Quinta-feira, 17 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 12, por Sílvio Castro

 

 

 

 

 

 


 

O romance do descobrimento do Brasil

 


 

 

 

Príncipe,

 

olhai! A festa recomeça.

 

(A cena se aclara um pouco mais. Do lado direito entram dois homens de passos indecisos e expressões atônitas: Afonso Ribeiro e o segundo degredado.

 

Do lado esquerdo aparecem dois jovens grumetes, arrebatados e efusivos nos gestos.

 

Os quatro homens caminham em meio às sombras. De repente, se encontram.

 

A cena se abre mais claramente.)

 

Afonso Ribeiro: "Quem vem lá, quem vem lá?"

 

1º grumete: "Calma, calma, Afonso Ribeiro, somos amigos".

 

2º degredado: "São dois dos nossos marinheiros".

 

Afonso Ribeiro: "Que fazeis aqui? a armada está partindo".

 

2º grumete: "Disso nós sabemos".

 

Afonso Ribeiro: "Mas, então, por que não estais lá? Por acaso alguma loucura vos impeliu a assumir o nosso desespero e aqui estais? ou vos fez perder o lume da razão ao ponto de abandonar o posto para onde nos levam os nossos sonhos? Que loucura é esta que conduz outras presenças cristães aonde pensávamos que doravante iria morar somente a nossa desesperação?"

 

 

1º grumete: "Sim, é uma loucura o que nos impeliu até aqui, Afonso Ribeiro, mas não aquela que dizes tu. A nossa é loucura da escolha livre."

 

2º degredado: "Ensandeceste, jovem idiota".

 

2º grumete: "Pobre homem! me pareces duas vezes degregado. A primeira pela vontade soberana d'El-Rei, nosso Senhor; a segunda, pela cegueira que te impede de ver a liberdade que conquistas agora porque és degredado".

 

Afonso Ribeiro: "Mas dizes pau por pedras?"

 

1º grumete: "Não, sabemos o que dizemos. Até causa maravilha saber que o teu degredo aqui é a tua liberdade. Nós sabemos que as braçadas que demos das naus até a praia foram o nosso percurso para a vida que queremos".

 

Afonso Ribeiro: "Além de louco, zombas da nossa desgraça".

 

2º grumete: "Não, amigo, não queremos zombar nem de ti e nem de ninguém. Queremos exaltar a vida que conquistamos".

 

2º degredado: "Arre! dessa vida não quero saber".

 

1º grumete: "Amigo, começo a crer que mais que degredado és um parvo. Olhai para nós. Saímos livremente de nossos navios. Assim o fizemos não por covardia ou temor da dura vida de navegações, pois a nossa juventude não conhece covardia ou temor; e muito menos o fizemos por desamor ao nosso Soberano. Nadamos e lutamos contra as ondas para aqui chegar encondidos na noite porque sabemos que este é o nosso paraíso".

 

2º grumete: "É, assim é. Este é o nosso paraíso. Aqui seremos felizes e iremos viver até a mais longa velhice. Estaremos sempre com todas estas belezas; amaremos as lindas mulheres daqui que nos levam a gozar os maiores prazeres da existência; comeremos dos melhores frutos e das melhores carnes; respiraremos este doce ar e tocaremos sempre esta terra quente e fértil".

 

1º grumete: "Loucos sim, loucos de liberdade e senhores de maravilhas!"

 

Afonso Ribeiro: "Mas não vêdes que as nossas naves já se afastam da costa, já se apartam de nossos olhos? Não vêdes que daqui a pouco o horizonte cobrirá todas as nossas velas e ficaremos para sempre sós?"

 

1º grumete: "Não importa, não importa que as velas já lá vão. Aqui estamos e aqui ficaremos para sempre, pois aqui sabemos de ser felizes".

 

(Os dois jovens grumetes se afastam festosamente para dentro dos bosques e gritam na direção dos dois degredados)

 

"Amigos, amigos, nada de medo. Correi, correi connosco, sem medo. É aqui o para¡so!"

 

 

 

 

 

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Quarta-feira, 16 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 11, por Sílvio Castro

 

 

 

 

 


  O romance do descobrimento do Brasil

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

30 de abril, quinta-feira

 

 

Quando havíamos terminado de comer e já estávamos prontos para descer à terra, chegou à nau-capitânea Sancho de Tovar com dois jovens que ele ontem recolhera na praia e que foram seus hóspedes muito especiais. Já que ele não comera, prepararam-lhe a mesa. Os hóspedes sentaram-se cada um na sua cadeira e comeram de tudo que lhes foi oferecido. Não deram vinho porque Sancho de Tovar dissera que eles não gostavam da bebida. Acabado de comer, descemos todos à terra. Logo que chegamos à praia eles começaram a aparecer. Chegaram quatrocentos, quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas, que todos usavam para o jogo das trocas. Comiam conosco de tudo que lhes oferecíamos. Alguns deles bebiam vinho; outros não o podiam suportar. E estavam então mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles. Não consigo encontrar uma razão para tal mansuetude e segurança, minha querida filha, senão na ingenuidade e pureza de coração dessa gente. Nisso muitas vezes penso que eles nos são superiores e deles muito deveremos aprender. Por exemplo posso contar-te um episódio acontecido neste dia que confirma este meu sentimento sobre o ânimo deles. Quando saímos do batel, disse-nos o Capitão-mor que seria bem que fôssemos diretamente à cruz que estava encostada a uma árvore, junto do rio, com a finalidade de ser colocada amanhã, 1º de maio, num posto de grande realce. E mais, que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. Assim o fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo, e logo foram todos beijá-la.

 

 

Nesse dia, minha querida e amada filha, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamborim nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Aceitavam convites de todos para subir a bordo, como se cada um deles estivesse disposto a embarcar sem nenhum medo de um outro mundo de lá, que certamente é muito diverso deste de cá. Porém foram levados a bordo nesta noite somente alguns, isto é, dois com o capitão-mór; Simão de Miranda, um, já trazido por pajem; Aires Gomes, um outro, igualmente por pajem. Sancho de Tovar também escolhera um dos jovens do outro dia para pajem.

 

 

 

 

 

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Terça-feira, 15 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 10, por Sílvio Castro

 

 

 

 

 

 


 

O romance do descobrimento do Brasil

 


 

 

 

 

FESTA PARA O PRÍNCIPE VENTUROSO.

 

ATO 8º

 

(A cena é a mesma praia. No areal branco está um estrado onde se eleva um altar. Junto ao altar estão os muitos portugueses, o Capitão-mor e os capitães, e mais todos os outros que assistem à missa entoada por sacerdotes e religiosos. No fundo da cena, no alto das árvores e pelo chão, estão muitos naturais da terra, homens e mulheres.

 

De um ângulo da cena caminha o Mensageiro que acompanha o Príncipe.)

 

Príncipe,

 

ali estão os nossos diante do altar para assistir á missa. É a primeira vez que estas terras e estas gentes participam do Santo Sacrifício. O Nosso Senhor se mostra à sua gente nova - já agora Vossos súditos, meu Rei - e para eles surge a mesma esperança de salvação de que nós há muito gozamos, pela infinita bondade da Graça Divina.

 

Aqui estamos, Príncipe, nesta Vossa nova terra. É um mundo novo esta terra, feito de belezas e maravilhas. Caminhemos até lá, junto do altar e escutemos a pregação do piedoso frei Henrique de Coimbra. Escutai, Príncipe: a sua voz segura mistura-se com o verde das árvores, com o trilhar das aves, com a luz que alarga as dimensões infinitas desse paraíso real e nosso.

 

"Aqui estamos para difundir a Luz divina. Nestas benditas terras, diante desta gente dócil e gentil, animados pelo amor de Cristo, Nosso Senhor, aportamos para propagar a nossa Santa Fé. Esta Cruz que nos acompanha e que nomeia a terra que nasce sob o seu signo, esta Cruz será a guia de todos nós para a gloriosa missão de salvar esta gente, nossos irmãos. Eles são bons, ingênuos e gentis; eles já conhecem pela prÓpria natureza a verdade do Senhor; eles sÃo os mais novos filhos do Senhor, nosso Redentor. Aqui chegamos e aqui estamos para transfundir nesta boa gente a Luz que nos ilumina e salva. A esplendente luz que dÁ tanto realce Às maravilhas do paraÍso - que é esta nossa Terra da Santa Cruz - se confundir com a Luz da nossa Fé e todos serão iluminados. Para isso vimos. Para isso aqui ficaremos numa doce comunhão".

 

Príncipe,

 

agora frei Henrique concluiu a pregação e recomeça o Santo Ofício. Ele se movimenta no altar entoando as palavras sagradas e os outros religiosos o acompanham.

 

Olhai, olhai, Príncipe, la no alto das árvores e nos areais como aqueles homens acompanham os nossos gestos! Eles se ajoelham quando nós nos ajoelhamos; inclinam as cabeças quando nós as inclinamos na adoração do corpo de Deus, Nosso Senhor.

 

Sancho de Tovar se adianta e se aproxima de uma mulher que está sentada, nua, no areal, e lhe dá um pano para que se cubra. Ela aceita o dom de Sancho de Tovar. Recolhe-o, toma-o às mãos e continua assistindo atentamente à missa. A bela mulher cobre seus ombros com o pano e toda a sua nudez esplende como antes.

 

Dentre aqueles homens - Príncipe, olhai - um, mais maduro, gesticula e fala em voz baixa com os seus, levantando os braços para o céu, como que ungido do mesmo fervor que nos anima.

 

A missa termina. Pedro Álvares Cabral organiza um cortejo que parte para um alto da praia. Todos os capitães, pilotos, marinheiros, soldados, religiosos, todos os homens da frota acompanham o Almirante. O séquito parte, solene, conduzindo a grande cruz. Os tambores ressoam, compassados. Atrás do cortejo caminha a multidão de homens e mulheres da terra, fascinados pelo esplendor da cerimônia. Chegados ao alto, Pedro Álvares pára o séquito e chama o homem maduro que tão piedosamente falava com os seus durante a missa. Com ele e dois marinheiros que conduzem a cruz sobe no ponto mais alto da costa.

 

"Aqui planto esta Cruz, símbolo de nossa Fé‚ e da soberania d'El-Rei, nosso Senhor. Com este lenho que aqui fica todos agora sabem que esta é a Terra de Santa Cruz".

 

28 de abril

 

Diferentemente dos dias anteriores, este foi mais de trabalho que de festas, minha querida filha. Logo depois de termos comido fomos à terra para dar guarda e ajudar aqueles outros que recolhiam o pau de brasa, assim como para lavarmos nossas roupas. Quando chegamos, encontramos na praia mais de setenta dos homens da terra, todos em grande tranqüilidade e desarmados de seus arcos e flechas. Acudiram imediatamente para junto de nós, demonstrando grande satisfação em nos rever e ajudando-nos em tudo, como sempre faziam. Tinham tanto gosto em ajudar que até lutavam para fazê-lo. Enquanto se cortava a lenha, dois dos nossos carpinteiros preparavam uma cruz com um pau especial já cortado para esse fim. Muitos deles vinha ali para estar junto dos carpinteiros. E acredito, minha querida Maria, que assim o faziam mais para ver a ferramenta de ferro com que os carpinteiros trabalhavam do que pela cruz, porque eles não têm coisas de ferro e cortam suas madeiras e paus com pedras feitas de cunhas metidas num pau entre duas talas, muito bem atadas, boas para todos os trabalhos deles, como já me contaram os homens que estiveram nos povoados deles. Enquanto nos ajudavam, eles falavam tanto e sem parar que quase nos estorvavam.

 

Mais uma vez mandou o Comandante aos degredados e a Diogo Dias que fossem novamente até a aldeia deles e que lá dormissem, mesmo se os naturais da terra não os desejassem ali. Os três partiram mais confiantes do que na primeira vez, principalmente o pobre Afonso Ribeiro. Diogo Dias demonstrava grande satisfação por ser mandado a tal missão.

