As Espessas Nuvens de Niteroi
(continuação)
O ano de 1954 será de profunda mudança na vida do autor de Nove de Abril, começando com a carta que o consulado de Portugal no Rio de Janeiro, ainda lhe envia para a morada de Vila Violeta, em Niterói, a convocá-lo para comparecer na sede da chancelaria (Rua Teófilo Otini, nº 4 -2º), no dia 21 de Março de 1954, «a fim de tratar da sua repatriação e de D. Carminda conforme solicitou». A questão estaria oficialmente bem encaminhada se o casal tivesse dinheiro para regressar, mas não tinha, pelo que é feita uma subscrição com o objectivo de reunir fundos. Contrariamente ao que o poeta diz num documento, a subscrição não foi oficial tendo partido da iniciativa particular do vice-cônsul João José Diniz. Várias pessoas e instituições contribuíram pois no espólio há um registo de nomes e quantias (que desconheço se é a totalidade), perfazendo insuficientes 37.000 cruzeiros. Uma coisa é certa, o poeta não regressou e do dinheiro não se regista caminho levado. Esta situação falhada e o penoso capítulo de Vila Violeta, acabam por empurrar o casal a abandonar a Casa Três, o tal “palácio” que o poeta elogiara, regressando ao roteiro dos hotéis manhosos, agora o Greogotá, instalado num edifício degradado, será vítima de uma derrocada parcial provocada pela chuva. Em Setembro de 1954 o casal regressa definitivamente ao Rio de Janeiro, pois em Dezembro uma carta de João Sassetti, sobre os direitos de autor das canções de Gado Bravo, já é endereçada para aquela cidade (o problema das canções de “Gado Bravo” já vinha em discussão desde Lisboa devido a adulteração de letras sem autorização do autor. Só nesta altura, 1954, acabou por ficar resolvido).
O salto a Niterói, que começara envolvido em esperança, chegava ao fim marcado pelo desalento e pela pobreza.
Após a falhada tentativa de regresso a Portugal a hipótese foi colocada definitivamente de parte. Em termos literários e sociais tem a consciência de que Portugal já lhe dera o que podia. Se alguma dívida se mantém em aberto são as honras do país para consigo. O poeta jamais se interrogou sobre a queda do seu prestígio, isso seria admitir o princípio de uma humildade de que era desprovido. Toma conta dos poucos haveres e volta novamente ao Rio para representar o último acto num palco literário onde, qual Fénix, Botto renascerá das cinzas a acreditar nas notícias encumeásticas do Jornal do Comércio, em Janeiro de 1953: «É, o sr. António Botto o maior poeta português contemporâneo (...). O seu génio pertence a uma obra vasta de genialidade, de ritmos poderosos que são apenas seus. Ilumina a inteligência do leitor. Cativa-o, surpreende, encanta e fica na lembrança inesquecível de quantos o sabem compreender e sentir».
