Sábado, 11 de Junho de 2011
A mudança de comportamento sofrida pelo meu amigo, era extraordinária. Um rapaz jovial, espirituoso e despreocupado, transformara-se num homem tristonho, taciturno e excessivamente escrupuloso. Eram frequentes os seus momentos de abstracção e, durante esses momentos dir-se-ia que o seu espírito viajava por caminhos de outro mundo. Um dos nossos amigos, leitor e decifrador assíduo de Browning, recordando a estranha composição em que este nos fala da vida de Lázaro depois de ressuscitado, costumava dizer que o pobre Emilio visitara a morte. E fizemos todas as diligências para adivinhar a causa daquela misteriosa mudança de feitio; mas foram diligências infrutíferas.
Contudo, de tal modo e com tal insistência o assediei que, finalmente, um dia, deixando transparecer o esforço que custa tomar uma resolução difícil e muito reprimida, subitamente me disse: «Pois bem, vais saber o que me aconteceu, mas exijo que, por tudo o que te seja mais sagrado, não o contes a ninguém enquanto eu não tiver voltado a morrer.» Prometi-lho com toda a solenidade e levou-me à sua sala de estudo, onde nos fechámos.
Depois da sua transformação, eu não voltara a entrar naquela divisão. Nada fora modificado, embora agora me parecesse mais em consonância com o dono. Por momentos pensei que fora aquela sua salinha preferida que o transformara de forma tão surpreendente. A sua velha e ampla poltrona de couro, com os seus grandes braços, pareceu-me assumir um novo sentido. Estava a examiná-la quando Emilio, depois de ter fechado cuidadosamente a porta, me disse, apontando o cadeirão:
- Foi ali que tudo aconteceu.
Olhei-o sem perceber.
Indicou-me que me sentasse na sua frente, numa cadeira que estava do outro lado da sua pequena secretária de trabalho, acomodou-se no seu cadeirão e começou a tremer. Eu não sabia o que fazer. Por duas ou três vezes tentou começar a falar e outras tantas foi obrigado a desistir. Estive quase a propor-lhe que esquecesse a sua confissão, mas a curiosidade foi mais forte do que a piedade; é sabido que a curiosidade é uma das coisas que mais contribuem para a crueldade do homem. Permaneceu um momento com a cabeça entre as mãos e os olhos baixos; sacudiu-se depois, como quem toma uma súbita decisão, e começou:
- Bem, tu não vais acreditar numa palavra sequer do que te vou contar, mas isso não interessa. Contando-to, libertar-me-ei de um grande peso, e isso basta-me. – Não me lembro do que lhe respondi, e prosseguiu:
- Há coisa de um ano e meio, meses antes do mistério, caí doente de terror. A doença não se me notava nada, nem tinha qualquer manifestação exterior, embora me fizesse sofrer horrivelmente. Tudo me metia medo e me parecia envolver numa atmosfera de terror. Pressentia vagos perigos. Sentia permanentemente a invisível presença da morte, da verdadeira morte, ou seja, do total aniquilamento. Acordado, ansiava porque chegasse a hora de me deitar para dormir e, uma vez na cama, atacava-me o temor de que o sono se apossasse de mim para sempre. Era uma vida insuportável, terrivelmente insuportável. E nem sequer me sentia com força de vontade para me suicidar, coisa que, pensava eu na altura, seria uma solução. Cheguei a temer pelo meu juízo…
- E por que não consultaste um especialista? – perguntei só para dizer alguma coisa.
Segunda-feira, 23 de Maio de 2011
O “Sentimento trágico da vida” é um dos importantes título do grande pensador espanhol Miguel de Unamuno que morreu em 1936 mas cujo pensamento atravessou todo o século XX e ainda hoje perdura. Foi um homem de poderosa personalidade e rebeldia a quem a Espanha deve não apenas a grandeza cultural mas um grande amor pelo país que o fazia sofrer.
Para Unamuno a razão não significava necessariamente o esclarecimento mas antes a reflexão sobre as múltiplas duvidas que as fronteiras entre o mundo físico e o mundo místico estabelecem, a substância da matéria contraposta à dolorosa dúvida da imortalidade que o ser humano persegue para além de si próprio criando mitos ou procurando formas de expressão que prolonguem o seu nome como se isso fosse a sua existência, conhecedores que somos no nosso tempo diminuto da relatividade de todas as coisas, sobretudo de nós mesmos.
Se procurarmos bem raros se perpetuam no sentido do “eterno” conhecimento terreno, se eternos considerarmos dois ou três milénios, mesmo na herança daqueles que através da arte oferecem a sua expressão mística interior, capaz de criar emoções e despertar sentimentos que perduram por séculos para além das sua vidas, mesmo esses prolongaram-se na sua arte ainda em termos materiais que os suportam e lhe concedem a imortalidade terrena.
Não obstante, a dúvida da imortalidade não se encontra naquilo que de material se deixa na terra após a morte mas no transcendental que ultrapassa a decomposição do corpo a começar por fixar-se no plano da perenidade da alma. Mesmo que a alma, na sua perspectiva abstrata, se prolongue para além do indivíduo ela perde os contornos materiais que a tornavam “visível” conferindo-lhe um sentido super universal porque se o corpo não existe sem alma esta, do meu ponto de vista, não existe sem aquele (não necessariamente o mesmo).
A humana capacidade de amar, sofrer, sentir, interpretar, viver para o prazer ou para o espírito resulta dessa unidade aparentemente antagónica entre a razão da matéria e a idealização do espírito. Não há apenas uma parte mesmo quando o contrário parece evidente pois perdida uma perdida está a outra. Em termos humanos a matéria sem alma não se concebe e a alma sem matéria é uma noção abstracta, um dogma que contraria a razão.
Talvez por isso a teoria da reincarnação venha ganhando força e adeptos porque somos incapazes de aceitar que a vida humana seja exclusivamente material e, com a morte, definitivamente finita. Mesmo acreditando que após a morte a alma se liberta do corpo e sobe ao espaço de uma forma indefinida porque não vê, não ouve, não sente, subsiste a dúvida de que sendo na terra corpo e alma uma unidade, a morte de um não determinaráo eterno desaparecimento do outro.
Chegados aqui a razão conduz ao desenlace trágico que reduz o ser humano à relatividade física da sua existência e á angustiante interrogação daquilo que estará para além da sua existência se algo estará, efectivamente. No fundo, o que a razão resiste em aceitar é o nosso desaparecimento definitivo porque se for assim somos nada e a passagem é curta. E se o for o significado moral e humanista da existência sai desvalorizado e adulterado nas nossas noções eternas de esperança e de futuro. Essa será a angústia destrutiva que a fé, qualquer fé, procura equilibrar.
Unamuno disse “já não empreendo nada que possa durar”, talvez porque durar é sempre relativo pois nada pode durar eternamente. Para conseguir ultrapassar o desespero do nada tivemos de criar formas abstractas que nos transportam a um todo universal, a uma mundividência para além do concreto e representada pelo dogma da fé que suporta a nossa vontade de infinitude.
Este tema é também ele infinito para o bem de todos. Algumas vezes, antes de adormecer conjeturo sobre ele sem que chegue, obviamente, a qualquer conclusão. Apesar das minhas dúvidas, sempre que o abordo aproximo-me um pouco mais das interrogações da matéria que, esta sim, desaparecerá comigo para sempre.
publicado por João Machado às 21:00
editado por Luis Moreira às 20:56
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Quinta-feira, 9 de Dezembro de 2010
António SalesO “Sentimento trágico da vida” é um dos importantes título do grande pensador espanhol Miguel de Unamuno que morreu em 1936 mas cujo pensamento atravessou todo o século XX e ainda hoje perdura. Foi um homem de poderosa personalidade e rebeldia a quem a Espanha deve não apenas a grandeza cultural mas um grande amor pelo país que o fazia sofrer.
Para Unamuno a razão não significava necessariamente o esclarecimento mas antes a reflexão sobre as múltiplas duvidas que as fronteiras entre o mundo físico e o mundo místico estabelecem, a substância da matéria contraposta à dolorosa dúvida da imortalidade que o ser humano persegue para além de si próprio criando mitos ou procurando formas de expressão que prolonguem o seu nome como se isso fosse a sua existência, conhecedores que somos no nosso tempo diminuto da relatividade de todas as coisas, sobretudo de nós mesmos.
Se procurarmos bem raros se perpetuam no sentido do “eterno” conhecimento terreno, se eternos considerarmos dois ou três milénios, mesmo na herança daqueles que através da arte oferecem a sua expressão mística interior, capaz de criar emoções e despertar sentimentos que perduram por séculos para além das sua vidas, mesmo esses prolongaram-se na sua arte ainda em termos materiais que os suportam e lhe concedem a imortalidade terrena.
Não obstante, a dúvida da imortalidade não se encontra naquilo que de material se deixa na terra após a morte mas no transcendental que ultrapassa a decomposição do corpo a começar por fixar-se no plano da perenidade da alma. Mesmo que a alma, na sua perspectiva abstrata, se prolongue para além do indivíduo ela perde os contornos materiais que a tornavam “visível” conferindo-lhe um sentido super universal porque se o corpo não existe sem alma esta, do meu ponto de vista, não existe sem aquele (não necessariamente o mesmo).
A humana capacidade de amar, sofrer, sentir, interpretar, viver para o prazer ou para o espírito resulta dessa unidade aparentemente antagónica entre a razão da matéria e a idealização do espírito. Não há apenas uma parte mesmo quando o contrário parece evidente pois perdida uma perdida está a outra. Em termos humanos a matéria sem alma não se concebe e a alma sem matéria é uma noção abstracta, um dogma que contraria a razão.