 

Sabes, minha querida filha, uma das maravilhas maiores dessa terra que me encanta sempre e mais são os pássaros que nela vivem. Enquanto cortávamos lenha vi muitos papagaios, dos grandes e dos pequenos, dos verdes, dos vermelhos e dos pardos. Vi igualmente pombas rolas, alegres e tímidas como a gente daqui. Acredito que por essas matas vivem milhares e milhares de pássaros. Enquanto acompanho o trabalho dos nossos me embalo com os cantos sonoros que chegam aos meus ouvidos, vindos de um bosque encantado que eu vejo.

 

29 de abril

 

Já agora sabemos, minha querida filha, que esta quarta-feira é um dos últimos dias que passamos por aqui. Por decisão de Pedro Álvares Cabral partiremos no dia 2 de maio, que já se aproxima. De certa maneira, depois de haver conhecido o termo de nossa estadia aqui, me sinto num estado de ansiedade triste. A partida me parece uma perda. Junto a esse sentimento de privação de alguma coisa que já me pertence, hoje tenho um triste pressentimento sobre o meu futuro. Me sinto como sem apoio diante das coisas. Como se eu flutuasse numa espaço vazio e não encontrasse uma saída para os meus passos. Não te deves assustar, minha querida Maria, é assim que me sinto, mas não me sinto infeliz. É como se a partida fosse uma chegada. Mas uma chegada para onde?

 

O dia foi consumido em transferir o material do navio de mantimentos para as outras naus e enchê-lo de riquezas da terra, tantas quanto fosse possível.

 

Das naus observávamos as praias e lá estavam muitos deles. Eram trezentos, mais de trezentos. Uma multidão empolgante, variada, múltipla, como em verdade, minha querida Maria, é essa gente nova que muitas vezes eu julgo já conhecer, mas que agora, fixando-a daqui da minha nau, me foge como uma visão de sonho.

 

 

 

 

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Segunda-feira, 14 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 9 (continuação), por Sílvio Castro

 

 

 

 

 

 

 

 

FESTA PARA O PRÍNCIPE VENTUROSO

 

 

ATO 7º

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(A cena se passa numa praia iluminada pelo sol da primeira manhã. A luz filtra por entre palmas e árvores ricas de frutas, fazendo mais branca a areia fina e azul a água do mar que a banha. Nas ondas próximas da praia flutuam batéis. Aqui e ali, nas areias muito brancas, debaixo das arvores e próximos de um rio que deságua no mar, está muita gente, em grupos. São portugueses em trajes variados - marinheiros, soldados, gente comum - e índios e índias, esses nus. A gente fala, gesticula, encontra-se, canta e dança.

 

O grupo dos capitães, com Pedro Álvares Cabral vestido ricamente, está à parte, num ângulo da cena.

 

(Por detrás deste grupo aparece o Mensageiro.)

 

Príncipe,

 

poderá existir glória maior para um Soberano que saber o seu Império alargado por encontros de paz e amor, ao invés de fruto da violência e do ódio?

 

É isto que eu quero representar agora, numa magnífica festa digna do Príncipe, diante de Vossos augustos olhos. Para isso precisamos de muita música e bailes. Porque essa será a representação do Paraíso recuperado, a visão de encantamento de um encontro paradisíaco entre homens, seres e coisas.

 

É a Vossa festa, Príncipe.

 

Eu serei como uma sombra que caminha por aqui e ali recolhendo vozes, gestos e movimentos, para que os Vossos olhos e ouvidos tudo saibam e gozem.

 

Comecemos porque a manhã deste dia maravilhoso já procede acelerada nas horas e, ai de mim, até mesmo a noite chegará para encobrir tanta glória que eu estou por revelar.

 

(A cena se aclara definitivamente, mostrando homens, seres e coisas em todos os seus contornos. Sons de cantos ecoam por toda parte e movimentos de bailes e danças agitam a cena. Retorna o Mensageiro.)

 

Príncipe,

 

ali estão os Vossos novos súditos. Vêde como são belos e gentis! Muitos estão perto dos batéis que recolhem água, a muito boa água desta terra, e lenho brasil, este pau rutilante como fogo. O bravo Bartolomeu Dias comanda a faina nos batéis. Eles correm e ajudam os nossos na faina alegre. Vêm do rio, entram no mar e lançam a carga aos nossos, em pé nos batéis. E assim vão e vêm, num jogo de alegrias. Logo muitos outros se acrescentam ao grupo de carregadores, e vão e vêm com as cargas preciosas.

 

Então começa o grande prazer das trocas e dos regalos. Das nossas mãos partem tantas quinquilharias - que eles comem com os olhos! - e deles, em troca, tantos objetos de penas de variadas cores, muitas cores, tantas como a gama infinita desta paisagem de maravilhas. São penas desses mesmos pássaros que cantam indormidos nas árvores e passam sem cansaços por esses ares finos e de pura luz.

 

Príncipe,

 

os nossos confraternizam com eles sem nenhum temor, mas é deles que vêm as efusões maiores.

 

Vêde, ali estão eles, todos nus, de belos corpos altos, fortes, rijos; de gestos e movimentos amáveis. São bons e dóceis como os pássaros da terra. Belos como eles. A nudez do corpo não lhes cria problemas. Vejo que não são circuncisos e que também nisso se parecem conosco. Sim, são pardos, de um vermelho vivo, vibrante. Como o sol daqui. Olhai, Príncipe, para esses jovens. Vê-se que sempre desejam mostrar-se belos, porque são limpos, frescos, gordos, formosos a não mais poder. Corpo musculoso está sempre coberto de tinturas versicolores. O vermelho ‚ a predileta, mas também o preto, o amarelo. Alguns se tingem em forma de xadrez, deixando porém o ventre e a barriga descobertos, coloridos com cor natural da pele. Os cabelos são lisos e grossos. Em geral eles os besuntam e os trazem tosqueados até por detrás das orelhas. Muitos deles enfeitam as cabeleiras com uma espécie de chapéu de penas de variegados matizes. Outros recobrem as fontes até a nuca com uma quase fita preta, só que desenhada com uma tinta muito viva. Trazem os beiços furados, onde muitos colocam adornos, quem de pedra, quem de pau, para maior realce.

 

Príncipe,

 

aos Vossos augustos olhos trago as belezas de algumas moças que caminham em meio a todos com uma extrema naturalidade, nuas também elas, como os homens. São belas e gentis nos passos lentos e dosados que aderem à terra. Redondas, belamente redondas, são as suas formas nuas. Olhai. É uma nudez de mulher que não leva ao pecado, tanta é a ingenuidade e simplicidade dos gestos. Eu as olho nuas e mais que vergonha sinto uma comoção benéfica. Eu as olho mais e as vejo inteiras na nudez que nelas é sempre beleza pura. Até mesmo as suas vergonhas - altas, limpas, fechadinhas - não as envergonham e nem a mim. Por isso, meu Senhor, fixo esta cena.

 

Lá vão os grupos, homens e mulheres, eles e muitos dos nossos, para aquele monte mais distante ou para o rio. Diogo Dias, junto a muitos outros, sempre alegre e festoso, se aparta com seus amigos novos.

 

Ali está também o degredado, Afonso Ribeiro, que o Capitão-mor mandou ficar entre eles, para com eles aprender tantas coisas. Afonso Ribeiro desceu a medo entre eles. Num primeiro momento, sozinho, titubeou, não sabendo como e o que fazer. Estava sozinho diante de alguma coisa nova para ele. E atônito. Então um homem de idade madura se destacou do grupo, caminhou até onde estava Afonso Ribeiro, abraçou-o e o conduziu amoravelmente de encontro aos seus.

 

A festa de trocas continua. E as danças, músicas e bailes.

 

Do outro lado do rio, ali estão dançando muitos deles, um diante do outro, sem se tomarem pelas mãos. E o fazem muito bem.

 

Agora para lá passou-se Diogo Dias, com um gaiteiro e sua gaita. Logo mete-se como eles nas danças, tomando-os pelas mãos. Eles folgam e muito riem com isso, acompanhando muito bem ao tom da gaita. Agora Diogo Dias começa a fazer volteios muito velozes que os enchem de admiração. Um grito de surpresa maior corre os ares iluminados de pura luz quando Diogo Dias volteia velozmente e se exibe num insuspeitado salto-mortal. Logo depois, pelos muitos afagos e abraços de Diogo Dias em seus bailes, muitos deles se retiram para o monte isolado.

 

Príncipe,

 

a mim parece que assim o são: muito gentis e conviviais, mas logo e por um nonada eles se retiram. São como pássaros assustados. Mais vale, me parece, deixar-lhes as decisões, para assim conquistar-lhes maiormente as simpatias.

 

Agora retornam. Bartolomeu Dias mandara o degredado de novo entre eles e que lhes desse todos os presentes que trazia consigo. Assim fez Afonso Ribeiro, entregando todos os regalos àquele homem maduro que antes o agasalhara, quando o sol era mais quente e seu coração pulsava atônito.

 

Os pássaros assustados voltaram. Agora recolhem um tubarão que Bartolomeu Dias matara, e logo levam a fera até a praia.

 

Príncipe,

 

grande tem sido a festa neste dia e grande a alegria nos corações de todos nós. A luz já vai escoando e uma tênue penumbra começa a cobrir tantas maravilhas. Ali está o nosso Capitão-mor. Um homem velho se aproxima de Pedro Álvares Cabral. Tem os beiços furados, como todos em geral, e no buraco traz uma mísera pedra verde. Ele fala desconexamente com o Capitão-mor. Muitos dos nossos indagam daquela pedra verde e tentam tocá-la. O velho tira-a do buraco e a aproxima à boca de Pedro Álvares Cabral, tentando metê-la boca adentro. Todos riem, e o capitão-mór se amofina. Então, por ordem sua, acompanhando-o, todos começam a deixar a praia.

 

Príncipe,

 

que dia longo e glorioso!

 

Ao longe caminha a sombra de Afonso Ribeiro, sozinho na praia.

 

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Domingo, 13 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 9, por Sílvio Castro

 

 

 

 

 

 

 

O romance do descobrimento do Brasil

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

27 de abril

 

Espero de não estar te aborrecendo, minha querida filha, com tantas notícias e novidades. Mas são tantas as descobertas que faço nesses dias de maravilhas que não sei como me limitar. Gostaria porém de poder transmitir à minha querida Maria, que tanto me falta nesta longa viagem, a felicidade que agora sinto nesta terra nova, depois de tantos dias difíceis passados por mim desde que deixei a nossa casa. Sei, Maria, que a tua bondade compreenderá os meus arroubos e a tua doçura mitigará os meus excessos. Por isso te conto tudo. Como se contasse a mim mesmo para assim viver duas vezes os mesmos sucessos dessa experiência que arrebata o meu coração.

 

Nesta segunda-feira, logo depois de comer, saímos todos para o abastecimento de água. É um belo espetáculo, minha querida Maria, ver tantos batéis que se destacam das naus e partem para a praia. Ali vieram ao nosso encontro muitos dos naturais da terra, mas não tantos como das outras vezes. Uma coisa que logo me chamou a atenção é que dentre eles poucos traziam arcos e setas. Inicialmente mantiveram-se um pouco afastados, para depois, pouco a pouco, misturarem-se conosco. Tudo isso com grandes demonstrações de simpatia. Abraçavam-nos e folgavam. Mas alguns logo depois se esquivavam. E logo retornavam ao maior prazer deles, as trocas. Davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer outra coisa. Era tanta a simpatia recíproca nesses encontros que bem vinte ou trinta dos nossos se foram com eles em direção de um lugar onde muitos outros deles estavam em companhia de moças e mulheres. Tudo isso acontecia, minha Maria, com muita tranqüilidade e simplicidade. Quando de lá voltaram esses nossos trouxeram muitos arcos e barretes de penas de aves, de tantas cores, verde, amarelo, vermelho. Via-se nos olhos deles e de seus contos quanto estavam contentes de lá terem ido.

