(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa – 20 e 21
Cena 20
Pesadelo e melancolia
(Musica e luz intermitente)
Berta Maia – Diz-me Dente de Ouro: quem te mandou matar o meu marido?
(esta fala é repetida por outras vozes a seguir a cada fala de BM ou de AO)
Abel Olímpio – Ninguém mandou. Desconfie a senhora daqueles que mais choram o seu marido.
Berta Maia – Tu hás-de falar. Tu falarás.
Abel Olímpio – Padre Lima, ... ia receber dinheiro ao jornal “A Época”...
Berta Maia – Eles vão-te matar. Não morras sem me dizeres a verdade.
Abel Olímpio – Minha senhora, a República não avança porque os monárquicos se introduzem nela e não deixam.
Berta Maia – Fala, Dente de Ouro... fala!
Abel Olímpio – Eu fui aliciado pelo Padre Lima, residente na Rua da Assunção, 56 – Direito.
Sou o cabo de artilharia da Armada, nº 2170, e estou a prestar declarações sem coacção, nem dádivas ou promessas, para efeitos de justiça e revisão do processo das vítimas de 19 de Outubro.
O Padre Lima dizia nas reuniões: “no próximo movimento revolucionário, depois de tudo organizado, como devia ser, lançavam-se no movimento para o empalmar, e donos da situação liquidavam-se os republicanos, em especial os do 5 de Outubro, e vingava-se a morte de el-rei D. Carlos”.
Berta Maia (com o filho nos braços) – Ninguém me pode dar o meu marido. Mas limpei a sua honra e o ideal dos republicanos honestos.
(Slide - morte de Carlos da Maia e reprodução ao vivo—Dente de Ouro dá tiro na nuca a Carlos da Maia)
Cena 21
O silêncio
(Salazar sentado numa cadeira É novo, entra senhora Maria. Mimam cálices de porto).
Senhora Maria – Aqui está o biscoitinho e o portinho, senhor doutor.
Salazar – Muito obrigado, senhora Maria. Olhe, não quer um cálicezinho?
Senhora Maria – Não vale a pena, muito obrigada, senhor doutor.
Salazar - Vá lá, tome lá um golinho... que é para não dizer que o Salazar é um sovina.
Senhora Maria – Valha-me Deus, se alguma vez eu era capaz de uma coisa dessas!
Salazar - É que eu estou satisfeito com umas coisas, quero comemorar, e também quero saber a sua opinião
Senhora Maria - Se eu souber dizer alguma coisa que se aproveite...
Salazar – O que é que pensa daquele caso do Dente de Ouro?
Senhora Maria – Olhe, senhor doutor, vê-se que Deus não dorme. Quem é que havia de dizer que passados tantos anos, aquele monstro ia começar a falar... grande mulher, aquela senhora...
Salazar – Pois olhe, eu acho que isto já deu conversa a mais e vou proibir que os jornais falem do assunto.
Senhora Maria – O senhor doutor é que sabe, mas olhe que agora, anda toda a gente a querer saber o que se passou... e parece que aquele bandido que matou a Maria Alves também estava metido nisso...
Salazar – O perigo disto é que há amigos nossos que estiveram metidos no caso, e se isso se sabe é uma carga de trabalhos.
Senhora Maria – Parece impossível. Então não foram esses republicanos, ou lá o que é, que mataram aqueles senhores?
Salazar – Está a ver... a coisa estava tão bem feita, que até a senhora acreditou... está-se a descobrir que foi a nossa gente quem organizou tudo; é por isso que tem de se pôr uma pedra sobre o assunto.
Senhora Maria – O que vai haver pr’aí de barulho...
Salazar – Está enganada. Esses republicanos, democratas e revolucionários e outros nomes que lhes quiser chamar, calam-se todos.
Senhora Maria – Oh senhor doutor!
Salazar – Mataram o Machado Santos e quem é que quer saber disso? O Carlos da Maia, com a mania da seriedade... e o Granjo...
Senhora Maria – O senhor Granjo parece que até estava a governar menos mal...
Salazar – Estava, estava. Estava a cortar no que a populaça exigia. Era para ficar bem visto pelos capitalistas. Esse ainda está pior. Primeiro, porque os seus antigos companheiros aproveitaram isso para dizer que ele tinha mudado, que já não merecia confiança, e que foi muito bem feito ter morrido como morreu. Os capitalistas e os monárquicos também não irão mexer uma palha, porque esse tipo de política é para ser feita por nós, e não por eles.
Está a perceber porque é que eles se vão calar?
Senhora Maria – Alguém há-de refilar.
Salazar – Senhora Maria, vai tudo ficar calado, até porque apanharam medo a sério. Já perceberam que a gente não está para brincar, e que as coisas vão mesmo endireitar. O reviralho acabou.
Umas prisões, uns safanões dados a tempo, umas deportações para bem longe... Timor, Cabo Verde, Costa de África... ficam a fazer a revolução com os pretinhos...eles é que gostam dessas algazarras… (ri)... os que nós deixarmos por aqui, a gente já os conhece... não fazem mal a uma mosca e até convém que digam as suas coisas para parecer que o nosso regime respeita a liberdade. Está tudo bem assim, e nem podia ser de outra forma.
Senhora Maria – O Senhor doutor Salazar é muito inteligente.
Salazar (bebe) – Olha traga-me a minha mantinha….
(Senhora. Maria põe-lhe a manta nos joelhos)
É muito bom este vinho do Porto...
(Som de máquina de escrever e voz)
- Condenados só vi, até agora, os executores, aqueles cujas culpas não oferecem dúvidas. Trabalharam por sua conta estes carrascos? Saiu das suas cabeças essa ideia terrível de assassinar gente honrada e deixar com vida tantos miseráveis?
Quem preparou a aura do terror? Das suas revelações é que depende a justiça, não a do tribunal republicano, que só condena marujos e soldados, mas a outra, a que algum dia, tarde ou cedo, se fará em nome da Nação.
Rocha Martins
(Som da camioneta. Faróis no ciclorama .)
Voz off (acompanhando a entrada dos personagens)
Os autores morais dos crimes nunca foram inquiridos.
Alfredo da Silva fugiu para Espanha, voltou a financiar outro golpe – o 28 de Maio – e foi recompensado com A Tabaqueira, o grande negócio dos tabacos.
Gastão de Melo e Matos, monárquico e investigador pertenceu à Comissão de Censura de Espectáculos
Carlos Pereira continuou a dirigir a sua Companhia das Aguas
O Padre Lima voltou para a terra, sendo pároco em Macedo de Cavaleiros e Mogadouro. Morreu em paz .
Augusto Gomes, preso pelo assassinato de Maria Alves
Abel Olímpio, o Dente de Ouro, foi degredado para Àfrica.
O sargento que assassinou Carlos da Maia nunca foi preso.
Tinha-se dado o golpe do 28 de Maio, e estes crimes foram cobertos com um oportuno manto de silêncio.
( 4 Actores (Alfredo da Silva, Gastão de Melo e Matos, Carlos Pereira e Padre Lima) atiram para os projectores que se vão apagando até se atingir o black – out)
FIM
Saída do publico com
One O’clock jump de Duke Elington
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(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 19
Cena 19
A impunidade
(Gastão Melo Matos com Barbosa Viana)
BV – Senhor Gastão Melo Matos , como sabe foi referenciado como implicado no 19 de Outubro...
GMM – Sim, Sr. agente Belém. Fui referenciado nesse caso e com muito prazer.
BV – Sr. Gastão, não me parece que o caso seja para dar muito prazer. Foram crimes horríveis que se praticaram e a partir das confissões do Dente de Ouro, a acusação dirige-se ao vosso campo, o monárquico.
GMM – Houve um julgamento, criminosos foram condenados, e se há denúncias contra outros, prendam-nos. Não percebo o que é que o Sr. agente pretende investigar...
BV – Eu quero investigar os motivos desses crimes, quem foram os instigadores... é a opinião pública que exige ser esclarecida.
GMM – Mas se é só isso, eu informo-o. É evidente que a nossa táctica consistia em empalmar o movimento revolucionário republicano. Nem podíamos fazer outra coisa, depois das nossas invasões monárquicas de 1911 e 1919 terem falhado, da morte do Sidónio, da derrota em Monsanto (ri) ... era o único caminho que nos restava, e como vocês passavam a vida a dar-nos oportunidades sempre com golpes uns contra os outros... (ri) ... acabou por ser fácil.
BV – Mas para isso, é preciso dinheiro...
GMM – Oh, senhor agente, dinheiro é coisa que não nos falta, graças a Deus. Para esses marujos foram 100 contos dados pelo conde de Tarouca e pelo Carlos Pereira da Companhia das Águas, o palerma do tenente Mergulhão deu a camioneta a troco de trezentos mil réis e houve mais dinheiro que funcionou para outra gente... e quando for preciso mais, arranja-se...
