Quinta-feira, 23 de Junho de 2011

Raul Brandão, um «rasto visível» na literatura portuguesa do século XX - 2 - por Carlos Loures

 

 

 

 

  

 

À direita:Com sua esposa, Angelina Brandão (quadro de Columbano)

 

 

Falemos então deste escritor forjado não só pela sua grande sensibilidade como também pela sua experiência de vida – a escolar, a jornalística, a militar... A obra de todos os escritores é sempre, de uma ou de outra forma, o produto das suas respectivas vivências. Raul Brandão, porém, é um homem que baseia os seus livros em consistentes alicerces, construídos com a argamassa das recordações que foi acumulando, memórias de seres humanos com os quais se foi cruzando ao longo da sua existência. As suas personagens, a Candidinha, o Gabiru, o Gebo, a Joana, a Luísa, o Ziem, o Vaz, são arrancadas à vida real, sentimo-las palpitar, na sua carne de papel e tinta – convivem e interagem connosco.

 

                                                                                                                                                       

 

 

Pelo princípio da derradeira década do século XIX, Raul fazia parte da imensa hoste de escritores seduzidos pelo Simbolismo vivendo um período dominado pelo nefelibastismo. Porém, a preocupação humanista pela sorte dos humilhados e ofendidos, a condenação da exploração do homem pelo homem, a denúncia das chagas sociais feita um pouco à maneira dos seus mestres russos, constitui a nota dominante da sua produção literária, surgindo sempre, sob as diversas camadas sedimentares que vai acumulando ao longo da sua evolução como escritor, como visão estruturante e unificadora da sua obra – «Por cada homem que amontoa ouro há cem criaturas morrendo de desespero», diz em Os Pobres.

 

São também bastante elucidativas as palavras com que termina o romance Húmus: «Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. As palavras formam uma arquitectura de ferro. [...] É com palavras que são apenas sons que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto.»

  

Quando, em 1890, ainda sob a influência das ideias filosóficas, políticas, sociológicas e religiosas de Sampaio Bruno bem como do estilo ironicamente acutilante de Fialho e da prosa requintada, mas ferina, de Eça (para não falar de uma técnica narrativa que algo terá bebido em Camilo Castelo Branco), publica o seu primeiro livro, Impressões e Paisagens, recorre a pedaços da sua experiência da infância vivida entre lavradores e gente do mar, para esboçar quadros da vida dos camponeses e dos pescadores. Em 1886, José Pereira de Sampaio Bruno publica o ensaio Geração Nova, no qual contesta o realismo-naturalismo e o positivismo de Auguste Comte e defende os valores do moderno romance russo, exaltando particularmente Fedor Dostoievski: «o novo romance é um mundo moderno, uma concorrência cognitiva, representa uma crise moral.», diz Sampaio Bruno no seu ensaio.

 

E esta parece ser a bússola por onde Brandão orienta as suas primeiras navegações.     Mas nem só das memórias da infância e da juventude e das influências de Bruno, Fialho e Eça, construiu o seu primeiro livro, pois numa carta a Alberto Allen Bramão, um dos seus companheiros das lides jornalísticas (que viria a ser deputado e secretário particular do penúltimo chefe de governo do regime monárquico, Ernesto Hintze Ribeiro), diz-lhe que foi também das discussões que em tempos tiveram sobre Arte que aqueles contos nasceram. Quando, sob o pseudónimo colectivo de Luís Borja subscreve o panfleto Os Nefelibatas, o seu decadentista arsenal literário e ideológico continua a ser sensivelmente o mesmo: «Anarquistas das Letras, petroleiros do Ideal, desfraldando ao vento sobre os uivos e os apupos dos sebastianismos retóricos o estandarte de seda branca da Arte Moderna.»5

 

