Durante muitos anos, nos meus tempos de ganapo e mais tarde de adolescente, a noite de 5 de Janeiro era uma perfeita e completa chatice.
Meu pai, não dispensava ao jantar, o bacalhau e as batatas e as couves e o polvo cozidos, e o vinho tinto (que eu não podia beber por causa da idade, só a água me era permitida) e o pão e os doces (que eu detestava) e mais nada! Em tudo igualzinho aos jantares do dia 24 e do dia 31 de Dezembro. Chamava-lhes a consoada de Natal, de Fim de Ano e de Reis. O problema era que tal como a consoada do dia 31, esta não tinha as prendas do Menino Jesus no sapatinho, e para além disso e também ao contrário desta e da do dia 24, não era feriado no dia seguinte.
Era, como disse, uma chatice (termo que na altura se não podia dizer, que era feio, usando-se ao invés a palavra aborrecimento, muito mais suave e que a meu ver não traduzia devidamente a real chatice que tudo aquilo era). “Se ainda nós fossemos espanhóis que eles ao menos tinham as prendas nos Reis e as nossas já há muito estavam estragadas ou nós cansados de brincar com elas uma vez que nessa época era só uma prendita para cada um”, ouvi-me eu a dizer uma ou outra vez sem saber o que dizia, que isto na altura era tudo muito complicado com a peseta a valer metade do valor escudo, e os maus ventos que se dizia que de lá vinham, e os maus casamentos e tudo.
Este é o menino que representa todos os meninos. Este é o menino que devia iluminar o presépio e a árvore de Natal.
Em cada cinco segundos um dos meus meninos Jesus morre de fome devorado pelos abutres que da fome alheia se alimentam. Quem os poderá ignorar?
Poema de Eugénio Andrade
Passamos pelas coisas sem as ver, gastos, como animais envelhecidos. se alguém chama por nós não respondemos, se alguém nos pede amor não estremecemos, como frutos de sombra sem sabor, vamos caindo ao chão apodrecidos.
Natal de quê? De quem? Daqueles que o não têm? Dos que não são cristãos? Ou de quem traz às costas as cinzas de milhões? Natal de paz agora nesta terra de sangue? Natal de liberdade num mundo de oprimidos? Natal de uma justiça roubada sempre a todos? Natal de ser-se igual em ser-se concebido, em de um ventre nascer-se, em por de amor sofrer-se, em de morte morrer-se, e de ser-se esquecido? Natal de caridade, quando a fome ainda mata? Natal de qual esperança num mundo todo bombas? Natal de honesta fé, com gente que é traição, vil ódio, mesquinhez, e até Natal de amor? Natal de quê? De quem? Daqueles que o não têm, ou dos que olhando ao longe sonham de humana vida um mundo que não há? Ou dos que se torturam e torturados são na crença de que os homens devem estender-se a mão?
O nosso Natal foi ficarmos a gente os dois aqui em casa com um pinheiro a piscar lâmpadas a noite inteira. O pinheiro deitámo-lo fora no dia seguinte.
(primeiro encostado à porta juntamente com o lixo e depois entornado no contentor da rua onde encontra, entre garrafas vazias e papéis de embrulho, outros colegas pinheiros, como ele sem estrelas nem bolinhas prateadas)
mas as lâmpadas, unidas por um fio eléctrico, guardamo-las numa caixa de cartão, outrora caixa de sapatos, que por sua vez se arruma na prateleira mais alta da despensa onde moram as coisas de que precisamos menos (um calorífero avariado, a canadiana de quando torci o pé, o retrato do meu sogro, os remédios fora do prazo) e onde permanecem, sem piscar nada, até ao próximo Natal. Para as desencantar a minha mulher traz o escadote da marquise (que eu fico a segurar devido às suas tendências traiçoeiras manifestadas por intermédio de desequilíbrios e oscilações) sobe a medo os três degraus metálicos prevenindo - Vê-me lá isso
remexe o calorífero, a canadiana, o retrato e os medicamentos
(não sei como, as lâmpadas emigram sempre lá para o fundo onde moram baratas, pantufas velhas e pó)
alcança a caixa após manobras intermináveis acompanhadas dum vocabulário de chofer de táxi, a quem abalroaram pela esquerda, e cuja energia e variedade me surpreende sempre numa pessoa naturalmente mansa e calada, tenta entregar-me o Natal exigindo que o receba sem largar o escadote, o que é difícil, arredonda mais frases de chofer de táxi, à procura, a descer os degraus, tacteando-os um a um. De costas para mim com as Boas-festas nos braços, despenteada e exausta, observa o escadote num palavrão derradeiro, jura que para o ano retirará as decorações da gaveta dos talheres que não exige alpinismos, eu transporto o escadote para a marquise a tropeçar na mobília e arrancando a pinturas dos móveis, e como já colocámos o novo pinheiro no vaso
(não o deixando suspeitar do destino de lixo que o espera)
basta-nos desenrolar a grinalda de ampolas de cores diferentes em torno dos ramos, pendurar as bolas prateadas, colocar a estrela no topo e ligar a ficha à tomada de corrente para que o Natal desate a piscar a sua alegria pulsatória. Em regra assim que aplico os dois cilindrozitos metálicos na tomada uma das ampolas explode, os fusíveis rebentam e andamos por ali às escuras a esbarrarmos um no outro
(eu e o chofer de táxi a quem as trevas enriqueceram a capacidade de expressão) em busca do contador da luz. Encontrado o contador à custa de fósforos que nos queimam os dedos e esburacam a alcatifa
(o chofer de táxi exalta-se sempre quando nota a alcatifa esburacada)
