Terça-feira, 15 de Fevereiro de 2011

Neoliberalismo ou Democracia: O Debate Está Aberto – Júlio Marques Mota - 8

(Continuação)

  1. 1. Os CDS, os Hedge funds e a autonomia das políticas nacionais: a democracia em perigo

The Ever Increasing Parallels Between AIG And Greece... And The CDS Puppetmaster Behind It All

Tyler Durden

A) Estranho paralelo

David Fiderer na peça que se segue, publicada originalmente no site Huffington, continua a questionar a relação entre Goldman Sachs e AIG. Para todos os efeitos, o debate foi elegantemente considerado encerrado e se estivéssemos num sistema legal a funcionar como devia a Goldman Sachs seria forçado desde há muito tempo a devolver o dinheiro que recebeu e a desfazer a operação; e agora com a AIG solvente devido ao apoio prestado pelo Estado, as suas contrapartidas podiam continuar a sentir algum risco, embora marginal, em vez de estarem simplesmente a usufruirem somente a posse do dinheiro. E, oh! Tim Geithner teria que enfrentar acusações na base dos códigos civil e penal,

Actualmente, enquanto olhamos para a situação que se está a passar, gostaríamos de saber quem é que determina agora o preço dos CDS sobre títulos da dívida pública da Grécia (bem como de Portugal, do Dubai,da Espanha, do Japão e dos Estados Unidos) qual a taxa de recuperação considerada para a determinação desse preço e do valor do colateral exigido pelos pelos vendedores de CDS sobre os títulos da dívida grega? Se são os bancos gregos, como os boatos parecem indicar, estes vendem a protecção sobre a dívida grega, os CDS, e na mesma linha de rumores também, será Goldman Sachs o seu maior comprador, quer em termos de valores globais quer em termos de capacidade de fluxos e, neste caso, será precisamente Goldman, da mesma maneira como no exemplo de AIG, que pode agora ditar o valor do colateral dos CDS sobre a dívida s grega, Digamos, se Goldman pensa que a taxa de recuperação da dívida grega é de 75 centavos e que os CDS se devem negociar a 700 pontos de base, em vez do consenso “prevalecente” de uma recuperação a 90 cêntimos e de 450 pontos de base, então é muito provável que venha a ser assim, quando se quiser capital adicional para cobrir eventuais necessidades, uma vez que o próprio Goldman Sachs tem sido o meio ou instrumento fundamental para encobrir a situação financeira catastrófica da Grécia e continua a ser um factor crítico nos esforços para os futuros refinanciamentos deste mesmo país. Obviamente estas variações adicionais, que será somente Goldman sempre a ver, mesmo se os CDS forem comprados numa base dos seus fluxos, nunca serão reduzidas para os seus clientes e, em vez disso, serão usadas preferivelmente para preparar os bónus de 2011.

Em suma, dada a situação de conflito de interesses, de sua posição negocial dominante e da sua facilidade em determinar o valor dos colaterais exigidos na venda dos CDS, Goldman Sachs pode expandir a sua posição de força acabada de expor e pura e simplesmente impor a decisão tomada pelo Federal Reserve sobre a AIG a quem tem a obrigação de estabelecer a política nacional! Isto é, uma loucura absoluta e uma base para o colapso financeiro ao nível global.

Há aqui ainda uma outra AIG na fornalha, com Goldman desta vez provavelmente a ameaçar acelerar o colapso não somente do sistema financeiro dos Estados Unidos mas também do sistema financeiro global, a tentar conseguir alcançar uma posição negocial de força virtualmente infinita. Naturalmente, o mundo não permitirá que se desencadeie e uma situação de dominó a partir da Grécia, permitindo que Goldman os engane a todos uma vez mais.

Como a quantidade de CDS em termos de valores absolutos e em termos líquidos está constantemente a aumentar com mais e mais hedge funds a juntarem-se ao Goldman Sachs como o intermediário nesta batalha (exactamente como com a AIG), cabe a todas as entidades reguladoras e para toda e qualquer sensibilidade no Federal Reserve supervisionarem precisamente o que são para o Goldman Sachs as margens de garantia e quais são os diversos vendedores das coberturas sobre a dívida soberana especialmente quando se referem a CDS em dificuldades crescentes, quando há dificuldades de liquidez e que, mais uma vez como aconteceu com a AIG, teria consequências adversas tremendas sobre a actividade económica. Se as contrapartidas de Goldman forem os bancos dos países respectivos, é então certo que o paralelo com AIG está praticamente completo. E nós todos sabemos o que aconteceu então.

Além disso, estamos agora convencidos que Goldman Sachs apoiará o Governo em dinamizar um mercado profundamente doente mas com uma outra finalidade: enquanto o Tesouro obterá vantagems na venda de títulos do Tesouro tanto quanto puder como uma questão de segurança Goldman Sachs procurará vender a sua carteira de títulos a fim de sozinho dominar face a um mundo crescentemente hostil.

(Continua)

publicado por Carlos Loures às 21:00

editado por Luis Moreira em 14/02/2011 às 01:39
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Sábado, 11 de Dezembro de 2010

VerbArte - O Cerco - Sobre as intenções do realizador Richard Brouillette*









Richard Brouillette


O CERCO - Sobre as intenções do realizador Richard Brouillette



Tal como aconteceu para o meu documentário anterior, Assez n’est pas trop (Muito não é suficiente), este filme nasceu de uma revolta.

Inicialmente, era uma revolta contra a derrota do pensamento, ou seja, face à desvalorização da vida com pensamento. A conversão do sistema de educação num sistema de formação profissional teve muito a ver com esta revolta, tal como o aparecimento de uma sociedade onde a informação se tornou rainha, enquanto o desenvolvimento do conhecimento era considerado fora de moda. Uma imagem me guiou, uma gravura de Goya intitulada O sono da razão produz monstros, obtida a partir da série Les caprices.

Depois, um editorial de Ignacio Ramonet, intitulado O pensamento único que apareceu no Le Monde Diplomatique de Janeiro de 1995, fez pouco a pouco o seu caminho na minha cabeça e o objecto da minha revolta alterou-se lentamente, fixando-se, sobretudo, na esclerose do pensamento político — sabendo que tudo é político. Ocupado por uma ideologia dogmática, este pensamento transformou-se em ideia fixa, em obsessão, a obsessão de privar o Estado de todos os seus poderes e, em seguida, de os entregar ao cuidado do mercado que, bem entendido, sabia fazer tudo muito melhor.