Em 1896, ainda sob a influência bruniana atrás referida, misturando textos de ficção com outros de ideias que viera produzindo desde 1890, publica História Dum Palhaço. Em 1899 representa-se no Teatro de D. Maria II, a peça A Noite de Natal, que escreve de colaboração com Júlio Brandão Em 1901 sai um outro seu panfleto, O Padre. Em 1902, sobe à cena, desta vez no D. Amélia (actual São Luís) o drama de sua autoria O Maior Castigo. Em 1903 publica mais uma obra de ficção, A Farsa, que dedica «Ao Grande Poeta Guerra Junqueiro», romance de que nos fica a imorredoira personagem da Candidinha; em 1906, é a vez de Os Pobres (um dolorismo redentor), com um prefácio de Guerra Junqueiro, onde o poeta diz «Não vejo diante de mim um poema estéril, obra dos sentidos, da imaginação e da volúpia. Vejo um acto profundo, espontâneo de imensidade religiosa. O homem que se confessa abala-me e deslumbra-me.» Figuras como o Gebo e o Gabiru, surgem-nos neste conjunto de ficções em toda a grandeza da sua dimensão humana. Na sua edição de 1984, este livro contém um esclarecedor «estudo-introdutório» escrito por Vítor Viçoso (esclarecedor não só sobre este livro, mas sim sobre toda a obra de Raul Brandão).  Todavia, será a partir de 1912 que irão surgir as suas obras de maior fôlego e significado. É neste ano que se publica a sua obra historiográfica El-Rei Junot, dedicado a sua mulher, em cuja introdução proclama: «A história é a dor, a verdadeira história é a dos gritos.»; em 1914, sairá, também de raiz histórica, 1817: A Conspiração de Gomes Freire6, dedicado à memória de Maximiliano de Azevedo, escritor, jornalista e investigador, que foi director do Arquivo Histórico Militar. A propósito destas incursões de Brandão no campo da historiografia, Victor de Sá, no seu excelente prefácio à edição de 1988, salienta: «É certo que Raul Germano Brandão [...] não foi propriamente um historiador, nem nunca se terá pretendido como tal. A sua obra literária, de intenso humanismo e entranhada interioridade, está aí para o demonstrar.» [...] «No caso de Raul Brandão importa sobretudo considerar o estado em que se encontrava a historiografia portuguesa no início da República, cuja mudança de regime fugazmente lhe despertou a veia historicista.» A visão dolorosa da realidade nacional impôs-lhe a intervenção num terreno que, em princípio, nunca seria o seu.   

 

Ainda em 1917, publicará aquele que é na opinião de muitos a sua mais bela obra - o romance Húmus. No dizer de José Régio, é um romance moderno na medida em que a sua escrita corresponde ao «espírito moderno» [...] «assimilável ao espírito romântico – tomando os termos na sua mais ampla acepção.»7 Em 1919 publicar-se-á o primeiro volume das suas Memórias, com o segundo a ser editado em 1925 (ou 1926), e o terceiro (Vale de Josafat) a sair postumamente, em 1933. Esta obra, tão reveladora do permanente sentimento humanista do escritor, fala bastante mais dos outros do que de si mesmo. Na sua tertúlia de amigos, ouvia, registava na sua memória e na sua sensibilidade fotográficas os pormenores mais impressivos dessas conversas, tomava depois notas em jeito de diário e lega-nos, desse modo, uma das obras mais notavelmente elucidativas sobre o que foram, no campo social, moral, político e cultural, essas primeiras três agitadas décadas do século XX. Tempo de revoltas e de revoluções, de regicídios e de golpes militares; em suma, de convulsões profundas.   

 

No ano de 1923 dará à estampa outra das suas mais belas obras, Os Pescadores, resultado quer do seu conhecimento da vida do mar, quer de uma viagem que faz aos Açores e de um percurso que realiza por praias e por aldeias de pescadores. No prefácio da edição de 1988, José Cardoso Pires salienta: «Um escritor que registou a paisagem com esta inquietação e com estas referências não cabe nas molduras que alguns leitores apressadamente ainda pretendem impor-lhe com veneração. A sua leitura do país vai mais longe, tem outro futuro - projecta-se na actualidade do nosso viver e da nossa escrita.»8

   