Talvez por isso a teoria da reincarnação venha ganhando força e adeptos porque somos incapazes de aceitar que a vida humana seja exclusivamente material e, com a morte, definitivamente finita. Mesmo acreditando que após a morte a alma se liberta do corpo e sobe ao espaço de uma forma indefinida porque não vê, não ouve, não sente, subsiste a dúvida de que sendo na terra corpo e alma uma unidade, a morte de um não determinaráo eterno desaparecimento do outro.
Chegados aqui a razão conduz ao desenlace trágico que reduz o ser humano à relatividade física da sua existência e á angustiante interrogação daquilo que estará para além da sua existência se algo estará, efectivamente. No fundo, o que a razão resiste em aceitar é o nosso desaparecimento definitivo porque se for assim somos nada e a passagem é curta. E se o for o significado moral e humanista da existência sai desvalorizado e adulterado nas nossas noções eternas de esperança e de futuro. Essa será a angústia destrutiva que a fé, qualquer fé, procura equilibrar.
Unamuno disse “já não empreendo nada que possa durar”, talvez porque durar é sempre relativo pois nada pode durar eternamente. Para conseguir ultrapassar o desespero do nada tivemos de criar formas abstractas que nos transportam a um todo universal, a uma mundividência para além do concreto e representada pelo dogma da fé que suporta a nossa vontade de infinitude.
Este tema é também ele infinito para o bem de todos. Algumas vezes, antes de adormecer conjeturo sobre ele sem que chegue, obviamente, a qualquer conclusão. Apesar das minhas dúvidas, sempre que o abordo aproximo-me um pouco mais das interrogações da matéria que, esta sim, desaparecerá comigo para sempre.
Terça-feira, 7 de Dezembro de 2010
coordenação de Pedro Godinho
Síntese do reintegracionismo contemporâneo (29)
por Carlos Durão
(continuação)
Isabel Rei: “O português NÃO É UMA LÍNGUA ESTRANGEIRA./ Reintegracionismo é aquele movimento (teoria e praxe) social que procura informar, conduzir e tornar evidente para os galegos que a sua língua é o português galego” (2006); “O motivo principal deste sucesso é ter usado o nome comum da língua para denominar as falas galegas: PORTUGUÊS” (2009).
Concha Rousia: “Se, ao definir-nos, delimitar com palavras o que somos e o que não, deixamos fora parte do que somos, como quando seguimos o discurso dominante que afirma que galego e português são duas línguas distintas, estamos a impossibilitar o câmbio” (2008); “de sempre na
Galiza há uma corrente que luta pela integração do galego no português, a dia de hoje os linguistas não poderiam defender outra cousa que não seja que galego e português são a mesma língua, com duas histórias muito diversas, mas apenas uma língua” (2009); “Com a AGLP consegue-se uma separação total do discurso unitário e dominante; não só se afirma que o "galego" não é diferente do "português", contradizendo a premissa central do discurso da RAG, como também se afirma que se deve chamar "português" (2009, 2: 77).
J. Malaca Casteleiro: “[...] na base deste projeto está a ideia, defendida por tantos, que o galego é uma variante linguística de uma língua comum que poderia ser língua galego-portuguesa, mas que as vicissitudes da história levaram a que fosse apenas língua portuguesa [...]/ Queria [...] prestar uma homenagem aos ilustres filólogos e linguistas que ao longo dos tempos defenderam sempre que o galego era uma variante linguística de uma língua comum, da língua portuguesa [...]/ e tantos outros que se bateram pela defesa da reintegração do galego como variante da língua portuguesa, com todo o respeito pelas opiniões contrárias. /Mas, do ponto de vista do sistema fonológico, do sistema morfológico, não encontramos argumentos linguísticos, em minha perspetiva e de tantos outros, que justifiquem que se trate de uma língua diferente. Com certeza que há diferenças em relação ao sistema semântico ou lexical, mas não é o léxico que define o parentesco das línguas. [...] integrar o galego como variante da língua portuguesa ao lado das outras variantes [...] contribuirá para reatar os fios da história do galego-português, fios que se quebraram em fins do século XV e que era urgente reatar e revalorizar” (2008); emprega o sintagma “norma galega do português” (2009: 8).
Carlos Reis: “A expressão «sabores da língua» é muito interessante, porque é aquele domínio da língua em que salvaguarda o que há diferente, sem ser uma ruptura, entre uma forma de falar português do Brasil, Portugal, Galiza... que não ponha em causa a ruptura da língua./ A utilização de metáforas como «sabores da língua portuguesa» é muito importante para sabermos que a unidade da língua não é afectada por estas oscilações, são mais de natureza lexical, terminológica do que de natureza ortográfica. ” [...] “para o dizer de uma forma muito clara, acho que a AGLP, no meu ver, deve bater-se pela ideia de que o português é uma língua que existe naturalmente na Galiza, ou seja que o galego não é uma língua em divergência com o português” (2008).
Camilo Nogueira: “Penso que o galego e o português são a mesma língua e que nunca deixaram de o ser./ Defendo em consequência a convergência plena do galego no galego-português intercontinental./ Mas não denomino ao galego como português e creio muito errada e perigosa a ideia de submeter ao galego a um tratamento semelhante ao sofrido polo português de Braga, Porto, Tras os Montes ou as Beiras desde o poder do Estado português [...]/ Desde estas posições, sendo inequivocamente partidário da convergência ortográfica do galego com o galego-português comum, tal como o pratiquei durante cinco anos no Parlamento Europeu, creio que do que se trata é de convencer e não de vencer aos que defendendo o galego pensam de forma diferente” (2009). E ainda: “Nós podemos afirmar que a lingua que falan [os brasileiros] é a mesma que a galega. Malia as diferenzas e os matices, tan galego é o portugués do Brasil como castelán o español de México” (2009).
Carlos Durão: “é o mesmo idioma, con variantes fonéticas e léxicas” (1972, 8: 4); e também: "galego e/ou português" (1978, 41: 12); “português da Galiza” (1987, 2-4: 129); “Falares galegos, língua portuguesa” (2003); “cos manuscritos [medievais] na man pódese probar case calquer cousa: tanto que o galego e o portugués son a mesma lingua, como que non, tanto que ‘lh’ e ‘nh’ son vernáculos como que non, etc.” (1979, 64: 243); “Em consonância com o chamado Estatuto das Autonomias decretado pelo poder central, à nossa língua foi-lhe assinada a categoria de autónoma, com os mesmos ou parecidos “teitos” e mais “competências” que esse poder permite à administração civil. E do mesmo jeito que o objetivo final das autonomias (segundo têm declarado repetidamente os seus apologistas) é reforçar a “unidade superior” do Reino, assim a opção espanholista na língua da Galiza tem por fim achegar paulatinamente o galego ao castelhano, para finalmente absorvê-lo no “grande espanhol” do futuro (tal era a tese do sábio Unamuno); [...] Dizem que há que construir o galego a base dos seus dialetos. Bem está, mas já de entrada esquecem interessadamente os dialetos de além-Minho, justamente aqueles únicos dialetos do galego que não estão contaminados pelo castelhano” (1981.1982.1985, 4/5: 85-66); “A única conclusão que cabe tirar desta malfadada ortografia é que é uma escrita para colonizados. Está pensada desde o espanhol e para o espanhol, por administradores do Estado instalados no castelhano, a língua do poder. E com a ortografia espanhola introduz-se o vocabulário, sintaxe e fonética espanhóis” (1982, 5: 89); “A língua é indivisível [...] A lusofonia é a consumação da nossa tradição” (1989, 13-18: 312); “Concebemos a língua comum como uma federação de falas. Noutras palavras, a língua internacional portuguesa, língua de cultura e civilização, está constituída pola livre união das diversas realizações idiomáticas nacionais” (1985.1986, 6-10: 84); emprega os sintagmas “desocultação galécia” (2007) e “para-reintegracionista” (2010).
Miguel de Unamuno: “Hay otro hecho, y es el de que la lengua oficial de España sea la castellana, que está lleno de significación viva. Porque del latín brotó en España más de un romance, pero uno entre ellos, el castellano, se ha hecho lengua nacional e internacional además, y camina a ser verdadera lengua española, la lengua del pueblo español que va formándose sobre el núcleo castellano [...]/ Pero si Castilla ha hecho la nación española, ésta ha ido españolizándose cada vez más, fundiendo más cada día la riqueza de su variedad de contenido interior, absorbiendo el espíritu castellano en otro superior a él, más complejo, el español. No tienen otro sentido hondo los pruritos de regionalismo más vivaces cada día, pruritos que siente Castilla misma: son síntomas del proceso de españolización de España, son pródromos de la honda labor de unificación. Y toda unificación procede al compás de la diferenciación interna y al compás de la sumisión del conjunto todo a una unidad superior a él.” (“La casta histórica Castilla”, 1895, in “En torno al casticismo”, Editorial Espasa-Calpe, Colección Austral, Madrid, 1943, pp. 43-44; itálicas do autor).
(continua)
Domingo, 10 de Outubro de 2010
António Sales
O “Sentimento trágico da vida” é um dos importantes título do grande pensador espanhol Miguel de Unamuno que morreu em 1936 mas cujo pensamento atravessou todo o século XX e ainda hoje perdura. Foi um homem de poderosa personalidade e rebeldia a quem a Espanha deve não apenas a grandeza cultural mas um grande amor pelo país que o fazia sofrer.