accionando o interruptor, observamos as lâmpadas uma a uma, atarraxamos os casquilhos que nos parecem soltos, pegamos na ficha a medo, afastamos o sofá (nessas alturas o sofá, quase sempre leve, decide pesar arrobas) para utilizar a tomada, aparentemente mais benigna, na parede por trás dele, olhamo-nos a ganhar coragem, introduzimos os cilindrozitos metálicos nos buracos e o prédio inteiro desaparece com um estrondo. O piquete camarário, que um vizinho que principia a odiar-nos convocou, fala de sobrecarga no sistema, o que me parece uma denominação um bocado forte quando aplicada a qualquer coisa que se pode arrumar numa caixa de sapatos, e sugere-nos, através dum funcionário de boina conhecedor dos mistérios das resistências e dos ampères, que se queremos ter “um Natalzinho em condições” o melhor é desligar todas as máquinas usar círios românticos para o jantar em lugar do lustre, e embrulharmo-nos em cobertores para diminuir as probabilidades de uma pneumonia que ele apelida, com convicção, “das tesas”. De forma que colamos duas ou três velas a dois ou três pires, com pingos de estearina que preferem cair fora dos pires e raspados à faca nos estragam as cómodas, semeamos pela sala aquelas chamazinhas fúnebres (aos buracos na alcatifa acrescentam-se agora manchas negras no tecto) a minha mulher traz o xaile, eu visto o sobretudo, jantamos bacalhau e trocamos prendas com a árvore a aparecer e a desaparecer ao ritmo da grinalda e nós a aparecermos com ela, como um par de fantasmas ora azuis outra nada, ora verdes ora nada, ora amarelos ora nada, e sempre que azuis ou verdes, ou amarelos, fantasmagóricos e enormes, projectando sombras quilométricas nas paredes. O meu fantasma recebe umas luvas de lã e um porta-chaves, o fantasma da minha mulher um colar de pérolas quase autêntico e uma escovinha e uma pá de cobre de limpar as migalhas da mesa. Passada meia hora de silêncio enregelado um de nós sugere que se apague a árvore, o outro, intermitentemente invisível, afirma que não se pode por respeito à quadra. E acabamos por deitar-nos em gestos que o pinheiro tinge de arco-íris, proibidos de adormecer por aquele fervor luminoso que transforma o quarteirão num ventrículo disforme de sístoles e diástoles eléctricas, enquanto as chamas das velas se dissolvem nos pires numa fumaça nauseabunda. Acordamos não num apartamento mas numa prisão turca a seguir a um motim sobre cujas ruínas o Natal vai piscando, indiferente, a sua satisfação inalterável, e usamos a escovinha e a pá de cobre para nos desfazermos dos cadáveres. Quando a Amnistia Internacional vier investigar os nossos crimes contra a Humanidade será recebida por uma senhora de colar de pérolas quase autênticas e um cavalheiro de sobretudo, azuis, verdes e amarelos, com um pinheirinho inocente na mão.
(Segundo Livro de Crónicas, Publicações Dom Quixote)
Não gosto do Natal. É uma época desagradável para mim. Não sou crente e, portanto, a face religiosa da festa, não me diz nada. Festa da família? A minha família não precisa de dias especiais para se reunir, nem de datas certas para manifestarmos os sentimentos que nos unem. Porém, não consigo fugir totalmente aos tentáculos do polvo comercial que, em Dezembro, esbraceja para sacar às pessoas em geral, crentes ou não, tudo o que possa.
E depois é o sortilégio da comida. Não gosto do Natal, mas gosto de algumas iguarias a ele associadas - a começar pelo bolo-rei. E assim, todos os anos nos reunimos no almoço dia 25. Em 1977, eu e minha mulher e os filhos, com os meus pais estávamos à mesa, embora já tivéssemos almoçado.
Ainda fumava e estava a contas com uma cigarrilha, acompanhado pelo meu pai que só fumava em ocasiões especiais. A televisão estava acesa, mas com o som desligado, e ninguém lhe prestava atenção. Começaram a dar filmes e fotografias do Charlot e pensámos que era mais um programa natalício. Porém, estranhámos a frequente intervenção do locutor que, com ar grave, falava entre os pequenos filmes que estavam a emitir. Como todos, dos mais novos aos mais velhos, éramos seus admiradores, subi o som. Então percebemos – Charles Chaplin tinha morrido.
Charles Chaplin, nasceu em Londres em 1889. Os pais, artistas de music-hall, separaram-se após seu nascimento. Em 1903, com catorze anos, começou a sua carreira - foi o ardina em Sherlock Holmes, papel que representou até 1906. Seguiu-se um show de variedades e depois foi palhaço em "Fun Factory". Chegou aos Estados Unidos em Outubro de 1912. Na mesma trupe estava também Arthur Stanley Jefferson, que se tornaria conhecido como Stan Laurel, o «Estica» da dupla «Bucha e Estica». Chaplin e Laurel compartilharam um quarto numa pensão. Em 1919, fundou o estúdio United Artists com Mary Pickford, Douglas Fairbanks e D. W. Griffith. Apesar de o sonoro ter surgido em 1927, Chaplin só o usou em 1930. Tempos Modernos foi sonorizado, embora quase não existam falas. Charlot, numa das cenas finais canta num restaurante Uma canção totalmente em mímica, onde os versos nada significavam, pois Charlot não decorara a letra.
O Grande Ditador (The Great Dictator, 1940) foi o seu primeiro filme com diálogo. Era uma sátira a Adolf Hitler e ao fascismo que reinava na época. Foi filmado e lançado nos Estados Unidos um ano antes da entrada do país na Guerra. O papel de Chaplin era duplo: o de Adenoid Hynkel, clara alusão ao nome de Hitler, e de um barbeiro judeu. Hitler era um grande fã de filmes, e sabe-se que ele tenha visto o filme duas vezes (segundo registos de seu cinema particular). Quando soube do Holocausto, lamentou ter brincado com o regime nazi.
Chaplin sempre foi progressista, embora moderado. Em alguns dos seus filmes essa tendência era notória principalmente Tempos Modernos (Modern Times, 1936), crítica à situação da classe operária e dos pobres em geral. Quando do período da «caça às bruxas», foi incluído na lista Negra de Hollywood. Chaplin, ao dizer que iria viajar para a Inglaterra com sua mulher, em 1952, foi ameaçado de confisco de seus bens pelo governo americano. A sua atitude foi surpreendente: disse que poderiam vender tudo. Quando quis regressar aos EUA foi proibido pelo Serviço de Imigração, com a cassação do visto, acusado de "actividades anti-americanas", na época do macarthismo, num processo encabeçado por J. Edgar Hoover. Deecidiu então ficar na Europa, escolhendo a Suíça como local de exílio.
