Sábado, 9 de Outubro de 2010

A miséria e a injustiça

Adão Cruz


Tal como disse hoje Paulo Rato no seu texto, também eu nunca pude viver com a ideia de que a pobreza e a injustiça são coisas naturais.

Ainda com a presença na minha mente dos sujos e obscenos golpes da Venezuela e Honduras, bem ao estilo do imperialismo americano, e decorrendo de mais um miserável golpe na América Latina, no Equador, o meu pensamento voltou a escurecer e a enovelar-se num misto de raiva, revolta e indignação.

Raiva, revolta e indignação, catalisadas, ainda por cima, pela atribuição do Nobel da Literatura a Vargas Losa. Não que ele o não mereça do ponto de vista literário, mas porque, muito provavelmente, é um homem que abre uma garrafa de champanhe sempre que há um golpe imperialista, miserável e cobarde, na sua América Latina, não na minha.

Os meios de comunicação social, perversos, falsificadores, sem a mínima vergonha na escamoteação da verdade e na construção da mentira são o grande actor neste demoníaco teatro do silenciamento absoluto sobre o que não interessa que seja conhecido e da deturpação e manipulação da realidade. O seu objectivo, aos olhos de quem vê, é espalhar a ideia e a falsa imagem de que há atropelos à democracia, à liberdade e aos direitos humanos nas revoluções que gloriosamente se processam na América Latina.

Quem não entende, nos dias de hoje, sejam Losas ou milhares de reaccionários muito piores do que ele, a revoluções cubana, venezuelana, boliviana, equatoriana, nicaraguana e outras, muito provavelmente não entende nada do que se passa neste mundo.

Nunca pude conviver com a ideia de que a pobreza e a injustiça são naturais. E os povos destes países do continente sul-americano também não.

Eles têm dado ao mundo as mais exemplares lições de democracia. Tomaram os exploradores e sugadores de sangue humano serem capazes de obter a força eleitoral destes, a quem apelidam de ditadores. Porque tal força lhes é negada peremptoriamente por povos que ganharam consciência política e social, eles manipulam e falseiam tudo, através dos media que são seus, sem escrúpulos, a fim de criarem confusões e deturparem vergonhosamente a realidade. Quando nada conseguem eles fazem golpes, os mais brutais atentados à democracia, à liberdade e aos direitos humanos. A cobardia suprema, não é Sr. Obama?

Todos estes países em luta pelos mais elevados valores do ser humano são a mira constante da desinformação organizada dos meios de que são donos o capitalismo e o imperialismo desumanos, cruéis e insensíveis ao sofrimento da humanidade. Com a agravante injustiça e dramática consequência de levarem as pessoas sérias a tomar como verdadeiras as mais abstrusas e descaradas patranhas. Com o Nobel da literatura a abrir a boca por todo o lado, desde Washington ao Vaticano, vai ser um forrobodó.

E a igreja? Qual o papel da Igreja no meio de tudo isto? A Igreja dos pobres, dos desvalidos, dos explorados, dos massacrados, dos humilhados e ofendidos. Não sabem? Pois eu sei e muita gente há que também sabe. Falaremos dela no próximo texto.

(ilustração de Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 09:00
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Quinta-feira, 7 de Outubro de 2010

Mario Vargas Llosa – Um Nobel que é uma vitória da boa literatura.

Carlos Loures

Ainda há dias, numa troca de comentários com o Professor Raúl Iturra, dizia como me parecia injusta a não atribuição até agora do prémio Nobel da Literatura a Mario Vargas Llosa. Habituados, como estamos, aos tortuosos critérios da Academia de Estocolmo, não havia, porém motivos para surpresas. Houve, na minha perspectiva, prémios imerecidos – não estou a referir-me a Saramago – poderia, no entanto dizer muitos nomes que só por motivos marginais à literatura podem ter sido honrados com o Nobel. Critérios políticos, quase sempre. Principalmente durante a Guerra Fria.

Mario Vargas Llosa, oriundo da aristocracia peruana, homem que foi de esquerda e depois assumiu posições de um neoliberalismo radical, parece-me, no entanto, um daqueles casos em que apenas foram levados em conta argumentos literários – é, quanto a mim – um excepcional escritor. Talvez haja, mesmo na América Latina, escritores de uma grandeza superior que não conseguiram o prémio – Jorge Luis Borges é um desses casos. Tendo cooperado com a junta militar, manchou com uma lamentável posição política uma obra de uma excepcional qualidade intelectual. Outro argentino – Ernesto Sábato, de quem Saramago foi grande admirador, é outro caso de inexplicável “esquecimento”. Vive, embora à beira de completar um século, é marxista assumido – o que não tem sido motivo de exclusão.