BV – O Sr. Gastão sabe que as suas declarações são graves...
GMM – O que é grave é se o Sr. as quiser utilizar. Não percebeu que o país mudou? Não percebeu que o 28 de Maio foi feito para pôr ordem – de uma vez por todas – neste desgraçado país? O 19 de Outubro foi feito, foi bem executado, foi julgado, o caso está arquivado e acabou. Nunca mais se falará nisso. Daqui por cem anos ainda hão de dizer que foram os Republicanos que fizeram estes crimes. (Riso cínico) A você e aos seus correligionários só resta deixar esses mortos em paz e sossego, e acautelar as vossas vidas.
Porte-se bem, que não lhe acontece nada. Se alguma vez tiver um problema, diga-me. Passe muito bem.
Barbosa Viana - (Sai) Sacana!
(Continua)
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa – 17 e 18
Cena 17
A hipocrisia
(com as imagens dos assassinatos em fundo, os oradores avançam)
Gastão Melo Matos
É preciso parar esta iniquidade. Os bárbaros crimes do 19 de Outubro não podem sair da nossa memória. A Nação está revoltada e exige justiça. Mas, quem são os culpados? Quem arrastou o nosso país para uma sucessão infindável de tragédias e crimes? Foram estes republicanos, estes maçónicos sempre agitando a revolução ( Apoiado! Apoiado!)
São esses oficiais obscuros e despeitados, chefiados por esse Coelho do 31 de Janeiro, um demagogo que prega a honestidade e deixa os seus homens matarem António Granjo, o chefe do Governo, Machado Santos, Carlos da Maia e outros vultos imperecíveis da República! São eles que têm de enfrentar a lei! É o que este povo reclama, sedento de justiça e de verdade na vida pública!
(aplausos. Bravos)
Carlos Pereira
Que gente é esta que nos envergonha perante as nações civilizadas da Europa? Que republicanos são estes que matam os seus próprios correligionários? Que partidos são estes que só espalham a desordem e mergulham a nação num caos sangrento de que dificilmente se curará?
Levantemo-nos contra esta vergonha. Desarmemos a Guarda Republicana, esta força ilegal que amedronta o Exército, que domina o Presidente da República e o Parlamento, e que serve de capa protectora aos sinistros desmandos anarquistas e bolchevistas
Regeneremos Portugal. É preciso limpar a mancha repugnante que se abateu sobre a Nação! Viva Portugal!
(Aplausos. Viva a Nação! Viva Portugal!)
(Sobe o som do charleston)
Cena 18
Investigação e vontade política
(Na rua, escuro. BV faz sinal com lanterna .Aparece VP)
Virgílio Pinhão – Sr. Dr. Barbosa Viana a que devo a honra desta entrevista?
Barbosa Viana – Sente-se, meu caro director Virgílio Pinhão. A D. Berta Maia tenta encontrar-me para falar do 19 de Outubro. Houve o 28 de Maio, os militares tomaram outra vez conta disto, o Alfredo da Silva está por trás por causa dos negócios do tabaco, é gente com muita força, não me quero meter nisso.
Virgílio Pinhão – Tem toda a razão. O que lá vai, lá vai. Eu, pela minha parte, desfiz as provas que pude. Fiquei de mãos limpas e sem poder cair na rede desses senhores...
Barbosa Viana – aquela lista...
Virgílio Pinhão - sim, sim, esteja descansado.
Barbosa Viana – Faça-me um favor. Vá, por mim, à entrevista com a D. Berta Maia e tente dissuadi-la de continuar com aquela mania de querer descobrir tudo. Só se prejudica a ela e ao nosso movimento republicano, que agora tem de estar cauteloso e de unhas encolhidas à espera de melhores dias.
Virgílio Pinhão – Eu trato disso, fique descansado. Melhores dias virão. E muito rapidamente. A estes golpistas, dou-lhes mais um mês, o máximo.
Barbosa Viana – É o que eu e os meus correligionários pensamos. Na altura, falaremos sobre as suas futuras funções e responsabilidades.
Virgílio Pinhão – Eu estou sempre ao serviço do ideal republicano, senhor doutor.
Barbosa Viana – Muito bem. Vá indo, trate-me desse assunto. Passe muito bem.
(Casa de BM com VP)
VP – O Sr. Dr. Barbosa Viana estava adoentado, enviou-me a mim com um cartão...
BM (com o cartão) – “minha senhora, não me sinto bem, mas envio-lhe o Sr. Virgílio Pinhão, que é o mesmo que conversar comigo... (pausa) o quê? O senhor é o Sr. Virgílio Pinhão?
VP – Sim, minha senhora.
BM – Ah! Sim, a conversa não será nunca igual à que eu teria com o Dr. Barbosa Viana. Queria elogiá-lo por falar da infiltração de integralistas no 19 de Outubro, e queria censurá-lo por não dizer mais nada, deixando apodrecer na cadeia o Abel Olímpio enquanto os verdadeiros criminosos andam, por aí, à solta.
VP – O Dente de Ouro é uma besta feroz, um animal.
BM – E quem o industriou e convenceu, o que é? O Abel Olímpio contou-me como foi recrutado, como ia receber dinheiro à Época...
VP – A senhora pode possuir todas as provas morais de que a morte do seu marido se deve à acção de monárquicos, mas nunca terá as provas jurídicas.
BM – É verdade, eu não tenho a prova jurídica... e se eu não a tenho é porque alguém a tem!
VP – Mas que prova quer a senhora ter?
BM – Senhor Virgílio Pinhão, o Abel Olímpio falou-me de uma lista com nomes a abater, e disse-me que tinha dado essa lista à polícia...
VP – Isso é mentira! Nunca houve tal lista!
BM – Senhor Virgílio Pinhão, o julgamento do 19 de Outubro está incompleto. Os oficiais republicanos foram absolvidos, mas há quem continue a considerá-los culpados... se o senhor ou o senhor Dr. Barbosa Viana conseguissem algum documento, era muito importante...
VP – Minha senhora, recordo-lhe que eu e o Dr Barbosa Viana fomos afastados das investigações, que eu propus ao jornal “A Capital” uma campanha jornalística, que essa campanha começou e foi suspensa, que fui preso por ter divulgado documentos que faziam parte da conspiração monárquica, que me apresentei no tribunal com toda a papelada para servir de testemunha, e que dispensaram o meu depoimento...
BM – Se isto não se esclarecer, eu vou publicar as minhas entrevistas com o Abel. Depois, aqueles de quem eu citar os nomes, vão dizer que eu sou doida...
VP – Isso não. Eles hão-de arranjar uma defesa inteligente...
(Beija a mão. Sai)
(Continua)
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 16
Cena 16
O golpe em marcha
(SLIDE ROTATIVA: Redacção “Imprensa da Manhã”)
Jornalista. – está aqui o artigo, chefe.
Chefe – Muito bem, óptimo. É preciso publicar que o Machado dos Santos está riquíssimo, e que convinha saber onde arranjou o dinheiro. ( rasga o artigo)
Jorn. – Mas ele está rico?
Chefe - O que é que isso interessa? A gente tem de publicar isto, e mais nada. E poucas perguntas, faça favor.
Jorn. – mas eu não sei o que hei de escrever.
Chefe – não sabe? Se não sabe, invente. Olhe, que ele foi visto a comprar um fato novo nos armazéns do Chiado, que esteve na Brasileira a fumar charuto, que anda com putas e em festas de pederastas na Graça, sei lá...
Jorn. – Mas...
Chefe - E o senhor cala-se. Se não quer trabalhar, vá - se embora. Olhe que há muita gente à procura de um emprego destes...
(Vai ao escritório de Alfredo da Silva)
Alfredo da Silva – Bom dia, chefe. Tudo em ordem?
Chefe – Tudo em ordem, senhor Alfredo da Silva. As tiragens estão a subir, mas é preciso mais dinheiro para propaganda e para pagar a uns informadores.
Alfredo da Silva – Esta “Imprensa da Manhã” é a minha amante mais cara.
Chefe – Mas também vai ser a que lhe vai dar maiores prazeres. Espere, que logo vê.
Alfredo da Silva (dá notas) – chega?
Chefe – Chega e sobra. Abençoado seja o capital.
Alfredo da Silva – Abençoado seja o operariado do Barreiro! .. (ri-se) pelas conversas que tenho ouvido, as pessoas estão a gostar do jornal. Tem muitos escândalos. Muito bem, muito bem.
Chefe – Nós esforçamo-nos o máximo.
Alfredo da Silva – A ideia é não deixar os republicanos respirarem. Eles têm de perceber que não nos vencem com facilidade. Mesmo que estejam a fazer alguma coisa boa, é preciso atacá-la e destruí-la.
