 de Agosto de 2010
Lápides Partidas
Aquilino Ribeiro
Livraria Bertrand, 1969
A acção decorre no período em que a velha estrutura monárquica ia definitivamente cair e, caldeada de idealismos e esperanças, iria ser proclamada a República. «Foi essa uma viragem substancial, que eu pretendi traduzir», diz Aquilino Ribeiro, «o conflito visto não da crista da vaga, mas no seu recesso, lame de fond, anotando as reacções de uma personagem que entrava na constituição do magma revolucionário, a massa de fusão. Libório Barradas é um produto do meio, condicionado por ele, sua emanação, digamos.
Em 1906 Aquilino Ribeiro vai para Lisboa, onde a sua congénita personalidade de inconformado se adapta na perfeição ao ambiente revolucionário da capital nas vésperas da instauração da República. Em 1907 é preso e no ano seguinte evade-se, fugindo para Paris.
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A Leva da Morte
Artur Villares
Livros Horizonte, 1988
Há precisamente 70 anos Portugal fazia a primeira experiência totalitária da República, o Sidonismo, verdadeiro balão de ensaio do futuro consulado salazarista. Símbolo primeiro desse regime, Sidónio Pais dominou a época, as consciências e as pessoas.
Penetrando no dia-a-dia desse período, Artur Villares, sob a forma de memórias redigidas em 1933, cruza a realidade histórica com a ficção e relembra Fátima e o anti-clericalismo, a Grande Guerra e o dilema dos portugueses, a República e a Monarquia, o Poder e a violência, numa palavra, a Vida e a Morte entre 5 de Dezembro de 1917 e 14 de Dezembro de 1918.
70 anos depois, a crónica do Sidonismo, do Poder e da Ilusão, num texto emocionante, numa plena capacidade de comunicação, no limiar da Realidade e da Ficção.
publicado por Carlos Loures às 18:00
editado por João Machado em 03/05/2011 às 00:35
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Quinta-feira, 22 de Julho de 2010
História de PortugalVolume 7(1816-1918)
Damião PeresPortucalense Editora, 1935No Tejo entrara uma armada inglesa, composta de sete couraçados e um cruzador, e cujo comandante procurou o governo para explicar a sua presença no rio e o motivo por que não salvara. Quando entrara, ainda a situação não estava esclarecida.
É ainda no dia 5 que em várias terras dos arredores de Lisboa se proclama a República (Cascais, Sesimbra, Oeiras, Paço de Arcos Almada ). Em Setúbal, a canhoneira Zaire arvora a bandeira republicana. De Torres Vedras chega a notícia da adesão de infantaria 15. Este regimento e o de artilharia 3, que vinham de Tomar, chamados pelo governo anterior, receberam naquela vila a ordem do Governo Provisório para que retrocedessem, ordem que acataram, aderindo. Infantaria 11, de Setúbal, aderia igualmente. Em edital, e com data ainda de 5, o novo governo saudou as forças de terra e mar, e, confiando no patriotismo de todos
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História de PortugalSexto Volume(1890-1926)
Rui RamosCírculo de Leitores, 1994ESTE VOLUME CONTA O QUE SE PASSOU em Portugal entre o Ultimato inglês de 31 de Janeiro de 1890 e o estabelecimento da ditadura militar a 28 de Maio de 1926. São trinta e seis anos pontuados por grandes acontecimentos, como as campanhas de ocupação em África, o assassinato do rei D. Carlos em 1908, a proclamação da Republica em 1910 e a intervenção na I Guerra Mundial (1914-1818). O leitor encontrará aqui o relato e a interpretação desses factos, bem como tudo o que é da praxe estudar em obras de história: a demografia, a economia, as finanças, as classes sociais, a literatura, as mentalidades, etc. O meu objectivo foi dar ao leitor uma visão global da época, e não servir-lhe uma série de «pratos frios» de informação e análise. Por isso, procurei entrelaçar todas essas matérias numa narrativa contínua, escrita do ponto de vista da história política.