As Ilhas Desconhecidas, livro publicado em 1926, insere-se dentro da mesma linha de evocação de mitos locais e de descrição de quadros da faina piscatória. Neste mesmo ano de 1923 publica três peças de teatro - o Doido e a Morte, O Rei Imaginário e O Gebo e a Sombra.  Em 1929, será editada outra das suas obras mais destacadas – O Avejão. O Pobre de Pedir, na linha confessional e autobiográfica das Memórias, apenas será publicado postumamente em 1931. Na edição de 1984, além de uma apresentação expressamente escrita por Guilherme de Castilho (que viria a falecer em 1987), inclui-se ainda um valioso estudo introdutório de Vítor Viçoso. Um comovido texto de Maria Angelina Brandão, vindo da edição original, integra ainda este volume. Também com edição póstuma, sai em 1984, precedida de uma exaustiva introdução de Túlio Ramires Ferro, a sua obra Os Operários. Constituiria uma grave omissão falar da obra de Raul Brandão sem referir a «Casa do Alto», situada na Nespereira (Guimarães), uma aldeia minhota enterrada entre pinheirais e serranias, para onde, já casado foi viver em 1903. Ela desempenhou um importante papel na sua vida de escritor, pois ali, na sua torre, produziu textos como El-rei Junot, A Conspiração de 1817, Húmus, A Farsa, os dois primeiros volumes das Memórias, Os Pescadores, As Ilhas Desconhecidas e O Portugal Pequenino, escrito em colaboração com Maria Angelina. Diz nas Memórias: «A certa altura da vida tive a impressão de que me despenhara num mundo de espectros. A face humana meteu-me medo pelo que nela descobria de repulsivo e de grotesco. Fugi para poder viver [...] Fugimos para a aldeia... a nossa casa fica a meia encosta da colina. Por trás, o mar verde dos pinheiros, em frente, os montes solitários. Este cantinho rústico criei-o eu palmo a palmo.»

 

 

 

publicado por João Machado às 15:00

editado por Carlos Loures às 15:11
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Quarta-feira, 22 de Junho de 2011

Raul Brandão, um «rasto visível» na literatura portuguesa do século XX - 1, por Carlos Loures


 

 

 

 

É muito difícil encontrar um escritor português cuja obra, como a de

Raul Brandão, tenha influenciado

de forma tão evidente a escrita de tantos outros escritores das gerações e das escolas literárias que à sua se seguiram. A matriz positivista comtiana cujas pegadas encontramos também em escritores portugueses anteriores e posteriores, como Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais, Fernando Pessoa, para não falar na grande maioria dos escritores da chamada Geração de 70 e, depois, a dimensão humanitarista por ele assimilada, sobretudo, através da atenta leitura dos grandes ficcionistas russos Tolstoi, Dostoievski e Gorki, irá ter eco, século XX adentro, no grupo da Presença – José Régio, Branquinho da Fonseca, António Navarro, João Gaspar Simões, Edmundo de Bettencourt, Adolfo Casais Monteiro, Miguel Torga, Fausto José... e evidenciar a sua semente noutras obras posteriores, como a de Ferreira de Castro, José-Rodrigues Miguéis, José Gomes Ferreira, Manuel Mendes, Carlos de Oliveira, Jorge de Sena, José Cardoso Pires, Herberto Hélder, para referir apenas alguns dos casos mais relevantes.

 

 

Na realidade, «poucos autores portugueses deixaram até nós um rasto tão visível», como disse a seu respeito Óscar Lopes.     Pertencente a uma geração literária fortemente influenciada pelo Simbolismo-Decadentismo que de França nos chegava, escritores cujas obras iriam iluminar o século seguinte, fazendo parte daquela a que também chamaram a «geração de 90», da qual fizeram parte, entre outros, Eugénio de Castro, Camilo Pessanha, Wenceslau de Morais, António Patrício, António Nobre, Alberto de Oliveira, Júlio Brandão, Justino de Montalvão, D. João de Castro, todavia, Raul Brandão seria, entre todos eles, o que, rompendo com esse decadentismo finissecular, mais raízes veio a deixar na literatura das décadas futuras. A sua obra não terá por certo sido das mais vastas, contudo é das mais ricas na gama de tonalidades humanas das suas personagens e até mesmo nas hábeis dissonâncias que soube criar entre o trágico e o grotesco das situações ficcionais em que as envolveu. Talvez por isso, por essa modernidade latente na sua técnica efabulatória, tenha funcionado como um farol, como uma luminosa referência para as gerações seguintes.

 

Filho e neto de gente do mar, «o mar será também para ele um apelo sempre presente».1 A infância passa-a nesse ambiente que virá a descrever de forma tão eloquente quanto comovida em Os Pescadores. Nas suas Memórias descreve: «Esta Foz de há cinquenta anos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto do Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diáfano ou colérico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morou a minha avó; no armário, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve notícias dele.» [...] «O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo, o que sei das árvores, da ternura, da cor e do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada»2    

 

