Esta nossa conversa, ou, mais propriamente, este solilóquio, poderia muito bem começar assim – o fumo da alucinação e da loucura invade o gabinete de investigação – se preferirem que durante este breve solilóquio não utilizemos eufemismos, digamos, então, antes câmara de tortura. Pronto, agora já está melhor, mais objectivo. Take two – comecemos a narrativa de novo – O fumo da demência, dizia eu, entra em abundantes novelos brancos pelas frestas da porta da câmara de tortura. Sei perfeitamente que o fumo não existe, mas sinto-lhe, apesar disso, o sopro gélido e o odor pestífero. Os bichos, insectos, répteis e aracnídeos – venenosos e vorazmente carnívoros, tão repugnantes como também inexistentes – percorrem o soalho de madeira escura, passeiam-se lenta e provocatoriamente pelas paredes sujas...
Porém, para compensar o horror, realista de uma forma sórdida, do cenário desta produção barata, súbita e quase magicamente, deixo de ouvir a voz monótona do agente estagiário de turno, na sua lenga-lenga moralista, e encontro-me de novo na Guiné, num acampamento de circunstância nas margens do grande rio, a poucos quilómetros do nosso aquartelamento em Tite onde, em Janeiro desse ano, com um forte ataque da resistência, tinha começado a insurreição armada. Agora, a situação era diferente, para bastante pior, com diversos focos de resistência espalhados por todo o território e com os guerrilheiros (os turras da linguagem popular e o in no paleio militar) a trocar as armas artesanais por equipamento mais sofisticado do que o nosso).
Acendem-se-me na memória a floresta húmida, o caprichoso bailado dos raios solares entre os palmares, a vegetação espessa, o rio coleante como uma cascavel esverdeada, os gritos pungentes dos emplumados pássaros, os guinchos trocistas dos macacos e, às vezes, de súbito, sem explicação aparente, a eclosão de um silêncio tão sufocante como o calor e que sempre nos deixava a contas com o ruído do nosso sangue nos ouvidos, com o agitado pulsar dos nossos corações.
Um barco de borracha aproxima-se deixando uma esteira de espuma nas águas verdes do Geba. Um fuzo salta do barco e, dando vigorosas patadas na água, vem colocar na margem uma pilha com quatro grades de cervejas. Depois volta para o «Zebro», fazendo espadanar a água em seu redor, como um garoto traquina. Os outros fuzileiros riem. O furriel António que está a fazer a barba frente a um espelho pendurado numa árvore, corre para o acampamento com a cara branca de espuma de sabão. «São quatro grades, só quatro grades que aqueles nabos do caraças nos trazem! Só quatro grades!», grita para nós. O barco dos fuzos afasta-se já. O que terá dito um deles e que provoca uma gargalhada geral aos seus companheiros, quando o barco se perde num meandro do Geba e dele apenas vai permanecendo o ruído decrescente do motor e a esteira de espuma à tona das águas? Solitárias sobre a areia da margem, só as quatro grades de cervejas garantem que não fomos vítimas de uma miragem ou ilusão.
E o que me interessará agora a provável, mais do que certa, alarvice que o fuzileiro terá dito aos colegas, aqui, nesta sala em que bichos repugnantes e vorazes enxameiam as tábuas do chão, as paredes, o tecto, em que o rectângulo gradeado da janela se povoa de paisagens sempre diferentes e sempre sinistras, ao sabor da loucura que, minuto a minuto, pingo a pingo, como água vinda de uma torneira avariada, me invade o cérebro? Com qual destas realidades me deverei preocupar?
Ao dia sucede a noite, depois vem a hesitante claridade da madrugada anunciar a saída de um extenso túnel para noutro logo voltarmos a entrar. E assim sucessivamente, dia após dia, noite após noite. Um ciclo infernal de alternância entre sombra, escuridão, luz, sombra... E de vozes. Muitas vozes. Vozes insidiosas tentando infiltrar-se nas fendas que a brutal insónia vai rasgando no tecido da memória e da consciência. Aqui, neste quarto maldito, gabinete de investigação – como lhe chama o senhor sub-inspector – câmara de tortura, o que vocências quiserem, eu, o preso («o detido», emenda solícito o senhor agente estagiário, « o senhor só fica preso se for condenado em tribunal») tenho saudades da Guiné, onde as Kalashnikovs ladravam como hienas, as granadas de morteiro ribombavam como trovões lançados por um qualquer deus desmazelado e bêbedo e as minas transmutavam subitamente os corpos, numa alquimia tosca, em sórdido ketchup que se embrulhava em verdes panos de tenda e se enviava depois para a terra em caixas de pinho. Saudades da Guiné, onde a morte fazia, apesar de tudo, um jogo mais limpo e não enluvava as mãos em loucura como aqui, entre estas quatro paredes que dançam para lá das cortinas de fumo e fervilham de bichos asquerosamente trepadores.
Agora, em vez da névoa obsidiante do cacimbo, é este fumo branco, são os bichos e é a voz do agente de serviço, visivelmente o pide-bom do grupo, um dos torcionários que se revezam de quatro em quatro horas, cerzindo em torno da minha cabeça uma coroa de demência, feita de minutos, horas, dias: «O melhor que tinha a fazer era arrumar já o seu caso. Eu ia chamar o senhor sub-inspector, o senhor prestava as suas declaraçõezinhas, esclarecia-se tudo e o senhor ia dormir. Não vê que está a dar cabo de si? Olhe que os seus amigos, os seus camaradas, aqueles que está a querer proteger, não lhe vão agradecer nada o sacrifício que está a fazer por eles, aqui preso, isto é, detido, a passar por este interrogatório tão incómodo» …«Se lhe acontecer alguma coisa (Deus queira que não), não são eles que vão cuidar dos seus filhos»
O negro, um mandinga corpulento e de grande estatura apanhado em cima da sua bicicleta a percorrer a estrada com papéis «subversivos», está estendido num bailique e olha-nos com uma enorme serenidade, enquanto o sargento das informações o zurze com o cavalo-marinho – «Fala cabrão!», grita ao mesmo tempo que bate, possuído de uma raiva voluptuosa. As fibras do tecido da camisa vão aos poucos entrando na carne, vão confundindo-se com ela, criando um pastoso amálgama, uma pasta de pele, sangue e tecido. Um silvo de cansaço, frustração e ódio sai da boca do sargento a cada pancada que desfere. O homem, um professor primário de uma missão católica, quase não acusa no rosto a dor e não emite qualquer queixume, apenas um leve sopro sai dos seus lábios. Com os olhos muito abertos, dir-se-ia que com a curiosidade de um entomólogo, observa o círculo de soldados e o sargento que bate, bate sempre e grita, espumando pelos lábios. Olha-nos, um por um, sem ódio, parece não perceber o que nos leva a matar um ser humano, assim, daquela maneira. «Porquê?», pode ler-se a pergunta no seu olhar.