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Domingo, 4 de Julho de 2010
Folhas do Meu Cadastro - I 1911-1925Hipólito RaposoPorto, 1944Nesse triste ano de 1908, às claras ou às escondidas, festejava-se o Regicídio, o maior crime da nossa história política; e passados vinte meses em que ninguém soube meditar a trágica lição, a secular Monarquia Portuguesa logicamente viria a sucumbir por falta de convicções, de fé e de lealdade dos que haviam jurado servi-la.
Mais uma vez se cumpriam os fados, em signo de Liberalismo Político na velha Europa Continental: desde que a soberania transitara do Trono para a Urna, a Realeza estava condenada a desaparecer.
Era inevitável o dia em que o Presidente Vitalício cederia o lugar ao Presidente Eleito, mudando-se o Trono em Poltrona, a Coroa em Barrete Frígio, o Rei em Cidadão.
E na confiança geral, gritada nas praças e festejada nas gazetas, tudo iria por bem e para melhor, no melhor dos mundos possíveis...
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Terça-feira, 22 de Junho de 2010
Diário de D. Manuel e Estudo sobre o RegicídioMiguel Sanches de BaênaPublicações Alfa, 1990As «Notas absolutamente íntimas» do último rei de Portugal vieram inteiramente ao encontro da preocupação que norteou a organização da colecção «Testemunhos Contemporâneos».
Tão importante como a descrição do regicídio nelas contida, é a sensibilidade aqui expressa pelo jovem D. Manuel, a sua visão dos políticos da época, a sua reacção emocional à violência do acontecimento, os seus afectos feridos e uma certa sensação que nos transmite do desabar de um mundo a um tempo institucional e afectivo, tudo visto por dentro do regime reinante.
Tudo indica que nos encontramos perante a primeira parte de um projecto de escrita mais vasto, que visava ser uma «história íntima» do seu reinado. O insuspeito testemunho do último rei de Portugal não deixa de contribuir para amarrar ao pelourinho os próprios monárquicos…
António Reis
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Segunda-feira, 7 de Junho de 2010
Carbonária - O Exército Secreto da RepúblicaJosé BrandãoPerspectivas & Realidades, 1984 Portugal 1910. A revolução republicana está na rua. Como foi, como se chegou a este dia, como se conseguiu derrubar um regime secular. Quem lutou, quem na hora da verdade não desistiu do combate, quem organizou com êxito a mais importante revolução da História de Portugal.
Estas e outras situações podem ser compreendidas com a leitura de «Carbonária - O Exército Secreto da República», que, sem sombra de dúvida, vem colmatar uma inexplicável brecha existente na bibliografia histórica sobre aquela que foi a mais poderosa associação secreta constituída em Portugal.
A Carbonária era diferente das outras associações do género. Não lhe interessava oradores e panfletários. Como não exibia os chefes em público não precisava de gente ‘educada’ para falar nos comícios e escrever nos jornais.
Sexta-feira, 14 de Maio de 2010
José Augusto de Jesus
Brandão, nasceu em Lisboa em 1948. Operário metalúrgico, entre 1969 e 1971 esteve na guerra em Moçambique. Ligado à ARA a partir de 1972, participou em diversas operações de reconhecimento de objectivos. Esteve preso pela PIDE em 1973. Após a revolução de Abril, foi empregado na Carris e dirigente sindical. Militante do PS, foi membro da Comissão Nacional entre 1980 e 1988 e, entre 1985 e 1987, pertenceu à Comissão Política.
Historiador, especializado na violência armada no período contemporâneo, tem uma vasta obra publicada, da qual se salienta:
Sidónio – Ele Tornará Feito Qualquer Outro (1.ª ed. 1983),
Carbonária – O Exército Secreto da República (1.ª ed. 1984),
100 Anos por 1 Dia, (1987),
A Noite Sangrenta (1991),
Suicídios Famosos em Portugal (2007);
Portugal Trágico – O Regicídio,(2008),
Cronologia da Guerra Colonial (2008) e
A Vida Dramática dos Reis de Portugal ( 2008).