Para Unamuno a razão não significava necessariamente o esclarecimento mas antes a reflexão sobre as múltiplas duvidas que as fronteiras entre o mundo físico e o mundo místico estabelecem, a substância da matéria contraposta à dolorosa dúvida da imortalidade que o ser humano persegue para além de si próprio criando mitos ou procurando formas de expressão que prolonguem o seu nome como se isso fosse a sua existência, conhecedores que somos no nosso tempo diminuto da relatividade de todas as coisas, sobretudo de nós mesmos.
Se procurarmos bem raros se perpetuam no sentido do “eterno” conhecimento terreno, se eternos considerarmos dois ou três milénios, mesmo na herança daqueles que através da arte oferecem a sua expressão mística interior, capaz de criar emoções e despertar sentimentos que perduram por séculos para além das sua vidas, mesmo esses prolongaram-se na sua arte ainda em termos materiais que os suportam e lhe concedem a imortalidade terrena.
Não obstante, a dúvida da imortalidade não se encontra naquilo que de material se deixa na terra após a morte mas no transcendental que ultrapassa a decomposição do corpo a começar por fixar-se no plano da perenidade da alma. Mesmo que a alma, na sua perspectiva abstrata, se prolongue para além do indivíduo ela perde os contornos materiais que a tornavam “visível” conferindo-lhe um sentido super universal porque se o corpo não existe sem alma esta, do meu ponto de vista, não existe sem aquele (não necessariamente o mesmo).
A humana capacidade de amar, sofrer, sentir, interpretar, viver para o prazer ou para o espírito resulta dessa unidade aparentemente antagónica entre a razão da matéria e a idealização do espírito. Não há apenas uma parte mesmo quando o contrário parece evidente pois perdida uma perdida está a outra. Em termos humanos a matéria sem alma não se concebe e a alma sem matéria é uma noção abstracta, um dogma que contraria a razão.
Talvez por isso a teoria da reincarnação venha ganhando força e adeptos porque somos incapazes de aceitar que a vida humana seja exclusivamente material e, com a morte, definitivamente finita. Mesmo acreditando que após a morte a alma se liberta do corpo e sobe ao espaço de uma forma indefinida porque não vê, não ouve, não sente, subsiste a dúvida de que sendo na terra corpo e alma uma unidade, a morte de um não determinaráo eterno desaparecimento do outro.
Chegados aqui a razão conduz ao desenlace trágico que reduz o ser humano à relatividade física da sua existência e á angustiante interrogação daquilo que estará para além da sua existência se algo estará, efectivamente. No fundo, o que a razão resiste em aceitar é o nosso desaparecimento definitivo porque se for assim somos nada e a passagem é curta. E se o for o significado moral e humanista da existência sai desvalorizado e adulterado nas nossas noções eternas de esperança e de futuro. Essa será a angústia destrutiva que a fé, qualquer fé, procura equilibrar.
Unamuno disse “já não empreendo nada que possa durar”, talvez porque durar é sempre relativo pois nada pode durar eternamente. Para conseguir ultrapassar o desespero do nada tivemos de criar formas abstractas que nos transportam a um todo universal, a uma mundividência para além do concreto e representada pelo dogma da fé que suporta a nossa vontade de infinitude.
Este tema é também ele infinito para o bem de todos. Algumas vezes, antes de adormecer conjeturo sobre ele sem que chegue, obviamente, a qualquer conclusão. Apesar das minhas dúvidas, sempre que o abordo aproximo-me um pouco mais das interrogações da matéria que, esta sim, desaparecerá comigo para sempre.
Terça-feira, 14 de Setembro de 2010
Carlos LouresNo dia 12 de Outubro de 1936, Salamanca, uma das mais belas cidades de Castela, foi cenário de um drama. Um entre milhares dos que, por aquela época Espanha foi cenário. Quando a Guerra Civil foi desencadeada, de 17 para 18 de Julho, com o desembarque do Exército de África, Salamanca foi tomada pelas tropas rebeldes no dia 22. A cidade transformou-se na capital provisória, com a instalação de ministérios e das sedes de organizações falangistas. O reitor da Universidade, Miguel de Unamuno, defendeu inicialmente a sedição contra a República, fazendo um apelo aos intelectuais europeus para que apoiassem a rebelião. A sua adesão ao movimento foi breve. A repressão criminosa à solta pela cidade, os fuzilamentos sumários, depressa o puseram contra a barbárie fascista.
Os intelectuais eram presa apetecida pelos falangistas – e fácil, pois em geral não eram de grandes resistências. Às armas, opunham às vezes belos e corajosos discursos que provocavam gargalhadas aos imbecis das camisas azuis, discursos que muitas vezes eram cortados a meio pelo ladrar das espingardas. Em fins de Julho, nos bolsos do reitor amontoavam-se cartas de familiares e de amigos, de colegas e alunos seus presos – professores, escritores, jornalistas, artistas, pedindo-lhe que usasse a sua influência para livrar os entes queridos da morte. Unamuno foi, no início de Outubro, ao paço episcopal, onde Franco estava a residir e instalara o seu posto de comando, suplicar clemência para os amigos. Em vão, pois todos iam sendo executados.
Unamuno já não acreditava naquela gente e arrependeu-se de a ter apoiado com o seu prestígio de figura mundialmente conhecida, espantando e desiludindo a intelectualidade internacional que, salvo raras excepções, condenou o golpe militar fascista contra a República. Foi-se apercebendo, dia a dia, do horror que alastrava por Espanha. Em 12 de Outubro, decorreu na sala dos actos (o «paraninfo») da Universidade a abertura solene do ano académico. Unamuno, acabrunhado, decidira não falar e tomava apontamentos enquanto os discursos «patrióticos» se sucediam. De súbito, pôs-se de pé. As palavras brotaram-lhe de um jorro, como um impetuoso rio de lava:
«Falou-se aqui de guerra internacional em defesa da civilização cristã; eu próprio o fiz. Mas não, a nossa é apenas uma guerra incivil. » (…) «Vencer não é convencer e é preciso convencer, principalmente, e não pode convencer o ódio que não deixa lugar para a compaixão. Falou-se também de catalães e bascos, chamando-lhes anti-Espanha; pois bem, com a mesma razão podem eles dizer o mesmo. E aqui está o senhor bispo, que é catalão, para vos ensinar a doutrina cristã que não quereis conhecer, e eu, que sou basco, levei toda a minha vida a ensinando-vos a língua espanhola, a qual não sabeis…»
Nesta altura, o general Millán-Astray, que odiava Unamuno, que o acusara de corrupção, começou a gritar «-Posso falar? Posso falar?» A sua escolta puxou das armas e alguém entre o público gritou - «Viva a morte!». O general derramou todo o seu estúpido rancor, designando a Catalunha e o País Basco como cancros de Espanha. Contudo, acrescentou, o fascismo redentor de Espanha iria exterminá-los cortando em carne viva como um frio bisturi. Estava tão enraivecido que ficou sem voz. Ouviram-se então diversos vivas a Espanha. Fez-se um silêncio absoluto e mortal. Os olhos voltaram-se para Unamuno. Erguendo-se, este proferiu um discurso que seria a sua derradeira lição, a sua lição magistral:
«Conheceis-me bem e sabeis que não sou capaz de ficar em silêncio. Por vezes, ficar calado é o mesmo que mentir, pois o silêncio pode ser interpretado como aceitação» (…) «Acabo de ouvir o grito necrófilo e insensato de “Viva a morte!” Isto soa-me igual a “Morra a vida”. E eu que passei toda a vida a criar paradoxos que provocaram a reprovação e o enfado daqueles que os não compreenderam, tenho de vos dizer, com autoridade na matéria, que este ridículo paradoxo me parece repelente. Uma vez que foi proclamada em homenagem ao último orador, entendo que foi a ele dirigida, se bem que de uma forma excessiva e tortuosa, como testemunho de que ele próprio é um símbolo da morte. E outra coisa. O general Millán-Astray é um inválido. Não é preciso que o diga em tom mais baixo. É um inválido de guerra. Também o foi Cervantes. Porém os extremos não servem como norma. Desgraçadamente, hoje em dia há demasiados inválidos. E depressa haverá mais se Deus não nos ajudar. Custa-me pensar que o general Millán-Astray possa ditar normas de psicologia de massas. Um inválido que não tenha a grandeza espiritual de Cervantes, que era um homem, não um super-homem, viril e completo apesar das suas mutilações, um inválido, como disse, que não possua essa superioridade de espírito, costuma sentir-se aliviado vendo como aumenta o número de mutilados em seu redor» (…)«O general Millán-Astray gostaria de criar uma Espanha nova, criação sem dúvida negativa, à sua própria imagem. Por isso ele desejaria uma Espanha mutilada».
Millán-Astray que entretanto recuperara a voz, rugiu: «Morra a inteligência!». Unamuno respondeu-lhe com a serenidade de quem se sabe perdido: «Este é o templo da inteligência! E eu sou o seu supremo sacerdote! Vós estais profanando o seu recinto sagrado. Sempre fui, apesar do que diz o provérbio, profeta no meu próprio país. Vencereis, mas não convencereis. Vencereis porque tendes força bruta de sobra; mas não convencereis, porque convencer significa persuadir. E para persuadir necessitais de uma coisa que vos falta – razão e direito na luta. E parece-me inútil pedir-vos que penseis em Espanha».