O agente de patilhas caracteriza-se, não por fazer perguntas ou dar conselhos como os outros. Está especializado na produção de diversos efeitos sonoros: bate com os pés no chão, passa com as unhas no vidro martelado da janela, lança assobios agudos. Dentro da minha cabeça, de preso ou detido, ou lá que raio eu sou aqui, que a sinto inchar como um enorme aeróstato, estes ruídos são ampliados e espalham-se depois por todo o sistema nervoso, como agulhas ou pedaços de vidro largados à solta na corrente sanguínea. O agente ri-se quando me vê estremecer.
O prisioneiro mandinga fita-nos com o seu ar sempre impassível de quem transpôs já a sempre ténue fronteira entre a vida e a morte, aquela linha a partir da qual a dor, a tristeza ou a alegria já não nos conseguem atingir. Depois o cavalo-marinho, com pancadas mais espaçadas, começa também a destruir-lhe o rosto, a única maneira de pôr fim à sua insultuosa serenidade. A mistura de sangue, osso e tecidos, espirra abundantemente para o meu camuflado, tal como para cima dos outros. Devo ter empalidecido. Sinto o estômago às voltas. Um cabo de barbas, um cacimbado ou, como também chamam aos velhos, «um apanhado pelo clima», pergunta-me com a irónica solicitude de um veterano: «O meu alferes está a sentir-se mal?».
Há um outro agente, um tipo franzino que, quando chega para iniciar o seu turno, começa por abrir a gaveta da secretária e olha demoradamente o seu interior com o sorriso de quem confere e aprecia uma vasta panóplia de instrumentos de tortura. Depois fecha a gaveta e fita-me com um ar pensativo e ausente. Há um outro que conta muitas histórias e dá grandes murros na mesa quando me deixo adormecer. Há o mau, o terrível. Ameaça espancar, promete inomináveis tormentos. Pontapeia a porta e as paredes, numa velada promessa. Há ainda o senhor sub-inspector que me vem visitar todas as manhãs e que se finge sempre muito surpreendido por eu ainda ali estar, por «não ter ainda resolvido o seu caso». E há o médico que me vem ver quando desmaio e que sai sempre a abanar a cabeça com um ar de quem está muito preocupado.
Um circo completo.
Ao fim da tarde, quando os ruídos no edifício da sede da polícia vão diminuindo e as sombras vão aos poucos tingindo as paredes, sinto sempre uma tristeza pungente invadir o território nebuloso que é agora o meu corpo. Estou, como Jonas no estômago da baleia, dentro de uma fera estúpida que me vai digerindo e devorando com os seus dentes ávidos. Tal como o cavalo-marinho do sargento fez ao corpo do mandinga, provocando-lhe estremeções convulsivos, pulsões de morte. Tal como ao mandinga, só o sereno desprezo pela fera imbecil me pode agora salvar.
E, ao fechar os olhos por momentos, consigo mais uma vez evadir-me dali e na escuridão crescente acendem-se-me por detrás das cansadas pálpebras as folhas verdes de um palmar, iluminadas pelos reflexos do sol.
Passam hoje 50 anos sobre o 4 de Fevereiro de 1961, considerado pelo MPLA o dia do início da luta armada em Angola. Sob o comando de Neves Bendinha, Paiva Domingos da Silva, Domingos Manuel Mateus e Imperial Santana, cerca de duzentos homens, armados com catanas, levaram a cabo em Luanda uma série de acções.
Uma dessas acções foi a emboscada feita a uma patrulha da Polícia Militar. Com as armas e munições dos quatro soldados da patrulha foi feito um ataque à Casa da Reclusão Militar com o objectivo de libertar presos políticos que ali se encontravam detidos. Ataque que não foi bem sucedido. Foram também atacados a cadeia da PIDE, no Bairro de São Paulo, e a cadeia da 7ª Esquadra da PSP, onde havia também alguns presos políticos. Foi tentada a ocupação da «Emissora Oficial de Angola», estação de rádio ao serviço da propaganda do Estado português. Morreram no decurso destas operações quarenta revoltosos, seis homens da polícia e, durante o assalto à Casa da Reclusão, um cabo do Exército Português. Foi assim, em síntese, o 4 de Fevereiro de 1961.
Como se sabe, após estes acontecimentos, outra organização, a UPA – União dos Povos de Angola, que passaria depois a designar-se por FNLA (Frente Nacional de libertação de Angola), em 15 de Março do mesmo ano (1961) desencadeou um ataque no Norte do País, massacrando colonos brancos e trabalhadores negros de outras regiões e etnias. Terá sido este ataque brutal que, da perspectiva do Estado Novo, deu início a uma guerra que estendendo-se depois a Moçambique e à Guiné-Bissau, iria prolongar-se por 13 anos até 25 de Abril de 1974.Ao MPLA, e à FNLA, juntou-se depois, a partir de 1966, UNITA – União Nacional para a independência Total de Angola. Quase um milhão de homens foi, ao longo destes anos, mobilizado para uma guerra de que o 4 de Fevereiro de 1961 foi o primeiro sinal. A Revolução de Abril pôs termo a um conflito em que muitos portugueses, muitos guerrilheiros e populações civis perderam a vida.