Chefe – pois claro. Se estes bolcheviques tomam asas, nunca mais conseguimos virar a situação. Mas dizer mal de uma coisa boa é mais difícil.
Alfredo da Silva – Puxe pela cabeça. É para isso que os revolucionários do Barreiro lhe estão a pagar... puxe pela cabeça... Deus o ajudará.
(Num cabaret. Padre Lima, Gastão Melo Matos, Alfredo da Silva)
Gastão Melo Matos – Finalmente, Alfredo! A hora da vingança aproxima-se.
Padre Lima – A revolta está marcada para daqui a dois dias, temos tempo de planificar a nossa acção. O golpe vai ser dado pelo Coronel Manuel Maria Coelho, tem o apoio da Guarda Republicana, da polícia...
Gastão Melo Matos – Esses ainda são piores que estes que estão no Governo.
Alfredo da Silva – Muito piores. O que quer dizer que este é que é o bom movimento para a gente empalmar... (ri)...oh padre, e há gente boa para usar do varapau e moer os ossos a estes bolcheviques?
Padre Lima – Gente do melhor... E até dentro da Guarda Republicana... e há o Dente de Ouro que anda cheio de raiva contra estes republicanos todos, por causa do que aprende com os marinheiros anarquistas... (ri)...é só atiçá-lo e ele aí vai arrastando os outros.
(Entra Augusto Gomes com 2 coristas que entram em dança e jogo com os homens enquanto falam)
Augusto Gomes – Os senhores dão licença? Há aqui umas senhoras que os querem cumprimentar. Artistas de teatro, a Piedade e a Maria Alves...
Alfredo da Silva – Grande Augusto Gomes, o grande empresário teatral da nossa praça! Sempre bem acompanhado
Alfredo da Silva – Muito bem, muito bem. Confirma-se a revolução para o dia 19? E quem é que vai dirigir as operações? Eu não vou , já estou a dar muito dinheiro, é para pagar a essa gente que gosta de brigas e pancadaria. A minha política foi sempre outra.
Gastão – Eu estou um bocado engripado. E se nos acontece alguma coisa? Quem é que dirigia o movimento?
Padre Lima – Com certeza. Os generais nunca vão para a guerra. A cabeça do movimento tem de ficar bem escondida. Não se preocupem, eu trato do assunto... com o Sr. Augusto Gomes…
Augusto Gomes – Eu tenho que pertencer aos homens do terreno, até para orientar o que se deve fazer. E como sou um homem da noite, posso andar por todo o lado... vou falar com o Roque, o nosso banheiro de Pedrouços, é dos bons, pode dar uma ajuda.
Padre Lima – Depois combinamos as nossas zonas.
Augusto Gomes - Depois desta festa, padre...
(Padre é empurrado para o chão, coristas caiem em cima dele)
(Irrompe dança ocupando toda a frente de cena)
CABARET - Festa.
Charleston
7º Slide / Filme - morte de A. Granjo (desenho)
Charleston
8º Slide - Corneteiro com espada, sangue e frase “Venham ver de que cor é o sangue do porco!”
Charleston
Dança c/ rasgar da bandeira Republicana
Charleston
CHUVA DE NOTAS, notas acendem charutos; faixas azul e branca percorrem o cenário
Charleston, faróis no ciclorama e som da camioneta acompanham os discursos
(Continua)
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 15
Cena 15
Últimas ordens
Padre Lima e Dente de Ouro põem moedas em saquinhos
(Marinheiros com Padre Lima e Dente de Ouro. A imagem sugere a ceia de Cristo)
(Padre Lima prepara beberagem no garrafão que dá aos marinheiros)
Padre Lima – Bebei, meus irmãos, este é o elixir consagrado que vos dará forças e alegrias. A palavra de Deus irá entusiasmar-vos para poderdes conquistar um lugar imperecível na nossa luminosa história.
Vós sois os apóstolos da liberdade. Não queremos Judas entre nós. Sai Satanás !
(mostra o pergaminho). Quem lutar , será recompensado. Está aqui o compromisso de gente honesta.
Abel Olímpio – Viva el-rei D. Carlos! (com o pergaminho) Acabou a nossa miséria! Viva el-rei D. Carlos!
Todos – Viva!
Padre Lima – (agita um saco) - Vocês ganham mal. A República despreza-vos, não vos paga o que vós mereceis. Mas as pessoas que foram perseguidas e injuriadas, respeitam o povo martirizado. Tendes necessidades e alguns de vós tendes responsabilidades familiares...
(risos)
Irmãos, irmãos, não façais chacota. Há, com certeza, quem tem mulher e filhos que necessitarão de maior carinho e conforto.
Tenho a sorte de vos poder oferecer algum dinheiro... dinheiro de almas piedosas que ainda acreditam que este país mudará de rumo... tomai....e multiplicai-vos...
Que Deus vos proteja!
(Distribuição de pequenos sacos, em mistura com nova distribuição de bebidas)
(Na rua, de noite. Padre Lima com Abel Olímpio e Augusto Gomes)
Padre Lima – O Augusto Gomes ainda não veio?
Abel Olímpio – não, e já estou aqui há um bom bocado.
Padre Lima - Abel, isto está mau. Não podemos falhar. Últimas informações: o Machado Santos tem mesmo de ser abatido.
Abel Olímpio – Mas esta gente gosta dele. É perigoso.
Padre Lima – Tem de ser. Agora está a fazer contra-espionagem para descobrir os nossos negócios com Espanha e com o Rei Afonso XIII.
Abel Olímpio – Essa agora! Mas como é que o senhor padre descobriu isso?
Padre Lima - Como é que havia de ser? Primeiro, porque muitos dos nossos nunca saíram dos ministérios nem das polícias, e depois porque fomos infiltrando a nossa gente no meio desses palermas. Tens aqui a última lista dos que têm que ser abatidos. Quero o serviço bem feito.
(Camioneta, som e faróis. Aparece Augusto Gomes)
Augusto Gomes – Olá, Dente de Ouro. Tudo em ordem?
Abel Olímpio – Sim, senhor Augusto Gomes.
Padre Lima – Já lhe dei a lista. E já lhe disse aquilo do Machado Santos.
Augusto Gomes – isso é que nunca pode falhar. Eu mesmo me encarregarei dessa encomenda ( risos). Não queremos falhanços. O ataque tem de ser rápido e sem piedade. Temos de aproveitar a surpresa.
Abel Olímpio – Esteja descansado.
Augusto Gomes – Se fizerem o que é preciso, vão ter uma vida de lordes. Atenção, o silêncio é essencial para a nossa vitória. Porque se este golpe não for totalmente triunfante, outro estará em marcha e não se podem descobrir pistas. Percebes?
Se algum for preso, dentro de pouco tempo será libertado.
E se falar, é considerado traidor e terá de ser morto.
Percebes?
Padre Lima – Vai meu filho, vai. Deus te abençoe.
(Abel Olímpio ajoelha-se, Padre benze-o e dá-lhe a mão a beijar. Augusto Gomes iluminado pelos faróis faz sinal de cortar o pescoço a AO)
(Continua)
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 14
Cena 14
Tertúlia no café “LEÃO”
( SLIDE AMADEO .Tertúlia num café. Entre outros, Raul Leal, António Ferro, Fernandinha…. Almada Negreiros desenha Raul Leal)
Ballet….Aplausos
Raul Leal – Nós somos a voz dos novos poetas que se levanta contra a ignorância dos republicanos, maçónicos e bolcheviques.
( No exterior)
Alfredo da Silva – Mas para que é que você me trouxe aqui?
Carlos Pereira – Senhor Alfredo da Silva! Para conhecer os novos adeptos da nossa causa.
Alfredo da Silva – Mas o que é que quer fazer com esta gente?
Carlos Pereira – Eu? Nada. Quero o apoio deles e chega-me.
Alfredo da Silva – Esta gente não presta para nada. O movimento para ir para a frente, precisa de gente firme e determinada. Não é disto. Ao menos os velhos, sei eu quem são.
Carlos Pereira – Senhor Alfredo, não está a ver bem o problema desta gente, os poetas e os artistas têm mais influência do que o senhor julga. Falam de coisas que não devem, dizem-se anarquistas mas gostam da tradição, falam em nome do povo ( risos), se um dia vierem a conhecer o povo vão ter grandes surpresas, são contra a violência...
Alfredo da Silva – Pois claro. É o que eu estava a dizer, oh Carlos Pereira. Eu nem o estou a perceber. Você, dono da Companhia das Águas e do Banco Comercial de Lisboa...
Carlos Pereira – Eles também gostam do dinheiro, e se querem vender as poesias, os quadros e a música, tem de ser aos que têm dinheiro, e não aos miseráveis que nem têm onde cair mortos.
Alfredo da Silva – Eu nem gosto de nada do que eles fazem. E você quer que vá comprar coisas a esses malandros, imorais e inúteis.
