Sábado, 28 de Maio de 2011

O PEÃO, por Ray Bradbury

 


 

 

 

Penetrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de Novembro, pousar os pés sobre o sólido passeio de cimento, pisar as fendas com ervas, e andar, de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Ficaria numa esquina de um cruzamento, olhando as ruas banhadas pelo luar nas quatro direcções, decidindo por onde ir, mas realmente, não faria diferença; estava sozinho, neste mundo de 2053 a.D., ou, como se estivesse só. Tomada uma decisão definitiva, escolhido um caminho, começaria a andar, soltando baforadas de ar congelado à sua frente, como o fumo de um cigarro. Às vezes, andava durante horas, milhas, e voltava para casa só à meia-noite. E, no caminho, via casas, grandes e pequenas, com as suas janelas escuras; era como caminhar por um cemitério, pois só leves clarões de luz fantasmagórica eclodiam por detrás das janelas. Súbitos e cinzentos espectros pareciam surgir sobre as paredes das salas, onde uma cortina ainda estava aberta para a noite, ou cicios e murmúrios onde uma janela num edifício-túmulo estava ainda aberta.

 

O Sr. Leonard Mead parava, inclinava a cabeça, ouvia, olhava, e continuava a marcha, os pés sem fazer ruído no pavimento irregular. Há muito que, prudentemente, passara a usar sapatos de ténis para passear à noite, porque os cães, em alguns quarteirões, seguiriam a sua caminhada com latidos, se usasse calçado com sola de couro, as luzes poderiam acender-se, e rostos aparecer, toda uma rua se alvoroçar com a passagem de um vulto solitário; ele mesmo, no começo de uma noite de Novembro.

 

Nesta noite, em particular, tomara a direcção Oeste, rumo ao mar, invisível. Havia um frio cristalino no ar que cortava o nariz e fazia os pulmões arder por dentro, como uma árvore de Natal; podia-se sentir as luzes acendendo e apagando, os ramos cheios de uma neve invisível. Escutava com prazer o calçado macio empurrando delicadamente as folhas de Outono, assobiava frio e baixinho, entre dentes, arrancando ocasionalmente uma folha de passagem, examinando o desenho esqueletal, à luz de um raro candeeiro público, enquanto caminhava, aspirando seu odor ferruginoso.

 

-- Ó da casa -- murmurava para cada casa, por todo lado, enquanto passava. -- O que passa hoje no Canal 4; Canal 7; Canal 9? Para onde estão correndo os "cow-boys", e onde está a Cavalaria dos Estados Unidos, para sair daquela colina, e salvar a situação?

 

A rua silente, longa, vazia, apenas com a sua sombra movendo-se, como a sombra de um falcão, no meio de uma planície. Fechou os olhos, e permaneceu imóvel, gelado. Podia imaginar-se no meio de uma planície, numa pradaria americana, sem ventos, inverno, sem qualquer casa num raio de mil milhas - só leitos secos de rios, como aquelas ruas.

--------------------------------------------------------------------------------

 

-- E agora, o que temos? -- perguntou para as casas, olhando o relógio de pulso -- Oito e meia? Hora de uma dúzia de episódios de assassínios? Um concurso? Um musical? Um comediante tropeçando e caindo do palco?

 

Terá ouvido um murmúrio de risos, vindo de uma das casas brancas ao luar? Hesitou, mas continuou, quando nada mais aconteceu. Tropeçou numa irregularidade maior do passeio. O cimento estava a desaparecer, sob flores e mato. Em dez anos de caminhada, noite e dia, por milhares de milhas, nunca encontrara outra pessoa passeando, nunca, nem uma só vez. Chegou a um cruzamento deserto, onde duas avenidas principais atravessavam a cidade. Durante o dia, era uma trovejante corrente de carros, os postos de gasolina abertos, um grande farfalhar de insectos, e um incessante mudar de posição, enquanto os carros-escaravelho, uma névoa de incenso saindo dos tubos de escape, corriam para casa, nas mais diversas direcções. Mas agora, estas estradas, eram como os leitos de rios secos no Verão, banhados pelo luar.

