Domingo, 25 de Julho de 2010

Reflexões sobre Bolonha - 3

Júlio Marques Mota*

(Continuação)

ANEXO (1)

Nota Prévia (de um texto de Economia Internacional)

O presente trabalho é a reformulação e a simplificação de um texto do mesmo nome que foi durante anos utilizado nesta disciplina. A redução da carga horária, ao abrigo das normas e dos objectivos decorrentes do chamado processo de Bolonha levou a que neste texto se procedesse a certos e, por vezes, prolongados “cortes”, de modo a adaptá-lo aos tempos de leccionação estabelecidos e ao momento na licenciatura em que genericamente estes conteúdos são estudados. Não é a mesma coisa ensinar dada matéria a alunos do quarto ano ou do terceiro ano, e também não pode ser indiferente se é ensinada no primeiro semestre ou no segundo.

Trata-se pois de fazer as respectivas adequações que no fundo se traduzem numa simples expressão: trata-se de fazer as simplificações adequadas, de modo a que o nível de ensino se enquadre no primeiro ciclo do ensino universitário pós processo de Bolonha.

Tal como antes, mantemos a certeza de que é fundamentalmente a “trabalhar” sobre as matérias que se ensinam, reconstruindo-as de acordo com as matrizes dos alunos a que se destinam, e sem que isso signifique a redução na capacidade de conceptualização e abstracção, que se pode aprender a ensinar, ou seja, que se pode igualmente aprender a trabalhar sobre um dos mais delicados e abstractos objectos de trabalho que se conhecem: a inteligência dos outros. Se a tarefa já não era nada fácil, continuar a fazê-lo com a mesma qualidade nos tempos que se adivinham pode ser mesmo muito difícil. Outros tempos, outros tempos de resistência, de que também não se pode abdicar, por muito fortes que sejam as forças em sentido contrário. Haverá com certeza tensões naqueles para quem ensinar é ainda um trabalho difícil de construção e reconstrução do saber, para se poder assim chegar ao ensino sobre o concreto.

Na Declaração de Bolonha, reconhece-se que “[se assiste] a uma consciencialização crescente em grandes áreas do mundo político e académico assim como na opinião pública da necessidade de criar uma Europa mais completa e alargada, nomeadamente considerando e dando solidez à sua dimensão intelectual, cultural, social, científica e tecnológica.”[1] Não conseguimos é compreender como é que reduzindo cargas horárias, reduzindo o número de anos lectivos, aligeirando os currículos com simplificação dos níveis de abstracção na própria leccionação, se pode conseguir o que afinal se diz pretender.

Por tudo isto, concordamos plenamente com Luís Reis Torgal[2] quando afirma que o processo de Bolonha “era apresentado pelos governos e pelos seus ideólogos em operação de marketing, feita de aparências e representações, apontando para uma imagem ‘mais inteligente de se ensinar e aprender’ (como se ‘saber ensinar’ e ‘saber aprender’ fosse uma descoberta do século XXI!) e escondendo outras motivações económicas (num mundo em que a Economia é conduzida fora do domínio dos Estados). Assim, sob a bandeira do ‘Progresso’ e da ‘Modernização’, deram-se passos para trás, num verdadeiro ‘regresso’ a um ‘futuro-passado’.”

Os objectivos do processo de Bolonha assentam numa das mais profundas contradições em que pode cair um pedagogo primário: dizem-nos que precisamos de um ensino assente nas competências, mas basta então perguntar como se pode criar competências sem o saber que as suporte, que as produza. Que este processo seja conduzido por alguém especialista em física é ainda mais de espantar, porque nessa ciência, hoje tão exacta como probabilística, não há competência que valha sem o suporte teórico que a gere. Que se leia a resposta do “velho” Einstein ao “jovem” Heisenberg, resposta de um velho que viveu para a ciência e para a democracia a um jovem que ficou, na Alemanha de Hitler, a servir o nazismo e que pode ser expressa, em síntese, da seguinte forma: não há facto em física que não precise da teoria para o definir como facto.