Na escola que, sob a direcção das senhoras Militoas, funcionava por essa época na Foz Velha, aprende as primeiras letras. Devido a incidentes da sua saúde frágil interrompe os estudos por dois anos, indo depois com os pais para o Porto, onde inicia o curso liceal no Colégio de São Carlos. Sobre este período da sua vida, recorremos de novo às suas Memórias: «Inverno. Luz turva. Um casarão enorme no alto da Rua Fernandes Tomás dentro de uma cerca calcinada... Entro: sala enorme, cheia de petizes dominados pelo mesmo sentimento de terror - 8×7? - 8×7? - Entre as bancadas passeia um homem atarracado e grosso de cabelo encarapinhado de mulato, botas de montar e a palmatória metida no cano das botas: - 8×7? - E o seu vozeirão mete medo. - Eu tinha todos os dias cólicas horríveis, antes de entrar no colégio de S. Carlos, e foi ali que principiei a estragar os meus nervos e a amargar a vida. [...] Foi ali», dirá também «que principiei a estragar os meus nervos e a amargurar a vida; há quem tenha saudades do colégio: eu sonho às vezes com ele e acordo sempre passado de terror...»3  Porém, nem tudo terá sido tão sinistro como a aprendizagem da tabuada, pois é naquela escola que Brandão desperta para as letras – no Andaluz. Em 1888 completa o curso liceal e, no ano lectivo seguinte, começa a frequentar como ouvinte o Curso Superior de Letras da Universidade do Porto.

    

Entretanto, é promulgada a obrigatoriedade da prestação do serviço militar e Raul assenta praça, matriculando-se depois na Escola do Exército. Recorramos de novo às suas Memórias: «Na Escola do Exército ensinavam, no meu tempo, coisas inúteis que me deram mais trabalho a esquecer que a aprender.» Na realidade, a carreira militar não se adequava à sua natureza pacífica e contemplativa. No registo das provas que presta, em 1893, no Regimento de Infantaria nº. 6, do Porto, figuram as seguintes elucidativas classificações: «Tiro: atirador de 2ª classe; ginástica: medíocre; esgrima: medíocre.» No entanto, segundo parece, a vontade do pai e o desejo de sua mãe de o ver garbosamente uniformizado, prevaleceram.    

 

De acordo com elementos constantes da sua folha de serviço, além de algum tempo de quartel, uma grande parte da sua vida de oficial decorreu imerso em papelada, em trabalho meramente burocrático. Quando, já na idade madura, faz um balanço da sua vida militar, diz-nos: «Durante o tempo que fui tropa vivi sempre enrascado, como se diz em calão militar. Tudo me metia medo, os homens aos berros que ecoavam no quartel (era o Cibrão na secretaria); castigo para um lado, castigo para o outro; e as coisas negras, feias, agressivas, a parada, a caserna, as retretes. Levo para a cova a imagem daquelas retretes como uma das coisas mais infames que conheci na vida. O Inferno deve ser uma retrete de soldado em ponto maior...»4

 

publicado por João Machado às 15:00

editado por Luis Moreira às 15:41
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Terça-feira, 5 de Abril de 2011

O Mistério da Árvore - Raul Brandão

 

Quem conta um conto...

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

Raul Brandão  O Mistério da Árvore

 

 

Esgalhada e seca, os seus frutos eram cadáveres ou corvos. Ninguém se lembrava que tivesse dado folhas nem flor, a árvore enorme que havia séculos servia de forca: ninguém se deitava à sua sombra, e até o sol fu­gia da árvore estarrecida e hirta que havia séculos servia de forca.

 

Em frente ficava o Palácio real, construído num bloco de pedra escura, e só o Rei, de alma igual à sua alma, nua e trágica, se pusera a amá-la, a árvore triste que havia séculos servia de forca.

 

Que doença estranha, lenta mas tenaz, matava o Rei?... Só amava os crepúsculos, as agonias da luz, o passado, e a multidão silenciosa vinha vê-lo, ao fim da tarde, de cabe­ça encostada aos vidros das janelas, fixo o olhar nas águas verdes e limosas e no espectro da árvore levantada dian­te do Palácio. Tudo que era vivo fugira de ao pé dele, porque o Rei mandava punir a mocidade e o amor, e dez léguas à roda o país tinha sido assolado pelos seus guerreiros brutais. Mandara queimar tudo, devastar tudo no seu reino. Nem uma folha nem uma ave — nem um sinal de vida. De pé unicamente a árvore, desde séculos estarrecida e hirta, a árvore maldita que no seu reino servia de forca.