 

Virou numa rua secundária, de regresso a casa. Estava a um quarteirão de chegar, quando, subitamente, um carro solitário dobrou a esquina e fez incidir um forte cone de luz branca sobre ele. Deteve-se, aturdido, como uma borboleta, atordoado pela luz, mas por ela atraído.

 

Uma voz metálica advertiu-o:

 

-- Fique onde está! Não se mova!

 

Parou.

 

-- Levante as mãos!

 

-- Mas... – disse ele.

 

-- Mãos para cima! Ou atiramos!

 

A polícia, claro, mais que coisa rara, incrível; numa cidade de três milhões de habitantes, restava só um carro de polícia, não era isso? Já havia um ano, desde 2052, o ano das eleições, que a força policial havia sido cortada de três para um carro. O crime estava a desaparecer; não havia necessidade de polícia, excepto este carro solitário vagueando pelas ruas desertas.

 

-- O seu nome? -- disse o carro, num chiado metálico. Ele não podia ver os guardas lá dentro, por causa da luz muito forte nos seus olhos.

 

-- Leonard Mead -- respondeu.

 

-- Mais alto!

 

-- Leonard Mead!

 

-- Negócio, ou profissão?

 

-- Acho que me pode considerar um escritor.

 

-- Sem profissão -- disse o carro-patrulha, como que falando sozinho. A luz mantinha-o fixado como um espécime de museu, com uma agulha espetada no meio do peito.

 

-Pode-se dizer-se assim -- afirmou o Sr. Mead. Havia anos que não escrevia. Já não se vendiam livros e revistas. Tudo continuava como sempre nas casas-túmulos, à noite, pensou. Os túmulos, mal iluminados pela luz da televisão, onde as pessoas se sentavam como os mortos, as luzes cinzentas ou multicoloridas tocando suas faces, mas nunca tocando o seu íntimo.

 

-- Sem profissão -- chiou a voz fonográfica. – O que está a fazer cá fora?

 

-- A passear -- disse Leonard Mead.

 

-- A passear?

 

-- Só a passear -- disse, simplesmente, percorrido por um arrepio.

 

-- Passeando, passeando, passeando?

 

-- Sim, senhor.

 

-- Indo para onde? Para quê?

 

-- Para apanhar ar. Passeando para ver.

 

-- A sua morada?

 

-- Onze, Sul, rua Saint James.

 

-- E não há ar na sua casa; o senhor não tem ar condicionado, Sr. Mead?

 

-- Sim.

 

-- E tem uma tela visora, na sua casa?

 

-- Não.

 

-- Não? -- Houve uma interrupção crepitante, que em si era já uma acusação.

 

-- É casado, Sr. Mead?

 

-- Não.

 

-- Não casado -- disse a voz policial atrás do facho, que queimava. A luz estava alta e clara, por entre as estrelas, e as casas escuras e silenciosas.

 

-- Ninguém me quis -- disse Leonard Mead, sorrindo.

 

-- Não fale, a menos que seja interpelado!

 

Leonard Mead esperou, sob a fria noite.

 

-- Apenas passeando, Sr. Mead?

 

- Mas ainda não explicou com que propósito.

 

-- Já expliquei; para apanhar ar, ver, e simplesmente pelo prazer de andar.

 

-- Já fez isso muitas vezes?

 

-- Todas as noites, há anos.

 

O carro-patrulha estava estacionado no meio da rua, com sua garganta de rádio zumbindo fracamente.

 

-- Bem, Sr. Mead -- disse.

 

-- Isso é tudo? -- perguntou, polidamente.

 

-- Sim -- respondeu a voz. -- Por aqui. -- Houve um sopro, e um estalido. A porta traseira do carro da polícia escancarou-se. -- Entre.

 

--  Olhe lá, eu não fiz nada!

 

-- Entre.

 

-- Protesto.

 

-- Sr. Mead.