 

Já agora, minha adorada filha, estando mais perto deles e com mais continuidade, podia observar melhor muitos de seus usos. Naturalmente o que logo chamava a atenção era a maneira como se pintavam por todo o corpo. Esses enfeites tinham sempre um sentido e eram sempre feitos com grande perfeição, seja nos homens como nas mulheres. Dentre as cores que usam para a ornamentação do corpo a mais habitual é o vermelho. Eles trazem sempre à mão pequenos grãos que quando esmagados entre os dedos fazem um rutilante vermelho. Com ele, quanto mais se molham mais este vermelho se aviva. São tantas e brilhantes as cores dessas decorações que chegam a recordar-me a riqueza dos panos de Arras.

 

Todos trazem os lábios furados, sendo que muitos traziam ossos neles e outros sem ossos. Todos andavam com os cabelos raspados até por cima das orelhas. Na testa, de lado a lado, estavam sempre pintados de uma tintura preta, conseguindo com isso dar a impressão de um fita preta da largura de dois dedos. Além dos cabelos da cabeça raspavam, mas então completamente, as sobrancelhas e as pestanas.

 

Então, o Comandante mandou Afonso Ribeiro e outros dois degredados que se fossem misturar com eles. E o mesmo disse a Diogo Dias que depois da festa de ontem tornara-se íntimo de muitos deles. Aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite. Assim eles fizeram e, como depois contaram, caminharam por mais de uma légua e meia até uma povoação formada de nove ou dez casas, as quais eram tão compridas como a nossa nau-capitânea. Eram de boa altura, boas madeiras formavam as suas ilhargas e cobertas de palhas. Todas elas se compunham de um só espaço, sem qualquer repartição de cômodos, com muitos esteios internos. De esteio a esteio ficava colocada uma rede, atada com cabos aos esteios. Eram altas e nelas eles dormiam e praticamente viviam os diversos momentos de lazer. Debaixo da rede faziam seus fogos para se aquentarem. Cada casa tinha duas portas pequenas, uma em cada extremidade. E diziam que em casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, numa grande família. Assim eles os viram. E que lhes deram de comer os alimentos que tinham no momento, muito inhame e outros tipos de raízes encontráveis na terra e que eles comem com grande satisfação. Como já anoitecia fizeram com que eles voltassem, demonstrando depois de tanta hospitalidade que não queriam que eles lá passassem a noite. Não permitiram que ninguém ali pernoitasse, mas alguns quiseram acompanhá-los no retorno. Lá trocaram por quinquilharias que tinham levado papagaios vermelhos, grandes e formosos, e ainda mais dois de outro tipo, verdes e pequeninos. Igualmente obtiveram carapuças de penas verdes e mais uma espécie de pano de penas de muitas cores, um tecido tão belo que o Comandante o recolheu para presentear a D. Manuel, nosso Senhor.

 

(continua)

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Sábado, 12 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 8 (continuação), por Sílvio Castro

 

 

 

 

 

 

 

 

FESTA PARA O PRÍNCIPE VENTUROSO

 

 ATO 7º


 

(A cena se passa numa praia iluminada pelo sol da primeira manhã. A luz filtra por entre palmas e árvores ricas de frutas, fazendo mais branca a areia fina e azul a água do mar que a banha. Nas ondas próximas da praia flutuam batéis. Aqui e ali, nas areias muito brancas, debaixo das arvores e próximos de um rio que deságua no mar, está muita gente, em grupos. São portugueses em trajes variados - marinheiros, soldados, gente comum - e índios e índias, esses nus. A gente fala, gesticula, encontra-se, canta e dança.

 

O grupo dos capitães, com Pedro Álvares Cabral vestido ricamente, está à parte, num ângulo da cena.

 

(Por detrás deste grupo aparece o Mensageiro.)

 

Príncipe,

 

poderá existir glória maior para um Soberano que saber o seu Império alargado por encontros de paz e amor, ao invés de fruto da violência e do ódio?

 

É isto que eu quero representar agora, numa magnífica festa digna do Príncipe, diante de Vossos augustos olhos. Para isso precisamos de muita música e bailes. Porque essa será a representação do Paraíso recuperado, a visão de encantamento de um encontro paradisíaco entre homens, seres e coisas.

 

É a Vossa festa, Príncipe.

 

Eu serei como uma sombra que caminha por aqui e ali recolhendo vozes, gestos e movimentos, para que os Vossos olhos e ouvidos tudo saibam e gozem.

 

Comecemos porque a manhã deste dia maravilhoso já procede acelerada nas horas e, ai de mim, até mesmo a noite chegará para encobrir tanta glória que eu estou por revelar.

 

 

 

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Sexta-feira, 11 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 8, por Sílvio Castro

 

 

 

 

 


 

O romance do descobrimento do Brasil


  

 

27 de abril

 

Espero de não estar te aborrecendo, minha querida filha, com tantas notícias e novidades. Mas são tantas as descobertas que faço nesses dias de maravilhas que não sei como me limitar. Gostaria porém de poder transmitir à minha querida Maria, que tanto me falta nesta longa viagem, a felicidade que agora sinto nesta terra nova, depois de tantos dias difíceis passados por mim desde que deixei a nossa casa. Sei, Maria, que a tua bondade compreenderá os meus arroubos e a tua doçura mitigará os meus excessos. Por isso te conto tudo. Como se contasse a mim mesmo para assim viver duas vezes os mesmos sucessos dessa experiência que arrebata o meu coração.

 

Nesta segunda-feira, logo depois de comer, saímos todos para o abastecimento de água. É um belo espetáculo, minha querida Maria, ver tantos batéis que se destacam das naus e partem para a praia. Ali vieram ao nosso encontro muitos dos naturais da terra, mas não tantos como das outras vezes. Uma coisa que logo me chamou a atenção é que dentre eles poucos traziam arcos e setas. Inicialmente mantiveram-se um pouco afastados, para depois, pouco a pouco, misturarem-se conosco. Tudo isso com grandes demonstrações de simpatia. Abraçavam-nos e folgavam. Mas alguns logo depois se esquivavam. E logo retornavam ao maior prazer deles, as trocas. Davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer outra coisa. Era tanta a simpatia recíproca nesses encontros que bem vinte ou trinta dos nossos se foram com eles em direção de um lugar onde muitos outros deles estavam em companhia de moças e mulheres. Tudo isso acontecia, minha Maria, com muita tranqüilidade e simplicidade. Quando de lá voltaram esses nossos trouxeram muitos arcos e barretes de penas de aves, de tantas cores, verde, amarelo, vermelho. Via-se nos olhos deles e de seus contos quanto estavam contentes de lá terem ido.

 

 

 

 

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Quinta-feira, 10 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 7, por Silvio Castro

 

 

 

 

 


 

 

O romance do descobrimento do Brasil

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 Este é um posto que bem merece o nome de Porto Seguro. Lentamente todas as naves penetraram na enseada, seguindo as naus pequenas, guias seguras. Antes do entardecer já aqui estava toda a armada, formando um espetáculo de grande beleza, minha querida filha.

 

É uma alegria ver as velas assim amainadas nestas terras maravilhosas. Tudo isso te dá uma sensação de paz sem limites. A beleza da paisagem, o rigor dos verdes ramos densos, fazendo bosque logo na praia, a brancura das areias e o azul limpo dessas águas, junto com o monumental pacífico de nossas naves, tudo isso forma um espetáculo inesquecível. Queria que tu estivesses aqui, minha Maria, para poder gozar de tudo isso, assim como eu gozo e me deleito.

 

Estávamos assim, quando o Comandante mandou o piloto Afonso Lopes, homem vivo e competente, em um esquife para sondar o porto. Afonso Lopes assim o fez e mais ainda: trouxe a bordo dois daqueles mancebos que em meio a muitos outros estavam ali na praia e que em momento algum incomodaram os movimentos do piloto. Um dos jovens trazidos a bordo por Afonso Lopes conduzia consigo um arco e seis ou sete setas. Subido a bordo, e era já noite, Afonso Lopes conduziu os dois mancebos diante do Comandante.

 

O nobre Pedro Álvares Cabral recebeu os dois jovens sentado na sua cadeira de braços predileta. Sobre um estrado coberto por um tapete nos sentamos todos. Ao meu lado estava Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias; junto à cadeira do Comandante sentavam-se, de um lado e do outro, Sancho de Tovar e Simão Miranda. Aqui e ali os outros. Logo os dois jovens entraram, sem demonstrar nenhuma gesto especial de cortesia, tranqüilos, serenos, imutáveis na costumeira compostura. Não mencionaram nenhuma intenção de dirigir-se a qualquer pessoa em particular, nem mesmo ao Comandante.

 

Minha querida filha, logo muito me comovi vendo aquela gente. Alguma coisa de seus gestos, as suas caras belas e tranqüilas imediatamente me inspiraram uma profunda simpatia. Esses jovens são bem o retrato de toda essa gente. De feição, são pardos, tendente ao avermelhado vivo; de bons rostos e bons narizes. Em geral são belos de corpo, bem feitos. Andam sempre nus, sem coisa alguma que cubra suas vergonhas, sejam homens ou mulheres. Porém disso não dão nenhum sinal, pois que são de uma amabilíssima inocência de gestos. Os cabelos deles são lisos, corredios, geralmente com penteados especiais. Esses dois, por exemplo, e assim o fazem a maior parte deles, trazem os cabelos cortados e raspados alto, por cima das orelhas. Um deles, como deve ser hábito, trazia um berretinho de penas de aves, amarelas, muito bem feito, que lhe cobria a nuca e a orelha. Porém, essa espécie de berretinho de penas estava pegado aos cabelos pena por pena por meio de uma cera, o que fazia com que a cabeleira resultasse basta e redonda, de grande elegância.

 

Então os dois jovens entraram diante do Comandante sentado e de todo o nosso cortejo. O Comandante vestia um dos seus melhores trajes, com um colar muito grande e muito rico ao pescoço. Logo que eles se postaram diante do Comandante, tranqüilos e serenos, como já te disse, querida Maria, um deles fixou o olhar no colar de Pedro Álvares e começou a acenar para a terra e logo em seguida para o colar. Dessa mesma maneira se comportou quando viu um castiçal de prata. Todos esses gestos encheram de sobressaltos muitos dos nossos, minha querida filha. Então eu vi nos olhos de alguns de meus nobres companheiros desejos e ansiedades que não eram aqueles que eu gostaria que todos nós vivéssemos diante desta descoberta.

 

Logo depois, querida filha, passou-se um episódio que muito fez rir a companhia, porém a mim, mais que rir, encheu-me de admiração pela ingenuidade daquela gente. Alguns dos nossos apresentaram aos mancebos um carneiro e eles não fizeram caso do animal. Então, logo depois entrou um outro dos nossos trazendo consigo uma barulhenta galinha. À vista dela os dois jovens se espantaram, quase com medo, não querendo de maneira nenhuma tocá-la. Depois de grande insistência, tomaram dela, porém com grande espanto nos olhos.

 

O nosso desejo de saber era incontido. Então deram de comer aos dois mancebos: pão, peixe cozido, confeitos, bolos, mel, figos passados. Não quiseram comer quase nada de tudo isso. E se provaram alguma coisa, logo a cuspiram com nojo. Trouxeram-lhes vinho numa taça e, apenas haviam provado o sabor, imediatamente lançaram-no fora. Porém, logo depois mostraram como são, alegres e comunicativos. Um deles viu umas contas de rosário, brancas: mostrou que as queria, pegou-as, folgou muito com elas e colocou-as no pescoço. Logo em seguida, tirou-as e com elas envolveu os braços e acenava para a terra e logo depois para as contas e para o colar do Comandante, como querendo dizer que gostariam de trocar aquilo com alguma coisa. Muitos dos nossos, no fundo de seus corações, ao contrário pensaram que eles dariam ouro por aqueles regalos. Muitos já sonhavam muito no alto, via-se nos olhos curiosos que não se desatavam dos gestos dos dois mancebos. Muitos outros, gente de natureza desconfiada, pensaram que eles queriam dizer que desejavam levar aquelas coisas com eles, de qualquer maneira, coisa que não aceitariam fazer. Mas, logo depois, ele, o jovem que tudo isso dizia em grandes gestos, já que falarmo-nos não nos era possível, por desconhecermos nós a sua língua, e ele a nossa, logo depois ele devolveu as contas a quem lhe dera.