De dominante, o domínio dos mestres do pensamento único tornou-se esmagador, irrefutável. Difundido por uma vasta rede de canais de propaganda e de doutrinação, falado em todos os fóruns imagináveis, este deixou de encontrar qualquer obstáculo na sua marcha, especialmente desde a queda da URSS e, naturalmente, assumiu força de lei. Além disso, após o colapso dos regimes comunistas, Francis Fukuyama, vice-director de uma antiga unidade estratégica do. Departamento de Estado americano, deu-se mesmo ao luxo de declarar o “fim da história”, porque segundo ele o homem tinha atingido o máximo da sua glória, e nunca poderia aspirar a uma maior e mais serena felicidade do que a de viver numa democracia representativa regida pelo liberalismo, nem nunca poderia imaginar uma perfeição mais conseguida do que o reino absoluto do mercado agora alcançado.

Além disso, uma quantidade fenomenal de peritos, consultores, especialistas, jornalistas e dirigentes de empresa estava zelosamente envolvida num turbilhão fascinante de proselitismo, que engolia, na sua passagem, qualquer tentativa de contestação. Mesmo os partidos chamados de esquerda, os sindicalistas e os académicos de todos quadrantes deram lugar a este grande movimento de recrutamento e de fidelização a este pensamento que reclamava, que exigia, sempre e cada vez mais que houvesse menos Estado e mais mercado, mais concorrência, mais competitividade. E infeliz daquele que ousasse contrariá-lo! Ninguém se dignava sequer a ouvir, rejeitavam de modo imediato e com uma autoridade de argumentos de peso quem tentasse desacreditar a lógica económica estabelecida, ridicularizando-os como se fossem uns tolos e com insultos supremos que eram habitualmente reservados para os ímpios: “utópico irresponsável, estalinista tacanho, esquerdista irrealista, nostálgicos ou ingénuos hippies, perigoso sonhador, retardado, fora de moda frustrado, dinossauro, etc”.

É esta a razão pela qual eu decidi fazer um filme não sobre a economia global — até já havia vários —, mas sim sobre a globalização de um sistema de pensamento. Um filme sobre o controlo das mentalidades, sobre a lavagem dos cérebros, sobre o conformismo ideológico, sobre a omnipresença indiscutível de um novo monoteísmo, com suas tábuas de mandamentos, os arbustos em chamas e os bezerros de ouro.

Como no meu filme anterior, é através da palavra que eu decidi expressar a minha revolta. Uma palavra forte, franca, rigorosa, cuidada, conhecedora e livre para se exprimir demoradamente ao longo do filme de modo a tornar claras todas as suas ideias. Além disso, estava para mim fora de questão travar este discurso ou adaptá-lo ao modelo televisivo habitual insuflando-lhe um dinamismo artificial através de uma montagem rápida, dando-lhe um ar de falsa objectividade, ignorando as questões complexas. Também não queria usar muito lubrificante visual, ou seja, imagens de arquivo ou ilustrativas que afectaria a coesão do filme e que teriam manchado as intervenções do filme. Eu só fiz uso delas quando foi absolutamente necessário. Para mim, era fundamental que a palavra cativante e perspicaz destes eminentes pensadores pudesse ter todo o espaço do ecrã e que o público se deixasse ficar com eles, como eu, com o fascínio de os ouvir.

Comecei a desenvolver uma proposta de cinema fortemente singular, tanto na forma como no conteúdo. Assim, o meu filme resulta sobretudo de várias opções estéticas. Por exemplo, é filmado em 16mm, a preto e branco, numa época em que só se aposta no digital. Porquê? Em primeiro lugar, simplesmente porque acho que é belo. Em seguida, porque o preto e branco parece conferir uma espécie de intemporalidade ao filme. E, depois, força-me a uma disciplina que nos obriga a uma maior concisão, a uma maior precisão. Porque, bem vistos os custos, é necessário utilizar menor tempo de rodagem e garantir que o importante é dito em 11 minutos (o tempo de uma bobina).

Por outro lado, o uso da voz em off incomodava-me. Então decidi usar legendas como separadores. Tudo isto me permite ao mesmo tempo estruturar o filme, dar explicações que não são dadas pelos intervenientes, tomar uma posição pessoal e abrir a porta para um segundo nível de significados, mais emocional, através da música. Uma música que, embora sendo rica e ousada, não interfere com a leitura de textos.

Finalmente, decidi não identificar os intervenientes no filme, como se tornou habitual na televisão. Muitas pessoas me criticaram, mas eu mantive, teimosamente, o relativo anonimato porque acho que este concentra a atenção do espectador sobre as palavras e não sobre as pessoas.

Depois de ter tido esta ideia, levei quase doze anos para concluir este filme. É verdade que eu sou uma pessoa bastante dispersa, que gosta de mexer em tudo e de se envolver em todos os tipos de causas. Mas também é verdade que eu gosto de ter o tempo necessário para evoluir com uma obra a fim de a aprofundar. E o que ainda é mais fantástico, é que o filme O Cerco, doze anos mais tarde, é agora ainda muito mais actual e inquietante do que antes. A actual crise económica mundial é o resultado directo das reformas neoliberais guiadas pela ideologia do mercado livre, do laissez-faire. Mas, infelizmente, eu não creio que esta esteja a dar os seus toques de finados, não creio que esteja a dar os últimos sinais de vida. O actual sistema financeiro e monetário, herdado de Nixon, está muito longe de ser alterado, de ser reformado; tenho dificuldade em imaginar que se deixe de ter a pletora das privatizações e da desregulamentação que se tem estado a passar em todo o mundo. Em vez disso, continua-se a privatizar as empresas que dão lucros, enquanto se nacionalizam as que dão prejuízos e continua-se a apelar a uma maior intensificação da livre-troca.

Desejo, pelo menos, que o meu filme vá contribuir bem humildemente para questionar os fundamentos dessa ideologia nefasta e para reduzir a sua importância.

Porquê o título O cerco: Democracia nas redes do neoliberalismo (L’encerclement: la démocratie dans les rets du néolibéralisme)

A palavra rets vem do latim rete e significa literalmente rede. Ela expressa a ideia de uma armadilha, tanto quanto a ideia de rede (aliás, rete deu origem à palavra francesa reseau que significa rede). Além disso, a Internacional Neoliberal criou uma rede extensa, complexa e interligada que lhe permite fazer ouvir a sua voz polimorfa simultaneamente em todas as tribunas imagináveis, a saber: os grupos de reflexão, os think tanks, o sistema de ensino, os meios de comunicação, os partidos políticos, os mercados financeiros, as organizações intergovernamentais (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, Organização Mundial do Comércio, etc.), as empresas transnacionais, os fundos de pensões e vários outros gestores de poupança e de fortunas (as companhias de seguros, os bancos, os fundos mútuos, etc.), fundos comuns de aplicações financeiras, etc. Cada elo desta vasta cadeia encarrega-se de retransmitir a doutrina ou para outro elo ou ainda e mais directamente para o público.