 

Avançou como um homem subitamente embriagado. Ao passar pela janela dianteira do carro, olhou para o interior. Como esperava, não havia ninguém no assento dianteiro, não havia ninguém no carro.

 

-- Entre.

 

Pôs a mão na porta e olhou para o banco traseiro, que era uma pequena cela, uma pequena cela escura, com grades. Cheirava a aço rebitado e a anti-séptico forte; um intenso odor higiénico, metálico. Nada era macio, ali dentro.

 

-- Se tivesse uma esposa que lhe desse um álibi -- disse a voz de aço. -- Mas...

 

-- Para onde me vai levar?

 

O carro hesitou, ou melhor, houve um zumbido abafado, como se a informação, algures, fosse dada por cartões perfurados, e olhos eléctricos -- Ao Centro Psiquiátrico de Pesquisa sobre Tendências Regressivas.

 

Entrou. A porta fechou-se com um som abafado. O carro da polícia rodou pelas avenidas, a meio à noite, com os faróis acesos.

 

Passaram por uma casa, numa rua, um momento depois, uma casa, em toda uma cidade de casas escuras, mas esta casa, em particular, tinha todas as luzes bem acesas, cada janela uma berrante iluminação amarela, quadrada e quente na fria escuridão.

 

- Aquela é minha casa -- disse Leonard Mead.

 

Ninguém respondeu.

 

O carro foi pelas ruas vazias, como leitos de rios secos, afastando-se, deixando as ruas vazias, com os seus passeios vazios, sem som nem movimento, na fria noite de Novembro.

 

Extraído de E de Espaço © 1978 by Hemus-Livraria Editora Ltda -Título original: S is for Space © 1966 by Ray Bradbury

publicado por João Machado às 15:00
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Segunda-feira, 6 de Dezembro de 2010

Noctívagos, insones & afins - Ray Bradbury

O PEÃO

Ray Bradbury

Penetrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de Novembro, pousar os pés sobre o sólido passeio de cimento, pisar as fendas com ervas, e andar, de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Ficaria numa esquina de um cruzamento, olhando as ruas banhadas pelo luar nas quatro direcções, decidindo por onde ir, mas realmente, não faria diferença; estava sozinho, neste mundo de 2053 a.D., ou, como se estivesse só. Tomada uma decisão definitiva, escolhido um caminho, começaria a andar, soltando baforadas de ar congelado à sua frente, como o fumo de um cigarro. Às vezes, andava durante horas, milhas, e voltava para casa só à meia-noite. E, no caminho, via casas, grandes e pequenas, com as suas janelas escuras; era como caminhar por um cemitério, pois só leves clarões de luz fantasmagórica eclodiam por detrás das janelas. Súbitos e cinzentos espectros pareciam surgir sobre as paredes das salas, onde uma cortina ainda estava aberta para a noite, ou cicios e murmúrios onde uma janela num edifício-túmulo estava ainda aberta.

O Sr. Leonard Mead parava, inclinava a cabeça, ouvia, olhava, e continuava a marcha, os pés sem fazer ruído no pavimento irregular. Há muito que, prudentemente, passara a usar sapatos de ténis para passear à noite, porque os cães, em alguns quarteirões, seguiriam a sua caminhada com latidos, se usasse calçado com sola de couro, as luzes poderiam acender-se, e rostos aparecer, toda uma rua se alvoroçar com a passagem de um vulto solitário; ele mesmo, no começo de uma noite de Novembro.

Nesta noite, em particular, tomara a direcção Oeste, rumo ao mar, invisível. Havia um frio cristalino no ar que cortava o nariz e fazia os pulmões arder por dentro, como uma árvore de Natal; podia-se sentir as luzes acendendo e apagando, os ramos cheios de uma neve invisível. Escutava com prazer o calçado macio empurrando delicadamente as folhas de Outono, assobiava frio e baixinho, entre dentes, arrancando ocasionalmente uma folha de passagem, examinando o desenho esqueletal, à luz de um raro candeeiro público, enquanto caminhava, aspirando seu odor ferruginoso.