Carlos Pereira – Pois quero. Para eles ficarem nossos amigos, nos defenderem e abandonarem essas ideias. Vá lá, por uma vez sacrifique o seu bom gosto. Com uma cajadada matamos dois coelhos.
Alfredo da Silva - Você acha que essa gente cai nisso?
Carlos Pereira (ri) – Por favor! Essa gente só quer andar nos corredores do poder, só quer que a gente lhe estenda a mão... Não conhece aquela “Deixar vir os pequeninos artistas, ao Grupo do Leão, comer sopa de camarão?
(Entram)
Poetisa Fernandinha – olha, o Carlinhos! Está bom ? (beijam – se)
Carlos Pereira (para Alfredo da Silva) – há aqui boa gente. Um dos que está à frente disto é o Raul Leal, filho do Leal que dirigiu o Banco de Portugal …
Alfredo da Silva – isso é gente com muito, muito dinheiro…
Carlos Pereira – parece que o rapaz tem gasto tudo…
António Ferro (avança) – Não escrevo por vaidade, nem pelo orgulho inútil de criar…
Raul Leal (interrompe – o) – António Ferro, nosso mais brilhante publicista!
António Ferro – Não escrevo por vaidade, nem pelo orgulho inútil de criar…
Senhora( interrompe-o e beija-o) - António, meu querido
António Ferro – Não escrevo por vaidade, nem pelo orgulho inútil de criar…
Almada Negreiros (entra com cavalete) – olá, António…
António Ferro – Não escrevo por vaidade nem pelo orgulho inútil de criar.
(mais interrupções)
eu sou …. (todos em coro)…um trapeiro de cores..
.lá dizia Marinetti (todos em coro)…”a guerra, a única higiene do mundo”…
(Aplausos, Bravos!)
António Ferro – vão-me desculpar, mas tenho de sair… encontro com o Fernando Pessoa…
Protestos.: Vai ter com uma corista! É sempre assim!
Diva – estou farta! Ele não é ferro, é só sucata!
(Cena de teatro)
Raul Leal - Perante a miséria e o desmembramento da nossa identidade nacional, perante o ignóbil projecto da nossa venda em leilão a castelhanos, gauleses, saxónicos e outros que tais, o nosso movimento, o integralismo lusitano, pugna pelos mais lídimos valores da raça e da portugalidade.
Somos contra a República porque eles são os herdeiros dos jacobinos da sinistra revolução francesa, bandeira da liberdade, igualdade e fraternidade, capa assassina para a decapitação de Luís XVI e milhares de membros das mais nobres classes.
Queremos vingar a morte de Sidónio Pais, seremos uma barreira indestrutível contra o anarquismo e o bolchevismo, lutaremos pelos princípios que, na Idade Média, colocaram Portugal na primeira linha do desenvolvimento da humanidade.
Vozes – Viva a Idade Média ! Viva a Idade Média !
Para esta luta, não bastam militares, sacerdotes, políticos, banqueiros, e povo anónimo, são e generoso.
Necessitamos de artistas, poetas, filósofos, professores, necessitamos de gente capaz de cantar o que fomos e queremos ser, de homens e mulheres que acreditem e sintam, com o maior fervor estético, o nosso desígnio nacional.
Vozes – Bravo! Bravo!
Raul Leal – E agora, oiçamos o nosso grande poeta Fernando Pessoa... alguns excertos “À Memória do Presidente Rei Sidónio Pais...
(Sinal de uma poetisa que Fernando Pessoa deve estar embriagado)
Raul Leal – bem, não estando o nosso Fernando, a menina Fernandinha…
(Poetisa põe chapéu, óculos e bigode e recita)
Se Deus o havia de levar
Para que foi que no-lo trouxe
Cavaleiro leal, do olhar
Altivo e doce?
Quem ele foi sabe-o a sorte,
Sabe-o o Mistério e a sua lei
A vida fê-lo herói, e a morte
O sagrou Rei! (Bis – Coro)
Mas a ânsia nossa que encarnara,
A alma de nós de que foi braço,
Tornará nova forma clara,
Ao tempo e ao espaço.
Tornará feito qualquer outro,
Qualquer cousa de nós com ele;
Porque o nome do herói morto
Inda compele;
Rei-nato, a sua realeza,
Por não podê-la herdar dos seus
Avós, com mística inteireza
A herdou de Deus; (Bis – Coro)
E, por directa consonância
Com a divina intervenção,
Uma hora ergueu-nos alta a ânsia
De salvação.
Precursor do que não sabemos,
Passado de um futuro a abrir
No assombro de portais extremos
Por descobrir,
Sê estrada, gládio, fé, fanal,
Pendão de glória em glória erguido!
Tornas possível Portugal
Por teres sido!
E no ar de bruma que estremece
O DESEJADO enfim regresse
A Portugal!
( aplausos. Desmaia. Histeria . Gritos)
Raul Leal – A essência das minhas doutrinas está na combinação íntima do hermetismo e do espírito medieval através das formas mais arrojadas dos tempos modernos.
Alfredo da Silva – O que é isto? Você percebe isto? Não tenho confiança nesta gente.
Carlos Pereira – Nem tem o senhor, nem tenho eu. Hoje dizem isto, amanhã viram a casaca, se fôr preciso. Alguns, já foram dos outros. É tudo uma questão de dinheiro. E como dinheiro é coisa que não falta ao Alfredo da Silva...
Alfredo da Silva – Sim, se a questão é só essa... também se arranja dinheiro para putas finas... ( Dá dinheiro a Carlos Pereiral)
Carlos Pereira (entrega dinheiro a Raul Leal) – tome lá, você já gastou muito dinheiro, merece ser ajudado.
(O Grupo sai com a poetisa aos ombros)
(Continua)
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 13
Cena 13
Sonhos de amor
( Em gravação o fado da “Triste Feia”. Berta, em casa . É jovem e espera por Carlos Deita-se num sofá fingindo dormir .Jogo de sedução entre os dois.)
Berta – meu amor
Carlos – minha mulherzinha
Berta – estás feliz?
Carlos – não.
Berta – não? Já não gostas de mim?
Carlos – não.
Berta – sou feia?
Carlos – és.
Berta – tu és mau.
Carlos – sou.
Berta – vou-me embora
(Ela foge ,ele agarra-a)
Carlos – só se me deres um beijo.
Berta – era o que faltava.
Carlos – então, dou eu.
Berta – não quero.
( Pequena briga. Beijam-se apaixonadamente)
Berta – quero ter um filho teu.
Carlos – não pode ser.
Berta – tem de ser, tem de ser.
Carlos – tu sabes que não pode ser. Não temos dinheiro.
Berta – o Carlos da Maia, sem dinheiro ! O Carlos da Maia, herói da Republica, ex-governador de Macau!
Carlos – querias que eu tivesse feito o mesmo que os outros que estiveram em Macau?
Berta - não digo isso, mas... e o nosso filho, a nossa vida?
Carlos – tu sabes que nós, os que lutámos pela Republica, temos de ser sempre um exemplo de honestidade. Tu conheces os jornais que intrigam contra nós de manhã à noite, para corromper pessoas, para lançarem calúnias contra a gente.
Berta – toda a gente sabe que é mentira.
Carlos – as pessoas sabem, mas calam-se. Lá no fundo, preferem continuar escravos dos antigos senhores a terem que construir o seu próprio futuro. É por isso, que nós temos de ser sempre um exemplo de verdade e de dignidade.
Berta - eu sei, e é por isso que te amo.
Carlos - a vida não há-de ser sempre tão má para o nosso amor.
( Beijam – se. Criada “fecha” cortina)
(Continua)
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 12
II Acto
Cena 12
A confissão
(Berta Maia - chapéu e véu, agente Barbosa Viana).
Barbosa Viana – D. Berta Maia, o Abel Olímpio está muito perturbado e não mostrou nenhum interesse em voltar a vê-la.
Berta Maia – sr. Barbosa Viana, eu não desisto. Quero vê-lo. Por favor, tragam-mo.
( Barbosa Viana traz Abel Olímpio, muito pálido, com ar de tuberculoso).
Berta Maia – Ai, Abel, como tu estás! Morres e eu fico sem saber nada! O que é que te fizeram?
Berta Maia – Abel, o que ganhas tu com essa situação? O que ganhas tu em esconder os que te atiraram para esta cadeia e que te estão a matar aos poucos? Tu estás doente, Abel, tu estás muito doente. Se calhar andam a envenenar-te aos poucos, com a comida.
Abel Olímpio – Eu já pensei nisso, minha senhora. Sinto-me mal, não tenho apetite, definho a olhos vistos.
