Sábado, 6 de Novembro de 2010
Poema de Paulo Melo Lopes eFotografia de José MagalhãesNunca quis morrer num sábado ao sol. Digo: asas de vento (a memória da tua voz: encontramo-nos na foz, na rocha escondida); ea paz das palavras, deixa que te conte: sossegaacalma amorna abraça abranda. Digo: hávelocidades mais absolutas talvez queas do movimento interno das asas: asasdentro no corpo como bichos roendoa pele, roendo o sangue, berrando àsaída. Digo: não morrerei num sábado ao sol.E a certeza interna dos prazos menores davida esconde-se atrás da pedra dura rija fria: digo: soubesse eu das asas do ventocarinhoso sobre a pele sobre a pele sabendo da pele.Um mar passa longo, e dentro das vagas a memória desmaia. Digo: há portas talvez mais velozes pelo movimento interno das asas para o céu; e o movimento é este: ~~~~~~.
Domingo, 31 de Outubro de 2010
O menino cresceu demasiado para continuar menino, embora lhe tenha mantido a meninez. Penso ter-lhe parado o crescimento quando se tornou rapaz; não lhe dei mais idade que essa, não importava o quanto crescesse. Como era o nome dele que nunca o soube? Parece que o nome se perdeu algures pelo caminho ou, se o soube, não o lembro. O nome nem era usado, como se a falta de uso das palavras o interditasse de ter uma de si. Terá tido alguém que lhe disse Tu chamas-te isto ou aquilo. Ou não terá tido, que a mãe e o pai não foram dessas coisas. O menino da grinalda: foi assim que ficou muitos anos; houvesse nome que lhe assentasse e eu não teimaria em menino da grinalda; ou o nome não era dele, como se, ao chamá-lo, se dissesse palavra que não lhe pertencesse, uma invenção tonta de quem nada tem para fazer.”
Sessão de apresentação do livro O nome daqueles, de Paulo Melo Lopes, no dia 12 de novembro, pelas 18:30, na Casa da Cultura de Gaia (Casa Barbot – Av. da República, 590/610 – VN de Gaia).
Apresentação a cargo de Joana Matos Frias, professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.____________________________
Sexta-feira, 29 de Outubro de 2010
O menino cresceu demasiado para continuar menino, embora lhe tenha mantido a meninez. Penso ter-lhe parado o crescimento quando se tornou rapaz; não lhe dei mais idade que essa, não importava o quanto crescesse. Como era o nome dele que nunca o soube? Parece que o nome se perdeu algures pelo caminho ou, se o soube, não o lembro. O nome nem era usado, como se a falta de uso das palavras o interditasse de ter uma de si. Terá tido alguém que lhe disse Tu chamas-te isto ou aquilo. Ou não terá tido, que a mãe e o pai não foram dessas coisas. O menino da grinalda: foi assim que ficou muitos anos; houvesse nome que lhe assentasse e eu não teimaria em menino da grinalda; ou o nome não era dele, como se, ao chamá-lo, se dissesse palavra que não lhe pertencesse, uma invenção tonta de quem nada tem para fazer.”
Sessão de apresentação do livro O nome daqueles, de Paulo Melo Lopes, no dia 12 de novembro, pelas 18:30, na Casa da Cultura de Gaia (Casa Barbot – Av. da República, 590/610 – VN de Gaia).
Apresentação a cargo de Joana Matos Frias, professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.____________________________
Sexta-feira, 15 de Outubro de 2010
Paulo Melo Lopes
Os secos braços de Marjorie forçam a furiosa marcha da bicicleta sobre a ponte fria de Saint Exupéry, em Paris. A ponte é feita de pedras. As pedras magoam muito quando batem com velocidade. As pedras também magoam muito quando alguém lhes bate com velocidade. Da cara de Marjorie escorre sangue para o rio.
(No Outono, o Sena reclama suicidas. Todos os anos, quando água mais fria banha as margens, o entristecimento da luz empurra gente para o fundo do rio, onde o lodo as recolhe com braços quentes. O Sena é um rio de mulheres, sobretudo; parece não querer os homens: a maior parte deles nada para as margens ou agarra-se aos barcos de recreio que pululam de turistas encasacados. [Quis a mão de Deus que Henri de Vicariate encontrasse refúgio num desses barcos, o “La poulette”, onde duas japonesas (chinesas, tailandesas), Ling (?) e Lang (?), melancólicas órfãs recolhidas pelo engenheiro que programou o acerto dos relógios nos primeiros telemóveis, lhe sorriram e o fotografaram como de artista famoso se tratasse. Henri de Vicariate devolveu o sorriso. Na margem, Nougete procurou desesperadamente o seu amado.])
Marjorie tem andas de metal. Baixa-se muito para chegar com as mãos ao guiador, formando uma corcunda nas costas. À cabeça transporta um chapéu amarelo enfeitado com penas de pavão.
(No Outono, o Sena canta baixinho cantigas de embalar; dizem os entendidos que chama corações partidos. Eis alguns exemplos:
1. Elena Cardailac – desaparecida no Sena a 27 de Outubro de 1879. Não mais foi vista.
2. Isabelle Marival - desaparecida no Sena a 2 de Novembro de 1945. A 3 de Novembro foi vista, nua, caminhando sob a luz crua da Igreja de Notre Dame.