Desconheço se Fernando Pessoa levantou a tua carta do céu, mas sendo amigo admito-o, explicando-te que o sol marcava o horóscopo no signo de Leão visto teres nascido em 17 de Agosto de 1897. Não era o que dizias pois sempre roubavas dois ou quatro anos lançando a confusão nos espíritos. Mas foi a 17 às oito horas da manhã, meu poeta, com bons aspectos indiciando capacidade criativa, sucesso literário, auto-afirmação. Porém, Pessoa, não terá deixado de advertir para aspectos desfavoráveis de narcisismo, ego desmesurado, mitomania e exibicionismo. Uma “doença” a agravar-se desde Lisboa nos anos trinta, obrigando-te a viver acorrentado à idolatria de ti próprio, incapaz de aceitar os limites literários de um percurso com a atitude de quem, embora reconhecendo o seu talento, não consegue evitar que este o devore pela vaidade, mas não só…
Os estigmas colam-se ao corpo, agarram-se à imagem e perseguem-na através do tempo fazendo, por vezes, de um sujeito vulgar uma personalidade destacada e outras exactamente o inverso. A tua homossexualidade assumida, versejada, afirmada, literariamente enriquecida, foi uma manifestação de carácter não só socialmente imperdoável como, por isso mesmo, “condenável”. Ficou-te colada à pele, ao nome e à obra de tal modo que ainda hoje, apesar da evolução, não te conseguiste divorciar dessa marca quando se fala de ti. Pela tua parte, não é menos certo, praticaste a possível ostentação. Não escondias nem disfarçavas, antes assumias, e dessa postura acabaste vítima de estórias anedóticas e cruéis como a que Ricardo de Araújo Pereira transcreve (JL – Jornal de Artes Letras e Ideias – “No Rasto do Poeta”, nº 699,pág.21, 30.07.97), segundo relato de Moitinho de Almeida: «O Pessoa era um gozão. Contava, por exemplo, que um dia, um amigo do Botto, encontrando-o de braço dado com um marinheiro, numa Sexta-Feira Santa, disse-lhe: “António, parece impossível. Comer carne na Sexta-Feira Santa!” Ao que Botto respondeu (e aqui Pessoa aflautava a voz): “Mas não é carne. É peixe.”». Passe a caricatura, uma entre muitas e algumas conhecias, este foi um comportamento que não ocultaste nem mesmo a Carminda quando ela desejou viver em tua companhia. Foste sério, corajoso, leal, varreste a hipocrisia. Todavia não foi só isso o que te perseguiu, talvez mais do que isso o teu carácter, essa personalidade faminta de sucesso, esse drama interior de glória impeditivo da paz de espírito ajudou a criar à tua volta certo ambiente hostil.
À medida que te venho acompanhando compreendo melhor toda a tua complexidade, ou seja, as tuas fraquezas como as tuas forças escondidas sob o folclore exterior da frivolidade. Sei que te comoveste com a dor alheia, que cultivaste a amizade, que na solidão do infortúnio procuraste minorar o desespero da tua mulher. Agora que o capítulo de Niteroi, que começou radiante, chega ao fim marcado pelo desalento e pela pobreza, verifico quanto é vulnerável o nosso destino. O teu António, na minha visão, acaba por ser o de uma personagem de romance que procura na tragédia o sentido da vida.
(Continua)
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Hoje vamos ouvir um ensaio de Blandino & Sara Luz . É uma versão muito diferente da mesma "Canção 6" que ouvimos a Mariza sob o título "Os
anéis do meu cabelo".
(Continuação)
As Espessas Nuvens de Niteroi
Botto dedica-se, mais pragmaticamente, a equilibrar a situação financeira ou mesmo a revertê-la com solidez, pelo que em Agosto de 1953 o poeta está envolvido num negócio de barcos, segundo carta datada de Niterói, endereçada ao «grande industrial» Adão Pacheco Polónia para a Avenida Serpa Pinto em Matosinhos. Na realidade Polónia seria proprietário de dois barcos de pesca que pretendia vender para o Brasil através da intermediação de António Botto que trabalhou, de facto, para que o objectivo se concretizasse. Na correspondência que trava com o industrial chega a informá-lo também da iniciativa literária de altas figuras que estariam a organizar um recital em sua homenagem, para Outubro de 1953, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Indica os nomes de Pedro Calmon (reitor da Universidade do Rio de Janeiro), Martinho Nobre de Mello (embaixador de Portugal), Henriette Marineau, Maria Sampaio, Beatriz Costa, Dulcina de Morais e João Villaret. O negócio dos barcos não deixa de prosseguir e o poeta, transformado em agente comercial, desdobra-se em contactos e diligências pois a serem vendidos os barcos a comissão dar-lhe-ia, certamente, para vida de nababo durante um tempo. Infelizmente teve azar. Adão Polónia, que chegou a deslocar-se ao Rio de Janeiro, acabou por não concretizar o negócio visto que os brasileiros queriam os barcos mas também o proprietário a fim de trabalhar com eles.