Esta circulação da ideologia neoliberal através de todos os meios de transmissão possíveis confere-lhe uma espécie de “monopólio da aparência” (para usar a feliz expressão de Guy Debord), o que lhe garante a sua perpetuação e facilita a doutrinação das massas.

Mas debitando esse fluxo constante de propaganda, os ideólogos neoliberais servem a causa dos poderosos. Pois, ao denunciar a ineficiência do Estado e os programas sociais, ao elogiar a eficiência e a infalibilidade dos mercados, ao exaltar as virtudes da concorrência, a desigualdade social e o direito à propriedade privada que, segundo as suas pretensões, prevalece sobre todos os outros direitos, os ideólogos neoliberais legitimam as reformas que constituem a base onde assenta o poder dos mais ricos. Estas reformas foram aprovadas em vagas repentinas em todo o mundo desde o início dos anos 80 e ainda continuam, apesar da crise económica mundial que demonstra a falência do sistema neoliberal. No Ocidente, elas levaram os estados a abandonar grande parte da sua economia nacional. Desde a independência dos bancos centrais presididos por funcionários não eleitos que determinam a política monetária até à privatização crescente dos sistemas de saúde pública, educação, transporte, energia e recursos naturais, etc., tudo foi feito para retirar das mãos dos cidadãos o controlo sobre o seu próprio destino económico. Mas nos países em desenvolvimento, a situação é muito pior. Os elos fundamentais do sistema neoliberal, o FMI e o Banco Mundial iniciaram, através das políticas de ajustamento estrutural, pacotes de reformas que devastaram os estados, deixando-os completamente exangues. Impotente, a maior parte da humanidade viu instalar nos seus países um novo tipo de colonialismo, de um género novo, que, fingindo altruísmo, tem um nível de depredação fenomenal. Embora se avancem fortes elogios ao livre-comércio, procede-se à delapidação em boa e devida forma dos recursos naturais de vastos territórios e à subjugação de populações inteiras.

E é assim que o pensamento e a democracia, cercados por todos os lados pela propaganda e pelas reformas, se sentem presos nas malhas, nas redes do neoliberalismo.



publicado por Carlos Loures às 16:00
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Domingo, 14 de Novembro de 2010

A Democracia em que vivemos -? (III) – Teatro do absurdo

Carlos Loures
Decorrendo em Viana do Castelo o I Congresso do Estado do Teatro em Portugal, lembro a peça “O Rinoceronte”, de Eugène Ionesco (1912-1994). Datada de 1959, vi-a em Lisboa em 1960 representada pela companhia do Luís de Lima. É uma peça do criador do chamado “Teatro do Absurdo”, onde diálogos aparentemente sem nexo (como em “A Cantora careca”), configuram o substrato de uma civilização que vai assumindo aspectos totalmente desconexos, absurdos, por assim dizer. Escrita há meio-século , "O Rinoceronte", continua actual.

Numa cidade até então sossegada, um rinoceronte trota ameaçadoramente pelas as ruas. Na cidade, discute-se a natureza do fenómeno – o que é e como apareceu ali o furioso paquiderme? E, à medida que a peça se desenrola, o comportamento das personagens vai-se alterando, o absurdo de um rinoceronte percorrer a cidade vai sendo aceite como normal. As pessoas vão alterando o comportamento e algumas vão transformando-se em rinocerontes. No final do II acto, com todos à sua volta já metamorfoseados, a personagem central grita: -“Eu sou o último homem. Eu não me rendo!” A história de Ionesco referia-se à eclosão do nazismo, ao colaboracionismo que numa França ocupada pelas tropas hitlerianas levava as pessoas, uma a uma, a ir aceitando como normal a anormalidade que se instalava no quotidiano – as denúncias, as torturas, os campos de concentração, os fuzilamentos…

Hoje poderá, com eficácia, representar a rendição dos cidadãos á anormalidade que alastra pelas sociedades ditas democráticas. Como nos rituais de acasalamento de algumas espécies, mantém-se a coreografia, mas perdeu-se o objectivo central da ritualidade. Temos instituições democráticas, mas quem resolve tudo é quem detém o poder económico – que poder decisório resta aos cidadãos a não ser o de periodicamente votar? De votar em quem o poder determina. A experiência está por fazer, mas não tenho dúvida de que, se alguma vez a maioria elegesse quem não obedecesse às regras instituídas, a «normalidade» seria restabelecida através de um golpe militar ou mesmo da intervenção de forças estrangeiras.
Assim, como em “O Rinoceronte” de Ionesco, os cidadãos rendem-se ao absurdo. A anormalidade da corrupção, da marginalidade, da droga, passa a ser normal (Deixou de se falar no flagelo da droga. A droga, um dos pilares da economia mundial, passou a ser coisa normal). A televisão converteu-se num poder que sobreleva o poder político. Manipulada por quem manda, é a principal difusora do pensamento único, da filtragem do «politicamente correcto» que nos impede de tratar alguns bois pelo nome.

As duas últimas décadas foram férteis em modificações: o socialismo real, como alternativa ao capitalismo, esfumou-se; o islamismo emergiu como mais uma ameaça a juntar-se à da guerra nuclear e, finalmente, uma nova crise do capitalismo, transformaram o mundo em que vivemos em algo de impensável, mesmo para os futurologistas de há duas décadas atrás. - Um nosso companheiro discorda da inclusão do terrorismo islamista na lista de ameaças que os habitantes do planeta enfrentam e discorda, sobretudo, que ele seja comparado à guerra nuclear. Ao incluir esse tipo de acção política na parafernália de instrumentos de terror que o capitalismo criou, não faço qualquer juízo de valor sobre as motivações filosóficas, religiosas e políticas que estão por detrás da via terrorista usada por alguns movimentos islâmicos. E, com tudo o que possam conter de reprovável – eu reprovo – são mais uma consequência da violência capitalista (tal como a ameaça nuclear, afinal). a expansão das novas tecnologias – internet, telemóvel, CDs e DVDs, a controversa integração europeia, o fenómeno da globalização, positivo em princípio, mas com muitos efeitos perversos, não esquecendo a falência do não-alinhamento. Por um lado, ao colapsar um dos blocos, a dicotomia OTAN-VARSÓVIA deixou de fazer sentido. Por outro, os pressupostos de Bandung, em Abril de 1955, foram desmentidos pela prática política de alguns países signatários. Como a Indonésia e a Índia, por exemplo, que, fundadores do movimento, violaram repetidamente o seu compromisso neutralista.