Sem uma sólida base teórica não pode haver prática consistente, que resista a um mundo em permanente mudança. Querer substituir um ensino abstracto por um ensino prático imediato, querer substituir um ensino assente no raciocínio abstracto por um ensino assente num concreto imediatista é, inegavelmente e em simultâneo, destruir a possibilidade de conseguir o primeiro tipo de ensino, com o qual todos nós nos formámos, e destruir a capacidade de criar as bases necessárias à obtenção das competências de que tantos falam. Os físicos sabem-no bem, mas, ironia das ironias, para isso devem então estar fora do poder e das malhas de qualquer pacto de estabilidade com o qual ninguém afinal se quer justificar. De resto, em Lisboa adoptou-se, no ano de 2000, a Estratégia de Lisboa que tinha como objectivo tornar a Europa “no espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo baseado no conhecimento”, o que implicava um enorme acréscimo de esforços em matéria de investigação e desenvolvimento, de inovação, de tecnologias da informação e de comunicação. Tudo isto deliberadamente falhou. Da ideia de economia mais dinâmica em matéria de conhecimento quase dez anos depois nada resta e, em Lisboa, a alternativa parece ser agora dotar o país com um ensino e formação o mais simplificado e mais barato possível. Ainda aqui vale a pena citar Luís Reis Torgal quando afirma: “Em nome do “actual movimento de modernização de universidades e politécnicos para desenvolvimento de sociedades e economias de conhecimento”, como reza o prólogo da proposta de lei, com chavões que falam por si, poderá estar a matar-se, sem o dizer, a Universidade como um espaço científico e um espaço crítico”.

Julgamos ser tempo de corrigir o erro em vez de se estar sucessivamente a aumentá-lo, conforme se pode inferir no horizonte quanto às dotações orçamentais para o ensino superior. Bertrand Russel tinha razão, quando afirma que “os cientistas esforçam-se por tornar possível o impossível, e os políticos por tornar o possível impossível”. E aqui o possível, como pensável, seria querer aumentar os níveis de formação e de investigação como resposta e como defesa face à economia cada vez mais globalizada, onde as pressões do “mercado” e as tensões sobre os níveis de conhecimento e sobre os quadros altamente formados são cada vez maiores. Que o digam os engenheiros da Renault e da Peugeot, que o diga a direcção da EADS quando deslocaliza centros de concepção e de investigação fundamental, e assim sucessivamente. Que o digam todos eles porque seguramente estes sabem do que se está a falar. Em vez disso perdeu-se uma oportunidade histórica de criar uma Universidade para responder aos mais intensivos desafios que hoje são colocados às sociedades modernas e, por essa via, como sublinha Luís Reis Torgal, “tendo perdido a Universidade uma excelente oportunidade para reflectir sobre o seu presente e sobre o seu futuro”.

Tal como o texto anterior que lhe serviu de base, o presente trabalho é produzido no âmbito da disciplina de Economia Internacional e corresponde agora, como já foi dito, à necessidade de sistematizar, simplificar e tornar mais acessível ou menos trabalhoso para os alunos alguns dos principais resultados da teoria neoclássica sobre o comércio internacional, o crescimento económico e a evolução dos termos de troca. Sendo esta a origem deste texto, é lógico que a preocupação máxima que presidiu à sua elaboração tenha sido de ordem pedagógica, mesmo com risco de várias repetições, quer do ponto de vista temático, quer de apresentação, o que transparece na sucessiva representação gráfica das ideias expostas, assim como no cuidado extremo na formalização matemática. Por esta razão, pensamos que os especialistas em teoria do comércio internacional não irão aqui encontrar nada de original, o que, por um lado, se deve provavelmente à minha incapacidade para o fazer, por outro, porque pretendemos apenas escrever para quem se defronta pela primeira vez com estas matérias e basicamente alunos do primeiro semestre de um terceiro ano.