No entanto, não tentando, em por sombras, branquear o colonialismo português, tenho a dizer aos irmãos africanos o seguinte – nós, portugueses, causámos muito mal, muita destruição, cometemos crimes inauditos, destruímos, aculturámos… - todos os crimes que as outras potências coloniais fizeram, nós cometemos também. No entanto, logo que conseguimos a nossa libertação, apoiámos a vossa. Viemos para as ruas gritar - «Nem só mais um soldado para as colónias!», oficiais, sargentos e soldados recusaram-se a embarcar e a prosseguir a guerra injusta e suja que travávamos em três frentes.
Ouvi, sobretudo a companheiros angolanos e moçambicanos, o lamento de que se tivessem sido colonizados por britânicos, franceses, belgas ou holandeses, estariam melhor, mais desenvolvidos. Olhando para a realidade africana de hoje, o panorama que se nos depara não confirma essa convicção. Países que estiveram sob a administração dessas ou doutras potências coloniais vivem realidades porventura mais penosas e apresentam níveis de desenvolvimento inferiores aos de Angola e Moçambique. A brasileiros ouvi o mesmo raciocínio, relativamente à Holanda – olhai a Indonésia, onde, como no Brasil, os recursos naturais são abundantes. Teriam os holandeses feito melhor do que nós? Com todos os seus problemas, não é o Brasil um país mais próspero e desenvolvido?
O colonialismo foi criminoso.
Num importante segmento temporal do século XX, Portugal esteve submetido a um regime ditatorial e nós próprios sentimos na pele o que é ser estrangeiro na nossa terra. Em nossa defesa, repito o que disse acima – dar-vos a liberdade foi a nossa primeira preocupação quando nos libertámos. Nem todos os ocupantes de territórios alheios assim procederam e procedem. Até aqui, na Península Ibérica, são mantidas colónias. Mas esse é outro tema.
Hoje celebramos a libertação de Angola. Um grande abraço para Angola. Viva Angola!
1929: Em 2 de Agosto nasce em Aveiro José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos, filho do juiz José Nepomuceno Afonso e
da professora do ensino primário Maria das Dores Dantas Cerqueira. Virá a ser conhecido por José Afonso, por Zeca Afonso ou, ainda apenas por Zeca. Manuel, seu primeiro filho. São editados os seus dois primeiros discos (em 78 r.p.m.). 1953/55: 1956: É editado o seu primeiro LP – Fados de Coimbra 1957/59: Em 4 de Dezembro de 1957, actua em Paris no Teatro «Champs Elysées». Começa a cantar em colectividades. Em 1960 é editado o disco Balada de Outono (Menino de Ouro e Senhor Poeta) 1962: Nos Estados Unidos sai o álbum Coimbra Orfeon of Portugal, que inclui duas baladas de Zeca: Minha Mãe e Balada Aleixo. Participa em digressões pela Suiça, Alemanha e Suécia. 1963: Conclui o curso, com uma tese sobre Sartre. Sai o LP Baladas e Canções (Ronda dos Paisanos, Altos Castelos, Elegias...). É editado o disco Baladas de Coimbra que inclui Os Vampiros e Menino do Bairro Negro. 1964: Sai um novo disco – Coro dos Caídos, Maria, Vila de Olhão, Canção do Mar. Em Maio, actua na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, à qual dedica Grândola, Vila Morena. É editado o EP Cantares de José Afonso. Sai também a público o álbum Baladas e Canções.É publicado o livro Cantares, que depressa se esgota. Sai uma segunda edição que será apreendida pela polícia política. 1968: É editado o álbum Cantares do Andarilho.
Zeca participa na CDE de Setúbal durante a campanha para eleição de deputados à Assembleia Nacional que se segue à morte política de Salazar. 1969: Saem o álbum Contos Velhos, Rumos Novos e o single Menina dos Olhos Tristes e Canta Camarada. Recebe o prémio da Casa da Imprensa para o melhor disco. 1970: É lançado o livro Cantar de Novo e editado o álbum Traz Outro Amigo Também. Em Cuba participa num Festival Internacional de Música Popular. Em Dezembro, sai o álbum Cantigas do Maio. 1971: É, pela terceira vez, distinguido com o prémio da Casa da Imprensa. 1972: É eleito por votação dos leitores do Diário de Lisboa, como «Rei da Rádio» e actua no Festival Internacional da Canção Popular do Rio de Janeiro. Grava em Madrid Eu Vou Ser Como a Toupeira. É editado o livro José Afonso. 1973: Em Abril, é detido, pela PIDE/DGS, 20 dias na prisão de Caxias. Em Dezembro sai o álbum Venham Mais Cinco.
1974/75: Em 29 de Março de 1974, realiza-se no Coliseu dos Recreios um «Canto Livre» onde, além de Zeca, participam outros cantores. Acabam, interpretando Grândola, Vila Morena. Oficiais do MFA que assistem ao concerto, escolhem nesta altura a senha para o arranque do levantamento militar. É editado o álbum Coro dos Tribunais. Após o 25 de Abril, Zeca entra numa fase de intensa intervenção em festivais e sessões de esclarecimento. 1976: Edita o álbum Com as Minhas Tamanquinhas. Pelo seu álbum Cantigas do Maio, recebe o Prémio Alemão do Disco (da Academia Fonográfica Alemã). 1978: Edita-se o álbum Enquanto Há Força. 1979: Sai o álbum Fura Fura. 1981: Grava Fados de Coimbra e Outras Canções. Realiza um espectáculo no Théatre de la Ville, em Paris. 1982: Sente os primeiros sintomas da doença degenerativa que o virá a vitimar. 1983: Em Janeiro actua no Coliseu dos Recreios de Lisboa.