Vivemos num mundo diferente, que, exceptuando um ou outro avanço e melhoria (por exemplo, no que se refere à condição feminina, deram-se passos importantes no sentido de acertar a realidade pela legislação), podemos considerar pior, mais degradado, sobretudo em termos éticos. Pode dizer-se que vivemos numa versão empobrecida da democracia onde monstros do passado, tal como a miséria e a repressão, sobrevivem. Como disse Saramago, «não progredimos, retrocedemos». E completou: «E cada vez se irá tornando mais absurdo falar de democracia se teimarmos no equívoco de a identificar unicamente com as suas expressões quantitativas e mecânicas que se chamam partidos, parlamentos e governos, sem atender ao seu conteúdo real e à utilização distorcida e abusiva que na maioria dos casos se vem fazendo do voto que os justificou e colocou no lugar que ocupam.» - (José Saramago, O Caderno, Lisboa, Março de 2009).

E, neste particular da repressão, nem sequer estou a falar de Guantánamo e das torturas infligidas aos alegados terroristas islâmicos, onde a criatividade norte-americana mais não fez do que ressuscitar velhos métodos da Inquisição. Por exemplo, a touca que se aplicava a judeus e a judaizantes, aparece ali com o nome de waterboarding. O que, ao assumir uma designação que nos leva a pensar num qualquer desporto radical, branqueia, de certo modo, a monstruosidade do procedimento. A touca consistia em enfiar na boca do preso, até à traqueia, um lenço de mulher, despejando depois água, empapando o pano e produzindo uma sensação de afogamento. Muitos dos pacientes não resistiam. Ossos do ofício! Mas, como se vê, da touca ao waterboarding, com quinhentos anos de permeio e todas as inerentes aquisições científicas, tecnológicas, filosóficas, o progresso não foi grande.

Numa sociedade em que a Liberdade vai sendo devorada pelas «liberdades» (trocar a liberdade em liberdades é a moeda corrente do libertino», disse Mário Cesariny de Vasconcelos em Autoridade e Liberdade São Uma e a Mesma Coisa), a repressão é exercida pela permanente ameaça da marginalidade. O lado negro, ou seja, os monstros criados pela sociedade capitalista, pela exclusão social, pela xenofobia, pela intolerância religiosa, aí estão sob a forma de carjacking, na versão moderada, e de assassínio em massa, passando por assaltos, limpezas étnicas, sequestros, violações… Terroristas, islâmicos ou não, marginais vindos dos subterrâneos que subjazem sob as resplandecentes catedrais do consumo, tarados de todas as espécies, incluindo violadores e pedófilos, aí temos ao dispor um vasto e aterrador bestiário. Fugindo destes monstros criados pela sociedade capitalista, vamos refugiar-nos onde? Obviamente, nos braços salvadores do capitalismo.

É com um cenário dantesco como fundo, que os parlamentos dos chamados «regimes democráticos» continuam a proceder como se tudo decorresse normalmente, um pouco como os dois jogadores de xadrez de que nos fala Fernando Pessoa, pela voz de Ricardo Reis, que continuavam a jogar «o seu jogo contínuo» enquanto a cidade ardia, as crianças eram assassinadas, as mulheres violadas... O sistema parlamentar é anacrónico e disfuncional, tal como o são os sindicatos e os partidos. Na era da informática, continuamos a usar instrumentos políticos que nos vêm da Revolução Francesa e do tempo da máquina a vapor.

E neste labirinto de anacronismos e de aberrações, onde fica a Democracia? Percorrendo este dédalo criado pelos cérebros doentes que nos dirigem desde há muito tempo, será a Democracia que nos espera? Não creio que os nossos filhos, os nossos netos estejam a caminhar para a Democracia. Levados nas asas do consumismo, o caminho que percorrem, com a ilusão de quem está a desbravar uma selva virgem, irão dar não ao prado resplandecente do Eden, mas sim ao velho sótão onde se arrumam todos os detritos que a História tem vindo a acumular.

Não estou a falar de aprofundar o estudo da democracia que temos e que se perde na espiral descendente de corrupção, clientelas, contas em offshores, em exibições mediáticas, em tudo o que constitui o circo a que diariamente assistimos. Esta «democracia» não justifica o esforço de ser aprofundada. Falo de reinventar uma Democracia com que sonhamos há séculos, mas que não temos. Porque a democracia tem de ser permanentemente reinventada. Enquanto não somos deuses, voltando a usar a expressão de Jean-Jacques Rousseau, teremos de percorrer, com a imaginação e a audácia de quem necessita de inventar o futuro, o caminho até uma Democracia luminosa, autêntica e que esteja, de facto, ao nosso alcance.
publicado por Carlos Loures às 12:00
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Sábado, 13 de Novembro de 2010

A Democracia em que vivemos – o triunfo dos porcos (II)

Carlos Loures




«Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Um governo tão aperfeiçoado não convém aos humanos», disse Jean-Jacques Rousseau. Na realidade, a democracia directa, quando da sua primeira formulação  e enquanto participação de todos os cidadãos nas tarefas do Governo, só era concebível dentro das exíguas dimensões geográficas das cidades gregas onde o estatuto de cidadão era atribuído com parcimónia. Ao querer transpor para espaços maiores e com uma abrangência conceptual mais ampla, os senados, os parlamentos, foram a maneira que se encontrou para ultrapassar a impossibilidade de «estar o povo a reunir-se constantemente para tratar da coisa pública». Simbolicamente, o povo reunia-se todo, delegando em representantes a defesa dos seus interesses e pontos de vista.

Porém, também a respeito da solução do parlamentarismo (e referindo-se à experiência inglesa), Jean-Jacques Rousseau se pronunciou cepticamente: «O povo inglês, crê-se livre e bem se engana; só o é enquanto dura a eleição dos membros do Parlamento; assim que estes são eleitos, é um escravo, não é coisa alguma» (…) «A ideia dos representantes é moderna; vem-nos do governo feudal» (…) «Nas antigas repúblicas, nunca o povo teve representantes; era uma palavra desconhecida» (…)» Logo que um povo se atribui representantes, deixa de ser livre; mais, deixa de ser.»