 

Grande e longo foi esse encontro. A noite já caíra completamente. Então, em determinado momento, eles se deitaram na alcatifa, sem nenhuma preocupação de cobrirem as suas vergonhas, as quais não eram circuncidadas, e sem desarrumar o custoso penteado que adornava suas grandes e jovens cabeças. O Comandante mandou pôr por debaixo da cabeça de cada um deles uma almofada, cobriram-nos com um manto. Isso eles aceitaram e logo adormeceram.

 

 

 

 

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Quarta-feira, 9 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 6, por Silvio Castro

 

 

 

 

 

 

 

O romance do descobrimento do Brasil

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FESTA PARA O PRÍNCIPE VENTUROSO.

 

 

ATO 6º

 

(A cena é a mesma do ato anterior, apenas diferente na luz do dia claro que cobre as naves portuguesas ancoradas definitivamente no porto seguro.

 

Grande é o movimento a bordo da nau-capitânea: marinheiros, soldados, homens de várias atividades, religiosos, correm e passam e tornam e giram numa azáfama sem fim. Pero Escolar, o grão-piloto dirige a vida de bordo. Num ângulo mais tranqüilo, Pedro Álvares Cabral conversa com os seus capitães. O Mensageiro passeia em meio a tanto movimento e lentamente se dirige para a parte aberta de cena.)

 

Escutai, Príncipe, escutai.

 

Muitas já são as novidades desses primeiros dias vividos no Vosso Paraíso. Esta é a voz do impávido Nicolau Coelho. O Comandante o mandara com um batel para fazer o primeiro reconhecimento da terra e ele desceu à praia com os seus homens enfrentando um mar que sempre, mais e mais, se encrespava, preanunciando a terrível noite de tempestade que ontem passamos. É a voz de Nicolau Coelho: "Então baixei, como me mandastes, Comandante, ao batel e corremos em direção da praia. De repente as ondas começaram a encrespar-se como se o mar quisesse nos colocar à prova, para ver da nossa coragem e sabedoria diante das dificuldades, depois de tanta bonança que sempre nos acompanhou nessa navegação. O batel saltava nos costados das ondas e eu gritava aos meus marinheiros para que não cedessem. Mais lutávamos e mais as ondas se alargavam e se faziam violentas. Não tantos eram aqueles metros que nos separavam da praia, mas muitas eram as insídias das águas. Porém, lutávamos sem tréguas ou temores. Eu gritava sempre as minhas ordens e as ondas nos cobriam, passavam, retornavam, recobriam e nós sempre avante, remos tesos, na direção da praia. Depois de muito lutar, já agora a praia se avizinhava. Quando a avistamos acerca de nós, próximos da foz do pequeno rio para o qual nos dirigíamos, vimos sete, oito homens. Eram certamente vinte. Caminhavam pela praia, e mais nos aproximávamos, mais eles entravam pelo mar ao nosso encontro. Eram vinte jovens mancebos, fortes, altos, de bela presença, pardos de pele, todos nus. Às m„os traziam arcos e flechas. Em meio ao estrepitar das ondas eu lhes gritei, fazendo sinal que pousassem os arcos. E assim eles fizeram".

 

Escutai, Principe,

 

em todas as partes se contam as histórias desses primeiros dias de maravilhas. "Então nos encontramos com aqueles mancebos nus, na praia, debaixo da infernal agitação das ondas que cobriam as nossas vozes. Mas falávamos melhor com os gestos. Eu pouca coisa tinha comigo. Eles, nus como estavam, menos ainda. Mesmo assim, gesticulando, dei-lhes de regalo uma carapuça de linho que tinha à cabeça e um barrete vermelho, e mais, recordando-me, um sombreiro preto que trazia comigo. Eles gesticulavam de muito gosto e agrado, e me deram um sombreiro de penas compridas, de aves, com uma copazinha de penas variadas em vermelho e cinzento escuro, como certas penas de papagaios. E ainda um colar de continhas brancas, muito miúdas, muito parecidas com as continhas de aljofas. Ei-las, todas cá. Depois queríamos falar mais entre nós, mas tudo isso era impossível com o estrondar incessante das ondas".

 

Nicolau Coelho continua a contar as primeiras experiências com a gente nova. Seu entusiasmo descobridor se irradia nas caras de seus companheiros.

 

Muitas são as falas. Escutemo-las, Príncipe.

 

"Então, Pero Escolar, como fizeste para evitar males maiores para a capitãnea no temporal de ontem de noite?"

 

"Bem sabes, Afonso Lopes, mestre como és da arte de pilotar uma nave como era terr¡vel a situação em que todos nós nos encontramos. Mais ainda porque era muito tempo que não tínhamos ventos tão terríveis. Era tanto o vento que a âncora da capitânea quase não resistia. Parecia que o tempo nos queria carregar para o fundo. Para equilibrá-la, porque caceava, descaía sempre mais e mais, tivemos de empregar todas as nossas forças".

 

"É verdade, parecia que nos encontrávamos de novo diante do cabo tormentoso! E dizer que essas águas pareciam sempre planas..."

 

"Eu nunca dancei tanto como ontem de noite", é a voz buliçosa do sempre alegre Diogo Dias.

 

"Mais dançarias se a banda tocasse melhor!..."

 

Escutai, oh! grande Príncipe,

 

é o bom piloto Afonso Lopes que retorna da praia. Ali o mandara o Comandante em um esquife para que fosse sondar esta enseada que nos serve de porto. Pedro Álvares Cabral escolheu Afonso Lopes para a missão porque ele é um dos mais competentes entre os nossos mestres de pilotagem. Depois de muito sondar neste pouso de grande segurança, no qual já nos encontramos em grande calma depois da borrasca de ontem, agora ele sobe a bordo da capitânea.

 

"Comandante, o porto é seguro e por ele podemos transitar com tranqüilidade. Mesmo que retorne o mal-tempo, estaremos seguros nessas plagas. Trouxe-te comigo esses dois mancebos para que possas conhecê-los".

 

Vêde, meu Senhor,

 

aqueles são os dois jovens trazidos por Afonso Lopes. Vêde como são bem feitos de corpo, como são belos e limpos! E como são tranqüilos e ingênuos, como são puros na nudez de seus corpos jovens! Belas as cores de suas caras, avermelhadas, ainda que de um pardo-escuro. Os narizes são bem feitos e os cabelos negros e corredios. Vêde como são serenos e tranqüilos, vestidos na própria nudez.

 

Pedro Álvares Cabral está sentado na sua cadeira predileta, bem vestido, com o colar grande no pescoço. Ao lado da cadeira do Comandante estão todos, Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correa e todos os outros, sentados no chão coberto pelo tapete. Vêde, nobre Príncipe, agora os dois mancebos nus se apresentam diante do Comandante.

 

Parece que nada desta cena solene os impressiona. Seus olhos são sempre brilhantes de curiosidade, mas tranqüilos. Olhai, agora um deles fixa o colar do Comandante e acena para a terra e de novo para o colar. O que quererá dizer? Depois fixa um castiçal de prata e repete os mesmos gestos. Aproximam-se alguns marinheiros com um carneiro. Nada. Os dois jovens fitam indiferentes o animal. De repente um outro dos nossos chega com uma galinha. Diante dela os dois mancebos agora se agitam como delas tivessem medo. Recusam de tocá-la, de tomá-la às mãos. Viste esta tal maravilha, nobre Príncipe? Que espécie de gente será esta que se espanta com o bulício de uma galinha, mas que não teme um encontro com centenas de homens desconhecidos?

 

Depois a cena continua. Vejamos. Dão-lhes o de comer: pão, peixe cozido, confeitos, bolos, mel, figos passados. Vê-se que pouco dessas coisas os apetece. Diogo Dias lhes traz uma taça de vinho. Nem isso os agrada. A festa continua. Todos nós desejamos falar com eles, mas nos é impossível, porque deles não entendemos a língua, nem eles a nossa.

 

Vêde, bom Príncipe, como é importante saber as línguas. Me sinto impotente porque não consigo comunicar com esta boa gente a não ser com gestos. Muito gostaria de dizer-lhes e muito me agradaria escutar-lhes de seus contos. Me sinto impotente porque estou como um mudo diante de outro mudo. Para maior glória da Vossa vontade de propagação de nossas esperanças de um mundo novo para todos precisamos saber falar com as gentes. Precisamos fazer com que as gentes falem depois igualmente a nossa l¡ngua. Desta maneira, claro Príncipe, o Vosso poder não terá limites. Muitos, muitíssimos intérpretes devemos preparar, pois somente assim as glórias de Vossas descobertas poderão verdadeiramente preservar-se.

 

Príncipe,

de novo cai a noite e a cena está por descerrar-se. Nada terminou, tudo está por começar. Porque grande é o Vosso poder.

Vêde, as luzes se apagam. Depois de tanta festa, tranqüilamente, como a paz que começamos a viver neste paraíso, os dois mancebos deitaram-se na alcantifa e adormeceram. O Comandante faz um gesto a Diogo Dias para que ponha debaixo da cabeça de cada um deles uma almofada e os cubra com um manto.

 

 

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Terça-feira, 8 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 5, por Sílvio Castro (continuação)

 

 

 

 

 

 

 

 

23 de abril

 

Mais que dormir, minha querida filha, esperávamos que amanhecesse esta quinta-feira de prodígios para ver mais de perto as coisas intuídas ontem. Era ainda manhã cedo quando o Comandante ordenou que se fizesse vela e se dirigisse para a terra. Os navios menores iam adiante explorando aquele mar de águas límpidas, na procura do melhor ancoradouro. Ancoramos diante de um rio que desagua ali mesmo. A primeira manhã passou-se quase toda nesse indagar do mar, não tanto por desconhecê-lo, mas principalmente para encontrar o ponto onde compreender melhor aquela terra nova. Ela sim, minha querida Maria, era para nós um enigma. Nossos olhos a miravam inquietos e ansiosos enquanto as naves se encaminhavam sempre e mais na direção da praia. Quanto mais nos aproximávamos, mais a maravilha e a comoção diante desta descoberta nos enchiam de tensão o peito e o coração. Diante de todas aquelas maravilhas de montes bosques praias luzes cores todos nós, os mil e duzentos portugueses que viviam tamanha emoção, sentíamos um desassossego pleno de entusiasmo e esperanças.

 

Finalmente às dez horas a ancoragem se completou.

 

Lentamente todas as naves se agregaram às naves menores na ancoragem tranqüila. Depois de estarmos todos juntos, mais juntos agora de quanto estivemos durante toda a navegação - tudo pela maravilha do espetáculo e pela facilidade da ancoragem - diante de nossos olhos atentos e ansiosos apareceram sete ou oito homens que andavam pela praia, perto da foz de um riacho. O já grande alvoroço que reinava em todas as velas mais se acentuou com a descoberta da nova gente. O Comandante reuniu-se com os outros onze capitães e mandou que Nicolau Coelho fosse até a terra com um batel para conhecer aquele rio. Enquanto o barco de Nicolau Coelho se dirigia para a praia ali acudiram muitos homens que se juntaram aos oito primeiros. Em grupos de dois, três, acompanhavam o deslisar do barco do bravo Nicolau Coelho e quanto mais se aproximava da praia, mais aqueles homens entravam nágua, assim como sempre são, todos nus, nada que cobrisse as suas vergonhas, pardos e fortes, nas mãos trazendo sempre arcos e setas. A barca de Nicolau Coelho caminhava sempre para a praia, e para dentro das águas se moviam aqueles homens. Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles assim fizeram.

 

Grande maravilha, minha querida Maria, é viver tais encontros. Tudo ocorre como num grande sonho, mas de claras realidades.

 

O estrepitar das ondas naquela praia era imenso. Com isso pouco pôde Nicolau Coelho comunicar-se com aqueles homens. Porém, mesmo assim, diante de tantos estrondos e barulhos d'água, Nicolau Coelho deu-lhes de regalo aquele pouco que trazia consigo, um barrete vermelho e uma carapuça de linho e mais um sombreiro preto. Um daqueles homens pardos deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e escuras de papagaios, sim, como de papagaios; e um outro lhes deu um longo ramal de continhas brancas, miúdas, semelhantes àquelas de aljofas. Tudo se passou assim, debaixo de um grande barulho e de um grande quebrar de mar que anunciavam noite ruim. Porém os presentes passavam de mão em mão com entusiasmo e alegria. Entusiasmo e alegria que vinham sublinhados pelos estrépitos incessantes das ondas.