Em Dezembro, sai o álbum Como Se Fora Seu Filho. 1984: Em Abril, em Questões e Alternativas, é publicado um depoimento de Zeca sobre o balanço de dez anos de democracia. 1985: Sai o álbum Galinhas do Mato. 1986: 1987: Em 23 de Fevereiro, no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, com 57 anos, José Afonso morre. 1992: Sai a 3ª edição de Cantares. 1994: o Presidente da República, Mário Soares, quer condecorar postumamente José Afonso com a Ordem da Liberdade. Tal como Zeca fizera a igual proposta de Ramalho Eanes, Zélia recusa. 1996: Coordenada por José Niza, é reeditada em CD uma colecção de toda a obra de José Afonso. 1997: Em 23 de Fevereiro, é inaugurado na Baixa da Banheira um monumento a José Afonso. 1999: Em Grândola e na Amadora são inaugurados monumentos em sua homenagem.
A Sábado publicou, a Agência Financeira replicou. O Facebook espalhou. No ar a ficha de idoneidade de Cavaco Silva. De onde? Como? Dos arquivos da Torre do Tombo, pertencente aos arquivos da PIDE. Reza assim o início da notícia:
"Veja a ficha que Cavaco preencheu na PIDE
Tinha 28 anos, não tinha actividade política e estava afastado da segunda mulher do sogro
A ficha da PIDE que está nos arquivos da Torre do Tombo revela um Cavaco Silva integrado no regime, sem actividade política e afastado da segunda mulher do sogro. Tudo aconteceu em 1967, tinha o Presidente da República 28 anos.
A ficha divulgada pela revista «Sábado» e preenchida pela mão do actual presidente da República, serve para confirmar a idoneidade de Cavaco Silva. Quando instado a declarar a sua posição e actividades políticas, o jovem Aníbal escreve que está integrado no actual regime político e que não exerce qualquer actividade política. (...)"
Há uns meses discuti com uma arquivista da Torre do Tombo sobre o Arquivo da Pide. Sempre defendi a destruição desse arquivo. Nunca atinei com o argumento de que destruía a história. Poucos anos depois do 25 de Abril, se houvesse um golpe, os fascistas teriam em mãos um tesouro a perseguir.
A quem interessa dados tão invasivos da vida privada de um cidadão?
Hoje,de um arquivo que dizem ser tão seguro, veio a notícia de uma ficha sobre Cavaco e Silva que não interessa a ninguém.
Não voto neste personagem porque ele é contrário a tudo que defendo.
Defender a história pela história, esquecendo que dela fazem parte seres humanos, onde a ética deve ser pedra basilar dá-me voltas ao estômago.
Como já disse, a falta de tempo obriga-me a ir buscar coisas antigas – estou a publicar poemas que já saíram noutro blogue sob a designação genérica de “Poemas com história”. Na realidade, todos foram escritos em circunstâncias peculiares ou foram a resposta a situações concretas – daí a história que a todos antecede. A de “Canto da cela 10” é assim:
Em Janeiro de 1965, envolvido na grande vaga de prisões que afectou estudantes e intelectuais das duas organizações clandestinas existentes – o Partido Comunista e a Frente de Acção Popular – fui preso e, antes de ir para a sede da polícia política onde, durante muitos dias, fui interrogado da forma que se sabe ou imagina, estive uns dias na cela nº 10 do Aljube, num daqueles desumanos cárceres a que se chamava os «curros», celas estreitas e insalubres onde a luz filtrada através das grades e atravessando o corredor, era a única coisa agradável que acontecia.
Quando, três meses depois, fui libertado, a recordação daqueles dias num «curro» do Aljube (que nem foram os piores…), ditou-me este texto que depois publiquei em A Voz e o Sangue (1968-2ª ed.). A publicação deste livro seria a causa próxima para uma outra prisão, mais prolongada.
De notar, e não me canso de insistir neste tópico, que a Liberdade que invoco não é esta que vivemos – muito feita de «liberdades» - mas sim aquela que, há mais de 40 anos, eu e muitos sonhávamos alcançar. Foi por ela que lutámos e pela qual fomos presos, espancados e torturados. Foi por ela e não por isto. Ao meu poema junto a magnífica canção do Fausto.
Carlos Loures Não vos vou falar do romance de Júlio Dinis. Os serões são outros.
Há quarenta anos estava-se no auge da luta antifascista. Salazar caíra da cadeira, Caetano prometer democratizar, mas tudo continuou na mesma – guerra colonial, polícia política, censura, partido único… ditadura, para tudo dizer numa palavra. Mudou os nomes às coisas, mas tudo ficou na mesma.
Uma boa parte da população conspirava, sobretudo nas camadas mais esclarecidas da pequena-burguesia – professores, profissionais liberais, oficiais do exército (geralmente de patente não superior a capitão), pequenos empresários, estudantes… E, sobretudo nas pequenas cidades, conspirava como?
Não falando dos militantes do Partido Comunista que estavam enquadrados por elementos ligados a estruturas regionais ou sectoriais, os chamados «controleiros» e que reuniam em obediência a regras estritas de segurança, próprias do funcionamento de um partido (casas clandestinas de apoio, pseudónimos, regras estritas do funcionamento das reuniões, etc.), a chamada gente da «oposição democrática», não observava essas regras de segurança. Uma reunião tinha, por vezes, sobretudo nas pequenas cidades, o ar de um serão cultural.