Estas considerações de Rousseau sobre o parlamentarismo permanecem completamente actuais. Nas democracias que temos,  terminado o período eleitoral em que todas as promessas se fazem, em que se bate às portas, se apertam mãos e distribuem sorrisos, o deputado esquece-se que teoricamente só é Poder através do mandato dos seus eleitores, passando a ser um dócil peão que o secretário-geral do seu partido movimenta no tabuleiro político conforme melhor entende. E, no entanto, sente-se investido de uma indiscutível autoridade.

Um exemplo: Tito de Morais, no seu discurso do 25 de Abril de 84, afirmava que se a engenharia é matéria de engenheiros, a saúde da competência dos médicos e a Igreja da responsabilidade dos sacerdotes, a política, por sua parte, é assunto de que só os políticos se devem ocupar.» É uma enormidade, pois nega a essência da própria democracia, mas Tito de Morais apenas verbalizou o conceito que os políticos tinham (e continuam a ter) de representatividade. Esquecem-se de que, numa dimensão moral, logo que o partido que representam deixa de cumprir uma promessa eleitoral ou um pressuposto programático, o contrato com os seus eleitores prescreveu, que, numa perspectiva ética, deixaram de representar esses eleitores e o seu mandato deixou de ter sentido. Mas quem pensa, hoje em dia, em coisas tão incómodas e despropositadas como misturar política com ética e com moral?

Máximo Gorki disse que o importante é que o homem se vá afastando do animal. Talvez que, num futuro certamente distante, mercê da engenharia genética ou do que em seguida vier nessa área, os seres humanos se demarquem e distanciem da cadeia evolucionária animal e constituam, de certo modo, o povo de deuses que Rousseau considerava como único destinatário de uma verdadeira democracia. O saber e a informação generalizados podem ajudar a essa mutação. Mas enquanto não somos deuses, estaremos condenados a escolher entre totalitarismos assumidos e democracias onde os partidos e a classe política substituem com eficaz hipocrisia a despótica, inflexível e omnipresente autoridade do Grande Irmão?

Todos viram em 1984, a genial ficção de George Orwell uma clara alusão aos perigos de uma ditadura estalinista se estender a todo o Mundo. O XX Congresso do PCUS começou a diluir esta ameaça e em 1989, com a queda do muro de Berlim, o «socialismo real» entrava em colapso total. Orwell, que era indubitavelmente um democrata, não podia prever que um pesadelo do Big Brother a uma escala planetária nos podia também chegar através daquilo a que no pós-guerra se chamava o «mundo livre». Que a globalização da repressão nos podia vir daí. Que a opressão nos podia chegar por via democrática.

Num outro livro anterior (1945), Animal Farm, Orwell explicara já como se traem revoluções, como se subvertem ideais em nome desses mesmos ideais. Todos viram, como disse, nas ficções orwellianas críticas ao estalinismo; creio que não as podemos interpretar de forma tão estrita – o espírito democrático veiculado pelo neo-liberalismo é, em si, uma traição à democracia. Transforma a liberdade numa alavanca para manter todas as iniquidades que tornaram necessária a implantação da democracia. A «democracia», na versão neo-liberal, concedendo todas a liberdades, começou paulatinamente a destruir a Liberdade.

Os governos democratas, ligados a interesses económicos e por eles patrocinados, começam a configurar inamovíveis estruturas oligárquicas. O axioma de Henry Ford ganha força – podemos escolher os governantes que quisermos desde que escolhamos gente corrupta ou que convive com a corrupção, vendo-a, os que não são corruptos activos, como um mal necessário. Se defendemos castigos exemplares para criminosos, aqui del rei, as toneladas de peso do politicamente correcto e do pensamento único caem-nos em cima.

Pode servir de ilustração ao que digo o exemplo deSaint-Just, um jovem membro da Convenção de 1792, que no meio do turbilhão revolucionário, votou pela execução de Luís XVI e foi eleito membro do Comité de Salvação Pública em 1793.

No meio daqueles senhores, odiado pelos girondinos e hostilizado pelo seu próprio partido, o dos montanheses – manteve sempre a sua intransigência – a sua utopia era a criar uma democracia de artífices, camponeses, pequenos proprietários, de gente fiel ao espírito da República.

Para ele a Liberdade não era cada um fazer o que lhe apetecesse. A Liberdade era a maior das tiranias, aquela que não permitia licenciosidades. Chamaram-lhe o "arcanjo do Terror". Em Julho de 1794 foi guilhotinado. A defesa intransigente dos princípios não compensa.

A tão celebrada «mudança de mentalidades» tantas vezes evocada por quem quer manter nas mãos de minorias as rédeas do poder, é uma falácia. Claro que as mentalidades mudam e se adaptam à realidade – mas é isso um bem? Nem sempre. Importante era mudar a natureza humana e evitar que, sob ditaduras ou sob democracias plenas o desfecho seja sempre igual – o triunfo dos porcos.
publicado por Carlos Loures às 12:00
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Sexta-feira, 12 de Novembro de 2010

A Democracia em que vivemos - um novo fascismo? (I)

Carlos Loures


Reli recentemente uma nova edição portuguesa de O Contrato Social (Du contrat social ou essai sur la forme de la République), a obra de Jean-Jacques Rousseau, agora com uma interessante introdução de João Lopes Alves. Esta edição não se refere à versão definitiva do texto, publicada em Amesterdão, em 1762, mas sim a uma primeira abordagem do tema, que não é a que melhor conhecemos, por ser a mais divulgada. .Aliás, a edição de Amesterdão tinha um subtítulo diferente – Du contrat social, ou Principes du droit politique. A leitura desta edição conduziu-me à releitura da de Amesterdão que, por sua vez, me levou a uma reflexão sobre a natureza da nossa democracia. O que ressalta da minha leitura de Rousseau são as reservas que ele tinha para com um regime que iria, sobretudo a partir de 1789, nos dois séculos seguintes constituir a principal esperança dos oprimidos.
Talvez pareça um exagero comparar a democracia que temos ao fascismo que tivemos. De certo modo, é-o. É, sobretudo, uma maneira provocatória de exprimir o sentimento de revolta que me assalta ao ver que este sistema democrático, teoricamente emanado da vontade popular, expresso no voto livre dos cidadãos, nos proporciona uma sociedade tão tacanha e uma classe política tão ou mais corrupta do que a do antigo regime salazarista. É um exagero assumido, com o qual procuro chamar a atenção para aquilo que na prática se manteve inalterável – a injustiça social, as grandes assimetrias culturais (embora a iliteracia – quase um eufemismo para analfabetismo - seja agora protegida por diplomas). O poder, o verdadeiro poder, está nas mãos dos grandes grupos económicos, tal como durante o período da ditadura. Mas agora esta situação é sancionada pelo voto livre dos cidadãos ao elegerem os seus representantes no Parlamento e o chefe de Estado. Quanto a mim, é uma diferença pouco mais do que formal.