-- Ó da casa -- murmurava para cada casa, por todo lado, enquanto passava. -- O que passa hoje no Canal 4; Canal 7; Canal 9? Para onde estão correndo os "cow-boys", e onde está a Cavalaria dos Estados Unidos, para sair daquela colina, e salvar a situação?

A rua silente, longa, vazia, apenas com a sua sombra movendo-se, como a sombra de um falcão, no meio de uma planície. Fechou os olhos, e permaneceu imóvel, gelado. Podia imaginar-se no meio de uma planície, numa pradaria americana, sem ventos, inverno, sem qualquer casa num raio de mil milhas - só leitos secos de rios, como aquelas ruas.
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-- E agora, o que temos? -- perguntou para as casas, olhando o relógio de pulso -- Oito e meia? Hora de uma dúzia de episódios de assassínios? Um concurso? Um musical? Um comediante tropeçando e caindo do palco?

Terá ouvido um murmúrio de risos, vindo de uma das casas brancas ao luar? Hesitou, mas continuou, quando nada mais aconteceu. Tropeçou numa irregularidade maior do passeio. O cimento estava a desaparecer, sob flores e mato. Em dez anos de caminhada, noite e dia, por milhares de milhas, nunca encontrara outra pessoa passeando, nunca, nem uma só vez. Chegou a um cruzamento deserto, onde duas avenidas principais atravessavam a cidade. Durante o dia, era uma trovejante corrente de carros, os postos de gasolina abertos, um grande farfalhar de insectos, e um incessante mudar de posição, enquanto os carros-escaravelho, uma névoa de incenso saindo dos tubos de escape, corriam para casa, nas mais diversas direcções. Mas agora, estas estradas, eram como os leitos de rios secos no Verão, banhados pelo luar.

Virou numa rua secundária, de regresso a casa. Estava a um quarteirão de chegar, quando, subitamente, um carro solitário dobrou a esquina e fez incidir um forte cone de luz branca sobre ele. Deteve-se, aturdido, como uma borboleta, atordoado pela luz, mas por ela atraído.

Uma voz metálica advertiu-o:

-- Fique onde está! Não se mova!

Parou.

-- Levante as mãos!

-- Mas... – disse ele.

-- Mãos para cima! Ou atiramos!

A polícia, claro, mais que coisa rara, incrível; numa cidade de três milhões de habitantes, restava só um carro de polícia, não era isso? Já havia um ano, desde 2052, o ano das eleições, que a força policial havia sido cortada de três para um carro. O crime estava a desaparecer; não havia necessidade de polícia, excepto este carro solitário vagueando pelas ruas desertas.

-- O seu nome? -- disse o carro, num chiado metálico. Ele não podia ver os guardas lá dentro, por causa da luz muito forte nos seus olhos.

-- Leonard Mead -- respondeu.

-- Mais alto!
- Lonard Mead!

-- Negócio, ou profissão?

-- Acho que me pode considerar um escritor.

-- Sem profissão -- disse o carro-patrulha, como que falando sozinho. A luz mantinha-o fixado como um espécime de museu, com uma agulha espetada no meio do peito.

-Pode-se dizer-se assim -- afirmou o Sr. Mead. Havia anos que não escrevia. Já não se vendiam livros e revistas. Tudo continuava como sempre nas casas-túmulos, à noite, pensou. Os túmulos, mal iluminados pela luz da televisão, onde as pessoas se sentavam como os mortos, as luzes cinzentas ou multicoloridas tocando suas faces, mas nunca tocando o seu íntimo.

-- Sem profissão -- chiou a voz fonográfica. – O que está a fazer cá fora?

-- A passear -- disse Leonard Mead.

-- A passear?

-- Só a passear -- disse, simplesmente, percorrido por um arrepio.

-- Passeando, passeando, passeando?

-- Sim, senhor.

-- Indo para onde? Para quê?

-- Para apanhar ar. Passeando para ver.

- A sua morada.

-- Onze, Sul, rua Saint James.

-- E não há ar na sua casa; o senhor não tem ar condicionado, Sr. Mead?

-- Sim.