3. Adeline Marie – desaparecida no Sena a 17 de Novembro de 1899. A 19 de Novembro saiu do rio e mordeu um homem que passeava na margem. O homem morreu.
4. Michelle Chapelle – desaparecida no Sena a 29 de Novembro de 1900. Entre os dias 3 e 4 de Dezembro, sentou-se, imóvel, num banco do parque público de Saint Exupéry.)
Marjorie passa em frente ao anexo pardacento onde Krief sacia a fome nas fartas mamas de Nougete. Do outro lado da rua, e através das janelas do Hospital de Saint Exupéry, Marjorie vê que uma enfermeira esbofeteia violentamente uma mulher.
Sábado, 9 de Outubro de 2010
Paulo Melo LopesAs paredes, não se leia paredes, medem-se pelo número de humanos, não se leia humanos, a quem conseguem suportar o esforço sem ruir. Neste sentido, científico e sistematicamente estruturado, ignorem-se duas vírgulas e três pontos, o mesmo que consolidou enquanto objecto de estudo dinâmico a interoperabilidade entre dunas de fraca consolidação particularmente atreitas às rachadas tempestades, acrescente-se água, vindas do mais brusco e estúpido oceano, escolha-se um deles, a que a vossa memória profunda, medir a profundidade por meio de sistema hidráulico que comporte uma régua e um nível, possa aceder, virados a leste sempre que os cardeais, que não os padres, antes os pontos, que absurdo seria falar da religiosidade dos cardeais considerando-os referenciais da rosa-dos-ventos, use-se uma outra flor, assim o permitem, as paredes, não se leia as paredes, consolidam-se estrutura plana e côncava que suporta e abriga a humanidade, ignore-se a humanidade, leia-se outra palavra começada por h que não humidade.
As paredes não são náufragas da história; espreguiçam-se em todo o esplendor quando há rasto de olhar humano, franzir o sobrolho, que é quase uma constante, tão constante quão constante pode ser a constância da ida e volta, ida e volta, ida e volta das marés de gente, repetir sem parar. Paredes a olhar olhos humanos, usar ditongo, olhos humanos a olhar paredes, usar não ditongo. Tão antiga é a parede que não se sabe quem primeiro chegou, se a parede se o olhar, que a obra é anterior ao olhar, mas antes de ser parede já o olhar.
Se o olhar forma a parede, é a solidez da rocha que lhe consolida o carácter, substituir por uma outra palavra que não use do verbo ser, e esse, não obstante o peso do olhar, use-se uma balança de pesar-olhares, não se compadece com a tecedura, sentir o tecido a escorrer pela mão esquerda, de olhar verde, azul, castanho, preto, amarelo, vermelho, multicolor: as paredes não se medem pelo olhar, ignore-se a letra h duas vezes consecutivas, nem pela cor dos olhos que as olham: as paredes medem-se pelo número de humanos a quem conseguem suportar o esforço sem ruir com ruído ou com ruído sem ruir. Chegar ao final e não recomeçar.
(Anteriormente publicado
http://amortedoratocego.wordpress.com/)
Terça-feira, 5 de Outubro de 2010
Paulo Melo Lopes
Pelas grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, a mãe de Krief olha agora o céu de um Outubro castanho. Há um sorriso muito bonito a bailar-lhe nos lábios e as pálpebras transmitem a serenidade da contemplação. Subitamente, grita: KRIEF! E pára. De novo: o sorriso: o sorriso da mãe de Krief imita a tranquilidade das folhas de Outubro e saudosamente acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos de Krief. Opções viáveis: Frio> acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos frios de Krief; Morte> acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos mortos de Krief; Mármore> acaricia as grades do Hospital de Saint Exupéry, em Paris, como acariciasse os dedos marmóreos de Krief.
Do outro lado do muro, aquele que separa o Hospital de Saint Exupéry, em Paris, do resto do mundo, o pequeno Krief é amamentado por uma gorda loira sentada na cama de um anexo pardacento. A loira chama-se Nougete; veste espartilho vitoriano e fuma cigarretes brancas através de uma boquilha oferecida pelo conde Henri de Vicariate, assim ele se apresentou. Disse-lhe o conde numa noite de lua cheia, passeando os dois junto ao Sena: Minha cadelinha virtuosa, a luz dos teus cabelos ilumina Paris. Nougete sorriu. Henri de Vicariate pigarreou. Nougete olhou-o amorosamente. Henri de Vicariate cofiou o bigode. Nougete desejou, olhando as estrelas, a eternidade do momento. Henri de Vicariate afinou a voz e trauteou La vie en rose. Nougete desejou fervorosamente um filho de Henri de Vicariate. Henri de Vicariate tropeçou e caiu ao Sena; veio a salvar-se agarrando-se a um barco de recreio. Nougete não mais o viu. Henri de Vicariate não mais a procurou.
No Hospital de Saint Exupéry, em Paris, a mãe de Krief abre o caderno e anota:
Qual das dores a maior: perder o filho que se teve ou não perder o filho que não se teve?
PERGUNTA DE FUNDO: em que altura da história dos homens se transformou a dor em sofrimento?
Na cama do anexo pardacento, Krief alimenta-se sofregamente nas mamas de Nougete - as mamas de Nougette são como cascos de navio.
250 metros a norte, um homem encontra o seu destino. Corre para casa, enche a banheira de água fria e tenta afogar-se. Falha estupendamente. Esse homem é Henri de Vicariate.