Baseada na sua obra Suicidios Famosos em Portugal, iniciaremos amanhã a publicação de uma série de textos sobre o tema. Os textos que aqui apresentaremos, revistos e alterados pelo autor, são diferentes da edição de 2007.
Quarta-feira, 12 de Maio de 2010
Sílvio CastroQuase certamente, como é de conceito praticamente generalizado depois da lição de Lukács e outros, na literatura contemporânea não mais existe a possibilidade do género chamado “romance histórico”, de origens scottianas. Porém, é igualmente mais que provável que se possa criar ótima obra de ficção a partir de um dado, período ou episódio históricos. Justamente o que acontece com Carlos Loures e seu terceiro romance,
A Sinfonia da Morte.
Carlos Loures, ao tomar como referência central para o seu texto o episódio do regicídio de 1 de Fevereiro de 1908, no qual morreram o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro, Luís Filipe, preanúncio do fim iminente do regime monárquico português, com a consequente proclamação da República (1910), conhece coerentemente as normas que impedem a um escritor moderno a projetação do romance histórico. Porém, ao partir de um episódio fundamental da história de Portugal, ele está igualmente convicto de que realiza uma operação criativa baseada em normas e princípios teóricos os mais atualizados. Bem como que completa sua operação consciente dos recursos retóricos e linguísticos com que trabalha.
Loures, antes de tudo, concebe sua operação literária integrada na mais viva consciência do valor específico da linguagem. A partir dela se confronta com a matéria aparentemente absurda aos seus fins artísticos, matéria que retira da história nacional contemporânea e a faz própria, integrando-a com grande consciência técnico-literária nas invenções dramáticas com que se propõe recriar tão diversos mundos. Assim agindo, o romancista revela o adequado conhecimento daquele elemento técnico que mais claramente revela a impossibilidade da realização de um dito romance histórico: a mais moderna consciência de tempo, tanto na dimensão filosófica, quanto naquela linguística, e a consequente dualidade entre o conceito do tempo pessoal da sincronia e aquele diacrônico a que está preso o episódio histórico enquanto tal. Daí a necessidade, plenamente satisfeita pelo autor, da melhor composição entre tempo diacrônico, aquele histórico, e tempo sincrônico, aquele do narrador que se apropria da história. Assumida esta consciência que se faz metodologia da criação literária procurada, Carlos Loures se mostra pronto para a difícil meta de um texto que, mesmo tendo olhos para outras obras-modelos, em particular as dos grandes mestres do neo-realismo português, aspira a ser pessoal e inovadora.
A Sinfonia da Morte é um romance de rara, mas ao mesmo tempo, absorvida complexidade, de moderna erudição, metodologicamente aplicada; erudição e complexidade essas transmitidas por um processo linguístico realista e claro, o que permite a imediata criação de um quadro de relações entre o autor e o seu público-receptor de imediata eficácia.
Toda a história se desenvolve e cumpre em forma circular - em dosado equilíbrio entre narrativa-ficção e narrativa-ensaio - que, partida do “Prólogo”, corre quase sem empecilhos até o “Epílogo” - feito a semelhança do moderno romance-inquérito da literatura americana – para, já então completado, como que retornar idealmente ao “Prólogo”. Tudo numa sábia operação que convida naturalmente o leitor a duas imediatas leituras do romance, ambas fornecidas de objetivas satisfações.
Carlos Loures se integra no tempo narrativo aberto e desenvolvido pela história de um jovem futuro romancista da província, Jorge, que naquele fim de Janeiro de 1908 parte para Lisboa com empenhos ligados a interesses materiais da família, ao quais deve dar satisfações por encargo que lhe passa o pai. Jorge, negado para a agricultura, fonte da riqueza familiar, mas apoiado na sua fresca formação jurídica realizada em Coimbra, associa o encargo circunstancial ao seu desejo de encontrar em Lisboa aquela Samarcanda propícia a fazer florescer definitivamente seus sonhos literários. Jorge está no começo indeciso de uma primeira novela. Assim, mais com sonhos que com olhos capazes de fixar a realidade, ele parte para a Capital.