 

Não eram sinais inúteis o estrepitar das ondas que ontem acolheu o primeiro encontro entre os nossos e a nova gente que estamos descobrindo, minha querida Maria. A noite passada foi tão terrível que nossas naves, ainda que bem ancoradas, quase não podiam suportar a violência do temporal. Era tamanho o desassossego que, manhã bem cedo, lá pelas oito, aconselhado pelos pilotos o Comandante mandou levantar âncoras e fazer vela. Então fomos acompanhando a costa, na direção norte, em procura de melhor abrigo, onde pousar com mais tranqüilidade para um grande refornimento de água e lenha. Ainda que nada dessas coisas nos faltasse verdadeiramente, era tanta a admiração pela paisagem que nos acolhia que sentíamos a necessidade de dela participar imediatamente. Queríamos conhecê-la de mais perto, tocá-la, gozar dela, vivê-la intensamente. Caminhávamos sempre assim e na praia podia-se distinguir sempre mais facilmente a presença de tanta daquela gente que já ontem nos recebera. Pela praia caminhavam muitos deles, acompanhando sempre o navegar de nossas velas na procura do melhor porto. Eram mais de setenta, oitenta. O Comandante mandara que os navios pequenos velejassem mais próximos da praia, e assim logo eles encontraram uma bela enseada, com um porto dentro, muito bom e muito seguro. Ali amainamos.

 

FESTA PARA O PRÍNCIPE PERFEITO.

 

 

 

"E no nome de D. Manuel, Altíssimo Soberano de Portugal, para maior glória

 

de nossa Santa Religião, eu chamo esta nova terra «Terra de Santa Cruz»".

 

 

 

 

 

 

 

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Segunda-feira, 7 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 5, por Sílvio Castro

 

 

 

 

 

 


 

O romance do descobrimento do Brasil

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FESTA PARA O PRÍNCIPE VENTUROSO.

 

 

ATO 4º


(A cena é o convés semi-iluminado da nau-capitânea. Do alto das velas os marinheiros que trabalham em afanoso empenho de amainar entoam uma moda dolente. Nos intervalos dos cantos, gritam os gaveiros em espaçados momentos que combinam com o cantar das velas: "Avante!". Finalmente as velas se compõem. No timão da nau-capitânea um vulto semi-encoberto pelas sombras guarda o horizonte fechado, o marulhar das ondas e as luminosas estrelas desse céu. Ao centro da cena entra o Mensageiro)

 

Ah! doce Príncipe,

quero Vos falar dessa navegação maravilhosa! Já os tristes eventos da desgraça de Vasco de Ataíde e seus marinheiros ficaram escondidos nas brumas do nosso imenso desejo de esquecê-los, para não revivê-los a cada instante, e já nós caminhamos sem outros limites que a ansiedade de chegar. Chegar, mesmo que seja aquele ponto final onde nenhum homem nunca chegou. Para os Vossos súditos, precioso Senhor, os reveses da fortuna são apenas incentivos para novos gestos. Nós, portugueses, sempre aprendemos a superar os fados. As desgraças nos assaltam nesses mares; os Vossos filhos, muitos dos Vossos filhos melhores se perderam nessas ondas tormentosas. Coalhados de barcos lusíadas são esses abismos. Mas nós, doce Príncipe, de todas essas desgraças tiramos novas forças. Os filhos de Portugal se redobram em pujança diante do Tormentoso e não temem os cortejos de espectros.

 

Príncipe,

 

vede, ali está o valoroso Pero Escolar. Os espectros dançam diante de seus olhos, procuram desviá-lo da sua rota, atraí-lo para o fundo convexo onde bailam enlouquecidos. Mas Pero Escolar é um forte; fixa sempre adiante, sempre avante, para onde correm as correntes desconhecidas.

 

"Quem vem lá? Ah! és tu, Pero Vaz?" "Que queres, caro amigo, em meio a tantas sombras? Não sabes que a noite deseja agasalhar os justos como ti? Confia na noite e teu sono será sereno. Não vês que tenho tranqüilamente nas mãos o leme? Sei que temes por este longo caminhar. Estamos indo sempre avante, sempre e não conhecendo que mar é este que se abre aos nossos olhos a cada instante e novo. Certo é que de um momento ao outro ele poderá fechar-se, de surpresa. Por isso eu miro sempre, Pero Vaz, aquela estrela, aquela lá, luminosa, belíssima. Ela é o meu norte, a minha guia. Ela é a minha alva, mas também a minha tarde. A minha estrela dalva, que me cobre os olhos de luz, abrindo-me caminhos, é aquela lá."

 

Principe,

 

esse é o piloto da Vossa caminhada. Com a segurança de seus braços, Vossos filhos e barcos superarão esses mares. Caminhamos sempre e sabemos para onde vamos.

 

Olhai, são os Vossos barcos essas velas que se inflamam ao contato da salsugem do ar. Os silvos que escutai são os gaveiros que não dormem, para maior glória de seu Soberano. A viagem continua a cada dia e a cada dia mais certa de descobertas.

 

22 de abril, quarta-feira

 

Valeu, valeu viver muitos anos não sempre felizes, minha querida Maria, para chegar até este dia de hoje. Valeu sofrer tantos reveses e afrontar mil dificuldades para ver e viver o que estou vendo e vivendo. Minha Maria, a partir daqui quero controlar-me o mais que me for poss¡vel para contar-te tantas maravilhas. Quero que tu as vejas, querida filha, assim como posso vê-las, e possas retê-las nos teus olhos. Te quero alegre e feliz. Te contarei tudo, livremente, completamente.

 

Eram as horas das vésperas quando avistamos esta terra que agora quando a noite começa a cair vejo extasiado diante de mim. Daqui do largo, apoiado ao bordo da minha nau, fixo sem cansar-me a terra. Entre mim e ela o mar é azul e eu percorro a sua distância até a praia e chego à terra. Assim como eu, mil olhares atônitos se fixam na terra. O silêncio cobre tudo, o marulhar das ondas, as vozes estridentes das gaivotas, o azul do mar, o lento cair da noite, as sombras, os passos nos conveses, as vozes de comando, o movimentar das velas no soprar da brisa. Sinto em tudo isso o espírito de Deus.

 

Quando, de repente - mas sabendo - nesta quarta-feira de maravilhas nossos barcos viram no horizonte a massa, inicialmente quase indistinta, depois lentamente mais clara, alta, altaneira, redonda, daquele monte, e logo depois outras serras mais baixas e mais terras, tantas terras, todos nós tínhamos consciência que um grande evento estava acontecendo. Os barcos continuavam a caminhar na direção da terra e nossos olhares a cada passo mais e mais se enchiam de descobertas. Os capitães, todos os capitães estavam ao lado de Pedro Álvares Cabral, na proa da nau-capitânea, e então o nosso Comandante chamou aquele monte, Monte Pascoal e aquela visão de maravilhas, Terra de Santa Cruz.

 

Agora é noite, minha querida Maria, e as naves estão ancoradas, numa ancoragem limpa que faz com que esta noite nos conforte toda a alma diante de tantas certezas.

 

 

 

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Domingo, 6 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 4, por Silvio Castro

 

 

 

 

 

 


O romance do descobrimento do Brasil

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

7 de abril

 

Muitas vezes toda a tripulação da nau e mais todos os outros viajantes se encontram diante do oratório suspenso, minha doce Maria, principalmente nas ave-marias. Então está também connosco o nosso Comandante. O nobre Pedro Álvares Cabral pede nessa ocasião a D. Enrique que comece os atos. Acompanhando D. Enrique, um dos religiosos franciscanos entoa as orações vesperais. Nessas horas, minha querida filha, o espírito divino desce sobre os homens e desliza sobre o marulhar constante das águas. Olhando no horizonte, dentro do vago entardecer, me parece de poder ver nos infinitos distantes dessas águas uma paz e uma certeza que pertencem a toda humanidade. É um grande silêncio o figurar das velas e o murmúrio de vozes e lenhos e ondas.

 

8 de abril

 

Pedro Álvares Cabral, minha querida filha, o nosso mui leal e nobre Comandante, nos dá o maior exemplo de religiosidade. Ele sempre convive com o espírito de nossa Santa Religião. Sendo austero por natureza, por isso mesmo, pela sua natural índole religiosa é muito capaz de humanidade. É duro e gentil, a um só tempo. Além da participação com todos nós nos atos religiosos coletivos, ele tem na sua pequena cabina, colocada em posto de realce, uma bela cruz de metal. É uma peça não verdadeiramente rica, mas muito bela. É feita de bronze puxado, todo lavrado, gravado e dourado. A cruz pousa sobre um pequeno pedestal de madeira, também esse trabalhado com esmero. Na parte inferior, quase um báculo - toda lavrada, gravada e dourada - alarga-se uma base em arremedo de fortaleza circular sobre a qual se apóia o crucifixo com o Filho de Deus sacrificado. As pontas da cruz são desenhadas em forma de flor-de-lis. Diante da cruz Pedro Álvares Cabral medita sobre essa nossa longa caminhada que nos leva sempre adiante, para onde sabemos que chegar é a meta, mas ignoramos tudo que ela nos fará viver. O vulto debruçado do Comandante é como a nossa vigília diante de um futuro que é nosso e que, noite e dia neste mar, nos mete em vigilante atenção.

 

 

"Avante!" - é a voz dos gaveiros que nos recordam a cada instante o navegar sem tréguas. "Avante!" grita sempre a voz. E em mim ressoa "Alerta!" "Alerta!".

 

9 de abril

 

Ah! minha querida Maria, navegar é estar sozinho sem solidão. Caminhamos, sempre. Caminhamos. Tudo se repete nos dias e nas noites. Nada de diferente acontece enquanto as velas prosseguem lentas mas constantes neste mar longo e calmo. Somente mar, sol, nuvens, céu. Tudo claro, de uma claridade que espaceia fora e dentro de ti mesmo.

 

10 de abril

 

O mar é este gentil caminho que nos leva em todas as direções. Te faço falar Pero Escolar: "Mar. Mar em flor, rebentações de jardins, de todas as cores e flores; mar de fora, mar grande, alteroso de ondas que te cobrem num abraço; mar de fundo, tranqüilo mar, lago, quase teu; mar de água branca, luminoso dentro das águas como um céu convexo; mar alto, mar atravessado, mar banzeiro, de carneirada, quando os rebanhos das ondas tropeçam nos cardumes multicolores; mar cheio, único, não mar desfeito, não mar encapelado, encrespado. Mar espelhado, meu mar."

 

11 de abril

 

E assim vamos, minha gentil Maria, nesta navegação. Os dias passam e estamos no mesmo lugar. Sempre neste mar infindo.

  

12 de abril

 

Se eu te contasse tudo o que sinto, talvez não chegaria nunca a dizer-te tudo, pois o tempo faltaria, minha querida filha. São tantos os sentimentos que vivo neste instante que arreceio de não poder dizer-te nada sobre eles. Sinto-os, sei como me sinto, mas estou como atordoado. Não em desassossego, como nos dias passados; mas como se dentro de mim tantos pensamentos, desejos e incertezas insones a cada instante me pegassem pela mão e me conduzissem a um vago mas ao mesmo tempo distinto espaço que não vivo, nem reconheço. Quando sinto demasiadamente duro este espaço, me escondo nas minhas lembranças mais amadas, tu - minha Maria -, a nossa casa, o meu passado. Entre tais desequilíbrios me afino com o baloiçar da nau e me adormento.

 

13 de abril

 

Então começo a sonhar. Penso profundamente na busca do meu próximo futuro. Calicute está no horizonte e eu fixo o olhar nos dias que virão, no que deverei fazer para dar cumprimento à confiança que o nosso bom Senhor teve para comigo. Me vejo nas brumas desse futuro. Caminho em Calicute. Faço. Me esforço por cumprir tudo. Mas nas brumas de Calicute me perco, de repente. O que será isso que me acontece? Por que não vejo claramente nesses sonhos?