 

No silêncio tumular do Palácio os passos do Rei ecoavam pelos corredores desertos, lentos ou precipita­dos, conforme o pensamento tenaz que o devorava, gastando pouco a pouco as lajes duras do chão. Não podia amar. Nem a voluptuosidade, nem o ideal, nem o amor, nem a carne láctea das mulheres: tudo lhe era vedado. Horas atrás de horas se ouviam no Palácio os passos do Rei doente, toda a noite, toda a noite a rondar...

 

Sucedeu que veio a Primavera e todas as árvores, para lá do território assolado, estremeceram e se cobriram de flor. Borboletas nascidas do seu hálito noivavam no azul, e dois mendigos amorosos, de países lendários, entraram e perderam-se naquela terra praguenta, ela en­volta na poalha dos cabelos louros, ele feliz e esbelto, preso ao seu olhar. Eram pobres. E assim, apenas vesti­dos, vieram enlaçados com a Primavera, cobrindo a ter­ra erma, que calcavam de vida e de amor. Eram pobres e felizes. Flores esvoaçavam pela sua nudez, e as ma­cieiras dos quintais deitavam galhos fora dos muros, de propósito para os ver passar.

 

Azul, sonho, entontecimento, toda a atmosfera estre­mecia. Só o Rei no Palácio deserto vivia braço a braço com a dor. A vida, a luz, as árvores enojavam-no. Que­ria todo o país negro, deserto e escalvado; e o amor que trespassava a terra e os bichos, a própria morte que tudo transforma, lhe pareciam abominação e afronta. Odiava a vida. Mas deitava-se e sentia palpitar as fra­gas: os montes eram seios duros, as árvores cabelos ao vento. Para não ver, encerrava-se no Palácio construído dum bloco de pedra, e sozinho ficava então de olhos postos na árvore. Contemplava-a. Como o Rei, ela era seca e hirta — fora-o sempre — e os seus frutos cadá­veres ou corvos. À passagem de Abril e dos mendigos, tudo à volta se transformava: só ela quedava inerte diante da vida e do amor, a árvore trágica que havia sé­culos que servia de forca.

 

Um dia o Rei soube que dois seres felizes haviam transposto as fronteiras e mandou-os logo prender. Nas últimas noites sentira-os nos espinheiros túmidos, nos sapos dos caminhos que pareciam extáticos, nas coisas que estremeciam, na noite magnética cheia de murmú­rios, no vento que atirava para o castelo ramos de árvo­res luminosos. Punha-se de ouvido à escuta, e a terra, a noite e o mar sufocados iam talvez falar, iam enfim falar...

 

Quando os soldados os trouxeram ao Palácio, com eles entrou um bafo novo: cheiravam a sol e à lama dos caminhos e pegava-se-lhes húmus aos pés descalços. A vida rompeu por aquele túmulo dentro e, pois que iam morrer, dir-se-ia que a morte, em lugar da foice simbólica, pela primeira vez trazia nas mãos um ramo de árvore.

 

Dois mendigos e amavam-se! Nem sequer eram ex­traordinariamente belos, mas deles irradiava uma for­ça imensa — daquela moça sardenta, com resquícios de palha pegados aos cabelos, daquele homem cuja carne aparecia entre os farrapos. Não davam pelo Rei, não davam pela Morte. Amavam-se. Atreviam-se num país que ele mandara assolar para que nunca mais dian­te de seus olhos pudesse aparecer a imagem da vida e do amor!

 

Olhou-os o Rei durante alguns minutos em silêncio, e depois fez um gesto aos carrascos, que logo se apode­raram deles e os levaram. Sorriam-se os mendigos cheios de terra e ervas, e, enlevados, olharam um para o outro, ignorando o que se passava em volta — olhos nos olhos, mãos nas mãos...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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Domingo, 14 de Novembro de 2010

Dicionário Bibliográfico das Origens do Pensamento Social em Portugal (32), por José Brandão

Os Operários

Raul Brandão

Biblioteca Nacional, 1984

Quando, na última década do século XIX, Raul Brandão publica as suas primeiras obras e os seus primeiros artigos em Jornais e revistas, a questão social, que vai estar no âmago de toda a sua criação literária, assumiu uma particular acuidade, conforme o prova, além do aparecimento de muitos grupos anarquistas e de dezenas de jornais de orientação anarquista, o número de ensaios que, nessa época, se publicam em Portugal sobre esse tema: escritores prestigiosos como Eça de Queirós, argutos e bem informados publicistas, hoje ignorados ou mal conhecidos, como Augusto Fuschini, António de Serpa Pimentel, o visconde de Ouguela e Ladislau Batalha, entre outros, analisam a crise social nascida da euforia capitalista e do deficiente funcionamento do sistema constitucional, sublinham a gravidade do momento histórico que se atravessa, denunciam abusos…