Berta Maia – Sim, pareces tuberculoso com essa palidez e essas olheiras. Andam a matar-te, Abel. Tens que te tratar. Eu mando-te um médico. Não morras sem me dizeres a verdade. Não morras com esses remorsos na consciência. Acredita na palavra de Cristo. Ele é piedoso e desculpará os teus crimes na eternidade. Mas tens de ser sincero e corajoso. Diz-me quem te mandou matar o meu marido.
Abel Olímpio – Ninguém mandou. Desconfie a senhora daqueles que mais choram o seu marido.
Berta Maia – Acusa esse meu melhor amigo, acusa! Diz quem é!
Barbosa Viana – D. Berta, calma! Abel Olímpio, os crimes foram praticados e não há solução. Ninguém pode fazer tornar à vida Carlos da Maia, António Granjo, Machado Santos e os outros. Mas pode-se fazer luz sobre todo esse caso que tem perturbado a nossa sociedade. Ninguém acredita que tu tivesses agido sozinho, por tua conta e risco. Essa camioneta fantasma apontou muito alto, foi aos grandes vultos da República. Nunca, em nenhum país, se passou um caso tão cruel e misterioso. Para bem de todos, o assunto deve ser esclarecido. E tu és a pessoa que podes ajudar a que se faça luz sobre este mistério. Falando, limpas o teu nome. Coragem, Abel Olímpio.
Abel Olímpio ( titubeante, com pausas) – Não fiz nada, não sei nada, andei com a camioneta tenente Mergulhão Granjo o país na ruína, jornal a “ Época”, Padre Lima eu sou contra traidores criminosos da República, Época crime morte D. Carlos marinheiros na marinha a luta miséria minha mãe Padre Lima em Monsanto...
Berta Maia – “ Época”, o que é isso do jornal a “Época”?
Abel Olímpio – Não foi nada de importante.
Berta Maia – Justamente porque não é nada de importante, diz.
Abel Olímpio – Houve uma revolução, vaca e Alguidar, plano em Monsanto, juntávamo-nos, acreditava-mos que íamos ganhar Monsanto, D. Carlos, vacas e porcos, sementeiras de milho, Época, quero ir para o mar, senhor padre, castigo divino, tiros...
Barbosa Viana – Porquê toda essa história que não tem fim e que não nos interessa nada? O que é que ias fazer ao jornal? O que ias fazer à Época?
Abel Olímpio – O Padre Lima levava-me lá para me darem dinheiro. Tínhamos reuniões na Avenida ali por alturas da Rua das Pretas, e no escritório do sr. Moutinho de Carvalho...
Barbosa Viana – Vamos, homem, coragem! Vai até ao fim! Não foste o maior criminoso, fala!
Abel Olímpio – Minha senhora, a República não avança porque os monárquicos se introduzem nela e não deixam. Quem me deu a camioneta foi o tenente Mergulhão. É monárquico ou republicano? Isso não sei, mas isto é verdade.
Berta Maia – E porque é que foste matar esta gente?
Abel Olímpio – Porque faziam parte de uma lista que o Padre Lima me deu.
Berta Maia – Uma lista? Onde está essa lista?
Abel Olímpio – Essa lista ficou em poder do adjunto da polícia de segurança do Estado senhor Virgílio Pinhão...
Barbosa Viana – Está na polícia?
Abel Olímpio – Foi ele quem ficou com ela. Eu quero dizer uma coisa à senhora.
Eu decidi falar porque o Augusto Gomes está preso por ter assassinado a actriz Maria Alves. Ele jurou que me matava se eu falasse. E eu sei que é verdade, porque já matou o José de Pinho que tinha sido marinheiro como ele, mulheres com quem viveu... é um criminoso sem remorsos, e eu
tenho medo.
Barbosa Viana – então, o Augusto Gomes era um dos chefes do golpe...( risos)... afinal, entre os empresários teatrais há grandes artistas...
Berta Maia – Com ele preso, já não tens de ter medo.
Abel Olímpio – Tenho medo, tenho. Ele tem sicários capazes de tudo. Minha senhora, proteja-me, façam a revisão do meu processo. Ajude-me!
(Barbosa Viana leva – o).
Berta Maia – Mataste o meu marido, mas eu vou ajudar-te. Vão saber quem ordenou estes crimes.
(Continua)
(continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 11
Cena 11
Voz – Vamos às putas!
( SLIDE CARNAVAL. Cena de cabaret. Pares e grupos de coristas dançam fox -trot agitando faixas azuis e brancas. Serpentinas, confetti, capitalista acende charuto com uma nota…)
Fim do 1º Acto
Intervalo: Don’t be that way de Benny Goodman
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 10
Cena 10
A conspiração com Espanha
( D. Fonseca entra com a mala que Millán Astray lhe deu, abre, tira notas. Som da aldraba, atrapalha-se, abre, entram Alfredo da Silva, Carlos Pereira, Gastão Melo Matos)
D. Fonseca – Muy bien, es outra ayuda del reyno de España... Pero D. Afonso XIII esta muy enfadado con la conspiración portuguesa. En la corte ya decimos por broma que de tanto conspirar, la monarquía está a dormitar.
Alfredo da Silva – quanto é?
D. Fonseca - Queremos acción, unidad de esfuerzos…
Alfredo da Silva – oh homem, fale português!
D. Fonseca - energia, bravura... lo esperamos por parte de D. Alfredo da Silva, D. Gaston, señor conde de Tarouca...
Alfredo da Silva – oh Fonseca, diga lá quanto é que sacou ao Rei de Espanha!
D. Fonseca – 700 mil!
Gastão Melo Matos – Muito obrigado pela ajuda de sua majestade, D. Afonso...
Carlos Pereira – esperemos que seja suficiente.
Gastão Melo Matos - tranquilize sua Alteza... temos infiltrado o Exército e a Marinha, feito agitação em diferentes meios sociais, os apoios económicos começam a chegar...
D. Fonseca – Caros amigos, estoy encantado con vuestras palabras y con vuestra voluntad de inversión. Así, creo que podemos mirar al futuro. Un futuro que confirmará el sueño de D. Afonso: crear la Hispania, capital en Madrid y Lisboa su bellissimo puerto de mar. frente al Atlãntico, frente al mar, frente al mundo.
Gastão M. Matos – Com todo o respeito que me merece D. Afonso, penso que é perigoso começar a propor que Portugal perca a independência...
D. Fonseca – La independência? Eso és una question absurda... hablamos de una unión... como las antiguas uniones... como si fuera una boda real... y no olvidemos que una union aporta compensasiones para todas las partes...
Alfredo da Silva – Então, sr, Gastão, calma! O que eu percebi foi que essa união, chamemos-lhe assim, iria ter compensações para Portugal... ou seja, lucros para os poderes económicos portugueses...
D. Fonseca - Si, claro...
Alfredo da Silva – Não vejo qual é o problema, se as minhas empresas prosperarem, mais as do sr. conde de Tarouca e outros nossos amigos, se o sr. Gastão fizer progredir a sua casa bancária...
Gastão M. Matos – Mas, a independência...
Alfredo da Silva – Sobre a independência, claro que eu penso que só se pode perdê-la em último recurso, até porque é uma arma de propaganda na mão da maçonaria que pode inflamar o povo.
Carlos Pereira – Também acho.
Alfredo da Silva – Mas também é evidente que, se a situação no país evoluir para o fortalecimento da República, destes ladrões e assassinos, eu lutarei para que Portugal fique debaixo da pata espanhola. Este país, dominado por essa ralé deixa de ser o meu país. Eu não tenho nada a ver com os meus operários, nem com os camponeses, nem com estes agitadores que envenenaram Lisboa.
Carlos Pereira - Os nossos irmãos são os reis de Espanha, da Áustria, da Alemanha, os homens das grandes empresas, a grande finança que está a fazer avançar o mundo.
Alfredo da Silva - O capital não tem pátria, entre nós não há fronteiras, e se Portugal se tornar num buraco sem préstimo, sórdido e repelente para nossa vergonha, que deixe de existir.
(Murmurios de aprovação. Foto frontal)
Gastão M. Matos – Pronto, já me convenceram. E se fossemos comemorar?
Carlos Pereira – (atira serpentina) É Carnaval! O Augusto Gomes está no Teatro Nacional!
(Continua)
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa – 8/9
Cena 8
Pesadelo
(Berta Maia com o bébé. Acarinha-o, canta canção de embalar. Adormece).
(Faróis.Sons do pesadelo e da camioneta. Dente de Ouro e grupo de marinheiros apontam armas a Machado dos Santos encostado a uma parede).
Machado Santos – Vocês, rapazes, estão levando-me por equívoco. Eu, em casa, estava esperando o carro que deveria levar-me a Belém, onde Manuel Maria Coelho, o chefe da revolução, está a esta hora depondo do poder António José de Almeida, para logo a seguir, empossar-me a mim, Machado Santos, no cargo de Presidente da República. Entendem? Eu é que vou ser o Presidente. Vocês, rapazes, estão, estão levando-me preso por equívoco, sim, por equívoco, por equívoco, por equívoco...