Por este motivo, não se procurou aqui fazer a crítica aprofundada à teoria exposta nem sequer o pretendemos fazer mais tarde, porque esta exige conhecimentos mais aprofundados do que os possíveis de serem leccionados nesta disciplina. No entanto, a necessidade de uma análise crítica capaz de fornecer aos estudantes uma perspectiva diferente da do universo do Dr. Pangloss, que é transmitida pela teoria neoclássica, é tanto mais importante e necessária quanto os modelos desta teoria “escondem, por detrás de uma imponente fachada de símbolos algébricos, um impalpável conteúdo positivo de raciocínio”. Não temos quaisquer dúvidas que à teoria neoclássica assenta que nem uma luva a crítica de Herbert Simon quando diz: “penso que submeter os espíritos jovens e impressionáveis a este exercício escolástico é um escândalo. Eu, verdadeiramente, não espero dos economistas que retirem dos seus textos os elementos teóricos não válidos, é uma tarefa que não é para já. Mas não conheço nenhuma ciência que tenha a pretensão de falar de fenómenos do mundo real e que faça textos e discursos em tão flagrante contraste com a realidade”[3]. É neste sentido que ainda tentamos fazer com que algumas linhas críticas estejam inseridas no presente trabalho.

É necessário que os estudantes reconstruam, readquiram a sua própria visão do mundo, mas fazê-la é já estar a compreendê-lo, o que só pode ser feito com a ajuda de teorias e conceitos dotados de um poder descritivo e explicativo dos fenómenos. É importante, por isso, ir mais longe nesse sentido pois, caso contrário, corremos o risco de ficar apenas ao nível de “conhecimentos”, com um conjunto de pretensas certezas em que a própria teoria neoclássica prodigamente assenta. Esta pode levar os estudantes a tomar a sua representação do mundo como sendo o próprio mundo e isto quando esta teoria, como reconstrução do real, o deixa, do nosso ponto de vista, quase que completamente de lado. No mesmo sentido, Jacques Généreux vai ao ponto de afirmar “que a cultura neoliberal encontra a sua força na ignorância e na dissimulação dos seus fundamentos…, sendo a sua finalidade formar [pessoas] viradas para a acção e não para a reflexão.”[4] Contra as certezas da teoria dominante, rolo compressor do nosso imaginário e do nosso quotidiano, contra as certezas do “pensamento zero”, para utilizar a feliz expressão de Emmanuel Todd[5], por ausência ou por exclusão da necessidade de qualquer pensamento, julgamos que o papel do professor e dos textos feitos é, não o de oferecer certezas, mas o de procurar levar o estudante a ganhar a capacidade de ter dúvidas, a capacidade de pôr questões.

Parece-nos que hoje estamos cada vez mais distantes dessa lógica mas continuamos a defender que se deve ir mais longe na análise, mas isto significa fazer um outro percurso teórico no interior das hipóteses que sustentam a teoria neoclássica, tais como a ordenação das curvas de indiferença colectivas independentemente da repartição, a formação dos preços ao seu custo marginal, a remuneração dos factores segundo a sua produtividade marginal, a possibilidade de definir uma função de produção ou uma dotação de factores, tão importante na formalização desta corrente na explicação do comércio internacional, a capacidade de definir um stock de factores, a possibilidade de ultrapassar as dificuldades levantadas pela heterogeneidade de bens de capital, não se podendo aceitar a proposta de Magee quando nos diz “if the reader feels uneasy the use of the term ‘capital’ here with its attendant complexities completely ignored, then he should substitute the world ‘land’ for ‘capital’”[6]. Sem comentários! Claramente, o presente trabalho deveria exigir a sua continuação, até pela necessidade de uma visão crítica desta teoria, de modo que os estudantes não fiquem prisioneiros da lógica do “pensamento zero”. Mas isso deixa agora, com a reformulação efectuada, de ser possível, deixa de haver espaço e apetência. Mas não será esse o objectivo pretendido e confesso, com a convicção de que chegamos ao modelo ideal?

