Algumas das páginas mais comovedoras da grande literatura universal são aquelas em que Príamo, rei de Tróia, pede a Aquiles que lhe devolva o corpo do seu filho, Heitor, a quem Aquiles matara em combate, para que a família possa honrá-lo com um funeral digno. Aquiles começara por arrastar o corpo de Heitor pelas muralhas de Tróia e Príamo vai até ele para pedir-lhe, olhando nos olhos o homem que havia matado o seu filho, que revele a sua grandeza de carácter mostrando respeito pelo adversário vencido, pela dignidade desse corpo cuja vida ele tirou, entregando-o aos seus, não permitindo que o cadáver seja exposto como trunfo de guerra. E Aquiles comove-se com o pedido de Príamo, entrega o corpo de Heitor ao seu pai, e aceita conceder a Tróia as tréguas necessárias para que a cidade possa prestar ao seu herói vencido as honras fúnebres que este merece.
Muito longínqua estará a Ilíada dos tempos que correm, os combates já não se fazem corpo a corpo, mais se assemelham agora a videojogos, com alvos que passaram a ser cirúrgicos e vítimas civis renomeadas “danos colaterais”, mas não somos ainda os mesmos seres humanos que percorrem o poema de Homero? Não nos reconhecemos nas mesmas emoções, no mesmo impossível desejo de imortalidade, nas mesmas fraquezas e debilidades, na mesma grandeza que nos transcede?
Os vencedores das guerras já não devolvem à família o cadáver dos seus adversários. E os combates já não decorrem perante o olhar de todos, mas apenas dos senhores da guerra, que os comandam a partir das suas salas de controlo, como quem se entretém com uma consola, dando ordens a soldadinhos virtuais.
E nada se sabe sobre a morte dos vencidos, nem se apelaram à misericórdia dos algozes ou se ergueram a cabeça orgulhosamente enquanto esperavam a bala, se choraram a pedir clemência ou cuspiram no soldado que os dominava, se tombaram à primeira bala ou se agonizaram num sofrimento a que ninguém quis pôr fim, se foram levados ainda vivos para o bunker do inimigo (seja um quartel ou um navio de guerra), se foram mantidos vivos em segredo, sujeitos a interrogatório, torturados, ou se, tendo sido abatidos no local, foram os seus corpos enterrados em alguma tumba secreta, ou despejados para o oceano profundo e silencioso, para que nunca mais esses corpos possam ser recuperados, para que nunca contem a sua verdade a alguém. Ás famílias já não é concedida a possibilidade de honrarem pela última vez os seus, sepultando-lhes os cadáveres, nem sequer de saberem como foi a sua morte. Porque o vencedor, para ser digno e grandioso na sua vitória, deve ao vencido, por mais ignóbil, por mais cruel que este tenha sido, a dignidade na morte, o consolo da verdade e do luto para os seus, uma réstia de humanidade, afinal.
E por isso soam tão pusilânimes estes vencedores da guerra, que confundem a execução com a justiça, e continuam a invocar os deuses, a fazê-los cúmplices das suas acções, ou destino das suas oferendas sangrentas, mas não querem ver neles mais do que um protector cego e surdo, que os beneficie sem pedir contas, um espelho das suas próprias deformidades e das suas misérias.
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