A Oposição Democrática só fazia reuniões formais em período de eleições. Passados esses períodos, grupos de amigos continuavam a reunir-se, muitas vezes sem que essas reuniões tivessem outro objectivo que não fosse o de manter acesa a chama da resistência. De uma forma geral, era gente que não estava organizada em partidos, embora por vezes aparecesse um ou outro «pescador» tentando cooptar elementos. O PC fazia isso, as outras organizações mais pequenas também. Os resultados não eram muito bons. A «conspiração» desta gente resumia-se a fazer serões culturais. Um projector de 8mm, uma cópia do «Aniki Bobó» ou do «Couraçado Potenkin», discos com canções do Yves Montand, do Jean Ferrat, do Brel, do José Afonso, do Fanhais, do Luís Cília ou da María Casares; bobinas com as declarações de Havana, do Fidel Castro ou com canções da Guerra Civil espanhola… Coisas assim, acompanhadas por brande (o uísque não era tão barato como é hoje e quando aparecia era uma festa), uns bolos caseiros feitos pela anfitriã e assim se reuniam vinte trinta pessoas. Era, mais ou menos, uma vez por semana – a noite de sexta-feira era a preferida. Chamar a isto resistência parecerá excessivo se não tivermos em conta o contexto político. Caso estas reuniões fossem sempre na mesma casa, corria-se o risco de, sem ser convidada, a PIDE aparecer.
Esta era sobretudo uma maneira de resistir à ofensiva cultural do Estado Novo que, sentindo a morte aproximar-se, apertava as suas malhas. E a cultura não fugia a essa ofensiva. Na música era o «nacional-cançonetismo», expressão inventada, salvo erro, pelo Mário Castrim, com o Calvário, a Madalena Iglésias, o Artur Garcia, e a Simone ...
A televisão, com dois canais, a Emissora Nacional e outras estações de rádio controladas pelo regime, os jornais e as editoras, apertados pela censura e depois pelo exame prévio… Enfim, um aro de ferro apertado em torno das cabeças. Os serões da província eram uma forma de cultura alternativa. As pessoas abriam janelas para outros conteúdos culturais. Não terá sido por acaso que as mentalidades se abriram à Revolução de forma tão espontânea. Os serões tiveram o seu papel nessa abertura.
Ia-se mudando de casa, para não dar muito nas vistas. Mesmo assim, havia quem denunciasse, geralmente por carta anónima, que na casa de fulano havia reuniões estranhas. Lembro-me de uma reunião, essa mesmo conspirativa, numa cidade minhota onde no fim cantámos os «parabéns a você» para simular uma festa de aniversário. Era muita gente, vinda de vários pontos do país, muitos carros estacionados numa rua de pouco movimento. Enfim dava nas vistas e aquela foi a saída. Este cenário que estou a descrever era mais frequente nas pequenas cidades. Mas assisti a muitas reuniões deste tipo político – gastronómico – cultural, no Porto e em Lisboa. Prova, se fosse preciso, de que todo o País continuava (e continua) a ser provinciano.
Segue-se uma série de vídeos com algumas das audições recorrentes nas tais reuniões. Por exemplo, esta canção de Jean Ferrat (recentemente falecido) era muito escutada, «Nuit et brouillard», tradução de «Nacht und Nebel», noite e nevoeiro, nome dado pelos nazis à operação de deportação de prisioneiros para os campos de extermínio. Noite e nevoeiro, porque queriam que sobre o crime caísse uma noite que o tornasse invisível e um nevoeiro que o fizesse esquecer. Em 1956. Alain Resnais realizou um filme com este título. Ouçamos Ferrat:
Outra presença certa nos serões era «Ay Carmela», um canto da Guerra Civil de Espanha. Todos cantávamos em coro, com o anfitrião a pedir para não fazermos muito barulho por causa da vizinhança – El ejercito del Ebro, rumba, la rumba, la rumba la…
Yves Montand e o seu «Chant de la libération», mais conhecido por "Chant des Partisans",que se converteu durante a ocupação em hino da Resistência, nunca faltava às nossas reuniões:
E o Zeca, como podíamos nós passar sem o Zeca?
Cuba! Quantas vezes ouvimos Fidel e as suas emocionadas e emocionantes declarações de Havana. Para meados da década, começámos a perceber que Fidel se rendia a um pragmatismo que o obrigava a fugir do imperialismo americano, lançando-se nos braços do imperialismo soviético. Guevara era a voz pura da Revolução de 26 de Julho:
O «Couraçado Potenkin», cujas cópias conseguíamos comprar em Paris ou em Londres, animavam muitas das nossas reuniões. Realizado por Sergei Eisenstein em 1925, provinha de uma União Soviética ainda não totalmente estalinizada. Era peça de êxito assegurado, com palmas no final. Se não viram e dispõem de algum tempo, não percam este filme que constitui um elo imperdível da história da cinematografia mundial.
Quando as reuniões acabavam, os «conspiradores» iam saindo em pequenos grupos. As casas ficavam desarrumadas. O casal anfitrião, enquanto levava copos e pratos para a cozinha, repunha cadeiras no lugar, comentava entre si: «Não correu mal, pois não?»
Filmes como este, que podemos ver na páina seguinte e que víamos entusiasmados, por vezes nos cinemas de sessões contínuas, levavam os da minha geração a eleger como brincadeira favorita as lutas entre índios e cowboys (cóbois, no nosso inglês simplificado). Nascido no centro de Lisboa, não podia brincar na rua. Mas nas férias grandes desforrava-me. Numa vila de praia da margem Sul, hoje transformada num caos urbanístico, mas na altura pacata e tranquila, reunia-me a um grupo de amigos certos, todas as tardes, depois do almoço, antes de uma última ida à praia, quando o sol já não «fizesse mal». Dividíamo-nos em dois grupos, os maus e os bons, os índios e os cóbois. Não havia lugares fixos, a divisão era aleatória. Mas quem se atrasasse na chegada já nem tinha direito a escolher. Era assim e pronto. Ninguém discutia as regras.
Antonio Gramsci (1891-1937), filósofo e político italiano, perseguido pelo regime fascista de Benito Mussolini, dizia na sua obra Os Intelectuais e a Organização da Cultura: «Cada grupo social essencial» (…) «surgindo na história a partir da estrutura económica anterior e como expressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou – pelo menos na história que se desenvolveu até aos nossos dias – categorias intelectuais pré-existentes, as quais apareciam, aliás, como representantes de uma continuidade histórica que não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas». Ao recordar estas palavras de Gramsci, sou levado a reflectir sobre o facto de a realidade histórica dos últimos dois séculos nos permitir verificar que são oriundos da burguesia quando não mesmo da aristocracia, os intelectuais que surgem à superfície das grandes e pequenas perturbações sociais e que construíram, não só os suportes teóricos do sistema capitalista, como também os pressupostos ideológicos de quantas revoluções se produziram.