Nesta linha de resistências, também não será por acaso que Mário Soares, numa recente visita a Coimbra, nos alertou para o facto de um dos grandes problemas políticos de hoje é a triste realidade de se confundir socialismo com neoliberalismo.

A terminar esta nota prévia não posso deixar de agradecer aos docentes Margarida Antunes e Luís Peres a leitura crítica do texto que a este serviu de base, pela escuta atenta, ao longo de anos, das dificuldades sentidas pelos estudantes na aprendizagem das respectivas matérias, na perspectiva adquirida da melhor forma de os ajudar a compreenderem os temas em análise, pelas suas múltiplas sugestões e pelas propostas de alteração sugeridas e aceites ao longo da sua própria elaboração, sendo para mim claro que sem a sua contribuição não teria sido viável nem o anterior trabalho, nem a sua versão simplificada agora apresentada nas páginas que se seguem a esta introdução muito pessoal. Por isto, podemos mesmo afirmar que o presente texto é também o fruto da contribuição de duas gerações de professores.

Coimbra, Novembro de 2007

ANEXO II

Excerto de uma carta enviada a um antigo ministro da tutela do Ensino Superior

Coimbra, 18 de Abril de 2008

Caro Professor:

Tomo a liberdade de lhe escrever esta carta assente em dois pontos: o primeiro, a expressar a desilusão de quem está a assistira lenta agonia das Universidades, o segundo, para lhe apresentarmos um recente trabalho de grupo sobre a crise actual.

Sobre as Universidades e numa referência rápida quero agradecer-lhe a leitura cuidada que fez dos meus dois textos sobre o ensino superior. A escrevê-los hoje seria mais duro, pois, parafraseando um dos homens que mais me marcou em questões de educação e um texto que lhe mando em anexo, Antoine Prost, tenho o sentimento e a certeza de que estamos perante um Munique pedagógico e científico: capitulamos face à destruição rápida das Universidades, hoje a serem transformadas em liceus de má qualidade. Estamos silenciosamente a destruir ou a impedir que se crie a inteligência futura do nosso país. O termo Bolonha, mas não a declaração de Bolonha que é claramente muito mais séria, é o pretexto, é a capa, apenas isso, sabemo-lo hoje. O objectivo é a redução do défice, é a aplicação estrita de um modelo neo-liberal puro e duro, conduzido desta forma por socialistas, o que é estranho, é a aposta exclusiva nas formações curtas e num momento da curva da História que nos diz que tudo deve ser repensado, curva esta que, no dizer de Fukuyama, se iniciou com Regan e se conclui com a actual crise financeira. A actual política do ensino superior é ao mesmo tempo a aplicação cruel duma lógica de desrespeito total pelos nossos filhos e netos numa sociedade cada vez mais insensível e mais implacável, mais desregulamentada e a partir do próprio Estado, o que ainda é mais estranho. É esta mesma lógica que leva a que jovens com apenas 20 anos, diplomados e desinformados, credenciados por um diploma superior garante da sua não empregabilidade e da nossa incapacidade, sejam atirados para a fogueira do mercado, onde tudo é valido pela ausência de valores que neste predomina, como se tem estado a ver. Mas, agora, atiramo-los em nome da responsabilização individual. Os romanos davam a isto um outro nome, professor!

Certo da sua atenção, pedimos desculpa pela liberdade assumida e pelo tempo tomado e apresentamos sinceramente os nossos cumprimentos.

Atenciosamente

Júlio Mota

* Docente na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

______________________________

[1] Declaração conjunta dos ministros da Educação europeus, assinada em Bolonha, em 19 de Junho de 1999.



[2] As citações de Luís Reis Torgal são extraídas do seu artigo “O processo de Bolonha e a gestão do ensino superior”, Diário de Coimbra, de 16 de Julho de 2007.


[3] Herbert A. Simon, “The Failure of Armchair Economics”, Challenge, 1986: 18-25.


[4] Jacques Généreux, La Dissociété, Paris, Seuil, 2006, p. 328 e s.


[5] Emmanuel. Todd, L’illusion économique, 1998.