Carmen Polo, a mulher de Franco, deu o braço Unamuno e acompanhou-o até sua casa, protegendo-o da fúria dos falangistas. O marido censurou Millán por não ter executado o professor logo após o seu discurso. Houve quem propusesse a sua expulsão do cargo de reitor, acusado de tudo, o que da perspectiva fascista era condenável. Em 22 de Outubro Franco assinou o decreto da destituição. Prisioneiro em sua casa, deu uma entrevista ao escritor e filósofo grego Nikos Kazantzakis (1883-1957) em que, em certo passo, afirmou: «Um dia, em breve, levantar-me-ei, e lançar-me-ei na luta pela liberdade, eu sozinho. Não, não sou fascista, nem bolchevista; sou um solitário». Morreu em sua casa em 31 de Dezembro de 1936, de doença súbita. Apesar de tudo o que se tinha passado e de praticamente o terem mantido sob prisão domiciliária, os falangistas fizeram-lhe um funeral exaltante, como se em vida ele tivesse sido um deles. Morto, já não os pode desmentir nem afrontar.
Ortega y Gasset escreveu: «A voz de Unamuno ecoava sem parar por toda a Espanha há um quarto de século. Ao cessar para sempre, temo que o nosso país sofra uma era de silêncio atroz». Não se enganou – o «silêncio atroz» iria durar até 1975 e os seus ecos, traduzidos na herança que o regime democrático recebeu do fascismo, ressoam ainda na imposição de uma Espanha «Una» que sufoca a liberdade na Catalunha, no País Basco e na Galiza.
Quarta-feira, 18 de Agosto de 2010
Carlos LouresA ideia de uma Península Ibérica unida politicamente não é nova. Não falando nos episódios históricos remotos em que ora Portugal, ora Castela, se tentavam mutuamente devorar, através de artimanhas, como a política de casamentos entre descendentes das linhas dinásticas ou de acções militares, episódios que tiveram o seu auge quando, entre 1580 e 1640, três reis de Castela e Aragão juntaram à sua coroa dual a de Portugal, reportando-nos a tempos mais recentes, o ideal do Iberismo tem feito correr tinta e dado que falar. Vejamos.
Personalidades como Antero de Quental, Ana de Castro Osório, Latino Coelho, Sampaio Bruno, Teófilo Braga, entre os portugueses, manifestaram, de uma maneira ou de outra, a sua simpatia por essa união. Do lado castelhano, refere-se quase sempre o mesmo nome – Miguel de Unamuno, o grande escritor e pensador nascido no País Basco, mas indubitavelmente um homem da cultura castelhana, reitor da Universidade de Salamanca no conturbado ano de 1936 em que a Espanha iria mergulhar na maior tragédia da sua história.
O pioneiro desta ideia na sua versão contemporânea, tanto quanto julgo saber, foi um andaluz de Utrera – José Marchena y Ruíz de Cueto (1768-1821) – que no seu Aviso al pueblo español (1792), propôs uma federação ibérica e republicana. Outro pioneiro, foi o catalão Joan Prim i Prats (1814-1870), militar e político que propôs um modelo federal para Portugal e Espanha. Morto num atentado o general Prim i Prats, foi a sua concepção de organização do Estado adoptada na Primeira República, proclamada em 1873 (sem a componente portuguesa, claro).
Na Catalunha, a ideia colheu mais adeptos, destacando-se o grande poeta e filósofo Joan Maragall, o lusófilo Ignasi Ribera i Rovira, Francesc Pi i Margall , presidente da Primeira República Espanhola, em 1873. Mais recentemente ainda, portugueses como Miguel Torga, Fernando Lopes-Graça, António Lobo Antunes, Eduardo Lourenço, José Saramago, entre outros, têm manifestado a sua simpatia por essa união que, olhando para o mapa da Europa, faz sentido. Falamos de uma união política, para concretização da qual seria necessário articular instrumentos constitucionais, limar arestas culturais, varrer preconceitos e desconfianças mútuos.
Teófilo Braga chegou a planificar as bases de uma Federação Ibérica, dentro da qual a Espanha teria de aceitar condições sine qua non: passar a ser uma República, dividir-se em estados autónomos aos quais Portugal se juntaria. Lisboa seria a capital dessa Federação Ibérica. Ana de Castro Osório via a união a três – «Catalunha, Castela, Portugal…Quem pudesse dar-lhes a autonomia que ambicionam os catalães e sem a qual hão-de estar sempre vexados e com razão!» Esta ideia das três entidades – Portugal, Castela e Catalunha, esquecendo a Galiza e o País Basco, enformava quase todas as teses iberistas do princípio do século XX, incluindo as de Unamuno, Ribera i Rovira, Maragall, Antero e Teófilo Braga. A ideia prevalecente era a de uma Federação de estados autónomos em quase todos os aspectos, com centros de decisão comuns – a política externa, por exemplo. E a tinta começou a correr.
Em 1906, Joan Maragall, em artigo publicado no Diario de Barcelona, defendia o ideal do federalismo ibérico. Mais perto de nós, em 1963, o escritor catalão Agustì Calvet i Pasqual, que assinava os trabalhos jornalísticos como Gaziel, escrevia no La Vanguardia, também de Barcelona, que «Poucas vezes a insensatez humana terá estabelecido uma divisão mais falsa» (do que a das fronteiras peninsulares) «Nem a geografia, nem a etnografia nem a economia justificam esta brutal mutilação de um território único».
Reunião, em Coimbra, do Círculo de Cultura Íbero-Americano - da esquerda para a direita: Egito Gonçalves, Carlos Loures, Eduardo Guerra Carneiro e António Cabral. Fèlix Cucurull esteve na reunião de Sábado, partindo para Lisboa ao fim do dia. A foto foi tirada no Domingo de manhã.Nestes mesmos anos 60 do século passado em que Gaziel publicava o seu texto, um grupo de jovens ibéricos criou um Círculo de Cultura Íbero-Americano, com objectivos confessadamente culturais e inconfessadamente políticos. Fiz parte desse grupo. Éramos meia dúzia de portugueses, gente de Lisboa, do Porto e de Vila Real, alguns catalães e maiorquinos, um escritor castelhano de Ciudad Real, um ou outro sul-americano. Elemento comum: todos vivíamos sob ditaduras e o ansiarmos pela Democracia fazia-nos aceitar uma solução em que o ideal democrático estivesse envolvido. Fizemos reuniões, publicámos livros, estávamos a preparar um boletim multilingue, quando a PIDE acabou com a festa, prendendo um de nós, o que centralizava os contactos.
Em Barcelona, houve também pelo menos uma prisão, a de um escritor catalão que a nós estava ligado. Não digo nomes, pois não sei se os outros elementos do grupo querem, ou quereriam (alguns já não são vivos), que se saiba que foram iberistas. Eu assumo que o fui. Na época, as federações pareciam funcionar bem – Jugoslávia, Checoslováquia, União Soviética… - e se era bom para eles, com culturas, línguas e até com religiões diferentes, também não podia ser mau para nós. No entanto, a guerra que dilacerou a Jugoslávia e restaurou a independência das seis nações que a constituíam, demonstra-nos que as nacionalidades são como os cursos de água que, durante as inundações, recuperam os leitos ocupados pelo cimento, usurpados pela ganância dos construtores civis. Podem ser submetidas pela força militar ou pela artimanha diplomática mas, mais tarde ou mais cedo, o sentimento patriótico explode no peito daqueles cuja independência foi suprimida. Depois desta sumária descrição do que tem sido o Iberismo e da confissão de que já fui um iberista convicto, vem a parte dramática deste texto e que se refere a um iberismo mais recente.
Nestes casos, talvez seja melhor falarmos de iberismo integracionista.
(Continua)
Segunda-feira, 9 de Agosto de 2010
Manuel Fernandes Laranjeira (1877-1912) - IXManuel Fernandes Laranjeira nasceu no lugar de Vergada, freguesia de Moselos, concelho de Vila da Feira, em 17 de Agosto de 1877.
A família é pobre e a marca das pestes físicas e espirituais da época pobreza, analfabetismo, alcoolismo e tuberculose deixou as suas sequelas, através do desaparecimento do progenitor e de cinco dos seus filhos (quatro rapazes e uma rapariga), guiando manifestamente os percursos do futuro médico de Espinho
É graças à herança recebida depois da morte de um tio brasileiro que Manuel Laranjeira prossegue estudos e consegue formar-se em Medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto.
Em 1904 concluiu as cadeiras do curso de Medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, apresentando a sua dissertação de licenciatura três anos mais tarde, trabalho a que deu o título algo invulgar de A Doença da Santidade — Ensaio Psicopatológico sobre o Misticismo de Forma Religiosa.
Anteriormente publicara na revista «O Porto Médico» o seu primeiro trabalho de índole científica: Nirvana — Interpretação Psicológica de um Dogma.
Posteriormente fixou-se em Espinho, de onde nunca mais sairia, onde exerceu clínica e prosseguiu uma constante actividade como periodista.
Médico, autor de uma obra diversa nos domínios do teatro, poesia, diário, cartas e jornalismo, em parte apenas conhecida após a sua morte, Manuel Laranjeira relacionou-se com algumas das principais figuras culturais do início do século XX, como António Patrício, António Carneiro, Amadeo de Souza-Cardoso ou o filósofo espanhol Miguel de Unamuno, de quem foi correspondente.
A obra de Manuel Laranjeira transmite-nos a sensibilidade profunda de um sonhador que percorre o seu tempo em constantes batalhas interiores, desesperando com as inúmeras leituras desconcertantes e desencantadas das realidades que os seus olhos identificam como produto do meio envolvente.
A uma poesia disciplinada pelo sentir do seu tempo, opõe-se uma prosa livre e circunstanciada pela pressão dos acontecimentos. A um teatro, humanamente problematizado como espelho dos dramas, risos, virtudes e desfavores da sociedade de então, surge-nos, em paralelo, o ensaio penetrante e demonstrativo de um espírito efervescente e rebelde de um oposicionista às situações impostas aos homens.