A primeira nomeação para o Oscar foi em 1929. Chaplin fora nomeado como melhor realizador de comédia e melhor actor em The Circus, mas a Academia de Hollywood, para o humilhar, atribuiu-lhe um prémio especial pela "versatilidade e excelência na actuação, guião, realização e produção". Chaplin não levava a sério estes prémios considerando-os uma mistificação comercial. Soube-se que a estatueta que ganhara em 1929 a usava para impedir uma porta de se fechar. A Academia de Hollywood, quando este pormenor foi divulgado, deu largas à sua ira e talvez assim se perceba por que razão Luzes da Cidade e Tempos Modernos, considerados dos melhores filmes de todos os tempos, nunca estiveram na lista da Academia. O Grande Ditador (1940) recebeu nomeações como melhor filme, melhor actor, melhor guião e música original, mas não foi premiado. Em 1952, Chaplin ganhou o Oscar de melhor música para filme dramático por Luzes da Ribalta (Limelight, 1952). O seu último filme foi A Condessa de Hong Kong, de 1967.
"Por uma simples questão de sensatez, não acredito em Deus. Em nenhum" o autor desta frase morreu com 88 anos no tal dia de Natal de 1977.
A temperatura caíra subitamente na sala para sete graus abaixo de zero (-22º centígrados).
Mas se o doutor estava já sem imaginação, já não sabia o que fazer, outros sabiam-no por ele. Assim Shandon, frio e resoluto, Pen, a cólera espelhada nos olhos, e dois ou três dos seus camaradas, os que ainda conseguiam mexer-se, avançaram para Hatteras.
- Capitão! – disse Shandon.
Hatteras, absorto pelos seus pensamentos, não o ouviu.
- Capitão! – repetiu Shandon, tocando-lhe na mão.
Hatteras endireitou-se.
- Senhor – disse.
- Capitão, já não temos fogo.
- E então? – respondeu Hatteras.
- Se é sua intenção matar-nos de frio – retomou Shandon com uma terrível ironia – pedimos-lhe que nos informe desde já! - A minha intenção – respondeu Hatteras num tom grave – é que cada um aqui cumpra o seu dever até ao fim.
- Há algo que está acima do dever, capitão. – respondeu o imediato – É o direito à própria vida. Repito-lhe que não temos fogo e, se isto continua, dentro de dois dias, nenhum de nós estará vivo!
- Não tenho madeira – respondeu Hatteras em voz surda.
- Pois bem! – exclamou violentamente Pen – Visto que não há mais madeira, resta-nos ir cortá-la onde ela existe!
Hatteras empalideceu de cólera.
- Onde?
- A bordo – respondeu insolentemente o marinheiro.
- A bordo! – retomou o capitão, de punhos crispados e os olhos brilhantes.
- Sem dúvida – respondeu Pen – Quando o navio já não serve para transportar a sua tripulação, queima-se o navio!
No início desta frase, Hatteras empunhara um machado; no fim, o machado erguia-se sobre a cabeça de Pen.
- Miserável! – exclamou.
O doutor atirou-se para a frente de Pen, que o empurrou; o machado, caindo por terra, fendeu profundamente o soalho. Johnson, Bell, Simpson, agrupados em trono de Hatteras, pareciam decididos a apoiá-lo. Mas umas vozes lastimosas, queixosas, dolorosas, escaparam-se dos catres transformados em leitos de morte.
- Fogo! Fogo! – gritavam os infortunados doentes, invadidos pelo frio sob os cobertores.
Hatteras fez um esforço, e, passados alguns instantes de silêncio, pronunciou estas palavras num tom calmo:
- Se destruirmos o nosso navio, como regressaremos a Inglaterra?
[…]
O gelo alastrava criando longos espelhos foscos sobre o soalho; um espesso nevoeiro invadia a sala; a humidade caía como neve espessa; já não se conseguiam ver uns aos outros; o calor humano fugia das extremidades do corpo; os pés e as mãos começavam a ficar roxas; a cabeça envolvia-se de um manto de ferro, e o pensamento confuso, diminuído, gelado, atingia o delírio. Sintoma aterrorizador: a língua não conseguia já articular uma palavra.
Depois do dia em que ameaçaram queimar o navio, Hatteras passeou longas horas na ponte. Vigiava, velava. Essa madeira era a sua própria carne! Cortar-lhe um pedaço era como cortar-lhe um membro. Estava armado e de guarda, insensível ao frio, à neve, a esse gelo que enrijecia as roupas e o envolvia como uma couraça de granito. Duk, compreendendo-o, ladrava sobre os seus passos e acompanhava-o com os seus uivos.
Contudo, no 25 de Dezembro, desceu à sala comum. O doutor, aproveitando um resto de energia, dirigiu-se a ele.
- Hatteras – disse-lhe – vamos todos morrer por falta de fogo!
- Nunca! – disse Hatteras, sabendo bem a que pedido respondia deste modo.
- É preciso – retomou o doutor.
- Nunca – retomou Hetteras com mais veemência – nunca tal consentirei Se quiserem, desobedeçam-me!
Assim era dada a liberdade de agir. Johson e Bell lançaram-se para a ponte. Hatteras ouviu a madeira do seu brigue estalar sob o machado. Chorou.
Era dia de Natal, a festa da família, em Inglaterra, a noite das reuniões infantis! Que lembrança amarga a dessas alegres crianças em torno da árvore enfeitada! Quem não se recordava das grandes peças de carne assada que recheavam o boi engordado para a circunstância? E essas tortas, essas tartes, onde ingredientes de todo o género eram misturados para esse dia tão caro aos corações ingleses? Mas aqui, havia apenas dor, desespero, miséria no seu mais baixo grau, e, como tronco de Natal, os pedaços de um navio perdido na mais recôndita zona glaciar!
Contudo, sob influência do fogo, o sentimento e a força regressaram ao coração dos marinheiros; as bebidas escaldantes de chá e café produziram um bem-estar instantâneo, e a esperança é algo de tão tenaz ao espírito que voltaram a ter fé. Foi com estas alternativas que se terminou este funesto ano de 1860 cujo Inverno precoce deitara por terra os projecto ardilosos de Hatteras.
