Terça-feira, 26 de Outubro de 2010
Carlos Loures
No quadro de um projecto institucional de erradicação dos bairros de lata, no período pós-25 de Abril, tive ocasião de contactar núcleos de cabo-verdianos que viviam em bairros da então chamada «cintura industrial de Lisboa» - particularmente na Pedreira dos Húngaros (Algés), nas Marianas (Parede) e no Bairro do Fim do Mundo (Cascais). Fiz muitos amigos e pude constatar, por um lado o apego que aqueles imigrantes mantinham à sua terra e, por outro, a quase total ausência de instrumentos culturais que alimentassem esse amor. Com o escritor Manuel Ferreira, do qual fui amigo desde1964, pois conhecemo-nos durante o II Encontro da Imprensa Cultural, realizado em Cascais, por diversas vezes comentámos essa circunstância que na altura era gritante e que hoje em dia está relativamente superada ou, pelo menos, mitigada.
No decurso de um projecto editorial em que ambos estávamos envolvidos, falámos por diversas vezes em Cabo-Verde e na sua cultura. Foi incentivado por estas trocas de impressões que visitei pela primeira vez o arquipélago e pude confirmar, não só a ideia com que ficara pelo contacto directo com os imigrantes, como também o que Manuel Ferreira me dizia sobre a singularidade das gentes cabo-verdianas e do valor ímpar da sua cultura. Com vista a um trabalho que talvez consiga realizar - uma história concisa da literatura cabo-verdiana, tenho algumas notas tomadas, entre elas a que hoje aqui transcrevo. Eis a primeira.
Durante o período colonial, só no século XX a literatura cabo-verdiana surge com a expressão de uma identidade própria, em ruptura explícita com os modelos europeus até então seguidos, nomeadamente os de matriz portuguesa. Sobretudo com a obra e com a acção de Eugénio Tavares, as temáticas, quer as da poesia, quer as da novelística, passam a relacionar-se com a vivência cabo-verdiana – a insularidade, a seca, a fome e a consequente emigração, para a metrópole ou para outros países. Eugénio de Paula Tavares (Brava, 1867-1930), foi, na realidade, o grande impulsionador da cultura autóctone - a publicação de jornais e revistas por sua iniciativa ou com colaboração sua, foram decisivos na criação de uma consciência cultural cabo-verdiana. Desde o Alvorada, editado nos Estados Unidos entre 1900 e 1917 até ao A Voz de Cabo Verde, publicado na Praia entre 1911 e 1916, houve mais de uma dezena de publicações que editou ou em que colaborou assiduamente. O papel das revistas no despertar da consciência cultural do País, foi enorme. Foi o caso das revistas Claridade (1936-1960) e Certeza (1944). Em 1958 começa a publicar-se o Suplemento Cultural; em 1977 saem o suplemento Sèló e a revista Raízes.
Claridade destaca-se das demais. Os principais autores revelados nesta revista são, entre outros: Jorge Barbosa, António Pedro, Osvaldo Alcântara (Baltasar Lopes da Silva), Manuel Lopes. O cariz neo-realista da Certeza – Guilherme Rocheteau, Tomaz Martins, Nuno Miranda, Arnaldo França, António Nunes, Aguinaldo Fonseca. O papel desempenhado por Claridade no despertar da cultura nacional, transcende em muito as fronteiras da literatura. Pode dizer-se que há um «antes» e um «depois» da Claridade,
O Suplemento Cultural também acrescenta ao acordar da consciência de uma identidade cultural, algo de muito importante – o conceito de nação substituindo o de região ou província ultramarina – Gabriel Mariano, Onésimo Silveira, Ovídio Martins, Terêncio Anahory, Yolanda Morazzo. Não pode ser ignorado o papel da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, como ponto de encontro de muitos dos futuros intelectuais (e dirigentes políticos) dos PALOPs e, consequentemente, como motor de criação de movimentos independentistas e crisol do despertar de correntes literárias autónomas e libertas da matriz cultural portuguesa. Foram muitos e importantes os intelectuais cabo-verdianos que passaram pela Casa dos Estudantes do Império.
Irei, em pequenas doses, transcrevendo notas sobre este tema que tanto me apaixona, o da literatura cabo-verdiana.
Quarta-feira, 19 de Maio de 2010
Ethel Feldman Na escola era a melhor no ditado. Apesar de não saber gramática escrevia com predicado. Melhor aluna de português, sabia de cor os poetas - em português.