Interessou-se vivamente por estudos sobre diversos ramos da ciência, sobretudo Biologia, e escreveu com alguma regularidade sobre assuntos tão variados como Literatura, Crítica Literária, Arte, Estética, Filosofia Social e Pedagogia. Neste último domínio teve à época alguma ressonância o seu opúsculo sobre o valor educativo do método de João de Deus, A Cartilha Maternal e a Fisiologia, onde procurava relacionar aspectos do pensamento de Spencer e Felix Le Dantec com o método pedagógico do poeta do Campo de Flores.
A sua preocupação com a divulgação das ideias políticas, sociais e científicas modernas levou-o a proferir conferências, de que vale a pena destacar as que tiveram lugar na Universidade Livre do Porto, sob o tema «A Vida», em 1906, ano em que desenvolveu actividade bastante intensa e, um ano antes da sua morte, no Teatro Aliança de Espinho, sobre a protecção da vila contra as investidas do mar, que bem reflecte a sua preocupação com problemas de ordem social imediata.
Uma primeira impressão resultante da leitura do Diário e das Cartas dá-nos um Laranjeira céptico, fechado em si mesmo, descrente já da possibilidade da melhoria da mentalidade nacional e afastado da procura de soluções para os grandes ou pequenos problemas da sociedade portuguesa de então. É por isso um pouco difícil imaginar o homem que vamos encontrar por detrás da escrita ora amargurada ora entediada do Diário ser eleito Presidente da Comissão Municipal Administrativa de Espinho e exercer cargos públicos como o de Administrador do Concelho ou andar pelas ruas a abraçar efusivamente os amigos no dia da implantação da República.
Ainda no tocante à sua actividade literária temos notícia de um espírito interessado pelo teatro e possuidor de uma grande cultura teatral; faz crítica de teatro e escreve, influenciado por Ibsen, Strindberg, Hauptmann e Drieux o prólogo dramático ...Amanhã, publicado em 1902 e representado em Lisboa, dois anos depois, na récita inaugural do grupo «Teatro Livre» que tomou como modelo o «Théatre-Libre» de Antoine.
Este prólogo tem sido considerado, apesar de muitas imperfeições a melhor obra cénica da escola naturalista. Escreveu ainda o drama em um acto Às Feras, também representado pelo «Teatro Livre», em 1905; a farsa em um acto Naquele engano d’alma, igualmente representada e deixou inacabada a peça Almas Românticas, as três últimas ainda inéditas.
No domínio da poesia uma única incursão: o livro Comigo (versos dum solitário), publicado no Porto muito pouco antes da sua morte, em Janeiro de 1912, e que, com uma ou outra passagem de maior interesse pelo radicalismo invulgar com que os assuntos são tratados, é uma obra formalmente tradicionalista que se perde entre tantas outras colectâneas de poemas surgidos por esse tempo.
Esmagado pelo peso de uma «melancolia venenosa» que vai degenerando na apatia dum tédio irreversível de que darão conta as páginas do seu Diário Intimo e das Cartas, divide-se entre o várias vezes referido dever de apoio e assistência à família com que vive, e sobretudo a sua mãe, que parece ser tudo o que lhe resta duma infância sempre velada de que se sente nostálgico, e uma ânsia de evasão para algo indefinido, ambiguamente chamado Ideal, que nunca se determina, sendo raríssimas as vezes em que dá mostras de acreditar na possibilidade de sair da monotonia em que se sente submergido.
Os momentos de entusiasmo e de relativa crença são raros. O cepticismo e o tédio vão minando aos poucos o seu pensamento. Os últimos anos aceleram o processo de crise constante da sua vida. Em 1909 rompe a sua ligação com a sua companheira Augusta, que povoa as páginas do Diário e é motivo para muitas e reveladoras reflexões que nele encontramos.
Um ano depois, a Implantação da República não será senão o começo de um lento desmoronar de sonhos, planos e expectativas. O agravamento da doença ajuda a fenecer o ânimo e Laranjeira junta o seu nome à lista dos suicidas como Camilo, Antero, Soares dos Reis e outros que, com «a morta» de que nos fala no Diário, exerceram sobre a sua sensibilidade um ambíguo mas persistente apelo e reforça assim o mito unamuniano da «raça de suicidas». Unamuno, seu companheiro de conversas e deambulações por Espinho a quem em Outubro de 1908 escrevia amargamente a propósito de Portugal: «Neste malfadado país tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa.»
Manuel Laranjeira seguiu as tendências do seu espírito. Na medicina percorreu os caminhos da nevrostenia, enquanto que na literatura e na palavra jornalística defendeu a ousadia de ser irreverente, imprimindo às suas críticas, à sua conversa e aos seus breves comentários, o encanto de uma vida intensa, o interesse e a paixão pela estética do seu tempo, independentemente se tratasse da cor de um risco de pincel ou de um conceito fulgurante de uma frase.
O poeta entrou no grande mistério pela mesma “porta” que Antero e Camilo, suicidou-se, ou por outras palavras, procurou encontrar a sua última verdade. Aquela que, nas suas próprias expressões, é descrita como o desmanchar da última ilusão, a ilusão da imortalidade.
A medida que lemos as linhas convulsionadas que vai escrevendo quotidianamente surge no nosso pensamento, ressuscitado das brumas espessas dessa praia do norte, uma figura indecisa, mal caracterizada que amamos e detestamos como tudo o que há de muito profundo em nós. Poderia ter sido um mito vivo, espécie de «escritor maldito» caseiro, não fosse ter-se suicidado num país que prefere alimentar o seu imaginário de poeirentos cavaleiros bélicos e desajeitadas sombras políticas.
Comecemos uma aproximação de Manuel Laranjeira antes de mais imaginando o seu retrato físico.
Alberto de Serpa imaginou-o assim:
« (...) carregado de fumo de tabaco e sonho, chegava a figura do suicida, trazida pelos passos incertos de tabético. Tomava uma das suas posturas descompostas: o tronco de magricelas desequilibrado na cadeira, a tombar sobre o mármore sujo de bebidas e cinzas, que enodoava mais a vestimenta desleixada; as pernas estiradas, em cruz nos joelhos inseguros; o chapéu mal sustido na floresta negra da cabeleira; a bengala em riste, a marcar o compasso dos pensamentos sem ou com ordem. Na face de prognata e tuberculoso hereditário, urna barbita rente sempre mal rapada, bigode fecundo que rimava com a cabeleira, olhos negros, enormes, avelulados. E bebia e fumava...»
Laranjeira sofria de tuberculose que provavelmente o acabaria por vitimar em pouco tempo, como aconteceu a seu pais seu irmão e outros familiares, se não se tivesse suicidado. Sofria também acentuadamente de tabes, doença que se caracteriza por urna ataxia progressiva dos membros locomotores. Encontram-se ainda nos seus escritos referências à sífilis.
Existem vários indícios de que a morte, longe de ter sido um acontecimento de último momento ou de gesto repentino foi, antes, uma atitude pensada e gerida num tempo mais ou menos longo.
O escritor sentir-se-á como mais um filho de uma pátria moribunda, onde a realidade vivida perdeu o significado e qualquer tipo de atracção.
Se se tivesse acomodado à ordem da cidade jacobina talvez houvesse conseguido uma cadeira nas «constituintes, com alguma dificuldade – mas sempre possível – uma «pasta» num ministério qualquer, apesar de tudo conseguiria com maior facilidade as gorjetas da propaganda, que distribuíam alguns lugares de destaque intermédio no aparelho de Estado e nas administrações de bancos, empresas públicas, governos das colónias. Porém, o médico de Espinho, tal como mostrara os punhos indignados à Monarquia, insistira em dizer do seu desdém intelectual pelos corifeus do novo regime. A República tinha pois que o marcar pela indiferença.
Fidelino de Figueiredo dirá dele:
«(...) em Espinho principalmente, viveu de 1877 a 1912 um homem de aguda sensibilidade intelectual e brava independência de carácter, o médico Manuel Laranjeira, curta vida de luta e amargura — luta com uma doença nervosa de quem quer viver em harmonia com a sua concepção da vida e esbarra em obstáculos intransponíveis. Ao seu drama não deveria ter sido estranha uma certa abulia mórbida. Não era um homem de laboratório. Era um amigo das ideias gerais e um curioso dos aspectos dramáticos da existência. A medicina proporcionou-lhe materiais para a sua interpretação pessimista do homem: um escravo das suas míseras limitações físicas; o seu temperamento pessoal e a exacerbação da doença explicam o resto: a coragem triste do suicídio».
Tomando o fio de Unanumo, seguindo a interpretação de Fidelino de Figueiredo, teremos um Manuel Laranjeira que procurava viver em harmonia com a sua concepção de vida, à qual não faltava a sensibilidade intelectual, portanto, um grande pensador e, por acréscimo, um grande «sentidor».
O que nem um nem outro disseram é que Manuel Laranjeira procurou viver de harmonia com a pátria que sentia doente e, por essa mesma razão, foi aos poucos sofrendo ele próprio os sintomas dessa doença, como se ela se houvesse corporizado em si. Poderia ter emigrado, exilar-se, mas não parece ter pretendido sobreviver. Procurou no suicídio terminar com a «doença de pátria» que em si corporizou uma doença física, real?