Augusto Gomes – Não oiçam este malandro. Ele é que levou este país à desgraça.
Dente de Ouro – O senhor Augusto Gomes é que sabe. Mas custa-nos um bocado.
Augusto Gomes – Vocês estão aqui para fazer o que se combinou. Se recusarem, esperem pelo castigo.Fogo!
(Descarga. Machado Santos escorrega e cai).
Augusto Gomes (Tira a carteira, os anéis e o relógio de algibeira a Machado Santos) – Eu guardo isto. Levem-no para a morgue.
(Saída da camioneta)
Cena 9
D. Afonso XIII, com D. Fonseca, exilado português
(Em fundo ,“ A rendição de Breda” de Velásquez Afonso XIII faz uma paciência com cartas de jogar com Millán Astray ,no Salón del Reino, a sala do trono do Palácio del Buen Retiro)
D. Fonseca – Sete arrepelões me deram à entrada, mas eu dei uma punhada naqueles figurões…
Millán Astray – Majestad, D. Fonseca...
D. Afonso XIII – Ah, el portugués... el pobre exiliado... si, si, venga, venga...
D. Fonseca – Majestad, saludos de los exilados portugueses...
D. Afonso XIII – Gracias, D. Fonseca. Que hay de nuevo?
D. Fonseca – Majestad, la restauración de la Monarquía Portuguesa está para muy breve, la miseria pone miles de nuestros súbditos contra la República y la masonería. Pero tenemos dificultades. Necesitamos de apoyo, de dinero.
D. Afonso XIII – D. Fonseca, yo no comprendo los monárquicos de su país. Yo ya ayudé a Paiva Couceiro en 1911, en 1919, ayudé a Sidónio, ayudé a los exilados, ayudé, ayudé... y no veo un movimiento sério em Portugal. Además, vuestro Rei D. Manuel, en Londres muy tranquilo, declara que no es el momento para la restauracion monárquica. Que pasa con vuestras cabezas? Donde esta la dignidad de los viejos nobles? Estoy harto, estoy harto.
Millán Astray – Calma, D. Alfonso. Su corazon.
D. Afonso XIII – Gracias, Millán Astray, gracias.
D. Fonseca – Majestad, tiene mi senhor toda la razon de estar enfadado com nosotros, pero ahora és un gran momento...
Millán Astray – un gran momento, un gran momento...
D. Afonso XIII – Que gran momento, que momento! Esta lucha contra la República portuguesa interesa a España porque hay que atacar el inimigo cuando esta cerca de nuestras portas, y porque es necessario unir toda la Ibéria... volveremos a ser el país más poderoso de la tierra... es mi homenaje a mis antepasados del glorioso império, de nuestro siglo de oro.
Y Hispania, com su capital en Madrid, tendrá un belíssimo puerto de mar que es Lisboa.
D. Fonseca – Majestad, me temo que la question de la independência...
D. Afonso XIII – Que independência? Que mérito teneis ustedes para ser independientes? Com un rey enano y cobarde, una nobleza sin garra ni cojones...
Millán Astray – Sin cojones? Sin uevos! La question de la independência de Portugal no se pone. Por supuesto, és ridicula. Porque hoy la vida de las naciones las obliga a serem grandes y a tenerem riquezas e fuerza. El mundo ya no acepta los pequenos y miserables payses.
D. Afonso XIII – Millán Astray, nuestro heroe militar símbolo de la más pura hispanidad, sabe lo que esta deciendo...
D. Fonseca – Muy bien, muy bien. Perdonem, perdonem. Ahora és un momento para atacar Portugal, porque todos atacan la corrupcion de los republicanos... ya dicen que son tanto o más corruptos que los monárquicos...
D. Afonso XIII – D. Fonseca, los monárquicos nunca son corruptos. Ellos solo utilizan los derechos de sus privilegios... (risos) sin firmeza em sus convicciones, como quieren los monárquicos portugueses ser independientes? (risos) yo ayudo, yo ayudo, pero es la ultima vez... salga... salga...
D. Fonseca (recua, agradecendo) – Muchas gracias, majestad, muchas gracias...
D. Afonso XIII – Volvemos a mi paciencia que nos es tan pesada como estos portugueses...
Millán Astray - y Lisboa será la nueva Breda rendida a Alfonso XIII, el nuevo caudillo Ambrosio de Spínola...
D. Alfonso XIII - y asi sera vingada la traicion de essos hidalgotes portugueses a nuestro querido Filipe IV. Astray – essos miserables, que siempre han vivido a nuestras tenças, luchando por independencia!
D.Alfonso XIII - todo falso, lo sabemos. Cambiaram de patron, la libra era fuerte, la pirataria dominaba los mares y era agraciada por la nobílissima Realeza britânica, volveram lacaios de los Ingleses. Miserables!
Millán Astray – pero esta vez, las van a pagar. Miserables!
(Continua)
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 7
Cena 7
Memórias de Carlos da Maia
Ciclorama com bambus chineses
(Berta Maia recorda Carlos da Maia )
Berta - (estende a mão sem folha) o que é isto ?
Carlos – (com folha na mão) mostra. Ah, é uma carta do Sun–Yat-Sen...o 1º. Presidente da China...
Berta – que engraçado!
Carlos - na altura, não teve muita graça. Antes disso, ele esteve exilado em Macau, foi médico no hospital. Não o aceitavam em nenhum país. Como Macau tinha um estatuto de independência (quase), ficou por ali.
Berta – Que interessante. E essa carta, porquê?
Carlos – Essa carta é de 1916, quando eu era governador. Sun-Yat-Sen estava outra vez no exílio, e o governo de direita da China pediu a Portugal a extradição dos criminosos que tinham fugido para Macau. Claro que os tais criminosos que eles pediam eram os revolucionários, os companheiros de Sun-Yat-Sen. Os assassinos e ladrões podiam continuar em paz, no exílio dourado de Macau, organizando seitas, o jogo, o negócio do ópio.
Berta – e tu não entregaste nenhum republicano chinês.
(Separados, mimam beijos)
Carlos – como é que adivinhaste? Não foi fácil, houve uma grande luta diplomática, o Império Britânico a pressionar a Republica Portuguesa, mas ganhámos.
Berta - mas, a Inglaterra...
Carlos – nossa velha aliada, não é? Berta, Bertinha, menina bonita, tão ingénua...um Império, é um Império, é para mandar em tudo e todos. Não duram toda a vida, mas enquanto puderem...lembras-te da guerra do ópio? Os Chineses revoltaram-se porque , a dada altura, os Ingleses condenavam à morte os trabalhadores que se recusavam a tomar ópio...além de um grande negócio, a droga era para os acalmar...claro que os Ingleses não tomavam ópio... ( risos)
(Carlos da Maia deixa cair a folha e desaparece; Berta Maia mima abraço, “acorda” da evocação, levanta-se , vê a folha no chão e pega nela)
Berta Maia – Macau…
Criada – ( com cesto com comida, ovos, uma galinha) - Minha senhora, vieram entregar isto.
Berta Maia – Quem mandou isso?
Criada – Disseram que era da parte de um grande amigo do seu marido.
Berta Maia – Põe na cozinha. O Carlos, que tinha tantos amigos... agora, já nem dizem o nome.
Criada – Minha senhora, as pessoas andam com medo de falar, depois destes crimes, as pessoas são assim. Está aqui o jornal.
(Mostra jornal)
Berta Maia – (lê) Augusto Gomes, o empresário teatral, assassinou a actriz Maria Alves. Sabes quem é?
Criada – É o senhor do teatro, não é ?
Berta Maia – Sim, um empresário teatral que está ligado a todas as conspirações monárquicas, amigo do Alfredo da Silva da CUF, e ... uma testemunha da morte de Machado Santos...
(No Tribunal)
Augusto Gomes – Eu tinha ido a Pedrouços para uma missão de confiança, e fui ao Arsenal. Uns civis armados disseram-me que estavam à espera do senhor Cunha Leal para o assassinarem. Corri ao quarto do oficial de dia onde estavam António Granjo e Cunha Leal e convenci-o a ir ao hospital tratar do ferimento que já tinha no braço.
Depois do hospital fui a casa do Sr. Presidente da República e vi que só tinha dois polícias a protegê-lo. Dirigi-me ao Sr. Manuel Maria Coelho, chefe do golpe e pedi protecção para o Sr. Dr. António José de Almeida. Depois fui ao Rossio e meti-me num carro para ir para casa; passando no Intendente, um grupo armado disse que o carro seria preciso para levar um cadáver à morgue. Contra as minhas súplicas, mataram o Almirante Machado Santos. E consegui, a muito custo, que não fossem a casa dos senhores Barros Queiroz e Sotto Mayor, que também estavam condenados a morrer. Horrorizado com tanto sangue inocente que tinha visto correr, fugi para casa.