-- E tem uma tela visora, na sua casa?

-- Não.

-- Não? -- Houve uma interrupção crepitante, que em si era já uma acusação.

-- É casado, Sr. Mead?

-- Não.

-- Não casado -- disse a voz policial atrás do facho, que queimava. A luz estava alta e clara, por entre as estrelas, e as casas escuras e silenciosas.

-- Ninguém me quis -- disse Leonard Mead, sorrindo.

-- Não fale, a menos que seja interpelado!

Leonard Mead esperou, sob a fria noite.

-- Apenas passeando, Sr. Mead?

- Mas ainda não explicou com que propósito.

-- Já expliquei; para apanhar ar, ver, e simplesmente pelo prazer de andar.

-- Já fez isso muitas vezes?

-- Todas as noites, há anos.

O carro-patrulha estava estacionado no meio da rua, com sua garganta de rádio zumbindo fracamente.

-- Bem, Sr. Mead -- disse.

-- Isso é tudo? -- perguntou, polidamente.

-- Sim -- respondeu a voz. -- Por aqui. -- Houve um sopro, e um estalido. A porta traseira do carro da polícia escancarou-se. -- Entre.

-  Olhe lá, eu não fiz nada!

-- Entre.

-- Protesto.

-- Sr. Mead.

Avançou como um homem subitamente embriagado. Ao passar pela janela dianteira do carro, olhou para o interior. Como esperava, não havia ninguém no assento dianteiro, não havia ninguém no carro.

-- Entre.

Pôs a mão na porta e olhou para o banco traseiro, que era uma pequena cela, uma pequena cela escura, com grades. Cheirava a aço rebitado e a anti-séptico forte; um intenso odor higiénico, metálico. Nada era macio, ali dentro.

-- Se tivesse uma esposa que lhe desse um álibi -- disse a voz de aço. -- Mas...

-- Para onde me vai levar?

O carro hesitou, ou melhor, houve um zumbido abafado, como se a informação, algures, fosse dada por cartões perfurados, e olhos eléctricos -- Ao Centro Psiquiátrico de Pesquisa sobre Tendências Regressivas.

Entrou. A porta fechou-se com um som abafado. O carro da polícia rodou pelas avenidas, a meio à noite, com os faróis acesos.

Passaram por uma casa, numa rua, um momento depois, uma casa, em toda uma cidade de casas escuras, mas esta casa, em particular, tinha todas as luzes bem acesas, cada janela uma berrante iluminação amarela, quadrada e quente na fria escuridão.

- Aquela é minha casa -- disse Leonard Mead.

Ninguém respondeu.

O carro foi pelas ruas vazias, como leitos de rios secos, afastando-se, deixando as ruas vazias, com os seus passeios vazios, sem som nem movimento, na fria noite de Novembro.

Extraído de E de Espaço © 1978 by Hemus-Livraria Editora Ltda -Título original: S is for Space © 1966 by Ray Bradbury
publicado por Carlos Loures às 03:00
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Domingo, 22 de Agosto de 2010

Ray Bradbury, que faz hoje 90 anos: «Os Estados Unidos precisam de fazer uma revolução!»


Carlos Loures

Ray Bradbury, o grande Bradbury, faz hoje, 22 de Agosto, 90 anos. Na passada segunda-feira, em entrevista ao jornal Los Angeles Times, disse - "Acho que nosso país precisa de uma revolução", declarou o autor de The Martian Chronicles (Mundo Marciano) (1950) e Fahrenheit 451 (1953). "Há muito governo actualmente. É preciso lembrar que o governo deveria ser do povo, pelo povo e para o povo", acrescentou.

O escritor também disse que os Estados Unidos deveriam "retornar à Lua" e reprovou o fato de o presidente Barack Obama ter renunciado ao projecto.:"Não deveríamos ter desistido disso. Deveríamos ir à Lua e instalar aí uma base, para lançar um foguete com destino a Marte; depois, ir a Marte e colonizá-lo", estimou. "Depois disso, viveríamos eternamente", concluiu Bradbury.