A Revolução Industrial, ao mesmo tempo que veio criar um novo modo de produção – o que, pode dizer-se, não acontecia desde o Neolítico – provocou o aparecimento de uma estrutura intelectual adequada, do mesmo modo que a aristocracia fundiária, no sistema feudal, criou a sua própria categoria intelectual – a dos sacerdotes. Estes monopolizaram, durante um longo período da história, a ideologia religiosa que, para todos os efeitos, constituía a ciência da época. Em contrapartida, poder-se-ia afirmar que a classe operária, nasceu, sobreviveu e, provavelmente, extinguir-se-á sem ter organizado (ainda que a partir de categorias intelectuais «pré-existentes» uma intelectualidade própria, acabando o marxismo, numa análise superficial, fria e pragmática, por surgir como uma ruptura interna na superstrutura da burguesia, não ultrapassando na prática a concepção hegeliana que atribuía aos intelectuais o papel de «aristocracia do Estado».
Esboça-se um quadro de luta de classes em que, a nível superestrutural, um dos contendores estaria numa total dependência dos quadros formados pelo adversário, aparecendo a luta, no campo das ideias, como uma dissensão no campo de burguesia – a clivagem entre intelectuais «burgueses» e intelectuais «proletários» seria determinada por um jogo de opções pessoais baseado na pressão moral que a natureza cruel e desumana da exploração sempre tem exercido sobre camadas sensíveis da classe dominante, nomeadamente entre a juventude. O campo revolucionário, nessa luta que, embora tão anunciada nunca chegou a travar-se, dependeria das deserções que essa pressão ontológica provocasse.
Não falarei aqui do papel desempenhado nessas deserções do campo burguês motivadas por ilusões românticas e a esperança no advento de uma sociedade justa. Não falarei também de apressadas «opções de classe» feitas em ordem a objectivos obscuros de oportunismo, carreirismo, servidas por consabidos artifícios de demagogia. Desde o século XIX até ao século XX, organizações operárias fizeram esforços no sentido de criar estruturas culturais autónomas do tipo das universidades livres. Porém, salvo uma ou outra excepção, todas elas desembocaram em arremedos do ensino burguês.
No fundo, toda esta problemática radica num ponto – o socialismo não criou um modo de produção alternativo ao do capitalismo. Procurou pôr o modo de produção capitalista ao serviço do proletariado. Porém, tal como o carro não consegue puxar os bois, é o modo de produção que determina a estrutura cultural e não o contrário. Entrou-se num labirinto sem saída. Melhor, num labirinto cuja única saída deita para o depósito das revoluções abortadas. O «socialismo real» tinha falido muito antes da queda do muro de Berlim. Quando na União Soviética se chamou stakanovismo à mesma coisa a que os capitalistas chamavam taylorismo, a revolução acabara já. Porque o problema não era uma questão de nomenclatura. Nessa altura, em que os operários se emulavam para ver quem ganhava o título de «trabalhador do mês», nascera uma nova forma de exploração – o capitalismo de Estado, com a economia posta ao serviço de uma nova classe dominante. As pessoas mudaram, a exploração capitalista manteve-se. A bem dizer, não houve revolução. * Nesta era pós-industrial em que vivemos, observando a classe política que temos em Portugal, verifico que ainda há muita gente do «meu tempo». Na grande vaga de prisões que se verificou em meados dos anos 60 – o controleiro do sector universitário do Partido Comunista deu de mão-beijada à PIDE toda a estrutura do sector, nomes, pseudónimos, moradas, ligações – tudo. Ao mesmo tempo, um acidente com uma bomba artesanal desencadeou a prisão de muita gente da Frente de Acção Popular, um movimento proveniente de uma cisão no PCP. As prisões regurgitavam de jovens estudantes. Naquela altura, há mais de quarenta anos, estavam concentrados em duas organizações de esquerda (muitos mais no PCP). Eram jovens da classe média na sua generalidade, «filhos da burguesia», usando o linguarejar politiqueiro da época.
No começo dos anos 70, tinham começado a constituir-se outras formações políticas - a LUAR, as BR, o MRPP e, em 1973, a ASP, que daria lugar ao PS. No seio do partido único, a ANP, nascia uma ala liberal. O leque político que durante as décadas anteriores se resumira ao PCP, aos republicanos históricos (que só se organizavam em vésperas de eleições) e à Causa Monárquica, diversificava-se. Muitos dos militantes destas organizações, geralmente estudantes, provinham da geração seguinte à minha. Porém, os dos anos 60, formados na sua grande maioria no PCP, espalharam-se pelos novos movimentos (alguns em lugares de liderança) nomeadamente pelo PS, um ou outro pelo PSD. Não digo nomes, mas quem viveu aqueles tempos, sabe que foi como digo. Ministros e secretários de Estado do PS, foram e são, gente desse tempo, provenientes das hostes do PC.
Onde quero chegar é à conclusão de que, tal como nos jogos infantis de índios e cóbois, a escolha do campo político em que se actua, não sendo aleatória por corresponder, na melhor das hipóteses, a convicções políticas (há casos em que corresponde a interesses da mais variada espécie, mas não vou por aí), nada tem a ver com a chamada origem de classe. Toda a gente, da extrema-esquerda mais extra parlamentar à direita mais conservadora, pertence, grosso modo, à mesma classe, bebeu a sua formação nas mesmas fontes. Assumindo uns, em diversos graus, o papel de defensores da classe a que pertencem e outros, em diversos graus também, o de revolucionários.