[6] Stephen Magee, International Trade and Distortions in Factor Markets, 1976, p.15.

(Continua)
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Sábado, 24 de Julho de 2010

Reflexões sobre Bolonha-2

Júlio Marques Mota*


(Continuação)

A reforma de Bolonha é ela desde o seu princípio inscrita na mesma lógica de redução de despesas e do papel do Estado, mas tal como com a crise, o melhor é pensar que se algo está mal na Universidade está algures e não na reforma de Bolonha imposta pelo neoliberalismo, não no sistema que gera a situação de crise económica ou no sistema que gera a crise dos saberes e das aprendizagens. De novo a analogia da eficiência dos mercados financeiros com Bolonha é imediata. Que sentimos nós com estes três anos de Bolonha? Que trabalhamos muito mais, mas mesmo muitíssimo mais, e com uma certeza, ensinamos muito menos e os estudantes, esses, inegavelmente aprendem muito menos. Ensinamos menos. É então disso que se deve falar. E a que assistimos nós? À discussão sobre a aplicação de novas metodologias dentro de Bolonha, ou então à discussão sobre a reestruturação dos saberes, antes de se definir de que saberes é que estamos a falar ou, ainda melhor, de que aquisição de saberes é que queremos para os filhos deste país. Tal como na crise, estamos a passar ao lado do que é fundamental e, neste caso, pensamos que o que é urgente é a desconstrução da reforma de Bolonha. Só assim, cremos, se pode redefinir a Universidade de hoje para um melhor ensino de amanhã. Aproveito então para apelar que se faça e com urgência uma profunda reflexão sobre os impactes da reforma de Bolonha na qualidade do ensino que hoje é prestado nas Universidades.


Adicionalmente, devemos encarar a hipótese de que Bolonha seja em si um absurdo se considerarmos que as sociedades modernas são cada vez mais globais, estão cada vez mais assentes no conhecimento de que emergem a seguir as competências. Bolonha inverteu a lógica do conhecimento e da aprendizagem. A redução de Bolonha a um nível de três anos (a licenciatura) depois mais dois (mestrado) e eventualmente mais três (doutoramento) é caricata e vejamos porquê. Bolonha, inicialmente falava de dois níveis de ensino. Vejamos então um excerto do texto da Convenção de Bolonha:

“Adopção de um sistema baseado essencialmente em duas fases principais, a pré-licenciatura e a pós-licenciatura. O acesso à segunda fase deverá requerer a finalização com sucesso dos estudos da primeira, com a duração mínima de 3 anos. O grau atribuído após terminado a primeira fase deverá também ser considerado como sendo um nível de habilitações apropriado para ingressar no mercado de trabalho Europeu. A segunda fase deverá conduzir ao grau de mestre e/ou doutor, como em muitos países Europeus”.

Então Bolonha propõe, e o texto é claro: “O grau atribuído após terminado a primeira fase deverá também ser considerado como sendo um nível de habilitações apropriado para ingressar no mercado de trabalho Europeu”. Propõe que, em vez de um ensino em profundidade, com uma base de conhecimentos que permitam com pouco custo a sua renovação ao longo do tempo, ao longo da vida, e que hoje necessariamente deveria ser assim, se faça um ensino com base em formações curtas, em formações profissionais facilmente desvalorizáveis. No primeiro caso, o do ensino em profundidade, há uma exigência, a de os estudantes que aprendem a saber, aprendam também a rapidamente serem capazes de fazer, e há também uma certeza, a de que o saber teórico tem também uma eficácia na prática. Por outras palavras, não há competências se não houver conhecimento . Conhecer é o dado fundamental para se aprender a fazer, para se adquirirem competências. Bolonha, em vez disso, vem inverter a situação: primeiro, o saber fazer, depois o aprender a saber, a conhecer ! O drama é que esta segunda fase é diminuída pela pressão da primeira e depois, num país de fracos recursos, ou não se tenta a segunda ou, quando se tenta, para muitos deles, já é tarde, muito tarde mesmo. Por isso, muitos dos efeitos nefastos de Bolonha são irreversíveis, marcam a geração que os sofre e que com eles foi criada. Bolonha esquece e com ela grande parte dos professores que esse esquema defendem, que o saber , enquanto que abstracto, teórico, é também saber gerador de eficiência, é saber gerador de capacidades para na prática trabalhar com os dados da realidade e de ser capaz de a transformar. Bolonha ignora que não há competências ganhas fora do conhecimento, do saber. Por isso há quem diga que Bolonha não é só a inversão dos planos é também a inversão de funções, uma vez que faz das Universidades apenas apêndices das empresas. Para os críticos de Bolonha, entre os quais me situo, as Universidades têm como missão a de ensinar a aprender, enquanto as empresas tem uma outra função, complementar, que é a de ensinar a fazer. Creio mesmo que agora até há Universidades ou Faculdades que agora fazem essa função das e para as empresas, relegando nas suas funções o ensino de construção reconstrução da formação intelectual e técnica de base, das suas licenciaturas. Aqui e de novo, mais uma confusão de papéis: as empresas são insubstituíveis nesta função, a de ensinar a fazer.