(101 Noites de Natal, uma antologia literária, 101 Noites)
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A partir de Janeiro próximo, neste horário, será diariamente apresentada a rubrica "Jardim das Delícias", coordenada por Augusta Clara de Matos. A série de contos de Natal que apresentamo, é por ela seleccionada.
Muitas vezes temos dúvidas sobre o que representa para nós o Natal. Apresento-vos aqui dois pontos de vista diferentes. Alguns de vós acharão que são totalmente opostos. Outros dirão que, embora diferentes, até podem coexistir. O primeiro ponto de vista é dado através de um conto de Tolstoi (1828-1910). Ora leiam, uma história que o autor de Guerra e Paz e de Anna Karenina escreveu, passada no Natal :
Conto de Natal
Leon Tolstoi
Um camponês russo, muito cristão, pedia nas suas orações que Jesus o viesse visitar à sua humilde cabana.
Na véspera do Natal sonhou que o Senhor lhe iria aparecer. Teve tanta certeza da visita que, logo que acordou, se levantou-se e imediatamente começou a limpar e a arrumar a casa para receber o tão esperado hóspede.
Lá fora, uivava uma violenta tempestade de granizo e neve, e o camponês prosseguia as suas tarefas domésticas, ao mesmo tempo que vigiava a sopa de legumes, que era o seu prato preferido.
De vez em quando ia olhar a estrada, sempre na expectativa. Passado algum tempo, viu que alguém se aproximava caminhando com dificuldade no meio do nevão. Era um pobre bufarinheiro, que carregava às costas um fardo bastante pesado. Com pena do homem, saiu da cabana e foi ao encontro do pobre mercador. Levou-o para o interior, pôs sua roupa a secar perto do lume da chaminé e repartiu com o hóspede a sopa de legumes. Apenas consentiu em deixá-lo partir quando viu que recuperara forças para retomar a jornada. Olhando depois pela janela, vislumbrou uma mulher na estrada coberta de neve. Foi ter com ela e deu-lhe abrigo na choupana. Fê-la sentar-se próximo da chaminé, deu-lhe de comer, agasalhou-a com a sua capa... Não a deixou partir enquanto não viu que tinha de novo forças suficientes para a caminhada.
A noite caía... E Jesus não vinha!
De esperança quase perdida, foi novamente foi á janela e perscrutou a estrada atapetada de neve. A custo viu uma criança, percebendo que se encontrava perdida e enregelada pelo frio... Saiu mais uma vez, pegou na criança ao colo e levou-a para a cabana. Deu-lhe de comer, e não demorou muito para que a visse adormecida junto ao calor da chaminé.
Cansado e desolado, o camponês sentou-se e acabou também ele por adormecer junto ao fogo.
Porém, de súbito, uma luz radiosa, que não provinha da lareira, iluminou tudo! Diante do pobre homem, surgiu risonho o Senhor, envolto numa túnica branca!
- Ah! Senhor! Esperei-Vos todo o dia e não aparecestes, lamentou-se.
Jesus respondeu:
- Por três vezes, visitei hoje a tua cabana: o mercador que socorreste, aqueceste e alimentaste...era Eu! A pobre mulher, a quem deste a capa...era Eu! E essa criança que salvaste da tempestade, era Eu também... O Bem que a cada um deles fizeste, a mim mesmo o fizeste.
(Traduzido de uma edição francesa)
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Tolstoi, a partir de certa idade, converteu-se e mostrou mesmo pendor para o misticismo. É a fase de Sonata a Kreutzer e de Resurreição. Este conto provavelmente data dessa altura (não tenho a certeza). Mas agora apresento-vos este vídeo, que nos foi remetido pelo Rui Oliveira. E depois, temos este ponto vista bastante diverso. Esta história do Natal on-line terá alguma coisa a ver com a atitude de Jesus Cristo, quando expulsou os vendilhões do Templo? Será uma denúncia do evento comercial em que se tornou a festa da Natal? Ou será apenas para nossa diversão? Pronunciem-se, por favor.
Não haveria nada mais fácil no mundo das histórias que escrever um conto de Natal com Menino Jesus ou sem ele, se não fosse dar-se o caso de que uma criança que nasce está sempre nascendo. O nosso grande erro, esquecidos como em geral andamos das infâncias que vivemos, foi pensar que as crianças nascem uma única vez e que depois de nascidas se limitam a ficar à espera de que o tempo passe e as transforme em adultos, os quais, como deveríamos saber, constituem uma espécie diferente de seres humanos. A criança começa por nascer uma vez, que é a de vir ao mundo, e depois continua a nascer para compreendê-lo: não tem outro remédio nem há outra maneira. Como se verá pelas duas breves histórias que se seguem, ambas autênticas, ambas verdadeiras. A terra, àquela hora, cobria-se de uma noite tão escura que parecia impossível que dela pudesse nascer o Sol. Não tem chovido, as tempestades andam por longe, o rio descansa da sua primeira cheia de Inverno, os charcos são de mercúrio. O ar está frio, parado, e estala quando respiramos, como se nele se suspendesse uma ténue rede de cristais de gelo. Há uma casa e luz lá dentro. E gente: a Família. Na lareira ardem grossos troncos de lenha de donde se desprendem, lentas, as brasas. Quando à fogueira se lhes juntam gravetos, ramos secos, um punhado de palha, a labareda cresce, divide-se em trémulas línguas, sobe pela chaminé encarvoada de fuligem, ilumina os rostos da família e logo volta a quebrar-se. Ouve-se o ferver das panelas, o frigir do azeite onde bóiam as formas redondas das filhós, entre o fumo espesso e gorduroso que vai entranhar-se nas traves baixas do telhado e nas roupas húmidas. São talvez nove horas, a modesta mesa está posta, o momento é de paz e de conciliação, e a Família anda pela casa, confusamente ocupada em pequenos trabalhos, como um formigueiro.
Não tarda que saiam todos para o quintal. Vai ser lançado ao ar o foguete de três respostas, esse que, cumprindo a tradição, anunciará aos vizinhos que naquela casa já a última filhó saiu do tacho, a escorrer, e foi cair no alguidar profundo onde aguardará o retoque final da canela e da calda de açúcar. Entre portas, a Criança vê a Família a sorrir fazendo e desfazendo grupos em torno do avô, que sopra um tição trazido da lareira e o aproxima do cartucho de pólvora amarrado ao caniço. Tinha pedido que o deixassem ajudar, mas responderam-lhe como das outras vezes: “Ainda és muito pequeno, para o ano que vem”. A Família tem razão: é preciso ter cuidado com as crianças.