Não vou repetir a informação biográfica deste homem que nasceu em 1936 em Arequipa, Peru. Nem referir a sua vastíssima bibliografia. Tudo está aí por todo o lado. Direi só que a sua obra é de uma grande qualidade literária. Abarca a ficção, o teatro e o ensaio. Destaco os romances Conversa na Catedral (1969), - Pantaleão e as Visitadoras (1973), - A Tia Julia e o Escrevinhador (1977), - A Guerra do Fim do Mundo (1981)- A Festa do Bode (2000) e Travessuras da Menina Má (2006).

Penso que desta vez nada há a censurar à Academia Sueca, mas já li declarações de escritores com opinião contrária à que aqui deixo. A minha apreciação é feita exclusivamente no plano literário. Felizmente que, quer nesse plano, quer noutros, não existe unanimidade. Para mim, foi uma vitória da boa literatura contemporânea e, pensando assim não podia deixar de aqui o vir dizer.
publicado por Carlos Loures às 17:06
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Quem vai ganhar?


Como habitualmente, as apostas já estão ao rubro e aos candidatos veteranos - como o italiano Claudio Magris, o israelita Amos Oz, o japonês Haruki Murakami, o norte-americano Philip Roth, e o sírio-libanês Adonis - junta-se este ano o queniano Ngugi wa Thiong'o.
Poderá o Nobel recair neste ano num autor de língua portuguesa ou mais depressa crescerão dentes às galinhas?
Irá a Academia premiar um autor consagrado ou dar preferência a um escritor quase desconhecido, levando ao desespero milhões de livreiros por todo o mundo?
Uma mulher, um africano, um poeta... irá a Academia ceder ao politicamente correcto e escolher um representante das minorias?
Por quem estão os nossos leitores a torcer? Façam as vossas apostas, já falta pouco para sabermos quem a Academia escolherá.


A Academia Sueca irá anunciar hoje o(a) vencedor(a) do prémio Nobel da Literatura deste ano.
publicado por CRomualdo às 10:00
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Segunda-feira, 6 de Setembro de 2010

Noctívagos, insones & afins- Mi Gabriela Mistral

Raúl Iturra


O título tem razão de ser, porque a conheci quando eu era pequeno e, desde logo, a admirei. Conhecia a sua poesia, romântica e combativa. Gabriela Mistral (1) era a leitura obrigatória da minha mãe, que gostava mais de ler que de comer. Essa devoção levou-me em curto espaço de tempo a ler a poetisa. Mal se conhecia a sua obra no Chile, apenas os Sonetos da Morte, escritos em 1914, poema com que ganhara os Jogos Florais de Santiago. Não se apresentou a receber o prémio. Tinha escrito esses versos em memória do seu grande amor, Romélio Ureta, homem fino, com quem namorou, abandonando o seu prometido Alfredo Videla, ambos maestros na escola La Cantera, da cidade de Vicuña. Gabriela Mistral era maestra de crianças e foi sobre elas que começou a escrever.

Não esqueço esse soneto que faz pensar, sentir e chorar, publicado originalmente no seu livro Ternura, de 1922, página 278, intitulado Piececitos:



PIECECITOS

Piececitos de niño,
azulosos de frío,
¡cómo os ven y no os cubren,

¡Dios mío!

¡Piececitos heridos
por los guijarros todos,
ultrajados de nieves
y lodos!

El hombre ciego ignora
que por donde pasáis,
una flor de luz viva
dejáis;

que allí donde ponéis
la plantita sangrante,
el nardo nace más
fragante.

Sed, puesto que marcháis
por los caminos rectos,
heroicos como sois
perfectos.

Piececitos de niño,
dos joyitas sufrientes,
¡cómo pasan sin veros
las gentes! (2)

Embora reclamasse não ser uma mulher política, os seus poemas demonstram, rapidamente, a sua luta contra a injustiça e a desigualdade social. Assim como o seu apoio ao Partido Radical do Chile, fundado em 1858 pelos aristocratas dedicados à melhoria de vida dos mais desprezados e pobres do Chile (3).