Aliás, há dias numa troca de correspondência com Martin Wolf , a propósito de um seu artigo, pedi-lhe a demonstração de uma das suas conclusões e a razão era muito simples: não tinha dúvidas quanto ao que ele afirmava, mas queria passar o seu texto aos meus alunos e fazê-lo só tinha sentido se estes fossem capazes de reconstruir, desde a base, o seu raciocínio, o raciocínio do autor. Essa é a função também do professor e, como tinha dúvidas sobre a via que este tinha seguido e quanto à referência bibliográfica utilizada, solicitava que me esclarecesse. Mas isto não tem nada, mas nada a ver com formação profissional, ainda por cima, com as formações curtas agora aplicadas, tem a ver sim, com o sentido de Universidade. De uma outra maneira, tem a ver com a criação de inteligência e essa, que me desculpem os arianos deste país, também se “produz”, desde que dêem às Universidades, os meios financeiros porque os meios os humanos, os professores, e “a matéria-prima”, os alunos, para a sua “produção” tudo isto existe mas agora, a degradar-se pela má utilização, pela má definição dos objectivos que são inerentes a Bolonha.

Mas levemos a lógica um pouco mais longe, não é preciso muito: como é possível ter ciclos de mais dois anos e com muita qualidade, também eles curtos em horas de ensino, pois os alunos até já são mestres, se não pode haver ensino de profundidade dado o nível de saída do primeiro ciclo, a licenciatura, e dado o pouco tempo de que se dispõe, menos que antes, quando a base de partida era muito mais sólida em conhecimentos e em maturidade. Questão tanto mais enigmática quando uma regra de ouro preside a todo o ensino: só se ensina, de facto, o que alunos estão em condições de poder aprender. Por isso, duas perguntas aqui deixo: qual a filtragem na saída no primeiro e no segundo Ciclo, qual a filtragem na entrada para o Ciclo seguinte? Respostas difíceis, porque agora, em diversas Faculdades, as pautas já não são públicas, cada aluno recebe apenas por email a informação da sua nota e apenas da sua, como se o aluno na sua relação com a sua faculdade não seja membro de um colectivo, em que neste assume particular relevo a sua inserção nas turmas de que fez parte, e que agora, na lógica do neoliberalismo e do individualismo que o caracteriza, deixa de existir e passando a ser proibido que o aluno nesse colectivo se reveja.

É por estas razões que não vejo saída da crise no quadro do modelo que ampliou a crise no ensino em Portugal: o quadro de Bolonha.


Nesta linha, tomo a liberdade de aqui colocar alguns pequenos textos meus em que expressei o que ia pensando e sentido com a reforma de Bolonha. São textos despretensiosos, feitos na urgência dos sentimentos nos momentos em que foram escritos e nada mais do que isso. Assim, em anexo, junto aqui os seguintes textos:

(1) Uma reflexão sobre a reforma de Bolonha, antes de esta começar a ser aplicada. Será curioso questionar a realidade de hoje com o que aí se afirma. Texto inserido como Nota Prévia de um texto de apoio à disciplina de Economia Internacional de que sou o autor.