(Sai)
(Continua)
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 6
Cena 6
Padre Lima e Dente de Ouro com os marinheiros
(No convés do barco. Cenas de trabalho)
Abel Olímpio (canta)Por vestir fato de ganga e boné/Todos me olham com certo desdém/Mas o fato de ganga ainda é/O orgulho de quem o enverga bem
(outros acompanham) Se um dia Portugal estiver em perigo /Todo o fato de ganga sai p’ra rua/A Pátria em cada um tem um amigo/Que prefere morrer mas não recua
Marinheiro – A Pátria tem um amigo...Temos de agarrar a nossa vida. Arriscámos tudo no 5 de Outubro, e o que é que tem acontecido? Estamos nas mãos de monárquicos e de traidores. A miséria não nos larga, os filhos nem têm comida, nem roupa, nem sapatos...
Abel Olímpio – Sapatos? Estás muito fino... Querias os teus filhos com sapatos?
( Risadas)
Marinheiro – Passam a vida doentes... foi para isto que veio a República? Abaixo os traidores!
Abel Olímpio e outros – Abaixo!
Abel Olímpio - eu tenho aqui algum dinheiro para dar aos camaradas.
Marinheiro – Dinheiro? Onde é que foste buscar isso?
Abel Olímpio – Aos republicanos. Há muitos que têm dinheiro e são a favor do povo.
(Entra padre Lima)
Foi o senhor padre Lima que arranjou isto.
Marinheiro – Viva o Dente D’Ouro. E viva o senhor padre Lima!
Todos – Viva!
Padre Lima – Meus irmãos, as vossas palavras são justas e a vossa indignação tem razão de ser. Muitos têm dúvidas em relação à República. Eu estou entre esses. Mas, por enquanto, esperamos para ver se cumprem as promessas que fizeram ao infeliz povo português.
Se continuarem a enganar-nos, saberemos responder com a força da nossa razão ultrajada. Tende calma e paciência. Muitos são os bons portugueses que vos compreendem e que lutarão ao vosso lado por uma vida melhor.
Marinheiros (cantam) – Não entres na igreja ó cavador/É falsa a religião dessa canalha/Os santos são de pau não têm valor/Valor só se dá a quem trabalha.
Padre Lima – ah, temos cantadores...então, ouçam esta...
(canta) Esfacelai a cruz/Num golpe audaz, profundo/Procura o progresso/No mais pequeno atalho/P’ra erguermos bem alto/Os dois heróis do mundo /Ferrer na instrução/Lenin no trabalho
Abel Olímpio – Viva o sr. Padre Lima!
Vozes – Viva! ( Circula garrafão de vinho)
Padre Lima – Bebei meus irmãosi. Cobrai forças para os trabalhos que se avizinham.
Abel Olímpio (chama o corneteiro da GNR) – Senhor Padre, este é que é o corneteiro da Guarda de que lhe falei.
Padre Lima – Vê-se que tem bom ar. Parece uma rocha, pronto para tudo. Bebe mais.
Corneteiro – Obrigado, senhor padre. A minha Teresa agradece aquele dinheiro que eu levei para casa.
Padre Lima - Foi uma ajuda de pessoas boas que se interessam por vocês. Mas isso não passa de uma esmola. Vocês têm de lutar para conquistarem tudo a que têm direito.
Corneteiro – Estou pronto para tudo. Gosto muito de ouvir o senhor Padre Lima, vê-se que fala verdade e que se interessa pela gente.
Padre Lima – Cumpro o meu dever de pastor das almas transviadas.
Corneteiro – Pode contar comigo e com muitos lá da Guarda Republicana.
Padre Lima – Deus te abençoe, meu filho!
Corneteiro (com o sabre levantado) – Abençoada arma que Deus me pôs na mão!
(Grupo sai cantando “Esfacelai a cruz…”,Padre Lima e Dente de Ouro riem-se pela facilidade com que manipularam os marinheiros)
(Continua)
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 5
Cena 5
1ª reunião dos conspiradores
(Reunião de conspiradores monárquicos. Padre Lima, Gastão de Matos, Carlos Pereira, Abel Olímpio ,Rudolph, agente alemão)
Gastão de Matos – O nosso movimento está mais forte do que se julga.
Carlos Pereira – Mas eu não vejo os pequenos comerciantes e industriais a reagir, não vejo essa gente a lutar pela monarquia.
Gastão de Matos – Não lutam pelo Rei, mas calam-se se a gente ganhar. Para esses, basta dar-lhes umas encomendas de meia tijela e começam logo a dizer que somos os salvadores da Pátria! (Risos).
Carlos Pereira – não tenho a certeza disso.
Gastão de Matos – é porque anda distraído. Essa gente que veio da ralé tem ódio aos mais pobres porque eles lhes lembram o buraco de onde sairam. É por isso que se juntam a nós; invejam-nos, mas andam da mão estendida à procura da migalha. E também querem mais polícia para os defenderem dos que são mais pobres que eles!
Carlos Pereira – oh Gastão!
Gastão de Matos – ainda não acabei. É por isso que nós, que não passamos de meia dúzia, mandamos nisto tudo.
Carlos Pereira – mas há revoltas na populaça.
(Ciclorama – carruagem ,chicote, som. Figura de cartola)
(Som de aldraba. Entra Rudolph)
Gastão de Matos – estávamos a dizer que o nosso movimento está mais forte…
Carlos Pereira - não tenho a certeza disso.
Rudolph - A dificuldade tem a ver com o dinheiro com que se compram as consciências. Pela Europa, ninguém aceita a situação portuguesa. O horrível crime dos assassinatos do rei D. Carlos e do príncipe assustou as monarquias. Todas nos querem ajudar e serão extremamente gratas em relação aos portugueses que conseguirem derrubar este regime. A situação tornou-se insustentável, principalmente depois da morte do nosso grande amigo Sidónio Pais.
Há dinheiro, muito dinheiro...
Gastão de Matos – Meu caro Rudolph, o dinheiro é indispensável, mas talvez precisemos de nos convencermos a nós próprios.
Rudolph – O Rei de Espanha também quer ajudar-vos... mas aqui não estão todos convencidos?
Gastão de Mato - Temos que ser realistas. Um golpe monárquico, é hoje completamente impossível. Os nossos grandes homens estão em Espanha, exilados. Outros fugiram para mais longe, até para o Brasil. Onde já encontraram apoios e empregos que os fazem desistir do regresso e da luta pela regeneração de Portugal.
Carlos Pereira– É uma vergonha nacional se não há homens capazes de atacar os inimigos da pátria.
Rudolph – Há dinheiro para pagar. Até os Estados Unidos querem ajudar!
Carlos Pereira – Eu quero que os vingadores sejam pagos. Mas bem pagos. Para evitar que quando a gente triunfar, nos venham pedir situações especiais e de favor. Até porque esses que hoje trabalham para nós, mais tarde podem trabalhar para eles.
Gastão de Matos – É isso mesmo, Carlos Pereira, é isso mesmo. Depende da maquia que receberem.
(toque de aldraba)
Carlos Pereira – É o padre Lima.
C. Pereira – ( risos) Vá abrir, vá depressa. Não faça esperar a voz do Senhor.
(Entram Padre Lima e Abel Olímpio, “Dente D’Ouro”)
Padre Lima – Boas tardes, muito boas tardes.
Vozes – Padre Lima, como vai? Como vão as ovelhas do seu rebanho? Deus vos tenha em boa guarda.
Padre Lima – Trouxe comigo um rapaz de muita confiança. É da Marinha, cabo, de toda a confiança. É de Estivais, Moncorvo, da minha terra. Trouxe-me umas alheiras. O meu pai enviou-mo, falámos, está de acordo com o que a gente pensa, e disposto a colaborar.
Gastão de Matos – Com certeza que precisará de dinheiro.
Abel Olímpio – Não é bem para mim, mas convinha ter alguns escudos para dar na Armada. Para saberem que eu não os estou a enganar.
Carvalho – E eles, não o enganam?
Abel Olímpio – A mim? Ao Abel Olímpio? Ao Dente D’Ouro?
C. Pereira – Você é homem rijo, vê-se logo.
Abel Olímpio – Muito obrigado, meu senhor. É a minha fama.
Gastão de Matos – Então faça provas disso, que não se há-de arrepender.
Abel Olímpio – Eu já sei o que os senhores querem, que o meu amigo senhor padre Lima, já me disse.
Gastão de Matos – E percebeu bem?
Abel Olímpio – Temos de rebentar com os malandros que estragaram isto tudo.
Gastão de Matos – Está bem... (risos)... mas não vamos fazer nenhum golpe.