Paradoxalmente, o homem que escreveu vários clássicos de ficção científica não é um defensor ardoroso da tecnologia: "Temos muitos telemóveis, muita internet. Deveríamos desembaraçar-nos imediatamente dessas máquinas", disse.

Há tempos, numa entrevista a um jornal europeu, prestou declarações muito interessantes, nomeadamente sobre a sobrevivência do livro, do velho livro impresso, face às novas tecnologias da informação. «Tudo é amor», disse, «Escrevo por amor e esse é o meu único conselho – ama o que escreves e escreve sobre o que amas».

Na sua obra «Fahrenheit 451», aquela que François Truffaut magistralmente passou ao cinema, Bradbury exorciza um fantasma da sua adolescência, quando viu fotografias e os documentários de «actualidades» que passavam nos cinemas antes do filme principal, mostrando os nazis queimando livros considerados malditos pela nova ordem. No Portugal anterior à revolução de Abril, o filme de Truffaut foi acolhido com entusiasmo, pois era imediata a conotação política que se estabelecia entre aqueles «bombeiros» que queimavam livros e os censores salazaristas que mandavam apreender livros e publicações considerados subversivos.

Apesar dos seus 90 anos, Ray Bradbury continua a manifestar uma inquietação de adolescente. O corpo atraiçoa-o e mostra os vestígios de uma idade que lhe limita os movimentos – a vista está praticamente perdida e o ouvido falha também. Todavia, usa as suas deficiências como truques – a falta de vista desculpa-o de não ter lido alguns livros mais recentes e aproveita surdez para evitar dar opinião sobre alguns dos seus contemporâneos. Habilmente, transforma as desvantagens e as traições que a velhice lha vai fazendo em coisas vantajosas.

Seria um lugar-comum o dizer-se que, apesar da sua avançada idade, ele mantém um «espírito jovem». É que não sei se lhe estaremos a fazer um elogio. Quando vemos grande maioria dos jovens de idade seguir obedientemente aquilo que o marketing lhes dita, comportando-se como um rebanho disciplinado, ficamos sem saber se «ter o espírito jovem» é uma coisa boa. Eu diria antes que Bradbury, cujas funções vitais se encontram diminuídas pelo avanço da idade, mantém a inteligência e o carácter criativo e visionário que sempre o caracterizou – logo aos três anos disse que queria ser escritor, começou a escrever aos doze e não parou até hoje. Na realidade, a inteligência (tal como a estupidez) não escolhe idades. Wernher von Braun, o pai da corrida espacial, diz que Bradbury, ao qual a vista agora vai faltando, «foi capaz de ver tudo antes de acontecer».


publicado por Carlos Loures às 12:00
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Segunda-feira, 19 de Julho de 2010

Insones, noctívagos & afins - Ray Bradbury

O PEÃO



Ray Bradbury

Penetrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de Novembro, pousar os pés sobre o sólido passeio de cimento, pisar as fendas com ervas, e andar, de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Ficaria numa esquina de um cruzamento, olhando as ruas banhadas pelo luar nas quatro direcções, decidindo por onde ir, mas realmente, não faria diferença; estava sozinho, neste mundo de 2053 a.D., ou, como se estivesse só. Tomada uma decisão definitiva, escolhido um caminho, começaria a andar, soltando baforadas de ar congelado à sua frente, como o fumo de um cigarro. Às vezes, andava durante horas, milhas, e voltava para casa só à meia-noite. E, no caminho, via casas, grandes e pequenas, com as suas janelas escuras; era como caminhar por um cemitério, pois só leves clarões de luz fantasmagórica eclodiam por detrás das janelas. Súbitos e cinzentos espectros pareciam surgir sobre as paredes das salas, onde uma cortina ainda estava aberta para a noite, ou cicios e murmúrios onde uma janela num edifício-túmulo estava ainda aberta.