Não explicará esta circunstância a falência sucessiva de quantas experiências de derrube da sociedade burguesa que têm sido empreendidas? Através dos intelectuais, dos quadros herdados, como sapatos de defunto, do capitalismo e introduzidos, mercê das tais opções de classe, sub-repticiamente no cerne do tecido revolucionário, a burguesia ressurge, mais cedo ou mais tarde, metamorfoseada em casta dirigente proletária, como erva daninha agarrada às estruturas de Estado, revestida da sacrossanta autoridade das altas hierarquias do Partido, montada solidamente no cavalo do poder. Cóbois disfarçados de índios. Ou vice-versa, se preferirem.
O jogo está viciado. Mas ninguém discute as regras.
Não tive julgamento, nem advogado, nem sentença. Os meus filhos e familiares continuam a procurar-me. Até quando?
É com variações desta frase que cineastas, actores, músicos e escritores dão voz a 15 assassinados pelo franquismo; cada relato é separado pelo som da descarga dum pelotão de fuzilamento.
O primeiro relato é do cineasta Pedro Almodóvar que interpreta Virgilio Leret Ruiz, aviador, chefe da Força Aérea da Zona Oriental de Marrocos e que foi o primeiro militar assassinado pelos seus camaradas militares, sublevados, por se ter recusado a aderir ao golpe franquista.
A iniciativa foi da Plataforma contra la impunidad del franquismo
Para os portugueses da geração de Abril toca particularmente ver a página desta com dois cravos vermelhos.
Os crimes franquistas, durante e após a guerra civil, foram perdoados ao abrigo de uma amnistia de 1977, anterior à aprovação da Constituição do estado espanhol, e, pior, os principais partidos de poder comportam-se como se tivessem um pacto tácito para não falar sobre o assunto e enterrá-lo no esquecimento do tempo.
Para que tal não aconteça constitui-se a Asociación para la recuperación de la memoria histórica
, uma das impulsionadoras da Plataforma contra a impunidade do franquismo.
Também em Portugal ficaram impunes muitos dos crimes e abusos da ditadura salazarista. Importa não esquecer e contar o que aconteceu, para impedir futuros branqueamentos, é o mínimo dos mínimos. Vejam a página do Movimento Cívico Não Apaguem a Memória!
- Bom dia. Diz-me um guarda. Eu não ouço… apenas olho das chaves o grande molho parindo um riso na farda.
Vómito insuportável de ironia Bom dia, porquê bom dia?
Olhe, senhor guarda (no fundo a minha boca rugia) aqui é noite ninguém mora, deite esse bom dia lá fora porque lá fora é que é dia!
(Luís Veiga Leitão, In «Noite de Pedra», 1955).
O desenho de João Abel Manta e o poema «Manhã», de Luís Veiga Leitão, com que abro este texto, dizem muito sobre o que, no imaginário colectivo, perdura sobre a repressão policial que o Estado Novo exerceu. Para além das visões artísticas que essa repressão suscitou (e que, apesar de tudo, não são tão abundantes como seria de esperar), houve abordagens diversas, mais objectivas, mais isentas de emoção. Escassas também. Entre o que se tem escrito sobre a polícia política do regime ditatorial - que teve três siglas, PVDE, a PIDE e a DGS – destaca-se um trabalho de Irene Flunser Pimentel - A História da PIDE, publicado em 2007. É um trabalho metódico e consistente.
Porque em torno desta polícia se criaram lendas, se contam histórias rocambolescas. Irene Flunser Pimentel procurou (e conseguiu) fugir dos chavões, das ideias feitas. Baseia-se em documentos, em registos, em testemunhos Quando não dispõe de fontes primárias, não inventa. Não preenche os hiatos da história com suposições. Por exemplo, face aos números encontrados, confirma-se a ideia de que a PIDE não foi tão criminosa como o foram a Gestapo e a sua congénere italiana a OVRA, por exemplo. Nem sequer como a Brigada Político Social que, durante franquismo, estava encarregue de erradicar o comunismo. Conclusão que não serve de grande consolação aos que foram presos e torturados pela polícia política portuguesa. Pese embora esta relativa brandura, só no campo de concentração do Tarrafal morreram, até 1945, 31 presos confirmados, embora outros cujos nomes não ficaram para a posteridade tenham morrido ou adoecido durante o cativeiro. Alguns eram libertados moribundos e morriam «em liberdade» em suas casas ou nos hospitais, não contando em termos estatísticos para o rol dos assassinados – embora menos letais do que as suas congéneres, as polícias políticas do Estado Novo mataram uns milhares de concidadãos nossos, cujo crime, na maioria dos casos, era o de não estarem de acordo com a política do regime e de, na sua maior parte, estar organizado clandestinamente para distribuir uns jornais ou organizar uma greve. A luta armada, com a LUAR, as BR e a ARA, só ganhou expressão nos últimos anos da ditadura.
Se são do conhecimento geral nomes como o de Humberto Delgado, Dias Coelho, Militão Ribeiro, é preciso não esquecer que houve muitos outros, como o caso do médico António Ferreira Soares, morto a tiro em 4 de Julho de 1942 em frente de uma irmã e de uma criada, do José Moreira que, em 1950, «caiu» do terceiro andar da sede da PIDE, do Raul Alves que em 1957 também «caiu», dos dois presos mortos na delegação do Porto em 1957 – Joaquim Lemos Oliveira e Manuel da Silva Júnior… centenas de nomes.
Oficialmente, as mortes deviam-se a suicídios. a quedas acidentais, a doenças cardíacas, etc. Em todo o caso, a historiadora não nos fornece um número total de vítimas. Não é possível encontrar esse número. Suponhamos que à lista dos assassinados em Portugal, queremos adicionar os que foram mortos nas ex-colónias – portugueses e, sobretudo, africanos? – Tudo se complica.