Como sabemos, Gabriela Mistral nasce em Vicuña, Vale do Elqui, localizado no norte do Chile, contudo, em breve, passam a morar na aldeia de Botafogo, en la villa de La Unión, onde o pai ensina. Mas, irrequieto, passados três anos, abandona a família, que regressa a Vicuña e passa a viver com a avó materna. Em 1909 morre o pai vítima de excessos alcoólicos e de falta de alimentos. Gabriela, maestra em Antofagasta, soube dessa morte somente em 1911. A sua própria mãe falece em 1929 e Lucila fica entregue à sua sorte.

Quando mais nova, corria a voz de ser retardada mental, de não saber ler nem escrever e não entender a realidade. No entanto, a sua mãe a defendia e acabou o último ano do Liceu em Vicuña acompanhada pela mãe e a sua amiga, a Directora, Dona Emelinda.

Se Lucila parecia tonta, havia um motivo de que pouco se fala, apenas Volodia, o seu biógrafo e meu amigo, refere o facto na página 22 do seu livro referido na nota 1. Lucila foi uma criança abusada, foi violada, não se sabe por quem. Da mesma forma que nunca permitia que se falasse mal do seu pai, também nunca contou esta história, excepto ao seu amigo e escritor notável, César Vallejo. Volodia encontrou, na sua pesquisa, a carta e com toda a delicadeza relata o crime tão delicado, que é preciso ler duas ou três vezes essa página 22 e saber como era a vida dos pobres e das meninas abandonadas tal como a vida rural de sítios mesquinhos como Monte Grande.

No Liceu houve um roubo, Lucila foi o bode expiatório: a escola inteira, no pátio, julgou-a e acusou-a de ladra. Anos mais tarde, já muito conhecida, perguntarem-lhe se se lembrava da Yaya, essa Directora….Com voz dura e sem um gesto, abriu a boca apenas para dizer Eu nunca esqueço nada...

O seu refúgio foi os livros, desde os latino-americanos até Chekov, que muito a impressionara. Era austera, vestia sempre igual, teve o namoro com o jovem antes referido, Alfredo Videla Pineda, que sabia cantar, dançar e tocar piano, era o príncipe azul desta gata borralheira. Mas a sua pobreza não lhe permitia pagar os estudos na Escola Normal Superior e teve de ensinar como assistente numerária, muda de escola todos os anos, percorreu todo o Chile até ao dia em que encontrou dois professores que fizeram mudar a sua vida. Um, o grande amor da sua vida, Romélio Ureta, que se suicida e a deixa só. Foi em sua honra que escreveu Os Sonetos da Morte. Nada se sabe deste amor, não há provas dos seus amores, excepto um cartão com o nome no seu casaco. Conheceu-o nos tempos em que os dois eram docentes em La Cantera. Grande debate se gera em torno desta questão: foi ou não o grande e único amor da sua vida. Ela própria, passados anos, já graduada como professora, após assistir aos convites do Governo Mexicano, diz: essa história é parte da fantasia sobre a minha pessoa. Porquê, porém os versos, porquê esse nicho gelado, porquê estar classificado no seu livro Tala, página 82, entre os versos da dor?

Há outras explicações que uma dezena de biógrafos como Alone, Anderson ou Imbert colocam. Para estes, a realidade passa por Romélio Ureta e Verdugo ser da aristocracia chilena, sobrinho neto de José Miguel Carrera y Verdugo, Libertador do Chile da Coroa Española. Lucila era pobre. É aos seus vinte e cinco anos que fica só para sempre, dedicada unicamente aos seus livros, à sua fama e à carreira de diplomata. Porque esse segundo homem que colaborara na sua vida, foi o Presidente Radical do Chile, Pedro Aguirre Cerda. Professor Primário, estudou Direito à noite e abriu um escritório na cidade de Los Andes, Centro Norte do Chile, limítrofe com a Argentina, quando a conheceu disse-lhe: Sou Senador, em breve vou ser Presidente da República, serás, pois, a minha representante no México, em Itália, em França…E assim foi. Don Pedro faleceu antes, em 1939, Gabriela procurou refúgio na cidade Brasileira de Brasília, como consulesa. Em 1945, nosso tio direito, Higínio Gonzáles Nolle, irmão do pai da mãe das minhas filhas, recebeu um telegrama anunciando à Embaixada do Chile no Brasil, que Gabriela Mistral tinha sido honrada com o prémio Nobel de Literatura. O tio, que tinha partilhado com ela a Embaixada chilena em Lisboa, sabia as medidas da poetisa: arrotou, e disse: a quem outro se não a mim? E continuou a beber a sua mistela, água com um dedo de vinho e açúcar, um dos dois vícios a que se permitia. O outro, era fumar até 4 maços de tabaco por dia.