(2) Excerto de uma carta enviada a um antigo ministro da tutela do Ensino Superior e grande especialista em questões de ensino.

(3) Pequeno texto enviado à direcção do jornal Público.


(Continua)

* Docente na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
publicado por Carlos Loures às 21:00
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Sexta-feira, 23 de Julho de 2010

Reflexões sobre Bolonha - 1

Júlio Marques Mota*

«Sobre o caos em que se tornou o ensino universitário abateu-se o chamado processo de Bolonha, obcecado pela uniformização, baralhando os títulos e graus, e eivado por uma pedagogia simplista. O primeiro acto de qualquer governo com um mínimo de sensatez tem de ser a revogação das abstrusas disposições desse pseudo-acôrdo feito à revelia de professores e investigadores, que não tiveram a coragem de o rejeitar e se sujeitaram a passar sob a forcas caudinas.»

in Vitorino Magalhães Godinho, Os Problemas de Portugal, Os Problemas da Europa, pág. 62, Edições Colibri, Edição revista e aumentada, 2.ª edição, Abril de 2010.

Não estarei presente nas reuniões, na Universidade, a discutir as melhorias do ensino no âmbito da reforma de Bolonha. A razão é simples, não acredito na eficácia de nenhuma melhoria do ensino universitário no âmbito e no interior desta reforma. Antes, a Universidade estava mal, estava doente, mas estava estruturalmente recuperável, enquanto agora, com Bolonha, ficou gravemente enferma, ferida de morte, diríamos mesmo, a exigir uma reforma que esteja nas antípodas da de Bolonha o que não é pensável dentro do modelo e da situação actual.

Da mesma forma que não acredito nas propostas de reformas na política económica, deste país ou de qualquer outro na Europa, enquanto se continuar a pensar que a saída da crise está numa maior intensidade na aplicação dos instrumentos que a geraram, creio que é impossível pensar uma outra Universidade dentro do quadro formal que criou a actual, o quadro de Bolonha.

Continuando a analogia com a crise actual, os governos europeus estão todos a optar, repentinamente, diga-se, pela redução drástica dos défices orçamentais, sendo claro para toda a gente que se trata de imperativos impostos pelos mercados financeiros. Com alguma tristeza, assistimos à dança não das cadeiras mas das afirmações que deixam de ser verdade de um momento para outro e nas mesmas pessoas, todas elas com altas responsabilidades políticas. É agora comum assistirmos a afirmações como por exemplo: a crise acabou e por isso acabam os estímulos económicos, acabam-se as medidas de protecção e de apoio social entretanto estabelecidas. Retiram-se as políticas porque deixaram de ter sentido? Produzem-se então os discursos que salvaguardam os mercados, os mesmos que geraram a crise, geram-se as políticas que satisfazem a sua ganância, para rapidamente recomporem o valor dos seus activos, impondo contra as populações e contra possivelmente o futuro dos respectivos países, fortes medidas de austeridade em tempo de crise. Mais do mesmo sistema como solução e, assim, nem sequer percebemos, como o afirma a Alta Autoridade dos Mercados financeiros francesa, Jean-Pierre Jouyet, “que nous étions en juin au même point qu'à l'automne 2008, mêmes incertitudes sur la capacité de résistance de nos banques, mêmes angoisses sur le tarissement du financement de nos économies et sentiment que la finance n'a en rien perdu de son opacité, de sa volatilité et de sa voracité. A la seule différence que les marchés seraient plus encore qu'hier instrumentalisés par des algorithmes qui arbitrent à la place des hommes et que les Etats n'ont plus les réserves suffisantes pour se porter au secours de leurs banques”.