Na Vila Violeta agudizam-se as más relações num processo de desgaste que irá arrastar-se por mais de um ano. Circunstâncias não totalmente esclarecidas dão conta que provocações e insultos que se repetem amiúde, chegando à agressão. A vida torna-se infernal e a saúde do poeta começa a dar sinais de perturbação. Carminda suporta com paciência e espírito de sacrifício representado pela sua imagem de mulher franzina permanentemente envolta em pobres roupas negras. Botto, pelo contrário, não está disposto a suportar ostensivos desmandos dos vizinhos sobre a sua pessoa pelo que apresenta queixas na polícia sem qualquer resultado prático. Os dias tornam-se amargos, mas aguentam-se dado que no fim do ano de 1952 um jornal ainda mandava a correspondência para a Casa Três de Vila Violeta.
O alojamento no Brasil foi sempre fonte de múltiplos problemas, obrigando o poeta a uma vida de nómada de hotel em hotel, casa em casa, fosse por razões de rendas em atraso ou conflitos com vizinhos e senhorios. Casos de comprovada culpa sua, outros nem tanto. Os relatos deixados, queixas, lamentações, permitem admitir que António Botto também foi vítima de descriminação homossexual correndo a via de um calvário que contribuiu para o agravamento da sua saúde.
Desgastado por todos estes desatinos em Abril de 1954 dá entrada no Hospital Municipal António Pedro. Os crónicos problemas de garganta tornam-se graves, forte hipertensão e também queixas renais. Efectivamente fica internado, mas no dia 26 de Abril pede alta a fim de ir receber 28.000 cruzeiros que o Instituto Nacional do Livro lhe devia há treze meses. O médico assistente, Dr. Almerindo Lisboa, com relutância concede-lhe a alta por duas ou três semanas. Contacta o director do instituto, Augusto Meyer, que só consegue obter 9.000 cruzeiros prometendo o resto uma semana depois sem resultado. Regressa a casa, entretanto assaltada, e vê-se confrontado com uma ordem de despejo pelo que o hospital fica para melhor oportunidade. «Em casa à 1.30 da madrugada. Extropiado e sem dinheiro, deitámo-nos para morrer de aborrecimento por tanta falta de humanidade»(sic), é um apontamento que ilustra como a situação se tornara de tal modo angustiante que admite regressar a Portugal.
O poeta está sofrido e dorido. Sente-se maltratado, injustiçado, resistindo a dificuldades que transformam os dias num tormento. O dinheiro evapora-se nas suas mãos como mais tarde viria a reconhecer num desabafo: «Muito dinheiro me tem aparecido depois que vim para o Brasil, ganho com o meu trabalho, mas como vem desaparece». «Neste três anos devo apenas uns trezentos mil cruzeiros porque passámos muita fome» (20.05.1954). Se considerarmos o trabalho desempenhado, as diversas oportunidades criadas, a indemnização ganha em tribunal bem como a parte jornalística, reconhecemos que, pelo menos, terá ganho dinheiro suficiente para uma vida bastante satisfatória. Todavia, a sua relação distante e desinteressada com o dinheiro, a que não terá sido alheia a homossexualidade, fazia-o desperdiçado à nascença. Desde as condições de saúde às financeiras; das literárias onde não encontra bálsamo às humanas, Botto começa a acumular frustrações e tristezas d’alma. O pensamento em voltar à pátria torna-se natural como é natural, em muitos dos seus apontamentos e registos soltos, que o Brasil saia mal no retrato. Embora mostre estima e gratidão pelas pessoas que o ajudaram (e que o irão ajudar na sua dolorosa descida às amarguras de um triste destino), o vinco colectivo que nos deixa dos brasileiros é o da amizade fácil mas falsa, isto é, prometem, mostram-se prestáveis, mas não fazem nada na hora da prova real.
(Continua)
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"Se me deixares, eu digo", um poema de António Botto, musicado e interpretado pelos «Xicara» que vemos e ouvimos aqui numa sessão de gravação.
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