O Sr. Leonard Mead parava, inclinava a cabeça, ouvia, olhava, e continuava a marcha, os pés sem fazer ruído no pavimento irregular. Há muito que, prudentemente, passara a usar sapatos de ténis para passear à noite, porque os cães, em alguns quarteirões, seguiriam a sua caminhada com latidos, se usasse calçado com sola de couro, as luzes poderiam acender-se, e rostos aparecer, toda uma rua se alvoroçar com a passagem de um vulto solitário; ele mesmo, no começo de uma noite de Novembro.

Nesta noite, em particular, tomara a direcção Oeste, rumo ao mar, invisível. Havia um frio cristalino no ar que cortava o nariz e fazia os pulmões arder por dentro, como uma árvore de Natal; podia-se sentir as luzes acendendo e apagando, os ramos cheios de uma neve invisível. Escutava com prazer o calçado macio empurrando delicadamente as folhas de Outono, assobiava frio e baixinho, entre dentes, arrancando ocasionalmente uma folha de passagem, examinando o desenho esqueletal, à luz de um raro candeeiro público, enquanto caminhava, aspirando seu odor ferruginoso.

-- Ó da casa -- murmurava para cada casa, por todo lado, enquanto passava. -- O que passa hoje no Canal 4; Canal 7; Canal 9? Para onde estão correndo os "cow-boys", e onde está a Cavalaria dos Estados Unidos, para sair daquela colina, e salvar a situação?

A rua silente, longa, vazia, apenas com a sua sombra movendo-se, como a sombra de um falcão, no meio de uma planície. Fechou os olhos, e permaneceu imóvel, gelado. Podia imaginar-se no meio de uma planície, numa pradaria americana, sem ventos, inverno, sem qualquer casa num raio de mil milhas - só leitos secos de rios, como aquelas ruas.


-- E agora, o que temos? -- perguntou para as casas, olhando o relógio de pulso -- Oito e meia? Hora de uma dúzia de episódios de assassínios? Um concurso? Um musical? Um comediante tropeçando e caindo do palco?

Terá ouvido um murmúrio de risos, vindo de uma das casas brancas ao luar? Hesitou, mas continuou, quando nada mais aconteceu. Tropeçou numa irregularidade maior do passeio. O cimento estava a desaparecer, sob flores e mato. Em dez anos de caminhada, noite e dia, por milhares de milhas, nunca encontrara outra pessoa passeando, nunca, nem uma só vez. Chegou a um cruzamento deserto, onde duas avenidas principais atravessavam a cidade. Durante o dia, era uma trovejante corrente de carros, os postos de gasolina abertos, um grande farfalhar de insectos, e um incessante mudar de posição, enquanto os carros-escaravelho, uma névoa de incenso saindo dos tubos de escape, corriam para casa, nas mais diversas direcções. Mas agora, estas estradas, eram como os leitos de rios secos no Verão, banhados pelo luar.

Virou numa rua secundária, de regresso a casa. Estava a um quarteirão de chegar, quando, subitamente, um carro solitário dobrou a esquina e fez incidir um forte cone de luz branca sobre ele. Deteve-se, aturdido, como uma borboleta, atordoado pela luz, mas por ela atraído.

Uma voz metálica advertiu-o:

-- Fique onde está! Não se mova!

Parou.

-- Levante as mãos!

-- Mas... – disse ele.

-- Mãos para cima! Ou atiramos!

A polícia, claro, mais que coisa rara, incrível; numa cidade de três milhões de habitantes, restava só um carro de polícia, não era isso? Já havia um ano, desde 2052, o ano das eleições, que a força policial havia sido cortada de três para um carro. O crime estava a desaparecer; não havia necessidade de polícia, excepto este carro solitário vagueando pelas ruas desertas.

-- O seu nome? -- disse o carro, num chiado metálico. Ele não podia ver os guardas lá dentro, por causa da luz muito forte nos seus olhos.

-- Leonard Mead -- respondeu.

-- Mais alto!

-- Leonard Mead!

-- Negócio, ou profissão?

-- Acho que me pode considerar um escritor.

-- Sem profissão -- disse o carro-patrulha, como que falando sozinho. A luz mantinha-o fixado como um espécime de museu, com uma agulha espetada no meio do peito.