Há liberdade uma total de expressão, mas a televisão e o marketing político das grandes máquinas partidárias do chamado «bloco central» se encarregam, através de insidiosos opinion makers, de unificar o pensamento. E sem o aparato repressivo dos Goebbels e dos António Ferro, com a disseminação do «politicamente correcto» aí temos o pensamento único, um instrumento fundamental do neo-liberalismo. Porque o pensamento único , apresentado como pedra angular do sistema, impõe como verdade absoluta e indiscutível o primado do económico sobre o sociopolítico. Já vi jovens economistas rindo-se de argumentos de natureza moral e política. O politicamente correcto, que abriu caminho ao pensamento único, impõe uma total independência da economia. A economia tem de ser apolítica, dizem com o ar de quem diz o que é óbvio. Outros pilares do sistema – o realismo (as coisas são como são) e o pragmatismo (para se solucionar um problema de natureza económica, a ideologia política tem de ser erradicada).

Os princípios da nossa democracia, mercê do realismo, do pragmatismo e da perspectiva do pensamento único, obedece já não a princípios – obedece às lei e aos interesses do mercado. A verdade é que esta tese do carácter apolítico que as medidas económicas devem ter é aceite por muita gente que se considera de esquerda. «Porque» (já ouvi este argumento) «se a minha vida depende do êxito de uma cirurgia, interessa-me a perícia do cirurgião, não o seu credo político». Naturalmente que esta apoliticidade das medidas económicas são expressão de um credo político – o neoliberalismo.

.Nós, os cidadãos eleitores, aceitamos princípios inaceitáveis e aceitamos anormalidades como coisas normais – as liberdades impedindo a Liberdade de florescer. Pode dizer-se tudo, fazer-se tudo. Um exemplo recente pedófilos, em seguida ao julgamento em que foram considerados culpados e condenados, vieram às televisões dar uma conferência de imprensa. Dirão – é a Liberdade. Pois é – uma liberdade que põe em pé de igualdade criminosos e cidadãos eméritos. O sistema dá liberdade ao povo de escolher porque tem mecanismos que controlam o eleitorado, que induzem o voto. Como alguém que deixa à solta um cão potencialmente perigoso, mas amestrado e, portanto, inofensivo.

Então a democracia foi aviltada, pervertida?

Poderá dizer-se que a democracia começou mal, que já no seu berço da Antiga Grécia continha os estigmas que iria transportar ao longo de dois milénios e meio e que iriam chegar quase intactos até aos nossos dias. Com efeito, a democracia ateniense não abrangia nem os escravos nem as mulheres, não impondo também uma divisão equitativa da riqueza entre os cidadãos. No rescaldo da grande fogueira de 1789, a escravatura foi sendo abolida na maioria dos países europeus, embora quase nunca em obediência a um límpido sentimento de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

As mulheres, ainda que, sobretudo nas últimas décadas, tenham avançado muito na sua luta de libertação, continuam, mesmo quando a letra da lei lhes confere todas os direitos e garantias outorgados aos cidadãos em geral, a ser consideradas cidadãs de segunda. Sobre a divisão da riqueza no ocidental paraíso das democracias parlamentares, é melhor nem falarmos. Democracia – autoridade do povo; de que povo? Nunca, em parte alguma, a não ser no território imaginário das utopias, se ouviu falar de democracia integral – sempre os governos supostamente democráticos se deixaram manchar por desigualdades sociais ou de género, por segregações étnicas, por marginalizações inomináveis. Quando mesmo, não serviram de capa ou ornamento a terríveis tiranias. Será que a verdadeira democracia é inatingível?

Voltemos a Jean-Jacques Rousseau. Será que ele tinha razão quando disse: «Se formos a considerar o termo na acepção mais rigorosa, nunca houve verdadeira democracia, nem nunca existirá.» (…) «Seria inconcebível estar o povo a reunir constantemente para tratar da coisa pública». (…) «Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Um governo tão aperfeiçoado não convém aos humanos».

Um povo de deuses? A democracia só poderá ser atingida por um povo de deuses?



(Continua)
publicado por Carlos Loures às 12:00
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Segunda-feira, 16 de Agosto de 2010

O Romantismo social português: 3 – Herculano

Sílvio Castro



Alexandre Herculano é a primeira grande figura literária inteiramente formada e integrada no Movimento romântico. O seu romantismo é total, pois envolve o autor em todas as suas manifestações e criações. Em Herculano, desde a mocidade, a expressão romântica tem a capacidade de traduzir tanto a mais recôndita, ainda que sempre muito ponderada, subjetividade lírica, quanto a mais ousada participação pública.

Filho dos tempos de grandes turbamentos porque passa a vida nacional, a estes dedica a mais profunda participação cívica e neles se incorpora para uma sempre atenta defesa das liberdades individuais e públicas.

Envolvido desde a mocidade nas lutas sociais de seu país, cedo realiza a experiência de um exílio que se faz mais difícil pelas limitadas condições materiais vindas das origens do muito moço Herculano. Inicialmente refugia-se na Inglaterra, mas ali não encontra o melhor correspondente aos seus sonhos de crescimento geral. Na França, logo em seguida procurada, ao contrário encontrará o refúgio positivamente desejado. Em contacto com a cultura francesa em plena efervecência romântica, Herculano saberá edificar a sua própria estrutura.

De retorno a Portugal, retoma as atividades políticas com o mesmo entusiasmo que o conduzira ao exílio. Será o rápido período no que a moderna personalidade liberal de Herculano se confrontará com as maiores dificuldades da ação política submetida a um tempo de perseverante instabilidade pública. Diante da forte personalidade polêmica do autor da História de Portugal mais profundamente integrada na melhor dimensão do pensamento liberal, o conflito com a política da instabilidade se radicaliza. Em seguida, o polemista democrático presente sempre nas atividades jornalísticas de Herculano arrefece em favor da vida privada rica de uma grande produção literária. Então, às primeiras experiências líricas já tradutoras de um poeta de alta dimensão criadora, sucede a fase maior da personalidade literária do poeta de A Harpa dos Crentes, a do romancista.

Os romances históricos de Alexandre Herculano são os maiores depositários da sua capacidade de levar o romantismo a uma participação social de rara modernidade. Neles se eleva constantemente aquela personalidade que servirá de modelo à intelectualidade portuguesa, com derivações também para aquela brasileira.