 

14 de abril

 

Oh! minha querida filha, não quero atormentar-te com os meus pensamentos. Eu estou bem. Tudo depende somente desse navegar monótono e sem fim. Eu vejo Calicute, sim, a vejo cheia de vida. Tudo transcorre bem, como na vontade de nosso Senhor e Soberano. Calicute ali está, clara, distinta. Finalmente chegamos e nos instalamos. São tantos os sucessos de Portugal, tantos os negócios e as conquistas. As nossas doze naus estarão ancoradas com segurança no porto. Sim, ali estarão ancoradas todas, as naus de Sancho de Tovar, de Bartolomeo Dias... ... ... L estarão, certamente. Mas não as vejo todas. Ah! os meus olhos, os meus pobres e cansados olhos não sabem mais ver. Abandono o olhar fora do mar e correndo para Calicute vejo a azáfama de tantos portugueses em ação. São mil, mais de mil. Todos ativos, vivacíssimos, competentes. Os mouros aceitam o poder indiscutível do Rei de Portugal, e a gente confraterniza em compras, trocas, em mil atos. Tudo vai bem, vejo. Tudo corre bem. Porém, depois chegam as brumas, as eternas brumas, sombras, espectros, que não me deixam.

 

15 de abril

 

Que dia é hoje, minha querida Maria? Sim, sim, certamente ‚ quinta-feira. Ou ‚ quarta, ou sexta? Já lá quase me esqueço dos dias. Será este longo mar que nos leva sempre para adiante e aonde nada acontece. Nada acontece, a não ser o deslisar das naus, doze, sim doze, e o murmurar das velas delas na brisa calma.

 

16 de abril

 

Sozinho, diante do oratório e já passadas as avemarias, peço ao Nosso Senhor que não nos abandone jamais porque Dele dependemos em tudo e Dele queremos falar para tanta gente nos mundos desconhecidos que nos esperam. Queremos levar até esses mundos o conhecimento da Sua extraordinária Graça, para que todos os infiéis a possam conhecer. Enquanto penso a tudo isso, minha querida filha, fixo o céu sem fim e onde brilham milhares de estrelas. Eu comparo as estrelas que sempre vi na minha terra a essas novas e me repouso em doces pensamentos.

 

17 de abril

 

"Aquela lá distante e luminosa é a minha estrela, o meu norte. Não a estrela do Norte, mas a minha guia, o norte do meu navegar. É a minha estrela da alva e também a minha estrela da tarde. Eu amo aquela estrela". É Pero Escolar que assim me fala.

 

18 de abril

 

Neste longo navegar, minha filha amada, muito aprendi com Pero Escolar como olhar as estrelas com particular atenção e procurar nelas um sentido para tantas coisas, além da intrínseca beleza qua cada uma delas nos dá. Quanto mais penetramos neste hemisfério desconhecido mais nos parece cada noite refulgir o céu. As estrelas são miríades. Certo, amo as estrelas do céu português, mas me parece que tudo aqui aumente de potência e que também essas estrelas sejam em maior número que as de lá. Disso muito falo com Pero Escolar e também com o sábio João Vizinho. Mestre João, físico de rara sabedoria, nos acompanha em nossos devaneios diante da noite estrelada. Hoje ele me fala em modo particular com comoção do conjunto de estrelas que temos diante dos nossos olhos nessa noite clara. É a constelação da Cruz, conjunto belíssimo de brilhantes estrelas representando o símbolo da nossa redenção nesses céus. A sua estrela alfa é a mais brilhante entre todas aquelas que conhecemos no hemisfério austral. Está situada no "pé" da cruz. A mais distante em relação a esta, no topo da haste, é a "estrela da cabeça" que, quando se encontra em vertical com aquela e em aparente linha reta, indica o sul. Os braços da cruz têm a leste uma estrela do mesmo brilho daquela da cabeça, e a oeste, uma menos brilhante. É uma maravilha da vontade divina a beleza de conjunto dessas estrelas. Nessas noites de calma navegação elas nos acompanham como um fado. Para onde? para que?

 

19 de abril

 

Hoje mais do que nunca sinto o cansaço e a angústia dessa viagem sem fim. Esta repetição infindável de coisas enche-me o peito de algo que não sei definir. A falta de uma referência que não seja este mar, este sol, esta noite, estas estrelas, a falta de uma meta definida percorre a atmosfera e me invade. Onde estão as gaivotas, onde a terra?

 

20 de abril

 

Parece-me que a opressão que desde ontem agita meu peito não passe. Vejo nos olhos de meus companheiros o mesmo sofrimento. Nada mais vemos, nem desejamos ver que tudo aquilo que esta além disso que vemos. Muitas vezes penso que meus olhos já não enxergam, porque eles me dizem sempre as mesmas coisas.

 

 

21 de abril

 

Deus seja louvado, minha querida Maria! Hoje, terça-feira de oitavas de páscoa, topamos com alguns sinais de terra próxima. Benditos sinais que mudam todo o nosso esp¡rito e nos refrescam a alma! Que alegria nos olhos de meus companheiros diante dessas simples ervas, por eles chamadas botelhos, rabo-de-asno! Pode parecer pouco, minha querida filha, mas para nós é como um novo sol e um rumo novo.

 

 

 

 

 

 

publicado por João Machado às 21:00
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Sábado, 5 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 3, por Silvio Castro

 

 

 

 

 

 


O romance do descobrimento do Brasil

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Senhor,

 

essas que choram mudas e tristemente são as vozes dos marinheiros depois da busca inútil. Na impenetrável calma do dia a navegação recomeça e as velas retomam o ocidente como uma grande procissão de fantasmas abismados.

 

Senhor,

 

onde estão minhas palavras aladas que tanto desejavam alegrar os Vossos ouvidos? Pra onde foram, para que perdidos lugares? Quem sabe, agora certamente caminham no fundo dos mares acompanhando as nossas desgraçadas caravelas que não cessam de percorrer todos os abismos abissais. São as naves de tantos heróis portugueses. Adiante delas vai a nau do infeliz capitão Vasco de Ataíde. Que não verá o que nós veremos.

 

23 de março, segunda-feira

 

Ah! que trágica e triste segunda-feira, minha querida Maria.

 

Depois que deixamos São Nicolau, a noite foi calma. Tudo corria bem depois daquele dia de decisões, as naves caminhavam seguras no mar calmo em busca de novos caminhos. No silêncio da noite, duas ou três vezes acordei-me sem motivo verdadeiro, pois não de insônia sofria, e retomava a consciência de encontrar-me naquela nau e naquele mar após os pequenos espaços de sonhos que me conduziam para terras firmes e conhecidas. Recuperando a minha realidade, podia escutar os muitos silêncios que aquela noite encobria. Adormeci-me definitivamente.

 

  

A manhã era plena de sol luz e calor. O mar cintilava na quase bonança e os movimentos tardos, praticamente imóveis, das velas davam um ar de fantástico à manhã ensolarada. De repente ressoou o sinal de nau dispersa. Desaparecera a vela de Vasco de Ataíde.

 

Todas as naves se movimentaram ansiosas na extensão inimaginável das águas na procura da caravela perdida. De cá e de lá se perlustrava. Mais se alargava o espaço da procura, mais se perdia a esperança de encontrar o barco do infeliz capitão. Horas e horas se passaram na busca angustiosa. E o mar era sempre calmo, de uma serenidade que enchia de pânico os nossos corações.

 

Nada, nada se encontrou. Somente calma. Calma. Silêncio. Silêncio. Luz. Calma.

 

As naves retomaram lentamente o caminho do ocidente. Em cada um de nós, Maria, parecia que pairava um mistério maior do que a nossa capacidade de sofrer. Um mistério que, ao mesmo tempo, nos aterrorizava e nos encantava, acompanhando-nos naquele caminhar que recomeçava.

 

Ah! minha doce Maria, que tristeza no coração neste momento em que não sabes se tudo ainda é vida ou se nada mais é poss¡vel. Em cada um de nós estava o mistério daquele desaparecimento. Cada um de nós naufragava naquele naufrágio absurdo, pois que não sabíamos em que realidade, em que fé apoiar-nos diante de tal desgraça. Sempre aquele mar terrivelmente doce a nos guiar na desesperada incredulidade por tudo quanto sentíamos. Esta calma, esta absurda calma, e esta desesperante aventura.

 

24 de março

 

Tu não podes saber, amada filha, qual sensação fica dentro de nós depois de uma experiência como a de ontem.

 

Recomecei, recomeçamos a viver a repetição de todos os dias já hoje, porém eu não posso mais ser o mesmo homem depois do que me aconteceu. O desaparecimento impossível do barco de Vasco de Ataíde alterou os nossos sentimentos. Eu caminho neste navegar tranqüilo mas não sei mais o que é a antiga serenidade. Tudo me parece tão absurdo, aquela gente nossa - a mesma que ainda dois dias antes víamos festiva e buliçosa em São Nicolau - agora tragada pelo nada, perdida diante dos nossos olhos atentos nesta luz que nos permite tudo ver, ah! minha Maria, tudo isso me deixa sem rumos.

 

Que destino trágico, este de tanta gente portuguesa! Muitos são os nossos irmãos que já perderam a vida nestes mares sem fim. O mar é doce e companheiro, mas esconde o fascínio de mistérios que podemos intuir, mas que jamais podemos controlar. Quantos lenhos nossos desapareceram tragados pelos temporais furiosos e pelas tormentas mais atrozes? Vejo-os a todos neste momento na desesperação por sobreviver contra a fúria incontida das ondas. Diante de meus olhos o mar é tão sereno e calmo que se pode ver a festa dos peixes que nos seguem na esteira dos barcos. Os delfins, de quando em quando, saltam das águas num ritmo alegre. Mas os meus olhos vêem os mortos que não repousam jamais, tragados por essas ondas. Vejo-os abandonados ao vazio da vida perdida nesses embates sem glórias. São multidões esses mortos e em redor deles reina o grande silêncio. Vejo também, minha querida filha, além dos fantasmas dessa última noite, aqueles outros nossos náufragos que, depois de lutas e aflições contra as fúrias da natureza, conseguiram tocar terra. Seus corpos extenuados mas vibrantes de felicidade pela vida conservada, eu os vejo debruçados sobre tantas praias deste mundo. Depois, os pobres desgraçados, os vejo nas mãos dos inimigos infiéis, atormentados pelo cativeiro, definitivamente perdidos para a vida. Esses são os mortos que se salvaram nas praias desertas e que desapareceram em meio às maiores dores da liberdade perdida. Eles se unem aos fantasmas que caminham nas águas deste mar e, juntos, fazem o longo cortejo que enche meus olhos de angústia.

 

25 de março

 

Nas naves os marinheiros comentam o desaparecimento do barco de Vasco de Ataíde. Tudo aconteceu por desgraça, porque o infeliz capitão - conduzido pela sua danada tendência à solidão - isolou-se da armada e, sozinho, encontrou-se naquele ponto onde repousa o monstro das dez imensas cabeças e mil tentáculos. É um monstro verde, antigo, que sempre repousa no fundo dos abismos. Quanto acorda se enfurece e a serenidade das águas desaparece em vórtices medonhos. Os desgraçados marinheiros de Vasco de Ataíde se encontraram com o despertar fatídico do monstro verde.

 

26 de março

 

Para outros marinheiros, veteranos de tantas navegações e de tantas desgraças nesses mares, a vela de Vasco de Ataíde teve a infelicidade de encontrar-se com o canto encantador da mais bela das sereias que vivem nestes mares. É um ser belíssimo, dizem aqueles que a viram um dia e tiveram a felicidade de não contemplá-la longamente, um ser belíssimo, com semblantes de mulher, loura, que caminha pelas ondas, nua, e canta com uma voz muito doce. Impossível é não seguir essa voz. Que se distancia sempre, sempre e mais, mas não perdendo-se jamais dos olhos que a fitam. Vasco de Ataíde a encontrou e a está seguindo indormido para sempre.