Recebeu o prémio, ninguém sabia nada dela no Chile. O Presidente da República Carlos Ibáñez del Campo, por cortesia convidou-a ao Chile, ela aceitou e foi adiando a sua visita até 1955. Tinha eu catorze anos. Ela não falava, eu também não. O Presidente era calado, pelo que iniciei uma conversa sobre a sua obra e confessei como chorava eu com os seus Piececitos, ela sorriu e fez-me um comentário: filho, se gostas de poesia, não é apenas ler-me, é também escrever como eu faço, mas de forma diferente, à tua maneira...E parece que assim foi.

Por ser um estudante com louvores na minha classe, escola privada de padres, voltei a sair com ela e andámos os dois sós a pé pela baixa de Valparaíso. Vimos o mar, não falámos, a sua grandeza para mim era alta como para abrir a boca. Passadas as duas horas combinadas, levei-a de volta ao Paço do Governo Local, deu-me dois beijos, apertou a minha mão e esse sorriso da imagem do texto, apareceu na sua cara.

Porém a minha Gabriela Mistral.

No dia do meu aniversário, anos volvidos, fui ao cinema para comemorar os meus 16 anos e vi a Gabriela Mistral vestida a rigor, com o fato preto do prémio, esticada e sem vida, com as suas mãos cruzadas, olhos fechados, prestes a partir, como todo o chileno distinto volta ao Chile: com os pés em frente. O mistral, esse vento do Mediterrâneo ia-nos trazer de volta a Lucila Godoy Alcayaga, com os seus 69 anos bem trabalhados. Confesso que fiz luto. Calei durante uma semana…Mas, essas poucas horas, desde ser apresentado até ao passeis, ao todo 48, viverão para sempre comigo….como a sua poesia…Tala e Chile...

___________________________
1- Gabriela Mistral, pseudónimo escolhido de Lucila de María del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga (Vicuña, 7 de Abril de 1889 — Nova Iorque, 10 de Janeiro de 1957), foi poetisa, educadora, diplomata e feminista chilena.


Nasce, no meio de um forte temporal, na madrugada de 7de Abril, no antigo nº 114 (casa já demolida) da rua Lopes Quintas, na Gávea, ao lado da chácara do seu avô materno, Antônio Burlamaqui dos Santos Cruz. São seus pais D. Peta Alcayaga e Jerónimo Godoy Vilanueva.

Se nasceu em Vicuña, foi pura casualidade. Duas semanas mais tarde os pais transferem-se para La Unión, onde viveu, na vila de Botafogo, até regressar a Vicuña, anos mais tarde, para acabar os seus estudos de Liceu e tentar realizar estudos superiores. Mas não tinha dinheiro para pagar a Escola Normal. Foi preciso ensinar como ajudante nas escolas primárias onde fosse colocada.


Em 1916 a família muda-se para a rua Voluntários da Pátria, nº 192, em Botafogo, passando a residir com o aos avós paternos, D. Maria da Conceição de Mello Moraes e Anthero Pereira da Silva Moraes.


Foi agraciada com o Nobel de Literatura de 1945. O seu pai, Jerónimo Godoy Villanueva, tinha estudado para sacerdote, mas rapidamente abandonou a vocação e se dedicou ao ensino. Essa preparação do seu pai influiu a sua poesia, bem como a dedicação de Peta Alcayaga a obras pias, cantante do coro da Igreja, doze anos mais velha que ele, como confessou ao Sacerdote que casá-los-ia, como consta na Acta de Matrimónio, citada por Volodia Teitelbom, esse meu velho amigo, que escrevera a biografia Gabriela Mistral. Pública y Secreta, 1991, Editorial Sudamericana, Santiago, Chile.
 