O destino (é uma coisa que dá sempre jeito) trocou-lhe o tempo do verbo. Seu bem amado fugiu e ela passou a viver no passado. Memória do dia em que ele a tinha beijado pela primeira vez. Da língua que se passeou no seu corpo. Daquela vontade quando a tomava em seus braços.
A saudade desse bem-querer fez dela escritora. Transformar o passado em presente é uma coisa que só a escrita consegue. O futuro correu em sentido contrário e se fez convidado confundindo o presente.
Pouco importa, ela agora era escritora. Verdade ou mentira, loucura ou sanidade são adjectivos que neste caso não encaixam.
- Espelho, espelho meu existe alguém que escreva melhor do que eu?
Do lado de lá o silêncio era a confirmação do novo talento nas artes escritas.
Os amigos apoiavam:
- Você devia publicar esses textos! São tão bons. Além disso há tanta porcaria que vai sendo publicada. De certeza que mal você se disponha, será um sucesso!
Negando a vida, seu ego brilhou. Não houve pastor que a contrariasse, a fé ressuscita os mortos. Dela vem a certeza da nossa existência. Neste caso, do seu sucesso no mercado editorial.
Antes de publicar, enviava seus textos a uma rede de amigos. Ansiosa esperava a resposta. Um elogio que confirmasse o que já sabia. Era uma escritora como nunca tinha havido na história.
Duvidava da capacidade de discernimento de um qualquer editor. Ainda para mais a lógica de mercado impunha os diários das garotas de programas. Ou os livros de auto-ajuda. Os de culinária também vendiam bem. Para não falar num corpo saudável de acordo com o tipo de sangue.
Poderia um editor de tanto entulho entender a sua literatura?
- Espelho, espelho meu haverá no mundo algum editor inteligente?
O silêncio desta vez não ajudava. O espelho parecia estar fora de prazo.
Um amigo do meio avisou:
- Nasceu uma editora que só aposta em novos talentos. Manda para lá os teus textos…
Desconfiada, encontrou o medo. E se afinal houvesse um engano. E se ela não era o que pensava ser?
A vida ensinara que a vaidade enganava. Lembrou-se da história " O rei vai nu". Seria a sua escrita afinal um streapteese de botequim?
Com tantos apelos, estava encurralada. Não tinha outra saída que não fosse enviar seus textos para a editora indicada.
A editora fez parceria com o espelho e remeteu-se ao silêncio. Estaria também fora de prazo?
Educadamente pediu confirmação da boa recepção da correspondência. Recebeu logo um sim. Assustada percebeu que seu nome era coisa desconhecida para quem respondia. Tratou-a como se fosse um homem. E informou-a:
"Caro,
Recebemos o seu e-mail, desculpe-me por não responder.
Ele foi passado para a produção editorial, se for aprovado entraremos em contato.
Atenciosamente
Editora" Só teria direito a uma resposta se ela fosse um SIM?!
Um dia minha filha (uma menina de 4 anos) informou-me que no Centro de Saúde do nosso bairro, só aceitavam meninas que se chamassem Maria! Será que o editor passou sua infância no meu Centro de Saúde?
Era boa a resposta porque o silêncio, neste caso, se parecia com um NIN. Talvez eles não tivessem tido tempo de ler. Talvez os textos fossem tão bons que estavam a espera de uma hora mais acertada para o publicarem. Talvez a editora fosse composta de ignorantes que não distinguiam o feminino do masculino...
A dúvida crescia de dia para dia.
- Espelho, espelho meu que silêncio é o teu?
Com a fé abalada resolveu dar por terminada uma carreira que no passado se adivinhara tão promissora. Em tom de desfecho, escreveu para a editora:
Caro editor,
Já ensaiei a modéstia, depois timidamente cobrei a boa educação de uma resposta.
As notícias informam que este é o hábito dos tempos modernos. Epidémica é a distracção do gestor contemporâneo. Seja o negócio de parafusos, detergentes, medicamentos, sabonetes, livros e afins.
Hesitei entre enviar uma colecção de textos, aliás muito bem escritos, ou me masturbar com a prosa das Brumas de Avalon...
Mal por mal, venha o diabo e escolha!