Ao lado do romancista, o historiador Alexandre Herculano exprime então um Liberalismo que, partindo de uma aparente predominante posição conservadora, atinge pontos revolucionários capazes de iluminar as mais ousadas perspectivas ideológicas, atingindo mesmo aquelas do nascente espírito socialista português. Desde então, o criador do Eurico praticamente se faz mentor do espírito progressista nacional, envolvendo personalidades como Antero de Quental, Teófilo Braga e outras. Exemplo da importância do renovador do romance histórico de origem escottiana entre os intelectuais de seu tempo, mostra-se a troca de correspondência entre Oliveira Martins e Bulhão Pato nos dias precedentes à morte de Herculano. No dia 11 de Setembro de 1877, Oliveira Martins escreve ao seu confrade: “Chego ao Porto e vejo as notícias desoladoras da saúde do nosso Mestre. Estive para partir para Santarem, mas reflectindo, pensei que nenhum bem iria ahi fazer, e só porventura dar encommodo, em ocasião tão afflitiva. Tu que sabes quanto eu venero e estimo o nosso Homem podes imaginar a anciedade em que estou.” Bulhão Pato anuncia a Oliveira Martins a morte de Herculano: “Morreu o nosso querido Mestre. Deixe-o hontem às 5 da tarde, quando começou o delírio. Não pude mais! Nem agora posso. Estou aniquilado, conheces-me e sabes que te digo de verdade. Perdeste um grande amigo, posso affirmal-o. Era mais de que um talento, era um justo.“
publicado por Carlos Loures às 16:30
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Terça-feira, 3 de Agosto de 2010

República nos livros de ontem nos livros de hoje - 95 e 96 (José Brandão)


Liberalismo, Socialismo, Republicanismo

(antologia de pensamento político português)


Joel Serrão

Livros Horizonte, 1979

Duas hipóteses se nos apresentavam quanto ao modo de fazer esta antologia: o respeito exclusivo pela seriação cronológica dos autores seleccionados e dos respectivos escritos, ou a tentativa de explicitar os núcleos fundamentais e sucessivos da temática e problemática políticas portuguesas no período a que este volume respeita: da instauração do liberalismo (1820) à crise do republicanismo (cerca de 1920).

Preferimos a última hipótese, que se nos afigurou mais apta a revelar o devir do pensamento cujos momentos mais significativos buscámos caracterizar e sumariar.

Para uma complementar e mais exacta situação temporal, todos os autores seleccionados são referidos pela ordem cronológica do nascimento nas notas bibliográficas que lhes são consagradas, no fim do volume.


______________________


A Lição da Democracia

(Oitenta e Oito Anos de República em Portugal)

Caetano Beirão

Lisboa, 1922


Oitenta e oito anos de republica em Portugal?! – Poderá parecer ousada esta afirmação, mas não o é, se atendermos ao que se pretende designar pela palavra «republica».

Deixemos o seu significado etimológico; tomemo-la no seu sentido moderno, isto é, no de «regime político que se contrapõem a monarquia». Se monarquia é a organização do Estado em que governa «um só», em que há um poder supremo que concentra o poder politico, exercido por um órgão a que vulgarmente se chama «a realeza», em contraposição, república é o regime em que não existe esse poder supremo e em que, consequentemente, o poder político não está centralizado num órgão forte que exerça essa função.

Se atentarmos na realidade dos factos, vemos que esta definição é perfeitamente verdadeira.

Nas repúblicas o poder político é exercido pelo parlamento…
publicado por Carlos Loures às 19:00
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Quarta-feira, 2 de Junho de 2010

O Discurso

António Sales



Há gente intensamente faladora, de tudo e de nada formam assunto de conversa e assim sustentam o tempo com eles e com os outros. Fui a antítese do palavreado de algibeira sobretudo porque a minha natureza era mais de ouvir que falar. Quero dizer, desde novo apresentei um sujeito sisudo o que nem sempre facilitava em termos de simpatia.

Quando coloco esta situação distancio-me do significado intelectual das conversas. Não é preciso falarmos de filosofia, política, economia, ambiente ou saúde para produzirmos uma conversa interessante. Também o futebol, automóveis, gajas, gajos, vestidos, sapatos e namoros são temas para aliviar o pesadelo dos dias. Contudo, é bom não esquecer que um grupo não exclui o outro porque ambos são necessários para a higiene da mente.

As coisas têm, todavia, piorado. No primeiro grupo os temas tornaram-se repetitivos e de uma confrangedora incapacidade de renovação e comunicação com as pessoas. Perdidos os ideais que vinham do século passado parece que ficámos à toa numa espécie de vazio temático de uma nova filosofia política para o futuro capaz de agregar uma parte do pensamento colectivo para o século XXI. Deste modo, o segundo grupo tornou-se elemento “intelectual” por excelência, cativando as massas, nivelando a mediocridade do pensamento, liberalizando a asneira, recorrendo à frivolidade mesquinha mas tão querida que substituí a critica racional pela fofoca pessoal.

Este estado “conspirativo” da matéria não é apenas português. Com a globalização foi se espalhando pelo mundo como o HIV, mas sem tratamento nem vacinas, passando a um estado de pandemia que vai estendendo os seus tentáculos sobre os diversos povos, amolecendo, com o bem-estar, o sistema imunitário dos aborígenes.

Dado o nosso convívio de séculos com a desgraça e a ignorância, não desejamos outra coisa se não sermos dirigidos por cérebros cujo grande desígnio nacional será conseguir um trivial nível de vida de modo a garantir uma reforma suficiente para podermos, na velhice, jogar às cartas no jardim da terra.

À medida que o tempo se consome sinto-me com menos pachorra para prestar atenção a dislates normalmente folclóricos e aflitivamente banais. Não avaidade que toma conta da minha consciência mas a fadiga de ouvir repetidamente o mesmo palavreado discursivo que afirma o que não executa e executa o que não afirma. Estou farto, sobretudo, da conversa política em que o tritão canta a ópera e as sereias fazem coro para atrair os peixinhos. A ópera é sempre a mesma e eu encontro-me exaurido para conversas de barbeiros e cabeleireiras.

Prefiro olhar o que me rodeia com um palito entre os dentes. Observar os outros neste imenso palco onde nos cruzamos a interpretar papéis geralmente obscenos. Quieto, percebo melhor os caprichos do tempo que vai substituindo ideais pelo novo egoísmo neo-liberal. A idade vai-me roubando o futuro mas a falta de um forte sentimento colectivo para esta Nação também ajuda pelo que das duas não sei qual a mais dolorosa.
publicado por Carlos Loures às 11:00
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Segunda-feira, 31 de Maio de 2010

Social-Democracia . O que há de melhor?