Abel Olímpio – Não vamos fazer nenhum golpe?
Gastão de Matos – Senhor Padre, já vi que não lhe explicou tudo...
Padre Lima – Eu julguei...
Gastão de Matos – O senhor...
Abel Olímpio – Abel Olímpio, cabo de artilharia da Armada, nº 2170.
Gastão de Matos – O senhor cabo não vai organizar nenhuma revolução. Está calmo, vai informando os seus homens de confiança, vai sabendo em quem é que deve ter confiança...
C. Pereira – De quem é que deve ir desconfiando...
Gastão de Matos – E espera que o senhor padre lhe diga alguma coisa, lá mais para diante. E agora, pode retirar-se.
Abel Olímpio – Então, muito boa tarde.
C. Pereira – Espere um momento. Senhor Gastão, é melhor levar já algum dinheiro, não acha?
Gastão de Matos – Sim, sim.
(Agente Alemão dá dinheiro a Gastão, este passa a Carlos Pereira que dá ao padre Lima que o entrega ao Abel Olímpio)
Padre Lima –( piscando o olho) Abel, depois faz um apontamento de despesas, para se mostrar a quem de direito.
( Abel Olímpio faz o mesmo sinal e sai)
Gastão de Matos – Senhor Padre, para a outra vez, não nos traga esta gente para as reuniões. Isto não é para qualquer labrego. Está entendido?
Padre Lima – Eu julguei que os senhores gostassem de ver que o trabalho na Armada está a avançar.
Agente Alemão – Mas quem é esta gente?
Padre Lima – É uma grande confusão. Há de tudo, dos vários partidos Republicanos, há comunistas, anarquistas, e nós só precisamos de nos infiltrarmos. E temos o povo mais baixo, mais reles, são capazes de matar a mãe por cinco mil réis.
Gastão de Matos – Não se esqueçam. Nós não vamos fazer um golpe. Nós vamos aproveitar uma das lutas entre os republicanos, e depois empalmamos o movimento. Assim é que se trabalha. Está de acordo?
Padre Lima – Para convencer bem esta gente, é preciso pagar. E se fizéssemos um documento?
C. Pereira – Escreve-se que damos 100 contos, e depois logo se vê.
Padre Lima - Isto é um documento histórico (Começa a escrever)
Agente alemão – Penso que é o caminho justo. Sehr Gut!
( Sai e atira notas para o chão que eles dividem)
(Continua)
(Continuação)
O Mistério da Camioneta Fantasma – peça de Hélder Costa - 4
Cena 4
Ódios e necessidades
(Reunião de senhoras a tomar chá)
(Ciclorama laranja, camponeses trabalham em contra-luz)
Condessa de Ficalho (com um rosário) - Deus me perdoe, não posso mais com tanta miséria que se vê aí pelas ruas.
Condessa de Tarouca – É no que deu esta República: crimes, roubos e fome.
Berta Maia – Desculpem, minhas amigas. Porquê acusar sempre a República? A miséria vem de muito longe, das injustiças que a monarquia praticava.
Condessa de Ficalho – Minha querida Berta, sei que é difícil, mas pense um pouco. Quem fez Portugal? Quem conquistou? Quem derrotou hereges? Quem espalhou a fé e o império? Fomos nós.
Condessa de Tarouca – Não é natural que tanto esforço tenha compensação? Queria que distribuíssemos riquezas pelos labregos e pelos cobardes que não derramaram o sangue na faina heróica dos nossos antepassados? Coma! Coma!
Condessa de Ficalho– Onde é que já se viu isso? Queria que os filhos dispersassem a fortuna que os pais lhes deixavam?
Condessa de Tarouca – Que falta de sensatez, minha amiga.
Berta Maia – Deus diz-nos para olharmos para os pobres e infelizes, e para remediarmos as desigualdades deste mundo.
Condessa de Tarouca – e por isso nós fazemos estes chás de caridade.
Condessa de Ficalho– E o que fazem os republicanos, os bolcheviques, quando nós queremos ir por esse caminho?
O que fizeram ao Sidónio Pais que tinha criado a sopa para os pobres e que, abençoado por Deus, ia pelos hospitais confortar os doentes da pneumónica?
Abateram-no com um tiro, como se faz a um cão raivoso.
Condessa de Tarouca – Berta, você sabe que isso foi um crime. Mataram um santo, e um belo homem.
O seu marido, o comandante Carlos da Maia, esteve com o Sidónio...
Berta Maia – Sim, esteve com o Sidónio. Ele, o Machado Santos e outros. Por pouco tempo. A esperança que havia numa política nova, para fazer renascer Portugal, desvaneceu-se rapidamente.
Condessa de Ficalho – Berta! Não me diga que defende aquele crime...
Berta Maia – Não defendo esse, nem qualquer outro crime. (Pausa). Eu nunca quis ser feliz com a infelicidade dos outros. E o meu marido, no dia 5 de Outubro, disse à sua mãe que estava feliz por não ter matado ninguém. Na minha casa só se cultiva o bem.
Condessa de Tarouca - Julgam vocês que fazem o bem.
Condessa de Ficalho– A resposta não vai demorar muito. Deus já nos deu o sinal do milagre de Fátima em 1917.
Berta Maia – A República tem de ser para o bem de todos e acredito que Deus nos guiará no bom caminho.
Condessa de Ficalho– Eu também acredito em Deus, mas nós é que temos que fazer o nosso caminho. Sabe como é que eu tratei da fome na minha casa?
(Condessa de Ficalho em reunião com os criados)
Condessa de Ficalho - como sabem, a nossa casa está com dificuldades. Desde que esses traidores à Pátria nos roubaram terras, vinhas, lagares e cavalos, estamos a viver com muitas dificuldades.
Eles dizem que fizeram essa revolução para vos defender, às pessoas que trabalham e que são exploradas. Mas vocês sabem que o nosso palácio se esforçou sempre por tratar de vocês o melhor possível. Já tinha ajudado os vossos pais e avós e nunca faltou nada aos vossos filhos e netos.
Éramos uma família. Cada um no seu lugar, com respeito, mas éramos uma família.
Hoje, só se ouve falar em ódio e vingança. E isto nunca trouxe nada de bom a ninguém.
O que tenho para dizer, é muito triste.
A minha casa não pode continuar a alimentar tanta gente. Se eu fosse sozinha, mas há os filhos, genros, noras, sobrinhos, primos, como é que isto se pode aguentar?
( murmúrios)
Custa-me muito, esta noite fartei-me de chorar, mas as coisas são assim. E a culpa é desses republicanos que nos vieram tirar o sossego e a paz em que vivíamos.
(murmúrios)
Não querem ir? Mas o que é que eu posso fazer?
Bem, eu pensei numa solução.. Vocês, hoje, os trabalhadores é que mandam no país. Têm empregos bem pagos, as fábricas têm que vos aceitar, mesmo que depois fiquem na falência (ri).
Eu proponho que vocês vão trabalhar e que tragam cá para casa o ordenado que ganharam. Assim, pode ser que eu consiga aguentar as minhas duas famílias, a de sangue e a vossa, que é para mim de grande amizade e muito sacrifício.
(murmúrios)
Não querem, não me digam que já andam influenciados com as ideias desses malandros... Pensem bem. Olhem que a minha casa continua a ser visita de oficiais e de toda a gente que mandava neste país. E olhem que eles não estão parados; estão a organizar a guerra contra esses ladrões e toda a gente sabe que nós vamos ganhar outra vez.
Se vocês se portarem bem, eu protejo-vos nessa altura; mas se começarem com revoltas e recusas e ingratidões para comigo, que tenho sido uma mãe para todos, então ajustamos contas.
(silencio absoluto dos trabalhadores)
De acordo? Assim é que eu gosto de ouvir.
Vá, mexam-se, arranjem trabalho depressa que a casa já não é como era dantes, que aguentava tudo, os que trabalhavam e os que não faziam nada.
Encontramo-nos na missa, que o senhor padre há-de abençoar este acordo entre nós.
E agora, a minha benção...
(Grupo vai ao beija-mão)
Berta Maia – E se eles não quiserem?
Condessa de Ficalho - Berta, Berta, tenha juízo. Perceba que vocês ganharam contra a monarquia por um mero acaso, por um acidente da história...
Nós ganharemos sempre, porque temos a força da tradição, a Igreja apoia-nos, temos séculos de experiência a saber mandar, os criados respeitam-nos e temem-nos. E sabem muito bem que o patrão, o senhor, nunca pode estar na miséria. Até para poderem ter algumas migalhas. E também sabem que se isso acontecer, a nossa vingança será sem dó nem piedade.
Por isso, nos obedecem.
E é por essa razão que eles não ouvem as vossas belas palavras, vos denunciam e se põem ao nosso serviço.
(Continua)
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