Em 1908, comunica a Unanumo a existência do império mental da morte: «Em Portugal chegou-se a este princípio de filosofia desesperada — o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção moral. Neste malfadado país, tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa». Na terra das amarguras só tinha então curso a carreira suicidária. Unanumo ficou pois informado de que em Portugal só haveria triunfo para o «canalha»:
«Chegámos a isto amigo. Eis a nossa desgraça. Desgraça de todos nós, porque todos a sentimos pesar sobre nós, sobre o nosso espírito, sobre a nossa alma desolada e triste, como uma atmosfera de pesadelo, depressiva e má. O nosso mal é uma espécie de cansaço moral, de tédio moral, o cansaço e o tédio de todos os que se fartaram — de crer.» Disto só se poderia sair arrancando-se à vida: «Crer...! Em Portugal, a única crença ainda digna de respeitar é a crença na morte libertadora/E horrível, mas é assim.»
Um cadáver adiado perfila-se. Manuel Laranjeira pretenderia autopsiar antecipadamente aquilo que já lhe parecia estertor do moribundo. O sentimento difuso da responsabilidade republicana escondeu-se muita vez atrás do sofrimento destes inquietos, cobrindo-os com o seu manto indiscriminadamente, como se todos eles fossem seus filhos legítimos.
A natureza da crise colocaria sobre os ombros destes inquietos um peso que eles consideravam insuportável. Era a revolta dos que se recusavam a ser escravos do meio ambiente e se apresentavam como gladiadores na Arena política, julgando que fugiam, assim, à planificação mortal. Manuel Laranjeira respeitava, portanto, o suicídio enquanto derradeiro grito libertador e regulador do que havia de melhor na constituição dos portugueses.
Manuel Laranjeira encontrava os talentos enferrujados devido à falta de carácter e, simultaneamente, os caracteres fortes a deixarem avançar a doença devido à falta de vontade para levarem a fundo a única revolução verdadeiramente importante. Daí desenvolvia o seu conceito moral de história, oposto à interpretação da política dinâmica do jacobinismo. A mudança de regime não pareceu curar os doentes nem salvar a pátria da derrocada.
«O mal da minha terra, amigo, não é a demagogia: é a inépcia. Em Portugal não há demagogia: falta-nos fanatismo cívico para isso. Em Portugal o que há é uma inverosímil colecção de idiotas.»
Para ele a qualidade da mudança centrava-se na transformação das mentalidades: «Fez a revolução. Foi uma verdadeira revolução? Não; foi apenas um povo que mudou de traje. Por dentro estamos na mesma.».
A mudança de regime não trouxera nada segundo Manuel Laranjeira alvitrava.
Após a implantação da República declarou-se que o país estava curado, o doente agradeceu a ideia, como quem aceita uma mentira piedosa, mas sabia que não estava definitivamente restabelecido. Os jacobinos afirmaram que a pátria convalescia. Manuel Laranjeira não se adaptou às convenções que esta mentira impunha. Em vez de fazer política, defendeu com independência o seu parecer sobre o estado do país. As suas ideias tornaram-se subversivas: «(...) É preciso refazer tudo, refundir a sociedade portuguesa de baixo para cima, incansavelmente, obstinadamente.».
O médico de Espinho recusava-se a encarreirar no rebanho republicano. Então, a República marcou-o e, mais do que isso, quando a sua voz se tornou impertinente, sem o perseguir nem perder tempo com avisos, votou-o à liquidação pela indiferença, procurou queimá-lo pelo desdém.
Em torno de Manuel Laranjeira traçou-se um círculo de silêncio, uma terra de ninguém povoada de vazio. A sua inquieta e preocupada visão do apocalipse lusitano tinha um cunho intervencionista demasiado vincado: a autoridade jacobina não era poupada. Para o médico de Espinho, ao envergonhar-se de confessar que errara, tanto mais errava o republicanismo ao dissimular os seus erros.
Portugal, sumindo-se, apagando-se na dispensa de se reformar em grande e profundo, obrigava Manuel Laranjeira a apagar-se também.
O crente na religião patriótica, ponderando sobre o estado de sítio, raciocionando, palpando as partes doridas da alma enferma, não poderia deixar de avaliar os progressos do mal. Pátria-hospital. Pátria-enfermaria, finalmente pátria-morgue, sem corpo clínico que a vigiasse, sem especialista que lhe identificasse a doença. Era pois um doente que tinha de experimentar, descobrir a terapêutica adequada. Um doente que se reflectia no país, por simpatia e solidariedade para com os outros. Deste paradoxo resultavam as inquietações do médico de Espinho.
Paulatinamente, vamos assistindo ao funeral da pátria, O cortejo funerário de Manuel Laranjeira tem todos os adereços da cena trágica. Com a pátria que se finava terminavam os seus dias meia dúzia de coisas que lhe serviam de amparo.
A doença predispô-lo para a solidão e para o pessimismo, manifestos numa visão trágica da existência e numa atitude de ensimesmamento, com explosões de revolta e desespero, de cepticismo e niilismo, culminantes no suicídio.
«Na noite de quinta-feira última, cerca das 23 horas, faleceu o dr. Manuel Laranjeira. Martirizado por horrível e desesperante sofrimento, o dr. Manuel Laranjeira pôs termos à existência, desfechando um tiro de revólver na cabeça!
O trágico desenlace desse drama acidentado da vida de Manuel Laranjeira deixou nos seus amigos uma nota contristadora de uma tremenda catástrofe. É indizível o espírito de consternação e lancinante mágoa que a todos foi transmitido.»
in «Gazeta de Espinho» 25/2/1912
Quarta-feira, 21 de Julho de 2010
O QUE FOI SEPULTADOMiguel de UnamunoA mudança de comportamento sofrida pelo meu amigo, era extraordinária. Um rapaz jovial, espirituoso e despreocupado, transformara-se num homem tristonho, taciturno e excessivamente escrupuloso. Eram frequentes os seus momentos de abstracção e, durante esses momentos dir-se-ia que o seu espírito viajava por caminhos de outro mundo. Um dos nossos amigos, leitor e decifrador assíduo de Browning, recordando a estranha composição em que este nos fala da vida de Lázaro depois de ressuscitado, costumava dizer que o pobre Emilio visitara a morte. E fizemos todas as diligências para adivinhar a causa daquela misteriosa mudança de feitio; mas foram diligências infrutíferas.
Contudo, de tal modo e com tal insistência o assediei que, finalmente, um dia, deixando transparecer o esforço que custa tomar uma resolução difícil e muito reprimida, subitamente me disse: «Pois bem, vais saber o que me aconteceu, mas exijo que, por tudo o que te seja mais sagrado, não o contes a ninguém enquanto eu não tiver voltado a morrer.» Prometi-lho com toda a solenidade e levou-me à sua sala de estudo, onde nos fechámos.
Depois da sua transformação, eu não voltara a entrar naquela divisão. Nada fora modificado, embora agora me parecesse mais em consonância com o dono. Por momentos pensei que fora aquela sua salinha preferida que o transformara de forma tão surpreendente. A sua velha e ampla poltrona de couro, com os seus grandes braços, pareceu-me assumir um novo sentido. Estava a examiná-la quando Emilio, depois de ter fechado cuidadosamente a porta, me disse, apontando o cadeirão:
- Foi ali que tudo aconteceu.
Olhei-o sem perceber.
Indicou-me que me sentasse na sua frente, numa cadeira que estava do outro lado da sua pequena secretária de trabalho, acomodou-se no seu cadeirão e começou a tremer. Eu não sabia o que fazer. Por duas ou três vezes tentou começar a falar e outras tantas foi obrigado a desistir. Estive quase a propor-lhe que esquecesse a sua confissão, mas a curiosidade foi mais forte do que a piedade; é sabido que a curiosidade é uma das coisas que mais contribuem para a crueldade do homem. Permaneceu um momento com a cabeça entre as mãos e os olhos baixos; sacudiu-se depois, como quem toma uma súbita decisão, e começou:
- Bem, tu não vais acreditar numa palavra sequer do que te vou contar, mas isso não interessa. Contando-to, libertar-me-ei de um grande peso, e isso basta-me. – Não me lembro do que lhe respondi, e prosseguiu:
- Há coisa de um ano e meio, meses antes do mistério, caí doente de terror. A doença não se me notava nada, nem tinha qualquer manifestação exterior, embora me fizesse sofrer horrivelmente. Tudo me metia medo e me parecia envolver numa atmosfera de terror. Pressentia vagos perigos. Sentia permanentemente a invisível presença da morte, da verdadeira morte, ou seja, do total aniquilamento. Acordado, ansiava porque chegasse a hora de me deitar para dormir e, uma vez na cama, atacava-me o temor de que o sono se apossasse de mim para sempre. Era uma vida insuportável, terrivelmente insuportável. E nem sequer me sentia com força de vontade para me suicidar, coisa que, pensava eu na altura, seria uma solução. Cheguei a temer pelo meu juízo…
- E por que não consultaste um especialista? – perguntei só para dizer alguma coisa.
- Tinha medo disso, como tinha de tudo. E este medo foi crescendo de tal modo, que cheguei ao ponto de passar dias inteiros neste quarto e neste cadeirão onde agora estou sentado, com a porta fechada, e olhando para trás a cada momento. Tinha a certeza de que a situação não podia prolongar-se e que se aproximava uma catástrofe ou lá o que fosse. E, com efeito, aconteceu.