A pólvora inflama-se bruscamente, lança um jacto de fagulhas vivíssimas, silva como uma serpente, e logo é um dragão rugindo que sobe para o ar gelado, corta-o como uma espada de fogo, e lá muito no alto, quase tocando as primeiras estrelas, estala, estraleja, cobrindo os ecos de outro foguete distante. O caniço desce com uma luz mortiça que desmaia, e vai cair longe, nos olivais que rodeiam a casa, sobre as ervas cobertas de geada. Com este tempo não há perigo de que pegue fogo às árvores. De súbito, a Família diz que está frio e volta para casa, levando entre os braços, entre os anéis, entre os tentáculos, a Criança a quem não deixaram ajudar a lançar o foguete. Tinham deixado a porta aberta, o interior da cozinha arrefecera. A Avó acode a espalhar na fogueira uma mão-cheia de aparas, desgalha um ramo seco de oliveira, parte-o com as mãos calejadas, mas é com suavidade que depois chega os troços à chama, como se estivesse a alimentá-la. O lume hesita, escolhe o lado mais acessível da lenha, e depois, indiferente, alheado, a pensar noutra coisa, recomeça o seu eterno ofício de fabricante de cinzas.
A Família gira em redor da mesa, arruma-se nas poucas cadeiras que há, trazidas algumas de outras casas, uns quantos escabelos pouco firmes, um caixote velho posto em pé. Os rostos estão sorridentes e corados, e têm nomes e apelidos, mas, para a Criança, são, antes de tudo, os Pais, os Avós, os Tios, os Primos, um enorme e complicado corpo de animal que lhe lembra a história da Bicha-de-Sete-Cabeças ou o Dragão-Que-Não-Dorme. Sobre a mesa trava-se uma gesticulação ruidosa de facas e garfos, de mãos, de dentes, uma contínua mastigação que deforma os rostos e engordura as bocas. Contam-se casos, anedotas, todos riem. O frio está lá fora, e a geada, e a noite impenetrável. A Criança anima-se, já esqueceu a decepção, para o ano talvez a deixem lançar o foguete sozinha. Também tem uma história para contar, só está à espera duma pausa, dum momento mágico em que todos se calem, acaso emudecidos por um anjo que passou deixando apenas a imagem de um dedo imperioso sobre os lábios cerrados. O momento está a chegar por fim, uma a uma calam-se as bocas da Família, é agora ou nunca, a Criança inspira fundo, rompe o silêncio, começa a falar. A Família olha surpreendida, dá alguma atenção, mas não muita nem por muito tempo, não dura, não pode durar, as vozes regressam do silêncio, e é o Pai que lhe corta a narrativa com uma frase que faz rir toda a gente. Uma frase que vai fazer chorar a Criança. Porque o Menino, a Criança é um menino, levanta-se da mesa, abre a porta, separa-se da Família e desce os três degraus de pedra que conduzem ao mundo. Ali adiante há um muro caiado, baixo, com uma varanda dando para terras ignotas. A Criança vai debruçar-se sobre o muro, deixa cair a cabeça sobre os braços cruzados, e o terrível nó das lágrimas desata-se dentro de si. Da casa vêm risos e vozes, alguém fala muito alto, e depois ressoam gargalhadas. Ninguém está pensando na Criança.
Faz muito frio. Visto daqui, o céu parece estar feito de veludo negro. E há as estrelas. Duras, nítidas, implacáveis, quase ferozes. A Criança levanta os olhos. Lá estão elas a brilhar. Olhadas através das lágrimas, as estrelas são diferentes. Mundo estranho, estranho mundo, este. Sob os passos da criança, o chão duro e gelado range, E, em frente, as árvores negras, misteriosas, onde à noite os grandes medos se vão esconder, tomam o ar confidencial de quem conhece todos os segredos futuros, a hora e o lugar onde acontecerá o terceiro nascimento e o quarto, e o quinto, todos os aqueles que ainda esperam a esta Criança, até mesmo quando de havê-lo sido já não lhe restar memória.
As Crianças estão sempre a nascer. Às vezes nascem de explosivas alegrias, de achados incríveis, de deslumbramentos únicos, mas o mais frequente, uma vez após outra, é nascerem de cada tristeza sofrida em silêncio, de cada desgosto padecido, de cada frustração imerecida. Há que ter muito cuidado com as Crianças, nunca me cansarei de o dizer. Um dia uma Professora teve uma ideia de Professora e mandou os seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Claro está que não empregou esta linguagem, o que disse foi: “Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira”. Uns com lápis, outros com aguarelas, outros com papel recortado, alguns pintando com os dedos, todos cumpriram o melhor que puderam. Apareceu tudo quanto é costume nestes casos: o presépio, os reis magos, os pastores, São José, a Virgem e, inevitavelmente, o Menino Jesus. Bem feitos uns, mal feitos outros, toscos ou esmerados, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da Professora. Ali mesmo ela os viu e lhes pôs nota. Ia marcando “bom”, “mau”, “suficiente”, como se com esses juízos os marcasse para a eternidade. De repente. Ah, quantas vezes ainda teremos de dizer que é preciso muito cuidado com as crianças! A Professora segura um desenho nas mãos, um desenho que não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está confusa, perturbada: o desenho mostra a invariável manjedoura, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena já sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê? “Porquê?”, pergunt a a Professora à Menina que fez o desenho. A Menina não responde. Talvez mais nervosa do que quereria mostrar, a Professora insiste. Há na sala os risos cruéis e os murmúrios de troça que sempre aparecem em ocasiões destas. A Menina está de pé, muito séria, um pouco trémula. E responde, por fim: “Pintei a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu”. Fez-se silêncio e a Professora pensou, assim o veio a contar mais tarde: “À Lua já chegámos, mas quando e como conseguiremos chegar ao espírito duma criança que pintou a neve preta porque a mãe lhe morreu?”.