Referindo uma experiência pessoal, na minha primeira prisão, em 1965, fui submetido no interrogatório a 13 dias de «tortura do sono», com espancamentos pelo meio. Depois de sete dias, comecei a desmaiar com frequência, e o médico que me ia ver mais do que uma vez por dia, aconselhou o inspector do meu caso (José Américo da Silva Carvalho) a deixar-me dormir. Puseram-me uma cama desmontável no «gabinete de investigação» - eufemismo policial para sala de tortura - e dormi ininterruptamente dez ou onze horas até que me acordaram e a tortura prosseguiu por mais seis dias. Parecerá duro a quem nunca se viu nestas andanças, mas não foi nada de especial. Milhares de outros antifascistas tiveram um tratamento muitíssimo pior, chegando alguns a perder a vida. Daí o cuidado que a polícia passou a ter, com médicos a vigiar, os efeitos da tortura. As mortes não eram convenientes, davam mau aspecto e, se possível, pioravam a reputação da polícia. Embora nunca se dissesse que as pessoas morriam devido ao que lhes faziam – como já vimos, eram geralmente «suicídios», «acidentes» e «doenças súbitas». Quando os familiares tinham acesso aos corpos, não podiam vê-los. Porque seria?
Egito Gonçalves termina o seu poema Morte no Interrogatório («Os Arquivos do Silêncio»,1963), desta forma dramática e irónica:
Na sala o interrogatório atravessava o tempo; lâmpadas de mil vátios tornavam a vida irrespirável,
Às três da madrugada o coração fraquejou E os dois comissários ficaram perante um homem morto E dois cinzeiros com trinta pontas de cigarros.
Antes da «tortura do sono», que, como o nome indica, consistia em deixar o paciente sem dormir até «confessar», houve a «estátua» que, à insónia forçada, juntava a imobilidade também forçada. Os «cientistas» policiais parecem ter descoberto que a imobilidade produzia um desgaste físico acelerado e que na nova modalidade, podendo mover-se, os presos aguentavam mais enquanto, privado do sono durante mais tempo, o cérebro se cansava e a capacidade mental de resistir também. Afinal tratava-se do velho «tormentum insoniae», o suplício da insónia, tão usado pela Inquisição. Lembro um estudante de Agronomia que esteve 21 dias sem dormir e que sendo deficiente motor (poliomielite) foi obrigado pelos agentes a dançar a Kalinka… Mesmo assim, não terá sido um recorde.
Além das mortes, das famílias destruídas pelas prisões prolongadas, com diversos anos de pena a que se acrescentavam as tais medidas de excepção que as podiam prolongar indefinidamente, era vulgar os presos verem-se despedidos dos empregos. Quando saíam da prisão – fossem operários, professores, médicos ou escriturários, não podiam trabalhar. Nem emigrar, pois não tinham direito a passaporte. A propósito de vexame, as mulheres eram mais vulneráveis – embora vigiadas, torturadas e espancadas por agentes femininos, houve casos de abusos sexuais praticados por inspectores, chefes de brigada ou agentes masculinos. Uma tortura adicional era, se a «estátua» ou a «tortura do sono» coincidiam com o período menstrual, não as deixavam pôr ou mudar pensos, tomar medidas higiénicas, criando uma humilhação extra com os comentários sarcásticos que os agentes, homem ou mulher, faziam sempre que entravam no «gabinete». Fala-se de uma presa, uma estudante, que, já nos anos 60, enlouqueceu. Não pude confirmar.
Trabalhos como este, de Irene Flunser Pimentel, são muito necessários, pois constituem instrumentos de informação realizados com todo o rigor possível. Buscar a verdade com este rigor é a função da ciência histórica. Sendo a autora uma historiadora da escola de Fernando Rosas, o escrúpulo com que o trabalho foi elaborado, é um dado adquirido. É uma obra de consulta onde só figura a verdade apurada. No entanto, dada a objectividade com que o tema é abordado, ela não nos transmitirá a sensação de horror, de impotência, que se sentia quando se era apanhado nas malhas daquela polícia.
Porque tentar transmitir essa sensação, é função da arte e da literatura e não da ciência histórica.
Um copo de vinho fresco como um fresco pensamento. Vinho fresco teve o sol por fermento. Um copo de vinho fresco em Lisboa, Campolide. Um amigo que foi morto pela PIDE. Um copo de vinho fresco, consciência revoltada, mecanismo tic-tac de granada.
Fernando Correia da Silva, escritor, nasceu em Lisboa no ano de 1931. Frequentou o curso Ciências Económicas e Financeiras e, ainda estudante, foi apoiante do general Norton de Matos nas eleições presidenciais de 1949. Militante do MUD Juvenil, foi preso pela polícia política. Foi amigo de outros escritores, tais como António José Saraiva, Mário Henrique Leiria, Alexandre O’Neill, Orlando Costa (seu padrinho de casamento) e muitos outros. Conviveu com políticos como Agostinho Neto, Marcelino dos Santos, Vasco Cabral.
Em 1954, perseguido pela PIDE foi para o Brasil como exilado político. Ali colaborou na Folha de São Paulo, tendo sido um dos fundadores do jornal antifascista Portugal Democrático. Com Jorge de Sena, Casais Monteiro, Sidónio Muralha, Fernando Lemos e escritores e artistas brasileiros como Maria Bonomi, Guilherme Figueiredo e Cecília Meireles, fundou em S. Paulo a GIROFLÉ, editora infantil. Em 1964 após o golpe militar no Brasil empregou-se numa indústria em Fortaleza do Ceará. Durante dois anos, viveu o Nordeste, onde a ostentação e a miséria viviam paredes meias.. Regressou a Portugal em 1974.
Tem uma obra essencialmente constituída por romances. Referimos os mais importantes: Mata-Cães (1986),, Lord Canibal (1989) Querença, (1996), Maresia, (1998) e Lianor (2000). Querença, o mais autobiográfico dos seus romances, foi passado ao cinema em 2004, com realização de Edgar Feldman. Desde 1998, Fernando Correia da Silva coordena Vidas Lusófonas, um site na Internet que já quase atingiu os 20 milhões de visitas.