Luís Moreira

O liberalismo que se afunda em desigualdades e que defende a "lei da selva" a lei do mais forte? Cada um por si? Ou o socialismo, aprisionado em Estados omnipresentes e omnipotentes, criadores de elites que se perpetuam no aparelho de Estado e que não consegue responder às justificadas ambições de melhor níveis de vida das populaçõs?

A social democracia não representa o futuro ideal se calhar nem o passado ideal mas não conhecemos nada que se lhe aproxime.O consenso social do após guerra representa o maior avanço social a que o mundo já assistiu, pela mão da democracia cristã, pelo conservadorismo britânico e alemão e a social democracia nórdica.Nunca a história assistiu a tamanho progresso, nunca tantos experimentaram tantas oportunidades de vida.

Mas o perigo espreita, com a admiração acrítica do mercado livre, o desdém pelo sector público a ilusão pelo crescimento eterno. Até aos anos 70 todas as sociedades europeias se tornaram menos desiguais, graças aos impostos progressivos, aos subsídios dos governos aos mais pobres os extremos de pobreza foram-se apagando.Nos últimos 30 anos deitamos tudo isso fora.

Adam Smith volta a ser citado: " nenhuma sociedade será verdadeiramente florescente e feliz se uma grande parte dos seus cidadãos for pobre e miserável" Sem segurança, sem confiança, as sociedades ocidentais ameaçam ruir. A insegurança alimenta o medo.E o medo -da mudança,medo do declínio, medo do desconhecido- corrói a confiança e a indepedência nas quais assentam as sociedades civis do Ocidente.

Essa rede de segurança social contra a insegurança foi uma das maioras conquistas do sistema, restaurando o orgulho dos perdedores do sistema, trazendo-os para dentro dele e não virando-lhe as costas.Então o que falhou? A esquerda moderada continua a criticar, nostálgica das revoltas dos anos 60, sem apresentar qualquer alternativa consistente, abrindo brechas por onde entraram o individualismo feroz,a proletarização e fragmentação do colarinho branco. As maiores críticas à social democracia, que teve como maior vitória a igualdade, a liberdade e uma maior prosperidade,são comprovadamente falsas, como se verifica pela capacidade revelada em sustentar economicamente todo o sistema.
PS: com Tony Judt - o regresso ao estado providência.
publicado por Luis Moreira às 11:00
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Domingo, 16 de Maio de 2010

Manuel Fernandes Laranjeira



António Sales

O homem só chega à verdade pelo caminho da dúvida, escreveu Manuel Laranjeira no artigo “Mocidade Idealista”. Eis como é diferente a filosofia deste pensador do início do século XX de políticos portugueses do início do século XXI. O neo-liberalismo económico e globalização parecem guardar em si todas as virtudes como se tudo já tivesse sido pensado, dito e experimentado. Essa infalibilidade não tem sido uma característica dos portugueses que viveram (e vivem) na dúvida das suas capacidades e qualidades. Salvo casos de afirmativa personalidade de quem “raramente se engana e nunca [tem] dúvidas” ou, como Salazar afirmou num discurso de posse na Sala do Risco, “Sei muito bem o que quero e para onde vou”, o português é dotado de constantes interrogações sobre a sua energia e firmeza em desafiar o futuro.

Foi este o caso do escritor Manuel Fernandes Laranjeira, idealista marcado pelos choques com a realidade, sobretudo com a realidade triste de Portugal, característica dessa época (mas alguma vez a realidade portuguesa deixou de ser triste?). Indivíduo carregado de dúvidas sobre as quais reflectiu com lucidez e inteligência em muitos dos seus escritos, porque o idealismo não o impediu de ser um ensaísta dotado de lógica analítica. Todavia, sobre muitas dessas dúvidas não chegou à verdade, nem podia já que um século depois ainda persistem. E das verdades a que chegou foram bastantes as cruéis que espalharam a viscosa baba do desencanto.

Manuel Laranjeira é um dos escritores que melhor representa o pessimismo lusitano do início do século XX, cuja correspondência com os amigos é bem mais estimulante de ler do que o Diário Intimo. Por aqui vagueia o tédio epicurista, o seu permanente descontentamento face à vida traduzido na indolência nata de um sentimento próximo da tragédia. Ao “Diário” não escapa, como a Pessoa não escapou muitos anos mais tarde, a sensaboria medíocre do seu romance com Augusta que terá contribuído para o seu estado depressivo até porque com as mulheres tinha tendência para o chinelo.

D. Miguel Unamuno, amigo de Laranjeira e por aquele admirado, encontrou nele um representante do que chamou a “alma trágica” de Portugal representada pelo suicídio de alguns dos nossos intelectuais. Aos 27 anos, já depois de terminado o seu curso de medicina, o autor de “Dor Surda” fala da “angústia suicidária”. Essa angústia não o impede de desenvolver uma dramaturgia social (“Amanhã” e “Às Feras”), todavia dolorosa, e o ensaio em termos de uma lógica analítica capaz de colocar de lado aspectos sentimentais. Vive uma sucessão de amores frustrados e a amargura da solidão profunda e perversa é também potenciada pela componente física de um acumular de doenças fatais, como a sífilis medular e a tuberculose de que morre uma irmã e um irmão. Os acontecimentos da sua vida encaminham a sua personalidade literária e de pensador para um decadentismo romântico que viria a contribuir para a tragédia suicida muitas vezes sugerida na sua correspondência aos amigos. Não foi exclusivamente a angústia da sua indiscutível personalidade psicótica a culpada mas também o desencanto e a dor espiritual e física. Sofreu por si e por quanto ia assistindo à sua volta. A sua alma sensível habitava um corpo solitário minado pelo tédio e pela descrença de um homem que “sente um desânimo infinito”.
No Outono de 1911 agrava-se o estado de saúde do escritor acentuando todo o conjunto de dúvidas verdadeiras e verdades duvidosas que acabam por levá-lo ao suicídio, dando um tiro na cabeça aos 33 anos, nas areias da praia de Espinho, no dia 22 de Fevereiro de 1912. Nascera a 17 de Agosto de 1877 no lugar de Vergada, freguesia de S. Martinho de Moselos, Vila da Feira.


Consulta: “Obras de Manuel de Oliveira” – I e II volumes – Edições Asa (Porto) – Abril 1993
publicado por Carlos Loures às 10:00
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