Muitos anos depois destas histórias terem acontecido, contei-as a uma outra Menina, que me perguntou: “E eles ainda estão tristes?”. Nessa altura disse-lhe que sim, que há tristezas que o tempo não consegue apagar, mas hoje conforta-me a ideia de que talvez o Menino do Muro Branco e a Menina da Neve Negra se tenham encontrado na vida, e que talvez por causa deles o mundo já esteja a mudar sem que nós tenhamos dado por isso.
Este conto (se o é) tem a sua origem em duas crónicas, “Um Natal Há Cem Anos” e “A Neve Preta”, publicadas no jornal A Capital no final dos anos 60 e que hoje podem ser lidas mais comodamente no volume Deste Mundo e do Outro. A junção delas (que de certa maneira é também fusão) aconteceu em 1995 e teve como destino uma revista espanhola entretanto desaparecida. Relidas hoje, novamente refeitas, estas velhas crónicas perguntam se o muro branco ainda lá está e se ainda há quem tenha de continuar a pintar a neve com tinta preta. Por mim, acho que sim. Quem dera que sejam muitos os que tenham razões para pensar que não.
(Coord. Vasco Graça Moura, Gloria in Excelsis, Histórias Portuguesas de Natal, col. Mil Folhas, Público)
(Cantos que precedem, na Beira Alta, as “Janeiras”)
Maria Cecília Correia (1919-1993)
Foi quando morreu Tia Aurélia, com cinco anos de idade, que meu avô levou para casa o Menino Jesus, na sua caminha de cortinados feitos com pequenas flores ligadas, parecendo ser de madrepérola, mas que, segundo nos ensinaram, eram de escamas de peixe. Lindos eram, com duas rosas nas cabeceiras e outra maior, em cima, como remate. O Avô quis fazer uma surpresa à Avó, um mimo que a distraísse do seu grande desgosto. Foi um santeiro afamado que fez esse lindo Menino Jesus, um santeiro nomeado e gabado num livro de Aquilino Ribeiro, o Sr. Nelas. Contei a história dessa oferta num conto do meu livro para crianças e esse conto foi depois aproveitado para texto escolar, o que muito me agrada: o Menino Jesus é conhecido de muitas crianças, não ficou somente cá em casa.
O Menino Jesus, não sei se meses seguidos, se todos os anos pelo Natal, era “requisitado” pelas freiras do “Sacré Coeur”, ainda mal instaladas em Viseu. Minha mãe contava que as mais… hoje dir-se-ia “ternurentas”, passeavam no recreio com a imagem nos braços, embalando-o como se criancinha fosse. Quanto de maternidade frustrada nesses asseios com o Deus menina da minha Avó Prazeres! Esta, tendo em vista o seu (dele) sorriso meigo, chama-o “meu feiticeirinho”. E ficou estabelecido, não sei por que lei, que ele passaria de filha mais velha para filha mais velha. Assim, eu fui a terceira a possui-lo e hoje Karin, a minha neta de 6 anos, já me soube dizer que o Menino Jesus um dia será seu.
Ouve, Karin, tu, que já me soubeste dizer isto, explica-me como se diz “meu feiticeirinho” na tua língua. Mas acho que, como tu também falas português, só o deves dizer nesta minha – tua – língua, como tua trisavó o dizia e sabendo porque ela assim o chamava. Tu, que não conheces que toda a crónica daquela família se dividiu em dois poisos – Rua Formosa e Massorim – tens de saber que a Rua Formosa foi o arraial vivido, onde tudo o que era importante se passou, e que Massorim foi o sonho construído, a casa que se fez, mas a velhice também, as divisões, a venda do sonho e a dispersão da família. Portanto tu, que nem podes ir ver a casa da Rua Formosa que uma urbanização desfez, terás só de saber que lá é que o Menino Jesus foi oferecido, depois amado, depois emprestado, depois ido para casa de meus Pais, em várias terras e ao sabor dos nossos percursos, mas sem o oratório que em casa nenhuma cabia e que ficou a desfazer-se num sótão de empréstimo, lá longe, ficando a imagem guardada dentro de uma caixinha de papelão e o berço cuidadosamente embrulhado em papeis que o não comprimissem, em prateleira apertada – percalços de 6 assoalhadas para outras tantas pessoas, saindo só pelo Natal, até que, em maré de mais espaços, numa casa já minha, se lhe fez um triangulozinho com paredes de vidro, obra do Sr. Almeida, o paciente marceneiro que fez tantos móveis que hoje aqui vês, trabalhando sozinho em oficina pacata. A tunicazinha é ainda a mesma que lhe conheci, com os seus arabescos bordados a ouro. Só não sei se já foi comprado com ela, era ainda menina a tua bisavó Cecília, ou se a bordaram depois as “Mères”. E, se lhe ponho uns tantos livros policiais escondidos debaixo do bercinho, a aguentarem-lhe as pernas já tortinhas, é porque eles são a exacta medida do berço-cama. Bem sei que eles estão escondidos pelo fio prateado da Árvores do Natal, batota que fiz, mas, com pouco mais de cuidado, eu teria arranjado outro calço qualquer. Deixo isso ao teu cuidado, está bem?
Que isto do calço, é coisa simples de remediar. O mais importante é que saibas “acender a luz”. Não é riscar o fósforo sobre a vela, como hoje poderás pensar. É entrares numa cadeia, sabendo que substituis os que acenderam anos e anos atrás. A avó da tua avó… não te será um abstracto irreal, absurdo até perante o relâmpago que é o viver de hoje? Mas são assim as gerações – as “linhas” em sequência. Diante do Menino, elas passaram e se detiveram atentas, numa época que os adultos chamavam Advento e as crianças somente Natal, entre velas, lamparinas, novenas e também expectativa de novidades sempre renovadas; de Festa.
Na vela tu me verás mais tarde, como eu hoje os vejo a eles, a um a um, sabendo seus nomes por tradição oral, coisa que hoje também já não se usa. Mas, ainda que tu não saibas seus nomes, como eu, eles aí estarão contigo, nessa luz que iluminará o Menino, por tuas mãos acesa, luz que sempre significou amor e continuidade.