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A Origem da 1.ª Internacional em Lisboa


Carlos da Fonseca


Editorial Estampa, 1973

Faz um século que, em Lisboa, a Secção Portuguesa da Associação Internacional dos Trabalhadores fez a sua aparição pública com um manifesto de solidariedade para com os trabalhadores de Sevilha. Este documento, datado de Outubro de 1871, é, por assim dizer, como que a certidão de idade da Secção Portuguesa da Internacional. Porém, se quisermos ser mais rigorosos e respeitar assim o espírito deste internacionalismo centenário mas não morto que animou os seus fundadores, teremos de considerar a existência oficial da Federação de Lisboa como remontando ao dia 10 de Março de 1872. Para além de marcar o primeiro contacto com o Conselho Central de Londres, esta é a data oficial da adesão da Secção Portuguesa à Internacional.

Falar da Federação de Lisboa sem levantar um certo número de problemas que afectaram a vida da AIT seria particularizar um fenómeno…

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Origens do 1º de Maio

Vários

Lisboa, s. d.

Em todo o mundo, milhões de trabalhadores comemoram hoje o 1º de Maio.

Para muitos desses camaradas, já libertos da exploração capitalista, este dia será de festa e alegria, para outros será de luta.

Para nós, portugueses, o 1º de Maio será, simultaneamente, um dia de festa e de luta. De festa porque, ao fim de 48 anos de ditadura, podemos festejar esta jornada em liberdade, e de luta porque, hoje, mais do que nunca, é necessário travar o passo ao capital reaccionário que tenta pôr em causa as conquistas por nós alcançadas desde o 25 de Abril de 1974.

O 1º de Maio é, portanto, o dia mundialmente consagrado aos que produzem.

Mas, porque razão tal data é considerada o Dia do Trabalhador? Teremos que recuar um pouco no tempo.



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publicado por Carlos Loures às 18:00
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Sábado, 23 de Outubro de 2010

Fotopoemas - A ver uma fotografia

Texto e poema de João Machado
e Raul Brandão
Fotografia de José Magalhães

Esta fotografia do José Magalhães (terá sido tirada no Douro? Já para além da barra?) prende a atenção e faz sonhar. Ocorre pensar no mar, mas no mar alto. Os barcos estão amarrados, mas o homem que se vê parece preparar-se para sair para a faina. Pus-me a contemplar e lembrei-me do Raul Brandão:




Luz e Cor

(De Os Pescadores, de Raul Brandão)

O mar às vezes parece um véu diáfano, outras pó verde. Às vezes é dum azul transparente, outras cobalto. Ou não tem consistência e é céu, ou é confusão e cólera. De manhã desvanece-se, de tarde sonha. E há dias de nevoeiro em que ele é extraordinário, quando a névoa espessa pouco a pouco se adelgaça e surge atrás da última cortina vaporosa, todo verde, dum verde que apetece respirar. Diferentes verdes bóiam na água, esbranquiçados, transparentes, escuros, quase negros, misturados com restos de onda que se desfaz e redemoinha até longe. E ainda outros azulados, com a cor das podridões. Tudo isto graduado e dependendo do céu, da hora e das marés. Há momentos em que me julgo metido dentro de uma esmeralda, e, depois, numa jóia esplêndida, dum azul único que se incendeia. Mas a luz morre, e a luz agonizando exala-se como um perfume. É uma grande flor que desfalece. O doirado não é simplesmente doirado, nem o verde simplesmente verde: possuem um alma delicada e extática.