Um abraço
E. Não fosse a fuga do bem amado não teria ela sofrido com tanto predicado!
Sábado, 8 de Maio de 2010
Para onde nos leva o Estrolabio
Neste preciso momento estão a ser criados cinco mil blogues por esse mundo fora – o Estrolabio é apenas um deles. Esta é a realidade - todos os dias nascem aproximadamente 120 mil blogues. Calcula-se que, actualmente, existam cerca de 200 milhões. A blogosfera é um universo em permanente expansão e temos total consciência da nossa insignificância – existem blogues com elevados índices de audiência onde colaboram bloguistas profissionais. Há-os generalistas e temáticos – alguns com conteúdos de elevada qualidade. Num meio tão saturado de propostas - políticas, filosóficas, científicas, literárias… - parece-nos que não faz muito sentido pensarmos lutar por um lugar cimeiro no ranking de audiências. O Estrolábio não vem para competir a não ser consigo mesmo. A única coisa que quem começa pode fazer é lutar pela qualidade dos posts que edita. Quem somos e, sobretudo, o que queremos?
Somos um grupo de amigos – Mas para além da amizade e do respeito mútuo, não existem entre nós vínculos político-partidários, religiosos, filosóficos ou de qualquer outra natureza. Queremos expor e defender aquilo em que acreditamos de uma maneira frontal, mesmo quando sabemos não serem consensuais as ideias que defendemos. Porque aquilo em que cada um acredita e aquilo que cada um defende, não reflecte a linha de orientação do nosso blogue. Essa linha é constituída por valores tais como o amor pela verdade, pela honra e, sobretudo, pela Liberdade.
Deste modo, o Estrolabio é um espaço plural, uma praça pública e livre onde é proibido proibir ideias políticas, teses científicas, tendências filosóficas, crenças religiosas, convicções agnosticistas ou ateístas, preferências clubísticas, orientações sexuais… Aqui, todos podem montar a sua banca desde que não incomodem os vizinhos. A afixação de cartazes também é livre desde que não defendam o fascismo, a xenofobia, a discriminação de género… Em suma, ao Estrolabio são bem-vindos todos os que defenderem a Liberdade. Por isso, para defender a Liberdade, é preciso vedar a passagem às «liberdades». Pelo menos a algumas.
Sem pretensões a ficar à frente seja de quem for, queremos, no entanto, ganhar o nosso espaço. Como? Lutando pela liberdade de expressão e pela qualidade, pela isenção e pela originalidade.
Como daqui se depreende, não existe uma linha editorial orientada ideologicamente ou segundo qualquer ditame religioso, filosófico ou de outra ordem. Muito menos, futebolístico. Mas não fugiremos a abordar a temática, do futebol. Tentaremos não entrar na casuística de conflitos, polémicas, do dia a dia – há muito quem se ocupe desses problemas. Digamos que não sendo um tema que nos esteja vedado, de modo algum o privilegiaremos.
Em matéria de política portuguesa e internacional, Estrolabio está aberto a todas as tendências (como já se disse, menos às que neguem a Liberdade como valor primacial). Tentaremos não enveredar pela análise feita «em cima do acontecimento». Críticas à orientação do Governo ou às posições assumidas pelas oposições, preferimos que sejam feitas numa perspectiva verdadeiramente crítica (no sentido nobre da palavra). Fugiremos à chicana, ao humor político fácil, ao ataque gratuito, ao aproveitamento de gaffes…
Tentaremos a crítica construtiva, consistente, portadora de alternativas. O que não significa que não aceitemos a colaboração de quem ataque o Governo ou de quem o defenda. A única coisa que pretendemos é que as posições partidárias não se baseiem em boatos ou em picardias gratuitas.
Porque não somos um jornal ou um serviço noticioso de uma estação televisiva ou radiofónica, o imediatismo não entra na nossa massa genética. No debate de ideias, tentaremos fugir à tal chicana de que acima falámos. O debate de ideias será feito com respeito pelas ideias alheias, ficando excluídas as suspeições e as insinuações torpes e avulsas. Quem critica, fá-lo-á atacando ideias, mas respeitando pessoas. Falando de massa genética, gostaríamos que o humor constituísse uma parte importante dela. Sem sentido de humor até a seriedade perde o sentido.
Estaremos muito atentos ao mundo da cultura – livros, filmes, peças de teatro, exposições de arte – sem a preocupação de uma cobertura exaustiva - merecerão a nossa especial atenção. E apresentaremos, sempre que possível, textos literários originais – contos, poemas, críticas.
Resumindo - desejando-se a maior liberdade, há princípios a respeitar, pelo que algumas «liberdades» - as tais que afrontam a Liberdade - não serão aceites. E é com esta pequena quantidade de princípios e com este reduzido capital de intenções que vamos começar.
Mãos à obra.