Ela e ele entram no casebre. Ela agarra a mão dele. Apesar do escuro distinguem logo o menino. Durante muito tempo não conseguem ver mais nada. O menino. Todo o futuro encerrado no peito que aprende com dificuldade a respiração. O menino. O menino. Durante muito tempo, mais nada.
Depois uns braços nascem em volta dele. Um colo. Um rosto. É a mãe. A mãe fala uma língua que eles não entendem. Mas ela e ele não precisam de compreender as palavras para saberem o que a mãe lhes pede.
Aproximam-se devagar. Como que a medo. A mãe afasta o menino do seu corpo, entregando-o a ela.
Quando ela era pequena, aceitava sempre com vergonha o que lhe ofereciam. Sabia que era preciso dizer qualquer coisa mas nunca conseguia encontrar o momento nem as palavras para o fazer. Então os olhos do pai arregalavam-se: o que é que se diz? Mas ela ficava calada, a boca seca, as mãos a torcerem-se.
Ela recebe o menino dos braços da mãe. Fica suspensa sobre aquele corpinho. Muda.
Lá fora a família aguarda-os. Daqui a pouco ela e ele despedem-se da mãe e levam o menino com eles. Para sempre.
O menino começa a chorar. Ela aconchega-o com gestos de que não se sabia capaz. O menino sossega. A mão pequenina toca ao de leve o anel que ela traz no dedo. A eternidade do momento adensa o redondo da pérola.
Ela e ele demoram-se. Fora do mundo que os espera. Entregues ao menino. Entregues àquela mãe que agora não sabe o que fazer dos braços. Que os deixa ficar para ali caídos. Imprestáveis.
O que é que se diz? Não sei o que e que se diz, pai. A partir de Janeiro próximo, neste horário, será diariamente apresentada a rubrica "Jardim das Delícias", coordenada por Augusta Clara de Matos. A série de contos de Natal que estamos a apresentar, é por ela seleccionada.
Sábado à noite dia vinte e um vésperas do Santo Natal.
O frio enrugava os ossos a rua de Santa Catarina era um rio de gente um rio de águas desencontradas sem destino nem rumo umas correndo para baixo outras para cima e mesmo para os lados -se algum dia se viu -!
Gente por cima gente por baixo gente saindo e entrando não se sabe bem onde tanta porta aberta tanta porta fechada não se sabe ao certo.
Pessoas em cima de gente embrulhadas em pessoas e sacos e mais gente e mais sacos pendurados nas mãos nos ombros no pescoço nas orelhas nos olhos.
Uma velha andrajosa suja e gorda - de doença seria a gordura e não de fartura! - uma provável anasarca cardíaca que faz do doente uma espécie de boneco Michelin rebentando de inchaços uma velha gorda excrescente tumoral - de trapos seria a gordura também! - (o frio enroscara-lhe o corpo com todos os farrapos do lixo) uma velha suja tentava subir a rua por entre a multidão limpa.
Com grande agonia arrastava pelo chão puxada por um cordel uma caixa de papelão que dentro continha outras caixas e restos de caixas e mais papelão provavelmente toda a sua mobília de quarto que haveria de montar nesse arrastado andar lá para o meio da noite no vão de uma porta muito acima do 575 mais fora dos olhos dos enxotadores de pobres.
A velha cuja idade mirraria as carnes se os inchaços se escoassem não ia bem disposta nem dava ideia de estar bem no meio daquele mar de gente.
Antes de tudo sentia-se afogar. Não era inveja dos sacos nem dos cheiros nem dos casacos nem do luxo - sabia cá ela o que era o luxo! - importava-se lá ela com todo o papelão dos outros todo o papelão que ia dentro daquele mundo de sacos!
Ela só queria o seu papelão e que não estorvassem os seus bocados de passos que juntos não dariam mais do que dez à hora.
Ela só queria que aquela gente toda ali parida pelo diabo a não impedisse de arrastar a sua casa então praguejava bem alto vão todos pró caralho vão-se todos foder.
Ouvia-se como música de fundo um lindo cântico de Natal...filhos da puta deixai-me passar vão-se todos foder.
Dois putos atiçaram a velha vai-te foder tu velha ranhosa ao mesmo tempo que ironizavam à gargalhada avariou-se o mercedes à gaja!
A velha não se agastou mais do que já vinha estava treinada na cena para não perder energias com a inutilidade de erguer a voz e ripostou num grunhido cavo vai levar no cu paneleiro de merda.
A melodia de Natal escorria pelos ouvidos cheios de sacos de paz e harmonia.
Já quase exausta com voz mais cava a velha dizia deixai-me passar bandalhos.
Lá em cima Deus não deve ter levado a mal.
Como reza o Divino Testamento dos pobres é o reino do Céu.
Em breve ela estaria com Ele para usufruir da eterna justiça e... na altura devida Ele lhe daria com ternura um puxãozito de orelhas.
Chovera muito, durante horas e horas. Ouvi gritos de aves, trovões e imaginei o súbito fulgor dos relâmpagos na noite dos olivais, tão perto do nosso “monte”.
Mas era Natal. E, apesar do frio, que não apertava assim tanto, teimei em sair. “Vê lá se te molhas”. Com duas camisolas enfiadas pela cabeça, uma sobre a outra, como os meus irmãos, e calçando botas grossas, fomos espreitar um lírio de água, naufragado quase à entrada da horta, na zona dos tanques.
O sol subia no firmamento, mas as ervas ainda estremeciam, molhadas, sentia-se a húmida respiração de todas as coisas matinais. Fomos os três espreitar o mistério dos valados e barrancos, onde se acoitavam melros, rouxinóis, toutinegras e outros pássaros; e dávamos com os pequenos paraísos verdes que nasciam daquela água de Natal, entre pedras, silvas, musgos e débeis cascatas meio escondidas.
No regresso distanciei-me dos meus irmãos e fui averiguar se havia morcegos no casão. O que vi era bem diferente. Dois trabalhadores da apanha da azeitona, um rapaz e uma rapariga de cerca de vinte anos, que por qualquer motivo se haviam isolado do rancho, ali quase completamente nus, enfrentavam-se como vagas intensas de desejo.