Neste ponto, deteve-se por momentos, parecendo hesitar:
- Não te admires de eu hesitar – prosseguiu – porque aquilo que vais ouvir nunca o disse sequer a mim próprio. O medo era já algo que me oprimia por todos os lados, que me punha um nó na garganta, ameaçando fazer estoirar o coração e a cabeça. Chegou um dia, em sete de Setembro, em que acordei no paroxismo do terror; o corpo e o espírito entorpecidos. Preparei-me para morrer de medo. Como todos os dias, fechei-me aqui, sentei-me onde agora estou sentado e comecei a invocar a morte. E, como é natural, ela chegou – Notando o meu olhar, acrescentou tristemente: - Sim, já sei o que pensas, mas não me importo. – E prosseguiu: - Estando aqui sentado, com a cabeça entre as mãos e os olhos fixos num ponto impreciso, para além da superfície desta secretária, senti que a porta era aberta e que um homem entrava cautelosamente. Não quis erguer os olhos. Ouvia as batidas do coração, mal conseguia respirar. O homem deteve-se e ficou aí, por detrás dessa cadeira onde estás sentado, de pé e, sem dúvida, fitando-me. Passado um bocado, decidi-me a erguer os olhos e a vê-lo. O que então me percorreu foi indescritível; não existe para o exprimir nenhuma palavra na língua dos homens que morrem apenas uma vez. Quem estava ali, de pé, diante de mim, era eu, eu mesmo, pelo menos em imagem. Imagina que estando diante de um espelho, a imagem que de ti nele se reflecte, se solta, ganha corpo e te cai em cima…
- Sim, uma alucinação… – murmurei – Disso já falaremos – disse, e continuou:
- Mas a imagem do espelho ocupa o lugar onde estás e segue os teus movimentos, enquanto aquele meu eu de fora estava de pé, enquanto o eu de dentro, permanecia sentado. Por fim, o outro sentou-se também, onde tu te sentas, colocou os dedos sobre o tampo da secretária, como tu os tens, e ficou a olhar-me, como tu agora me olhas.
Não consegui reprimir um estremecimento ao ouvir isto e ele, tristemente, disse-me:
- Não, não tenhas tu medo também; eu sou pacífico. – E continuou:
- Estivemos assim por um momento, olhando-nos mutuamente nos olhos, quer dizer, estive um momento olhando-me nos olhos. O terror transformara-se noutra coisa muito estranha e que não sou capaz de te definir; era o cúmulo do desespero resignado. Ao cabo de pouco tempo senti que o chão me desaparecia sob os pés, que o cadeirão se dissolvia, que o ar se rarefazia, tudo o que o meu olhar abrangia, incluindo o outro eu, se iam esfumando, e ao ouvir o outro murmurar muito baixinho e com os lábios fechados: «Emilio. Emilio», senti a morte. E morri.
Não sabia o que fazer ao ouvi-lo dizer isto. Senti a tentação de fugir, mas a curiosidade venceu o meu medo. E ele continuou:
- Quando, pouco tempo depois, voltei a mim, quer dizer, quando, pouco tempo depois, voltei ao outro, quer dizer, quando ressuscitei, encontrei-me sentado aí, onde te encontras agora sentado e onde o outro se sentara antes, com os cotovelos apoiados na mesa e a cabeça entre as palmas das mãos, olhando-me a mim mesmo, que estava onde agora estou. A minha consciência, o meu espírito, passara de um para o outro, do corpo primitivo para a sua exacta reprodução. E vi-me, ou vi o meu anterior corpo, lívido e rígido, quer dizer, morto. Assistira à minha própria morte. E limpara-se-me a alma daquele estranho terror. Estava triste, muito triste, abismalmente triste, mas sereno e sem medo de nada. Compreendi que teria de fazer alguma coisa; não podia ficar assim, com aquele cadáver do meu passado. Com toda a tranquilidade reflecti sobre o que me convinha fazer. Levantei-me dessa cadeira, e tomando o meu pulso, quer dizer, tomando o pulso ao outro, convenci-me de que já não vivia. Saí do escritório, deixando-o aqui encerrado, desci ao quintal e, sob qualquer pretexto, comecei a abrir uma grande cova. E bem sabes como sempre gosteis de fazer exercício no quintal. Dispensei os criados e esperei pela noite. E quando a noite chegou, carreguei o meu cadáver às costas e enterrei-o na cova. O pobre cão olhava-me com olhos de terror, mas de terror humano; era, pois, o seu olhar um olhar humano. Afaguei-o, dizendo-lhe: não compreendemos nada do que se passa amigo, e no fundo isto não é mais misterioso do que outra coisa qualquer…
- Parece-me uma reflexão demasiado filosófica para ser dirigida a um cão – disse-lhe.
- Porquê? – perguntou – ou julgas que a filosofia humana é mais profunda do que a canina?
- Julgo é que não entenderia nada.
- Nem tu, e não és cão!
- Homem, claro que entendo.
- Claro, e julgas-me louco… – e vendo que me calava, acrescentou:
- Agradeço-te esse silêncio. Nada detesto mais do que a hipocrisia. E quanto a isso das alucinações, devo dizer-te que tudo o que apreendemos mais não são do que alucinações, todas as nossas impressões. A diferença é de ordem prática. Se caminhas por um deserto, consumido pela sede e de repente ouves o murmúrio da água de uma fonte e vês a água, tudo isso não passa de uma alucinação. Mas se nela mergulhas a boca e bebes e a sede se apaga, chamas a esta alucinação uma impressão verdadeira, de realidade. O que significa que o valor das nossas percepções se mede pelo seu efeito prático. E pelo seu efeito prático, efeito que pudeste observar por ti mesmo, é segundo calculo o que aqui me sucedeu e acabo de te contar. Porque vês bem que eu, sendo o mesmo, sou, no entanto, outro.
- Isso é evidente…
- Desde então, para mim, as coisas continuam a ser as mesmas, mas vejo-as de outra maneira, com outro sentimento. É como se o tom, o timbre, de tudo tivesse mudado. Vós julgais que fui eu quem mudou, a mim parece-me que o que mudou foi todo o resto.
- Como caso de psicologia… murmurei.
- De psicologia? E de metafísica experimental.
- Experimental? – Exclamei.
- Acho que sim. Mas falta ainda uma coisa. Vem comigo.
- Saímos da salita e levou-me a um canto do quintal. Comecei a tremer como se estivesse febril e ele, observando-me, disse:
- Estás a ver? Estás a ver? Também tu! Tem coragem, racionalista!
Verifiquei então que transportava uma enxada consigo. Utilizou-a para cavar, enquanto eu continuava pregado ao chão por um estranho sentimento, misto de terror e de curiosidade. Ao cabo de um momento, ficaram a descoberto a cabeça e parte dos ombros de um cadáver humano, quase um esqueleto. Apontou-o com dedo, dizendo-me:
- Olha para mim!
Não sabia o que fazer ou o que dizer. Voltou a tapar a cova. Eu não me mexia.
- O que se passa contigo, homem? – Disse, sacudindo-me o braço.
Julguei despertar de um pesadelo. Olhei-o de uma forma que devia ser o cúmulo do espanto e do terror – Sim – disse – agora pensas num crime; é natural. Mas ouviste falar de alguém que tenha desaparecido sem que se saiba do seu paradeiro? Achas possível haver um crime assim sem que se descubra? Acreditas que sou um criminoso?
- Eu não acredito em nada – respondi-lhe.
- Agora sim, falaste verdade: tu não acreditas em nada, não consegues explicar seja o que for, começando pelas coisas mais simples. Vós, os que vos considerais sãos, não tendes outro instrumento que não seja a lógica e, desse modo, viveis às escuras…
- Muito bem – interrompi-o – e tudo isto, o que significa?
- Lá começamos nós! Já estás à procura da solução ou da moralidade da história. Pobres loucos! Pensais que o mundo é uma charada ou hieróglifo cuja decifração é preciso encontrar. Não, homem, não; isto não tem qualquer solução, não é uma adivinha, nem se trata de achar qualquer simbolismo. Isto sucedeu tal e qual te contei e, se não queres acreditar, é lá contigo.
Depois de Emilio me ter contado isto e até à sua morte, voltei a vê-lo muito poucas vezes, pois evitava a sua presença. Metia-me medo. Continuou com o seu feitio mudado, mas levando uma vida regular e sem dar o menor motivo para que fosse considerado louco. A única coisa que fazia era rir-se da lógica e da realidade. Morreu serenamente de pneumonia, com grande coragem. Entre os seus papéis deixou um relato circunstanciado de tudo o que me narrara e um tratado sobre a alucinação. Para nós foi sempre um mistério a existência daquele cadáver no canto do quintal, existência que se pôde comprovar.
No tratado a que faço referência, defendia, segundo me disseram, que a muitas, a muitíssimas pessoas lhes acontecem durante a vida coisas transcendentes, misteriosas, inexplicáveis, mas que não se atrevem a revelar com o receio de ser tomados por loucos. «A lógica – diz – é uma instituição social e aquilo a que se chama loucura uma coisa completamente íntima e privada. Se pudéssemos ler as almas daqueles que nos rodeiam, veríamos que vivemos rodeados por um mundo de mistérios tenebrosos, mas palpáveis.»