2- Retirado do livro Gabriela Mistral. Poesias completas, Editorial Andrés Bello, Santiago de Chile.
O Partido Radical, partido chileno criado em 1863 por elementos da ala extrema do Partido Liberal, foi fundado oficialmente como partido político em 1888. Fez parte da Alianza Liberal, da Frente Popular, da Unidad Popular e, nos últimos anos, da Concertación de Partidos por la Democracia. Foi membro da Internacional Socialista. O seu fundador, em 1858, Manuel António Mattta, viu-se obrigado ao exílio por ser defensor das ideias de Gracchus Babeuf, autor do Manifesto dos Plebeus , escrito em 1795, impulsionador da Revolução Francesa e que deu aço para o de 1796 de Sylvain Marèchai e O Manifesto dos Iguais, dos quais a baronesa Joana von Westphalen, casada com Kart Heinrich Pembroke Marx, e Friedrich Engels, retiram ideias para o Manifesto Comunista de 1848, redigido todo ele, com pontos e vírgulas, pela baronesa prussiana. Em 1994 funde-se com o Partido Social Democracia de Chile, dando origem ao Partido Radical Social Demócrata, que se considera herdeiro da história e da tradição do radicalismo chileno.




3 - Fonte: Sepúlveda R., Julio. 1993. Los radicales ante la história. Editorial Andrés Bello, Santiago de Chile
publicado por Carlos Loures às 03:00
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Terça-feira, 22 de Junho de 2010

José Saramago, palavra definitiva

Sílvio Castro

A palavra definitiva é aquela que atingiu todas as dimensões e confins, superando tempo e espaço. A morte de José Saramago representa para a literatura portuguesa, e não somente para ela, a tomada final de consciência de um alto testemunho da palavra definitiva. Testemunho feito a um só tempo de insólita capacidade de criação artística e de integração na consciência do mundo. Voz certamente incômoda pois, fascinando pelo vigor expressivo do texto literário que se faz a cada momento mito, não se limita somente a encantar na sua recepção, mas a conduzir o receptor privilegiado à tomada da consciência ética e política quanto às mais diversas dimensões do estar-no-mundo.


Nascido em Azinhaga, aos 16 de novembro de 1922, José Saramago acompanha a sua família humilde que se transfere para Lisboa em 1924. Sua formação é múltipla, condicionada pelas precárias condiçõe financeiras do pai. Mas o moço José supera os maiores obstáculos e se prepara para futuras grandes conquistas. Em 1947, casa-se com Ida Reis que lhe dá a única filha, Violante, nascida no mesmo ano. Desde sempre atento à realidade política de seu país, ele se increve, em 1969, no Partido Comunista Português. A partir de então intensifica, em modo particular, a sua dimensão individual, bem como uma correspondente produção literária. A assumida posição política oficial o conduz a encetar um intenso período da própria produção literária. Escreve de tudo, a começar pela poesia. Assume, em 1975, a direção do Suplemento Literário do Diário de Notícias e passa a viver como um profissional da literatura, com todas as consequências que uma tal posição obriga a todo escritor de um país de pequeno mercado editorial. Mas, a tudo enfrenta, escrevendo poemas, crônicas, contos, romances, ensaios, textos teatrais. O futuro escritor de imenso sucesso internacional se prepara assim para as próximas grandes realizações pessoais.

O primeiro romace publicado por Saramago é Terra do pecado, de 1947, obra mais

tarde repudiada pelo autor. Efetivamente, o primeiro grande texto saramaguiano é o romance Levantados do chão, de 1980, inserido na já grande tradição dos romances do neo-realismo português. Segue aquele que talvez seja a obra-prima de Saramago, Memorial do convento (1982), com o qual o autor conquista defintitiva projeção inernacional. Logo depois aparece o inovador texto ficcional de O ano da morte de Ricardo Reis (1984), definitivo marco do nascimento de um grande romancista que produzirá ativamente até o momento de sua morte.

A criatividade literária de Saramago pode ser dita como consequência direta de sua preocupação com a palavra e, de consequência, com a poesia. Do exercício da poesia, o autor do Memorial do convento faz derivar uma imediata, empenhada participação com a linguagem poética e com a consciência da palavra como elemento essencial da criação literária:

“As palavras são novas: nascem quando

No ar as projectamos em cristais

De macias ou duras ressonâncias.”

Além dos processos derivados diretamente da prática da poesia, Saramago recorre igualmente a uma sua primeira atividades de prosador, aquela da crônica, numa experiência que prefigura todo o sistema narrativo do autor. A crônica saramaguiana é manifestação do homem político e de sua direta partecipação com a dimensão social. Nela ele testemunha um empenho cívico que passa da discursão programada, até a análise da relação do “eu”dialético com o “outro”, razão do vínculo do mesmo “eu” com a história.