Penso que este trecho do Raul Brandão nos põe a ver o mar. Permito-me, a seguir, e a propósito da contemplação do mar, dedicar ao pescador (e claro, ao José Magalhães), uns pobres versos:

Pescador que vais ao mar
Não te esqueças do teu lugar
Aqui, bem seguro, junto ao cais
Longe da agitação para onde vais

O mar é transparente e azul
Quanto mais te chegas ao sul
As ondas sobem e vais sonhar
Com ninfas que te vão abordar

Na tua rede já pesa o peixe
Em terra já há quem se queixe
E diz que o pescador faz falta
Antes que venha a maré alta.
publicado por Carlos Loures às 10:00
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Sexta-feira, 24 de Setembro de 2010

Fotopoemas - A ver uma fotografia

Texto de João Machado e
fotografia de José Magalhães



Esta fotografia do José Magalhães (terá sido tirada no Douro? Já para além da barra?) prende a atenção e faz sonhar. Ocorre pensar no mar, mas no mar alto. Os barcos estão amarrados, mas o homem que se vê parece preparar-se para sair para a faina. Pus-me a contemplar e lembrei-me do Raul Brandão:

Luz e Cor
(De Os Pescadores, de Raul Brandão)

O mar às vezes parece um véu diáfano, outras pó verde. Às vezes é dum azul transparente, outras cobalto. Ou não tem consistência e é céu, ou é confusão e cólera. De manhã desvanece-se, de tarde sonha. E há dias de nevoeiro em que ele é extraordinário, quando a névoa espessa pouco a pouco se adelgaça e surge atrás da última cortina vaporosa, todo verde, dum verde que apetece respirar. Diferentes verdes bóiam na água, esbranquiçados, transparentes, escuros, quase negros, misturados com restos de onda que se desfaz e redemoinha até longe. E ainda outros azulados, com a cor das podridões. Tudo isto graduado e dependendo do céu, da hora e das marés. Há momentos em que me julgo metido dentro de uma esmeralda, e, depois, numa jóia esplêndida, dum azul único que se incendeia. Mas a luz morre, e a luz agonizando exala-se como um perfume. É uma grande flor que desfalece. O doirado não é simplesmente doirado, nem o verde simplesmente verde: possuem um alma delicada e extática.

Penso que este trecho do Raul Brandão nos põe a ver o mar. Permito-me, a seguir, e a propósito da contemplação do mar, dedicar ao pescador (e claro, ao José Magalhães), uns pobres versos:


Pescador que vais ao mar
Não te esqueças do teu lugar
Aqui, bem seguro, junto ao cais
Longe da agitação para onde vais

O mar é transparente e azul
Quanto mais te chegas ao sul
As ondas sobem e vais sonhar
Com ninfas que te vão abordar

Na tua rede já pesa o peixe
Em terra já há quem se queixe
E diz que o pescador faz falta
Antes que venha a maré alta.

 
publicado por Carlos Loures às 10:00
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Segunda-feira, 16 de Agosto de 2010

Republica nos livros de ontem nos livros de hoje - 101 e 102 (José Brandão)

Memórias

Marechal Gomes da Costa

Clássica Editora, 1930

Sempre que eu apanhava meia dúzia de avos, ali corria eu a ver o auto. Nesses teatros chinas, as representações duram dia e noite sem interrupção: há sujeitinho que ali come e ali dorme, e que torna a acordar para continuar vendo a peça e voltar a adormecer, e isto durante dias.

Lembro-me ainda de ouvir falar muito em ataques de piratas às ilhas próximas de Macau, e duma expedição .contra eles, em que meu Pai tomou parte também e vejo-o de regresso a casa, cheio de lodo e encharcado, seguido por 10 ou 12 piratas solidamente amarrados.

Enfim, em 1873 meu Pai fez as malas e embarcamos, - e então já com duas irmãzitas mais, - a galera «Viajante» com destino a Lisboa. Viagem de 6 meses, pelo cabo da Boa Esperança.

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Memórias


3 Volumes
Raul Brandão

Perspectivas & Realidades, s. d.

Artur de Melo, que conheço do Porto, diz num espanto, ainda transtornado: – Acabam de matar agora o rei! – O quê?! – Eu vi, ouvi os tiros, deitei a fugir...

Fecham-se à pressa os taipais das lojas. Uma mulher do povo exclama: – Mataram agora o rei. Vi os que o mataram. Eram três. Dois lá estão estendidos. Passou um agora por mim, a rasto, com a cabeça despedaçada!... Há palmas para o lado Figueira. Anoitece. Um esquadrão desemboca da Rua da Mouraria... Mais tarde, no comboio, um empregado do Jorge O´Neill confirma: – Vi do escritório um polícia correr atrás dum dos assassinos. A certa altura caiu-lhe o chapéu: era calvo. O polícia varou-o com um tiro.

E, pela narração do Melo, do Armando Navarro e de outros que assistiram, reconstituo assim a tragédia:
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publicado por Carlos Loures às 18:00
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