(Extraído de Contra esto y aquello, tradução de Carlos Loures)
Domingo, 20 de Junho de 2010
O nosso colaborador Josep Anton Vidal enviou a Carlos Loures a carta que a seguir publicamos. Embora o castelhano não seja a sua língua, como todos os cidadãos do estado espanhol foi obrigado a aprendê-la e escreve nesse idioma por nos ser mais acessível do que o seu catalão. Josep Vidal sabe português suficiente para ler e compreender, por o ter estudado, mas insuficiente para escrever. Eis a carta:Carlos,
He seguido con mucho interés el debate en Estrolabio sobre Olivença. Interés por la reivindicación histórica en sí misma y por los paralelismos y relaciones que se establecen con otras realidades igualmente conflictivas. Me hubiera gustado intervenir en la polémica, pero no he encontrado el momento para poner en orden las ideas que, no obstante, no puedo dejar de compartir contigo en atención a tu invitación a participar. Hubiera querido alejar el debate de los referentes históricos y llevar la mirada al presente y abrirla hacia el futuro, porque de eso se trata. Creo que con demasiada frecuencia las construcciones mentales sobre el pasado, que aportan tanta profundidad a nuestra conciencia como personas y como ciudadanos, están, por otro lado, tan contaminadas de los vicios y defectos del pasado que, en lugar de ser una lente para contemplar el presente y un trampolín para acometer el futuro, se convierten en una losa o una muralla que nos impide ir más allá. Es como si la historia no sólo nos hubiera legado una realidad de facto, con sus cicatrices y con sus heridas aún abiertas, sino también la mentalidad, el punto de vista, el edificio mental que generó esa realidad. Y nos olvidamos de que nuestro tiempo es distinto, que contamos con un edificio mental y de valores con el que no contaban nuestros antepasados. La democracia es una palabra antigua, pero es apenas una noción incipiente, que aún no ha conseguido liberarse, entre nosotros y tal vez tampoco más allá de nosotros, de la carga asfixiante de valores, criterios y argumentos heredada del pasado. Así, por ejemplo, frente a la necesidad de "excelencia de los ciudadanos" como requisito para conseguir la excelencia democrática, que obligaría a fomentar la crítica, el debate, la argumentación, el contraste de pareceres, etc., nuestras democracias oponen la propaganda, la mitificación de los líderes, la subordinación doctrinaria a las consignas del partido, el afán de poder, los intereses particulares, la superficialidad acrítica y el panem et circenses.
Los monarcas del pasado - los de hoy son harina de otro costal, lo cual no quiere decir que sean mejores, sino que sus males son ya otros - administraban sus reinos como se administra el patrimonio personal, el conjunto de sus propiedades. Conquistaban y poseían, repartían entre sus hijos y dividían territorios y fortunas, trazaban fronteras, anexionaban propiedades, cedían territorios con bienes y personas... Todo era patrimonio real. La edad moderna, además, hizo olvidar el compromiso de contraprestación que había caracterizado los pactos feudales entre señor y vasallo, y los sueños imperiales configuraron monarcas absolutos y despóticos, que administraban sus reinos con mano tan dura como inflexibles eran los postulados sobre los que asentaban su autoridad. Los movimientos revolucionarios, los cambios sociales y la transformación de los sistemas de producción y de la economía, que depositaron la riqueza en otras manos y la supeditaron a otros intereses, hicieron que la vieja noción de patrimonio, ligada a la tierra y a la herencia, a los bienes y pertenencias, resultara poco operativa para afrontar los nuevos retos. El patrimonio fueron entonces la relaciones comerciales, los bienes usurpados con que se alimentaban las metrópolis... Es decir, pasó de ser un bien mensurable -que podía contarse por pasos, "recorrerse"- a ser un bien simplemente contable -que se medía por pérdidas y ganancias-, abstracto, desvinculado de lo inmediato. Fue un cambio esencial y, por tanto, literalmente "transcendente", porque transcendió su propio ámbito y penetró en otros ámbitos y afectó estructuras profundas de los nuevos sistemas constitucionalistas. Si la noción "patrimonial" llevaba implícita la noción de unidad, la dispersión colonialista suponía una disgregación, una pérdida de referentes, y esto generó, por un lado, un proceso de ideologización de las metrópolis y, por otro y a un mismo tiempo, un proceso de idealización del territorio. El Romanticismo consagró el concepto de "patria" como noción espiritual y emotiva capaz de aglutinar, compactar, fusionar lo distante en una sola unidad "emocional" y abstracta, pero, pese a ello, mucho más sólida que el territorio mismo. Porque era capaz, incluso, de reforzarse con las desgracias y las calamidades, de fortalecerse con las pérdidas, de elevarse hasta el sacrificio y la inmolación. Porque, siendo una idea, no alimentaba intereses, sino fidelidades, es decir, abnegación, entrega generosa, amores y fanatismos. En Une tragédie française. Été 44: scénes de la guerre civil, Tzvetan Todorov nos da una definición contundente y aplicable en este caso, cuando, hablando de uno de los personajes (el jefe de la milicia y colaboracionista Francis Bout de l'An) dice "es evidente que se trata de un 'idealista', es decir, un hombre que prefiere los principios a las personas".
El reemplazo de la unidad basada en lo patrimonial por la unidad basada en lo patriótico es la solución para que un determinado edificio mental, una determinada argumentación del poder y de la autoridad, en lugar de venirse abajo, se fortalezca. Y así, a veces, nos sorprendemos a nosotros mismos, pese a estar comprometidos con nuestro tiempo y con la modernidad, atrapados en estructuras conceptuales y argumentaciones ya periclitadas. Es una especie de dictadura del pasado, que se levanta de repente como una barrera entre nuestra mirada y nuestra realidad, y entre la realidad y nuestra capacidad de mirar al futuro. Es como esas fotografías de gran formato que quienes visiten estos días Barcelona podrán encontrar en algunos lugares de la ciudad y que reproducen acontecimientos históricos ocurridos años atrás en el mismo lugar en que se exhiben. Así, por ejemplo, en la plaza de la catedral podemos encontrar la imagen de un grupo de penitentes en la Semana Santa de 1957, una instantánea de la manifestación de un grupo de 130 sacerdotes contra la dictadura o la imagen de Franco, en coche descubierto, junto al alcalde de la ciudad durante la visita que efectuó a la ciudad en 1970. (1) Esas fotografías que irrumpen del pasado, interrumpen de repente la visión de lo inmediato interponiendo una instantánea de un hecho que obliga al ciudadano -tal vez ignorante de la historia- a incorporar a su visión de lo inmediato -y a su estructura mental- una nueva dimensión temporal, pero no sustituyen la visión del presente, sino que impulsan un conocimiento más profundo del entorno y, de algún modo, condicionan la interacción -y las respuestas- del ciudadano con ese espacio, estableciéndose un vínculo más profundo, más arraigado.
De un modo similar, la realidad, y especialmente determinadas realidades de injusticia histórica, aparecen ante nosotros de repente interrogándonos de modo inexcusable. Esas imágenes refuerzan y enraízan nuestra vinculación con nuestro entorno, sea más próximo o más lejano, y modifican nuestras respuestas y nuestra orientación de futuro.
Son, de algún modo y salvando un siglo de distancia, un eco de las palabras de Miguel de Unamuno en su lección inaugural del curso 1900-1901, en Salamanca:
Historia es lo que en torno vuestro ocurre, el motín de ayer, la cosecha de hoy, la fiesta de mañana. Sólo con el hoy aquí entenderéis rectamente el ayer allí, y no a la inversa; sólo el presente es clave del pasado y sólo lo inmediatamente próximo lo es de lo remoto. Lo que no descanse de una manera o de otra en el presente, ya a flor de él, ya en su lecho de roca sedimentado, no fue más que fugitiva apariencia. Es el presente el esfuerzo del pasado por hacerse porvenir, y lo que al mañana no tienda en el olvido del ayer debe quedarse.Tal vez las aspiraciones de independencia, o de reparación histórica, puedan alimentarse del pasado, pero ningún proceso de independencia se abre camino ni se consigue ninguna reparación eficaz sobre la argumentación del pasado. Y lo mismo diría sobre el patriotismo, que puede alimentar las aspiraciones de independencia -y también las contrarias-, pero no es suficiente para avanzar por ese camino. La independencia, como la reparación histórica, es siempre una respuesta al presente con una propuesta de futuro que supone la revisión y la reconstrucción de las relaciones y los compromisos entre los ciudadanos y un Estado.
Por eso creo que toda reivindicación territorial, de la naturaleza que sea, ha de incorporar una lectura de la realidad inmediata y un proyecto político de futuro en el que los ciudadanos se reconozcan y al que puedan incorporarse y adherirse democráticamente. No creo que sea una cuestión ni de patriotismo ni de reparación histórica entre estados. Es, por lo menos principalmente, una cuestión de voluntad colectiva y de ejercicio del derecho a establecer, sobre la base de la identidad colectiva, en libertad y con la fuerza democrática necesaria, las relaciones y los vínculos políticos. Esto supone también la construcción de una nueva arquitectura mental para la política, la construcción desacomplejada del Estado sobre la base del pacto y de las garantías de las libertades. En cuanto al cómo conseguirlo, no tengo la respuesta, ni creo que deba tenerla, porque es una tarea colectiva, de voluntad de progreso. Aunque estoy convencido -sin ninguna pretensión de que mi convencimiento valga más que el de otros- de que ni el patrimonialismo ni el patriotismo nos van a facilitar la tarea, y de que el objetivo de todo proceso de independencia es la libertad para establecer vínculos más firmes, eficaces y respetuosos entre los estados y entre los ciudadanos, que, por encima de todas las singularidades y particularismos, tienen el compromiso común e irrenunciable de administrar en beneficio de todos -de todas las personas y de todos los pueblos y de todas las generaciones- el "patrimonio" común.
Carlos, antes de acabar quiero decirte que aquí, en Cataluña, se ha vivido con auténtico sentimiento de pérdida la muerte de Saramago. Era un escritor muy leído, pero era, sobre todo, una persona valorada y querida por su entereza ética.
Un abrazo
Josep A. Vidal(1) Se trata de la instalación
Repressió i resistència, con la que su autor, Ricard Martínez, continúa una línea de trabajo sobre la memoria histórica, la "arqueología del punto de vista" (
http://arqueologiadelpuntdevista.blogspot.com/).