 

 

27 de março

 

Me parece, minha querida filha, depois de tantos e tristes eventos, que esta navegação prossegue como num profundo sono. Tudo parece que dorme, as naves, as vozes dos marinheiros, até mesmo o brilho constante das estrelas. Pero Escolar conserva como sempre atentamente o timão nas mãos fortes e tranqüilas. Porém, os seus olhos fixam a distância e se perdem. Acompanho o olhar de Pero Escolar e, ao longe, adiante das doze naves que caminham, parece que vejo uma vela indistinta, porém nossa.

 

28 de março

 

Pero Escolar me diz que agora a navegação lhe corre mais segura pois que, desde a noite passada, seguindo as estrelas e as correntes, a sua guia se orienta também pela passagem de uma nossa antiga nave por essas mesmas trilhas que ele julgava desconhecidas. Mas, como o sabes, dessa nave? Eu não sei, me responde.

 

29 de março

 

O baloiçar de minha nau-capitânea me acalenta e eu sonho, sonho de olhos abertos ao ritmo da cançâo sem música que é este embalo dulcíssimo. Estou firme e caminho sempre. Mais caminho, mais encontro esta visão serena de um mundo infinito e inatingível.

 

30 de março

 

Minha querida Maria, os episódios desses últimos dias me abalaram muitíssimo, já bem o sabes. Porém, agora, sinto uma espécie de grande tranqüilidade. Não, não‚ uma sensação de cansaço. É alguma coisa que se parece com o sono, mas que não o é. Me sinto extasiado, mas sem comoções; suspenso no ar, mas sempre consciente de tudo. Tudo me parece tranqüilo, não somente esta serenidade infinita do mar que singramos noite e dia, noite e dia. Tranqüilo é o tempo, o vento que sopra de bombordo. Mas igualmente tranqüilo era aquele de ontem que nos seguia a cisbordo. Ah! os ventos... mais que vento esta é uma brisa sutil que se encadeia com o meu sono constante desses dias.

 

31 de março

 

Alisado, alísio, aliseu. Alisado è este mar e este meu olhar quase sempre parado que o contempla sem cansaços, mas sem nenhuma curiosidade. Alisado, mais que alísio. Mais que aliseu. Alisado, regular, sem rugas, estas águas. Mais que aliseu, mais que alisio. Aliseu, alísio, ou eu que não sei mais ver e distinguir os ventos, diante deste mar liso, sem rugas, regular. Os ventos partiram certamente para muito longe. Nós estamos sempre neste mar liso, amaciado pela brisa, alisado, mais que alísio. Para onde foram os ventos? Para que congresso distante se apartaram?

 

 

1º de abril

 

Vamos brincar de novo, minha querida Maria? Vamos recordar quando inventávamos nesse dia brincadeiras na nossa casa: eras uma menina triste, mas então te alegravas e sorrias comigo. Preparávamos tudo às escondidas, já cedo; sempre queríamos surpreender a tua mãe. Então chegávamos com o pacote com a surpresa, diante dela. "É para mim?" "Claro, é pra ti. Abra." E depois ríamos, ríamos muito todos os três – não, Maria? - com a surpresa de tua mãe. Ela fingia todos os anos de não recordar-se das armadilhas já passadas. E tu rias; felizes éramos todos os três. Tua mãe gostava muito das nossas brincadeiras, não é verdade, minha querida?

 

2 de abril

 

Me parece, minha querida Maria, que tudo nessa navegação recomeça para mim. Até ontem o meu espírito estava turbado como um mar encapelado. Já hoje começo a sentir-me outro. Sou como este outro mar, aqui e ali movimentado por certas ondas e movido mais fortemente por alguma corrente veloz; porém me sinto como na bonança depois do temporal. É uma quietude, um longo silêncio interior, ainda que pleno de ressonâncias. Essas são as vagas noturnas que nos falam dentro da penumbra. Mas, querida filha, estou bem, muito bem. Como um supérstite que finalmente pisa a terra firme.

 

3 de abril

 

Recordando tudo quanto se passou comigo nos últimos dias, querida Maria, me sinto culpado de haver esquecido a misericórdia divina. Levado pela angústia de minhas experiências, esquecido de tudo que não fosse o meu desassossego, a minha soberba quis conviver somente com a dor. Perdi por isso a esperança. Mas a Graça de Deus é infinita. Sem merecê-la, eis que me encontro de novo sereno pelo seu reencontro. Deus Nosso Senhor não prestou atenção ao meu espírito soberbo e reentrou em mim. Minha querida filha, hoje me sinto em paz novamente. A bondade infinita de Nosso Senhor reconforta-me. De novo sei onde me encontro e o meu desassossego se diluiu com as sombras.

 

4 de abril

 

Agora o meu grande gosto é tomar o posto mais recôndito da nau-capitânea, diante do oratório de pendurar que ali se encontra, para muito pensar com a ajuda do Nosso Senhor. Quero integrar-me o mais fundamente que me for possível na nossa missão. Estamos navegando em direção de novos mundos e gentes. O meu coração freme ao pensamento de uma tal missão. O nosso Rei e Senhor, minha querida filha, quer que a nossa Santa Fé seja levada a tantas gentes, nos espaços mais distantes. Nós somos os instrumentos dessa missão, e eu a quero realizar integrado profundamente na vontade do nosso Soberano. Estou diante desse oratório e oro. Desejo saber como comportar-me diante de toda essa imensidão que nos aguarda. Somente dentro de mim posso ler as coisas e os comportamentos que devo conhecer e exprimir. Somente dentro de mim posso saber, com a ajuda de Deus.

 

5 de abril

 

Maria querida, estou isolado diante do oratório suspenso que vaga docemente com o caminhar da nave. O meu espírito repousa e a minha alma conhece a serenidade. Maria, quero dizer-te que já agora muito espero dessa viagem. Estou pronto para as descobertas.

 

6 de abril

 

Sabes, Maria, este é um oratório muito belo. Tão belo como se fosse sozinho toda uma capelinha. Pendurado, deixa-se contemplar pelos meus olhos alevantados. É de madeira lacada de ouro e cores, com aplicações de madrepérolas. A laca é negra, dourada e colorida. Neste fundo de laca as incrustações de madrepérolas provocam uma luminosidade que deixa transparecer plena a decoração de folhagens, flores, frutos e aves. Bela, muito bela porém é a pintura sobre cobre, com a Sagrada Fam¡lia e São João Batista. Dulcíssima é a Virgem Mãe que traz no regaço o Menino Jesus. Às costas da Virgem está um profundo panorama com casas campos colinas, adentrado nas cores luminosas. Meu esp¡rito repousa suavemente diante de tanta beleza e paz.

 

 

 

 

 

publicado por João Machado às 21:00
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Sexta-feira, 4 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 2, por Silvio Castro

 

 

 

  

O romance do descobrimento do Brasil

 

 


12 de março

 

Olhando o horizonte sem fim me vem dentro do peito uma tristeza que não é pela navegação, disso tenho certeza. Mas não tenho certeza de onde venha minha tristeza. Grande é esse silêncio das águas, ainda que possa perceber quanto alvoroço vai por cada uma dessas naves. O ar fresco e sereno deixa que passeiem tantas vozes indistintas. Os sons inapercebidos se confundem com a intensa luz do mar, fazendo-se azul verde amarelo.

 

13 de março

 

Ah! aqui estão de novo as gaivotas! Pero Escolar me diz que estamos perto de terra e eu já vejo, não a que virá, mas a que ficou para trás.

 

14 de março, sábado

 

Finalmente terra! Ainda não serão as nove horas desse sábado tranqüilo e nos vemos entre as Canárias. Já os nossos velhos por aqui passaram e pousaram em tamanhos anos de conhecimentos. Esta Grã Canária que nos está diante dos olhos serenados muitas vezes acolheu os nossos em idas e vindas. Hoje nos acolhe, distante e estrangeira, na calmaria doce de seu mar. Grã Canária, Palma, Ferro, Gomera, Tenerife, Forteventura, Lançarote e tantas outras, quantas vezes falastes português? Sente-se um ar familiar, estando aqui. Sente-se que a costa não está longe.

 

15 de março

 

Quanto mais a viagem se adianta nos dias, mais difícil se faz para mim compreender o seu sentido profundo. Sei, claro, minha Maria, qual é a missão de Portugal; sei que El-Rei nosso Senhor, em nome da nossa Santa Fé, empenha-se com sabedoria para resgatar das sombras tantos homens e povos. É para isso que navegamos. Porém, quanto mais sinto o burburinho dessa grande gente fremente nas nossas treze naus, mais o meu esp¡rito se turba. Muitas são as vozes aqui, minha Maria, que esperam somente de chegar nessas longes terras para trocar, comerciar, enriquecer, encher as próprias arcas de riquezas. Não terão eles esquecido a verdadeira vontade de nosso Senhor, El-Rei? E esses fogosos soldados que sonham grandes encontros e lutas para a conquista de uma glória qua nada tem a que ver com os caminhos da nossa religião? Até mesmo alguns de nossos capitães deixam transparecer nos gestos o insaciável desejo de conquistas que trazem nos corações. Muitas vezes, minha doce Maria, me retiro na parte mais isolada da nossa nave para não escutar essas vozes. Porque sei que tudo isso, de todos esses desejos, pouca coisa poderá ser preservada.

 

16 de março

 

Isolado na proa de meu barco recordo a nossa casa, querida filha, e posso retomar aquele mesmo ar que sempre respirei no chão natal. É tanto mar o que me circunda, mas agora, neste instante, eu me liberto de toda idéia confusa e vejo claramente a nossa pátria familiar. O Porto me está sempre no coração e quanto mais navego mais me sinto ligado às suas ruas, estradas, praças, casas, ao Douro, à nossa gente. O som de suas falas ressoa nos meus ouvidos, vozes de amigos e companheiros. Sinto-me feliz neste recordar. Assim como sempre me senti livre no ar de liberdade de minha cidade, agora me sinto livre neste fresco ar de salsugem. Deixo que o vento salso acaricie meu rosto, os olhos entreabertos, e penso infinitamente em tudo quanto me enche a imaginação.

 

Estou quieto e inquieto, mas não infeliz.

 

17 de março, terça-feira

 

A navegação é sempre tranquila, minha Maria, até mesmo tranquila demais. O mar parece aquela estrada sem pedras, nem obstáculos. Caminha-se sempre; lá adiante, o horizonte que se fecha, mas não completamente jamais: um entreabrir-se constante de luz e calor. Olhando essas águas tranquilas, essas ondas, parece possível caminhar sobre elas, sem cansaços, longamente, superando prados e bosques, apenas distintos dos prados e dos bosques por esse baloiçar doce como um cantar materno e por esse sal que te traz à boca a sensação de uma mesa interminável, de onde não se levanta nunca. Em meio a esses prados e bosques salados é um jogo comer os frutos que sabem de todos os gostos, até mesmo daqueles mais distantes, vindos de uma infância que eu já julgara definitivamente perdida.

 

18 de março

 

Esta noite o ar estava muito quente. Certamente vinha da costa que não está distante um vento sutil de caldura que me expulsava da minha cabine para o ar livre da nau-capitânea. O lenho deslisa indolente nas águas, como se sentisse como nós o calor impregnante da noite. São muitas as estrelas neste céu. Com Pero Escolar, delas já muito falamos, reconhecendo cada uma, indagando as muita belezas irradiadas em desenhos luminosos conforme o ondejar das águas, o correr das correntes e o passar das nuvens movidas pelo vento. Indagamos também de seus possíveis benefícios e malefícios. Pero Escolar ama muito as estrelas desses céus e as conhece como as linhas de sua mão. E nelas lê, como tu agora estás lendo, minha querida, o cismar sem método de teu velho pai. Admirando as estrelas, sem desejo algum de desvendá-las, vendo esta noite densa e quente - as naves que projetam aqui e ali sombras vivas - me sinto como se estivesse na capelinha de Santa Maria de Belém e estou sempre partindo. Para uma longa viagem em busca de margens que não conheço e não consigo distinguir.