-- Pode-se dizer-se assim -- afirmou o Sr. Mead. Havia anos que não escrevia. Já não se vendiam livros e revistas. Tudo continuava como sempre nas casas-túmulos, à noite, pensou. Os túmulos, mal iluminados pela luz da televisão, onde as pessoas se sentavam como os mortos, as luzes cinzentas ou multicoloridas tocando suas faces, mas nunca tocando o seu íntimo.

-- Sem profissão -- chiou a voz fonográfica. – O que está a fazer cá fora?

-- A passear -- disse Leonard Mead.

-- A passear?

-- Só a passear -- disse, simplesmente, percorrido por um arrepio.

-- Passeando, passeando, passeando?

-- Sim, senhor.

-- Indo para onde? Para quê?

-- Para apanhar ar. Passeando para ver.

-- A sua morada.

-- Onze, Sul, rua Saint James.

-- E não há ar na sua casa; o senhor não tem ar condicionado, Sr. Mead?

-- Sim.

-- E tem uma tela visora, na sua casa?

-- Não.

-- Não? -- Houve uma interrupção crepitante, que em si era já uma acusação.

-- É casado, Sr. Mead?

-- Não.

-- Não casado -- disse a voz policial atrás do facho, que queimava. A luz estava alta e clara, por entre as estrelas, e as casas escuras e silenciosas.

-- Ninguém me quis -- disse Leonard Mead, sorrindo.

-- Não fale, a menos que seja interpelado!

Leonard Mead esperou, sob a fria noite.

-- Apenas passeando, Sr. Mead?

-- Sim.

-- Mas ainda não explicou com que propósito.

-- Já expliquei; para apanhar ar, ver, e simplesmente pelo prazer de andar.

-- Já fez isso muitas vezes?

-- Todas as noites, há anos.

O carro-patrulha estava estacionado no meio da rua, com sua garganta de rádio zumbindo fracamente.

-- Bem, Sr. Mead -- disse.

-- Isso é tudo? -- perguntou, polidamente.

-- Sim -- respondeu a voz. -- Por aqui. -- Houve um sopro, e um estalido. A porta traseira do carro da polícia escancarou-se. -- Entre.

-- Olhe lá, eu não fiz nada!

-- Entre.

-- Protesto.

-- Sr. Mead.

Avançou como um homem subitamente embriagado. Ao passar pela janela dianteira do carro, olhou para o interior. Como esperava, não havia ninguém no assento dianteiro, não havia ninguém no carro.

-- Entre.

Pôs a mão na porta e olhou para o banco traseiro, que era uma pequena cela, uma pequena cela escura, com grades. Cheirava a aço rebitado e a anti-séptico forte; um intenso odor higiénico, metálico. Nada era macio, ali dentro.

-- Se tivesse uma esposa que lhe desse um álibi -- disse a voz de aço. -- Mas...

-- Para onde me vai levar?

O carro hesitou, ou melhor, houve um zumbido abafado, como se a informação, algures, fosse dada por cartões perfurados, e olhos eléctricos -- Ao Centro Psiquiátrico de Pesquisa sobre Tendências Regressivas.

Entrou. A porta fechou-se com um som abafado. O carro da polícia rodou pelas avenidas, a meio à noite, com os faróis acesos.

Passaram por uma casa, numa rua, um momento depois, uma casa, em toda uma cidade de casas escuras, mas esta casa, em particular, tinha todas as luzes bem acesas, cada janela uma berrante iluminação amarela, quadrada e quente na fria escuridão.

- Aquela é minha casa -- disse Leonard Mead.

Ninguém respondeu.

O carro foi pelas ruas vazias, como leitos de rios secos, afastando-se, deixando as ruas vazias, com os seus passeios vazios, sem som nem movimento, na fria noite de Novembro.

Extraído de E de Espaço © 1978 by Hemus-Livraria Editora Ltda -Título original: S is for Space © 1966 by Ray Bradbury
publicado por Carlos Loures às 01:00
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