Antes de fazer-se livro, as crônicas aparecem no jornais nos quais trabalhou Saramago por muitos anos, sobretudo di 1968 a 1975. A linguagem jornalística - linguagem feita de sínteses, velocidade expressiva, clareza nos conceitos imediatos, consciência dos limites exspsressivos com respeito ao renovar-se constante dos eventos – se transforma em importante laboratório para o futuro grande romancista e à melhor perspectiva para a sua escritura. Das crônicas ele tomas muitos dos elementos que permitem a um tomancista um contacto mais íntimo e claro com a realidade e o devir da história, tornando-o capaz de unir oralidade e língua culta. Além disso, o autor, como ele mesmo sempre amou declarar, faz com que esta operação aparentemente menor se transforme em uma espécie de banco de dados, ao qual possa recorrer como fonte de matéria de seus grandes romances.

As duas experiências, aquela lírica e aquela cronística, são etapas substanciais para a formação da linguagem do autor de O cerco de Lisboa. Como razão dos muitos elementos de coincidência entre os dois gêneros literários, pela qual a prosa da crônica muitas vezes tende a aproximar-se à pronta síntese linguística da lírica e a retirar desta igualmente as mais amplas potencialidades expressiva, Saramago gradualmente de tudo isso colhe as características típicas de seu processo estilístico: rigor expressivo, essencialidade e clareza narrativa, abertura para com as dimensões mais radicais e mágicas da linguagem, consciência do direito absoluto da liberdade artística, uso da língua da realidade objetiva e dos valores significantes da oralidade.

A operação pela conquista da palavra definitiva em Saramago sempre me atraiu pessoalmente, sobre ela escrevendo criticamente e ao autor consignando o contacto e o convívio com as minhas atividades didáticas na Universidade de Padova. Quanto aos textos, posso citar, entre outros: 1)“L’invenzione della realtà e della storia”, in Profili Letterari (Edit. Montefeltro), Mendrisio, Suiça, junho de 1994, pp.45-62; 2) “Andamento espaço-temporal como descoberta em Viagem a Portugal, in AA.VV. José Saramago – Il bagaglio dello scrittore (org. de Giulia Lanciani), Bulzoni edit., Roma, 1996, pp. 101-109. Na Universidade de Padova Saramago foi recebido em 1984 quando da saída da tradução italiana do Memorial do Convento, em edição Feltrinelli. Nessa ocasião Saramago estava acompanhado pela sua segunda companheira, a romancista Isabel da Nóbrega. Logo após o autor de O Evangelho segundo Jesus Cristo haver recebido o Prêmio Nobel para a literatura-1998, organizamos em Padova, em colaboração com o prof. Manuel Simões, da Universidade de Veneza, e com o prof. Giampaolo Tonini, da Universidade de Trieste, o “Convegno Internazionale su José Saramago (Premio Nobel per la letteratura, 1998 – Univ. di Padova, Venezia e Trieste, 13-15 maggio 1994.“ Nessa oportunidade apresentei a relação “A Jangada de Pedra: dal fiume patrio al mare ilimitato”.

No dia 18 de junho de 2010 morria serenamente José Saramago na sua casa de Lanzarote, assistito por aquela que ele esposou em 16 de julho de 2007, a jornalista e tradutora espanhola Pilar del Rio. A voz de Saramago então silenciava definitiva, porém projetando com grande ênfase a palavra definitiva que o caracterizava. A mesma que mais amplamente se traduzia em prosa, mas que em poesia sabia manter a correspondente força de comunicação, sempre procurando a melhor união entre literatura e empenho social, sem condicionar-se jamais de ser considerado incomôdo. A palavra defintiva neste momento ecoa em poemas como “Se não tenho outra voz...“:

Se não tenho outra voz que me desdobre


Em ecos doutros sons este silêncio


É falar, ir falando, até que sobre


A palavra escondida do que penso.






E dizê-la, quebrado, entre desvios


De flecha que a si mesma se envenena,


Ou mar alto coalhado de navios


Onde o braço afogado nos acena.






É forçar para o fundo uma raiz


Quando a pedra cabal corta caminho,


É lançar para cima quanto diz


Que mais árvore é o tronco mais sozinho.






Ela dirá, palavra descoberta,


Os ditos do costume de viver:


Esta hora que aperta e desaperta,


O não ver, o não ter, o quase ser.





publicado por Carlos Loures às 11:00
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