 

19 de março, quinta-feira

 

Viajar, minha doce Maria, é saber quanto desejas o que está adiante e quanto amas o que desejas esquecer pelo novo. Aqui, comigo, mas escondido na lembrança perdida, está este lugar que não mais quero e sempre amo. Sabê-lo, mas ilusoriamente esquecendo-o, é como flutuar num sonho onde tudo se sabe e tudo se esquece. Lá, nas margens distantes e desconhecidas, está o lugar do sonho, para onde quero ir. Para lá vou, inquieto e feliz, com o só repouso das lembranças que procuro esquecer na caminhada para a nova margem desejada. Minha doce Maria, és a minha única lembrança clara neste navegar de sonhos.

 

20 de março

 

Aonde estão as gaivotas que desde muito não vejo? Onde estão os calores da terra que elas trazem misteriosamente na pureza do vôo? Este mar é triste e solitário sem os vôos brancos das gaivotas, seus gritos, seus jogos de arabescos na trilha das naves. Olho as velas da nau-capitânea, pançudas de tanto vento benéfico, e elas me parecem gigantescas gaivotas com novas de uma terra já vizinha.

 

21 de março

 

Aqui estão de novo as gaivotas! Sabes, querida Maria, vê-las de novo que chegam, primeiro um pequeno grupo, depois mais e mais, vozeantes, alegres, me faz aquele bem que se sente quando se caminha pelas estradas conhecidas à luz de um céu brilhante de estrelas. Parece absurdo, mas diante do desconhecido pequenos conhecimentos, como o vôo dos pássaros, se transformam em certeza de vida e conforto para o coração. Navegamos sempre. As águas são tranqüilas, as naus formam desenhos geométricos na formação que nem vento nem correntes marítimas alteram. Brevemente veremos terra, é o que nos dizem as gaivotas.

 

22 de março, domingo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Terra, terra! Nesta manhã de sol de domingo, mais ou menos pelas dez horas, avistamos as ilhas do Cabo Verde. Estamos diante do grupo de ilhas a ocidente de Barlavento, em verdade diante da ilha de São Nicolau. Festeja-se em todas as naves, se ouve. Pero Escolar me esclarece tudo sobre o arquipélago, mostrando-me as outras ilhas que com São Nicolau compõem a parte ocidental do mesmo: Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, Branco e Raso. A oriente de Barlavento, me informa, estão as ilhas de Sal e Boa Vista; de Sotavento, o terceiro grupo formado por Maio, Santiago, Fogo, Brava e pelos ilhéus Secos.

 

Nota-se improvisamente um movimento insólito entre as naves. A armada de Álvares Cabral faz movimentos particulares, movimentos de comunicação entre as diversas unidades, como se este atual fosse o ponto central do longo caminhar. Lentamente todas as naus convergem para o ponto onde se encontra a nau-capitânea, uma a uma tomando posição de abordagem. Logo chega a nave de Sancho de Tovar, e o vice-comandante passa a bordo da capitânea. Logo depois o mesmo acontece com Gonçalo Coelho e sucessivamente com Bartolomeu Dias, Simão Miranda, Aires Correa, Diogo Dias, Aires Gomes, Gaspar de Lemos, Nuno Leitão da Cunha, Pero de Ataíde, Luís Pires, Simão de Pina. O último a subir a bordo ‚ Vasco de Ataíde.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os doze capitães se reúnem com Pedro Álvares Cabral. O Comandante está sentado numa cadeira de braços, à cabeceira da grande mesa retangular que hospeda, seis de cada lado, os capitães. Todos vestidos como para os grandes momentos. Aires Gomes traz atacada à capa uma pedra bazar, cingida por anéis de filigranas de ouro que se entrecruzam. Diante de cada capitão está uma caneca com tampa. O Comandante fala longamente com os seus capitães; estes, ao seu tempo, lhe respondem ou trocam idéias com o companheiro ao lado ou defronte. A assembléia tem a calma que constantemente se vê nos gestos e falas do Comandante. Pressente-se que a partir de hoje a navegação toma um novo rumo, desconhecido mas desejado. É o que se lê de longe nos gestos e movimentos dos treze capitães de Portugal. Para longe se vai. Para onde levam as certezas das vontades que não conhecem limites nem temor.

 

 

publicado por João Machado às 21:00

editado por Luis Moreira em 03/03/2011 às 21:03
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Quinta-feira, 3 de Março de 2011

Memorial do Paraíso - 1, por Silvio Castro

 

 

 

 

 

 

 


O romance do descobrimento do Brasil

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A minha terra era longe dali, no restante do mundo.

João Guimarães Rosa

 

Navegar, minha amada e infeliz filha, é poder num só momento viver tantos momentos; estar presente ao que se assiste e às lembranças; sentir e pressentir, chegar e esperar. O mar é este gentil caminho que nos leva em todas as direções e nos envolve como um manto. Navegar é estar sozinho sem solidão. Por isso te recordo, minha Maria, neste mar e nesta terra nova, e quero contar-te todas as andanças que me acompanham. Sei que te sentes sempre triste com a tua existência incompreendida, e quero alegrar-te um pouco e estar contigo em nossa casa. Então, pensei, escreverei para minha Maria todas as comoções das minhas viagens e as revelações delas. Para ela falarei de tudo que vivo e descubro, assim mesmo como farei para o meu Rei e meu Senhor. Já lá se vão tantos dias de minha partida, mas começarei hoje, como me ordenou meu Comandante. Quando daqui a dias a nave de Gaspar de Lemos retornar a Lisboa e nós continuaremos para as Índias, junto com a carta para El-Rei, irá também este diário para Maria. Nele, Maria, te contarei tudo. Começo hoje. Mas parto daquele primeiro dia em Belém. Assim, muitas coisas que te direi serão puras lembranças. Outras, verdades.

 

 

9 de março de 1500

 

 

Tu bem sabes, Maria, quanto esperei por este dia. Sim, grande era a dor por separar-me de ti e deixar a nossa casa. Mas eu quis esta viagem para Calicute. Com ela, pelo prestígio que El-Rei nosso Senhor tão bondosamente se dignou conceder-me com os honrosos encargos a que vou encontro, espero mais que pela minha glória encontrar forças e poderes para suavizar a tua dor de esposa infeliz, minha Maria. Assim hoje, daqui de Belém, parto. A manhã é bela e ensolarada. As nossas treze potentes naves parecem ansiosas, enquanto balançam as suas velas no movimento constante da brisa do Tejo. Lá está Caparica com o seu baluarte. Neste ancoradouro do Restelo desde cedo o povo é muito. Manhã cedinho me aproveitei do recolhimento da capelinha de Santa Maria para pedir ao Nosso Senhor proteção para todos nós. Agora a festa da viagem começará . O Restelo revive o alvoroço da partida - já lá se vão três caravelas em busca do caminho das Índias. Quando há apenas um ano a vela de Gonçalo Coelho - que hoje parte de novo - entrou no Tejo, antecipando a chegada do Gama com as novas do mundo que Portugal abrira para o conhecimento de todas as gentes, mesmo então o Restelo não recolhia tanta malta como vejo hoje daqui de minha postação. Baila-se, canta-se, é toda uma alegria. No cais, o nosso Comandante está com os outros doze capitães na espera de El-Rei. Nas treze naus fervilha o movimento da multidão de mil e trezentos homens que cedo partirão para confirmar nas Índias o poder de nossa terra. Mil e trezentos homens são eles, minha querida filha. Marinheiros, soldados, nobres cavalheiros, religiosos, físicos, cronistas, intérpretes, comerciantes, mestres, aprendizes, degredados, aventureiros, e até mesmo viajantes sem qualquer missão. Os treze pilotos conduzem as naus para posições melhores de embarques e partidas. O Tejo resplandece na luz dessa manhã e caminha direto para o mar, indicando caminho. A nossa é uma viagem difícil. Deve não descobrir, o que é possível, mas confirmar; o que tantas vezes supera o poder do Homem. É o que vejo agora no rosto e nos olhos do muito honrado Pedro Álvares Cabral. O Comandante como sempre está sereno, ao lado de seus doze capitães. Mas seus olhos contemplam muito além da malta alegre que baila e canta sem cansaços. Seus olhos já percorrem os mares que virão e serão desvendados. Bartolomeu Dias agora lhe fala, mas eu não escuto as palavras ditas. Posso seguir somente o profundo olhar do meu Comandante em busca de tudo aquilo que nós ainda não sabemos. Chega El-Rei nosso Senhor. O séquito do Comandante e seus doze capitães, mais, acompanhados por frei Henrique de Coimbra e seus religiosos franciscanos, vai encontro a D. Manuel. El-Rei nosso Senhor conduz o séquito para a tribuna colocada no centro do cais. Alas de soldados armados de espadas, com elmetes abertos protegendo-lhes as cabeças, contêm a malta festosa, enquanto o real cortejo atinge a tribuna. Ali, El-Rei nosso Senhor faz sentar-se ao seu lado o Comandante desta que é a maior armada jamais reunida por um Rei cristão. O nobre Pedro Álvares Cabral assiste às festas ao lado de seu Rei. Cessadas essas, El-Rei nosso Senhor se alevanta, dirige-se na direção do Comandante e coloca-lhe na cabeça um barrete bento mandado de Roma pelo Santo Papa. Em seguida, entrega-lhe as armas reais e a cruz da Ordem de Cristo. O olhar do Comandante vê, distante, esta cruz fincada numa nova terra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

10 de março

 

O mar é tudo, minha doce Maria. Caminhamos sempre por essas águas e caminhamos, caminhamos. Já não vejo nada mais que céu e mar. Da terra, da minha terra reconheço somente este vento que nos movimenta num marulhar constante e o voo assíduo das gaivotas. Lentamente, e com tristeza, vejo que as gaivotas começam a rarear sempre e mais com o passar das horas. Já não são tantas como há algumas horas neste entardecer triste e sereno do nosso segundo dia de navegação. Hoje é uma terça-feira; é preciso que não me esqueça. A nau-capitânea corre segura sobre as águas e eu falo muito com Pero Escolar, nosso piloto. As outras doze caravelas aqui estão, ao largo, defronte e ...s costas da nau-capitânea. Avante caminha a nau de Sancho de Tovar, nosso vice-comandante. Sancho de Tovar e Álvares Cabral estão sempre em contato, mesmo na navegação. Ali vai, muito protegida, a nave dos mantimentos de Gaspar de Lemos, assistida à vista pela vigilância das velas de Gonçalo Coelho e Bartolomeu Dias. Sabes, Maria, as naves, umas são muito grandes e poderosas com grandes bocas de fogo, como esta capitânea e a de Sancho de Tovar; outras são menores, de árvores que parecem pequenos pinheiros em comparação com os grandes mastros das maiores. As naves menores muitas vezes indicam o caminho. Lá vão as de Nuno Leitão da Cunha, Pero de Ataíde, Luís Pires, Simão de Pina. As grandes velas de Diogo Dias, Simão de Miranda, Aires Correa, Aires Gomes, observam atentas a lenta navegação. No fundo do azul que entardece caminha a nau do infeliz Vasco de Ataíde. E agora, para onde irão as gaivotas? Quem sabe, talvez retornem para subir o Tejo e contar-te, Maria, como vamos e como caminhamos.

 

11 de março, quarta-feira

 

Hoje, mais do que nunca, minha querida filha, matutava sobre o teu casamento e tuas desgraças. Sabes quanto sofro com a tua desventura. Desde que o teu marido desgraçadamente foi degredado, não posso suportar de ver a dor por que passas e que sempre procuras esconder aos nossos olhos. O meu genro Jorge de Osório, teu marido, já mereceu uma vez da graça do nosso Senhor. Espero que a soberana bondade não conheça limites e conceda ainda uma vez perdão ao meu genro. Tudo isso será bom lenitivo não somente para ti, doce minha Maria, mas igualmente para mim, pois que não suporto ver nos teus olhos a dor que te está consumindo lentamente. Também para isso navego, quero que o saibas.

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por João Machado às 21:00

editado por Luis Moreira às 21:04
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