Por se seguir o caminho inverso daquele que a situação exige, inverteu-se a lógica da democracia quanto à função do Estado. Uns obscuros departamentos de trading de alguns poderosos bancos de investimento, uns poderosos e quase que anónimos hedge funds, uns obscuros especuladores, o mercado afinal, determinam num obscuro mercado os valores dos CDS, em que ninguém nos explica como funcionam, como se determinam as suas taxas; questão extraordinariamente importante quando são estas taxas que vêm a determinar o valor das taxas de rentabilidade implícita dos títulos da dívida pública e o peso do serviço da dívida soberana, quando depois é este que determina o volume de impostos a receber e o volume de despesas a cortar, os grandes investimentos públicos para o futuro a desaparecer. Tudo isto em nome das gerações futuras. E assim se determina o sentido das políticas nacionais e se anula a democracia. Quer-se agora sacrificar os próprios Estados, a própria democracia, no altar da soberania absoluta dos mercados financeiros, cada vez mais opacos, comme il faut. O resto é a plêiade de discursos dos nossos políticos e dos nossos intelectuais a glorificar o caminho imposto pelos mercados financeiros, prisioneiros que são, explícita ou implicitamente, do sentido da eficiência que a estes continua ainda a ser atribuída. E tanto é assim que até os traders ,ou gerentes desses obscuros agentes, nesses obscuros mercados, com bónus na ordem das muitas dezenas de milhões de dólares por ano, são também eles classificados, avaliados, por empresas também elas internacionais, globais, e também elas sujeitas às agências de notação. Com tanta avaliação, do primeiro ao último elo da cadeia, quem se atreve a pôr em dúvida a eficiência dos mercados? E aqui a analogia com Bolonha é imediata: também a Universidade vai ser submetida à mesma lógica de eficiência, à mesma lógica dos rating, das avaliações, mas com uma grande diferença. Enquanto os rating para os traders marcam o ritmo dos bónus futuros, o ritmo dos milhões de dólares a receber, na Universidade, porque não há dinheiro, não há sequer tostões. Os rating para os professores têm apenas uma função ideológica: cumprir o modelo! Quando na verdade o que deve ser posto em causa, e em primeiro lugar, é o próprio conceito de eficiência. Se não é assim, como perceber que , estando a caminho da terceira grande recessão e em que estamos a colocar em risco milhões de desempregados e lançar muitos mais milhões de crianças, que vão deixar de ter futuro por mergulharem em situação de pobreza de onde não poderão mais sair, como perceber que estamos a criar situações de redução de ritmos de crescimento e por aí a aumentar o risco de incumprimento dos países, a aumentar então e de novo os famosos CDS, a aumentar então a dívida soberana outra vez, enquanto garantida, passo a passo da cadeia de ligações, a eficiência dos mercados, e de acordo com as normas de eficiência próprias de cada elo da cadeia de ligações que caracteriza o sistema. Em suma, como aceitar que se corra o risco de pagarmos cada vez mais para passarmos a dever cada vez mais? Em suma, e em paralelo, como aceitar que se corra o risco de ter cada vez mais estudantes a saberem cada vez menos, sem que a responsabilidade possa ser deles? E, francamente, não o é. Mas também tenho a certeza de que dos professores também não é: só se ensina o que os outros aprendem e aqui ensinam ao máximo o que lhes é possível, mas o drama é que o possível é cada vez mais reduzido. Mas discutir o que queremos como possível, o que queremos como outra realidade e outra profundidade de ensino, é então discutir o sistema que produz e alimenta esta crise no ensino. Mas isso não se faz, porque estamos no melhor dos mundos possíveis de Pangloss, portanto, não questionável. De um lado, a crise financeira, e, do outro, a crise do ensino., em nenhum lado há culpados. É uma questão de mercado, de sistema! Por isso, ser-se contra o actual sistema de mercados financeiros é igualmente ser-se contra o sistema de Bolonha ., são duas realidades aparentemente distintas, mas são apenas duas esferas de actividade diferentes mas com a mesma raiz de fundo: o modelo neoliberal!

(Continua)
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