O narrador (quase)impessoal de
A Sinfonia da Morte joga com dois tempos aparentemente conflituais: o dos sonhos de um muito jovem literato em busca de sua identidade e os episódios políticos que estão para se transformar em tragédia. O romance apresenta-se assim com a estrutura formal dos quatro movimentos sinfônicos, onde o primeiro e quarto movimentos são aparentemente autônomos, enquanto os segundo e terceiro são liberados em vibrante simbiose.
A concepção narrativa tem aparentemente fundamentos românticos, mas em verdade se revela de imediato inusitada e plena de impacto. Depois de uma aparente partida compositiva de uma história ainda focada sob o signo da dualidade “amor e morte”, o autor a transforma e conduz na direção de intensa participação com o seu quase revés: “morte e amor”. Enquanto explode no tempo fora do tempo o amor de Jorge e Margarida Diniz, revela-se com intensidade o tempo diacrônico do regicídio.
O romancista supera, de pronto, a operação começada com inevitáveis tendências à predominância de intensificações metafóricas, subordinando-as com grande eficácia ao uso de um criativo processo de linguagem metonímica. Mas. a metonímia não se exime de revelar igualmente, quando conveniente, sua face metafórica.
Como consequência de seu moderno sistema de linguagem,
A Sinfonia da Morte cresce com a mobilidade do narrador (quase)impessoal, capaz de movimentos nos mais diversos tempos. Ele guia sempre as operações, mas permite os percursos de outros eu-narradores, através de uma galeria de personagens que enriquecem o romance: antes de tudo, Jorge; depois aqueles mais diretamente ligados ao personagem catalisador da ficção; o anárquico primo Luciano, de certa forma alter-ego de Jorge; o dúbio ex-companheiro da vida boêmia da Coimbra universitária, Fernando Amoreira, agora jornalista em Lisboa; Margarida Diniz, atriz, a reveladora da dimensão amorosa. Todos ligados a outras dezenas de personagens que dinamizam a ação do protagonista, como a muito simples popular Adosinda, criada de Margarida.
Paralelamente decorre a dramática presença dos mais diretos protagonistas do episódio histórico: D. Carlos, o príncipe Luís Filipe, Dona Amélia, D. Manuel, o 33º e último rei de Portugal, nascido quase como preanúncio fatal para os Braganças no dia da proclamação da República do Brasil, 15 de Novembro de 1889. Ao lado deles, a figura central do ditador João Franco, dos monárquicos dissidentes, dos dirigentes da Maçonaria e dos líderes da Carbonária portuguesa. E mais as figuras trágicas dos regicidas reconhecidos, Manuel Buíça e Alfredo Costa, junto aos quais se desenvolve a imagem um inquisidor cedo emudecido pelo poder escondido de muitos poderosos, Abílio Magro.
O romancista movimenta toda a complexidade de um tempo de pavor e violências, no qual vive por anos Portugal, disso dando testemunho a passagem aparentemente meteórica de dezenas e dezenas de nomes que são mais que somente nomes, para transformar-se em elementos da linguagem do autor: intelectuais, escritores, jornalistas, artistas, políticos, visitantes estrangeiros. Todos apanhados numa visão realista.
Somente em poucos momentos o narrador (quase)impessoal, sempre pronto ao encontro dos tempos, faz predominar aquele sincrônico; por exemplo, quando à página 236 se revela isolado num só tempo:
“Foram [Jorge e Margarida] até Algés no eléctrico aberto que tomaram perto do local do regicídio. (… …) Quando chegaram ao então agradável subúrbio, passearam de mãos dadas entre as moradias e chalés de veraneio que bordejavam a estrada asfaltada paralela à praia.”
Com
A Sinfonia da Morte, Carlos Loures enriquece o moderno romance português, anunciando um possível tempo pós-moderno que reafirma as conquistas passadas, ao mesmo tempo que propicia aquelas futuras.
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Texto publicado no nº4 da revista Nova Síntese.