Agarram-se, caem sobre a palha, a espada de luz que nele entretanto cresceu desaparece na escuridão do ventre dela, que protesta, mas em voz baixa, e em breve é tal o delírio que os consome, os afogueia, que as mãos de um se prendem nos cabelos do outro e vice-versa e os puxam, barbaramente, beijando-se, mordendo-se.
Tenho buracos na minha memória, verifico-o quando tento recordar figuras e cenas desse tempo. Lembro-me no entanto bem de ter deixado os meus irmãos frente ao forno do pão e haver prosseguido ainda o passeio até à ribeira do Ardila, onde sempre me encantava aquele silêncio fresco, só cortado pelo murmúrio da água e pela música do vento nos choupos, hoje quase desaparecidos, e nos amieiros, nos freixos.
Sentei-me numa pedra, que ali fazia de banco e fiquei a gozar o calor breve do meio-dia, a doçura da luz do Inverno na terra lavrada e nos campos de trigo a querer nascer. O sol pendurava-se também nas azinheiras. Era lindo.
Foi então que o vi, sentado junto a uma malhada de pastor, que não lhe pertencia.
Olhou-me, desconfiado, mas tinha a cor do céu na íris. À parte a beleza rara desses olhos, todo ele era sujidade, lama, farrapos; até trazia os pés enrolados em trapos.
Estivemos ainda uns segundos a observar-nos, até que, movido por um misto de curiosidade e de solidariedade, me levantei e caminhei lentamente para ele.
A desconfiança do homem aumentou. Encolheu-se, como se receasse que eu fosse bater-lhe ou insultá-lo.
- Creio que já o vi por estas bandas. Posso ajudá-lo com qualquer coisinha para o Natal?
- Para mim não há Natal. Os meus dez anos empertigados e atrevidos tremelicaram e logo perderam a segurança.
Continuava remexendo nos bolsos das calças, à procura da notazita que o meu pai me havia dado para comprar o que eu quisesse, quando fosse à vila; e o desgraçado, tão aflito ou mais do que eu, parecia disposto a mudar de sítio.
- Fique, por favor, eu não quero estorvá-lo.
E, melhor ou pior, acomodando-me ao lado dele, lá lhe falei da fraternidade do Natal, com que tantos nessa altura enchiam a boca ou a vaidade, e consegui por fim que ele se abrisse comigo, a pouco e pouco. Tinha sido motorista de táxi e gostava da sua profissão. Um dia como os outros, numa rua estreita de Moura, uma menina de quatro anos saíra a correr do poial de uma porta e metera-se-lhe à frente. Ficara paralisado, sem reflexos, e a criança morta. Na Guarda Republicana tinham-lhe batido. Que estava bêbado. Era um irresponsável, um anormal. Matar assim uma criança.
À saída o pessoal tinha-o quase linchado. Nem tentara defender-se. De começo fora o horror total, agora começava até a sentir-se culpado. E a imagem da criança morta perseguia-o em sonhos.
De tanto haver chorado – pensei eu – ficara com aquelas rugas, aqueles olhos lacrimosos onde o azul desmaiava.
- Fui condenado, com pena suspensa, uma injustiça. Perdi o emprego. Já todos acreditavam que eu tinha bebido e, coberto de insultos, doente, nem eu já tinha qualquer certeza.
Estava a vê-lo rebaixado, a levar bofetadas e pontapés em plena rua, a afastar-se de toda a gente, a aceitar a caridade ritual de certos ricos ou a piedade dos pobres quando calhava, cada vez mais humilhado, mergulhado no silêncio.
- Dizem que eu já tinha pancada e que endoidei, porque assim tinha de ser.
- Vamos fazer um almoço de Natal nós os dois, aqui mesmo? Diga que sim. Eu vou buscar comida ao “monte”.
- E os seus pais?
- Eu cá me arranjo.
Larguei a correr em direcção ao “monte” onde, desconfiando de que esta minha loucura não ia ser particularmente bem aceite, arrebanhei um pão e uns chouriços, verifiquei que trazia no bolso uma navalhinha, apanhei uma garrafa de vinho. Água Castelo, com picos, para mim, e um pedaço de sericaia. Meti tudo num alforge e ala para o rio.
A primeira visão que me aqueceu a alma foi a de uma cegonha branca, que entretanto tinha pousado num choupo, e logo após ouvi a restolhada de um bando de codornizes no seu voo rasante sobre as águas que a brisa muito leve parecia florir.
Para lá do rio a imensidade do montado falsamente adormecido pelo sol de inverno.
Cercado pelo sol, e com os pés frios, o velho (seria mesmo velho?) acendia uma fogueira, à volta da qual nos instalámos para comer. Era mesmo um saco de ossos, contorcidos, que deviam doer. E fedia, nos seus andrajos.
Dispusemos a comida num taco de madeira alisada, que ele desencantara por ali. Não conseguiu sorrir, mas os seus enrugados olhos azuis tinham por vezes um brilho fundo, que talvez pudesse ser de gratidão.
Dava a impressão de lhe saber bem o chouriço, mas não tocou na sericaia. Já era provavelmente alimento a mais para quem vivia de sobras e outras vezes calava a fome dormindo. Tinha posto uma serapilheira a agasalhar-lhe os joelhos, que os farrapos deixavam a descoberto.
Respondia apenas por monossílabos às minhas perguntas de circunstância, mas pelos estremecimentos da sua boca amarga, quase sem dentes, pressenti que desejava dizer-me alguma coisa. E disse, por fim.
- Eu contei-lhe a verdade da desgraça que me caiu em cima, mas não contei tudo. É que talvez eu pudesse tê-la salvo, se não estivesse embriagado. Estava mesmo bêbado. A minha companheira tinha-me deixado. E eu andava já começando a destruir-me. Aquela menina mora no meu peito, é uma chaga sem cura. Aí tem a razão deste estado em que me vê. Muitos terão esquecido, já nem me reconhecem. Eu é que continuo a culpar-me.
- É Natal! É Natal! – gritam uns miúdos, que passam por nós correndo e atirando pedras ao rio.
( A Última Colina, Publicações Dom Quixote, 2008)
A partir de Janeiro próximo, neste horário, será diariamente apresentada a rubrica "Jardim das Delícias", coordenada por Augusta Clara de Matos. A série de contos de Natal que iremos apresentando, é já por ela seleccionada.