Sexta-feira, 1 de Outubro de 2010

Farmácia ocupacional

Carla Romualdo

A ocupação de tempos livres dos reformados do meu bairro é a ida à farmácia. Vão-se revezando no banquinho posto ali a modos de confessionário, contam a tensão alta, a diabetes, os bicos-de-papagaio, o sopro no coração, os filhos distantes, a casa vazia, o temor a não ter quem lhes valha.
Cá no bairro não há reformados nas universidades sénior nem sócios do Inatel, não há quem aprenda xadrez ou mandarim, ou vá por fim visitar as Berlengas ou percorrer a Rota dos Templos Marianos. As horas livres passam-se na farmácia, e aviar receitas é somente uma pequena parte do muito que a farmácia tem para oferecer. À falta de emoções tumultuosas, dessas que uma experiência tardia de salto de parapente poderia proporcionar, sentam-se destemidamente no banquinho e medem as tensões todas as manhãs, picam o dedo à cata de uma glicose com a mania das grandezas, mostram sem vergonha a unha encravada do pé ou a manchinha suspeita no braço, descrevem, com detalhe de maníaco, aquela pontada-à-espécie-de-uma lâmina-que-se-crava-na-carne.

Bem pode o jovem afogueado bufar atrás deles, comentar que está atrasado para o trabalho, queixar-se que só queria paracetamol para a dor de cabeça, que de nada serve. Os reformados do meu bairro desfrutam de cada instante na farmácia e não dispensam as animadas, ainda que sempre respeitosas, discussões com o farmacêutico, seja sobre as propriedades do anticoagulante, as percentagens da comparticipação, a análise da situação política – “uma pouca vergonha” – ou as virtudes das benzodiazepinas – “Eu sem isto já não durmo, seu doutor”.

Os reformados do meu bairro detestam os domingos. Saem de casa contrariados nesse dia, resmungam pela rua a caminho da padaria, passam pouco depois com o saco da regueifa, e vão espreitar a cruz verde com uma réstia de esperança que seja dia de serviço na farmácia.

Suspeito que, em algum canto da cidade, o farmacêutico experimenta a mesma angústia e anseia secretamente pela chegada da segunda-feira. Porque se vissem esse homem, com olhos bondosos e bigode afável, a voz ligeiramente nasalada, um pouco aguda, e a agilidade com que saltita por entre os gavetões dos comprimidos, a facilidade com que evoca o nome do periquito do senhor asmático ou o aniversário da morte do marido da senhora da flebite, concordariam que em nenhum outro lugar é mais feliz.

Animador de tempos livres, terapeuta de reabilitação de solitários amedrontados pelos médicos e obcecados pelas virtudes dos fármacos, há-de entretê-los até os ver passar no carro fúnebre e não deixará de vir à porta saudar a sua passagem nesse dia, com a bata branca imaculada e as costas ligeiramente curvadas.

E por isso eu espero tanto na farmácia, e saio sem chegar a comprar nada, prometendo voltar depois, porque sei que me intrometo no que não me pertence, como quem força a entrada em casa alheia sem nunca ter sido convidado. E de cada vez que espreito a essa casa apetece-me largar a correr e não parar tão cedo.
publicado por CRomualdo às 19:30
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Sexta-feira, 27 de Agosto de 2010

Cuidado com os remédios

Adão Cruz


O consumo de medicamentos é hoje um problema, não só nacional como internacional. Interesses industriais e comerciais convenceram as pessoas de que a saúde se encontra metida em caixinhas e frasquinhos, originando uma autêntica obsessão pelos remédios, não só por parte dos doentes mas também dos médicos. Várias vezes tenho lembrado que há medicamentos úteis, muito úteis e indispensáveis, alguns deles quase “milagrosos”. Outros há que são inúteis, sem qualquer eficácia, por vezes prejudiciais, potencialmente perigosos, cujo lugar deveria ser o lixo. Mas, potencialmente mais perigosos que estes remédios inúteis são os bons remédios, os remédios eficazes, quando prescritos por rotina, sem precisão diagnóstica ou terapêutica, com desconhecimento dos efeitos adversos, das contra-indicações e interacções medicamentosas. A minha experiência tem-me demonstrado que estas receitas “à balda”, sem critério nem critérios, feitas de forma inconsciente, são responsáveis por inúmeras e temíveis consequências, constituindo actos que deveriam pertencer à esfera do crime.

As doenças produzidas pelos remédios e por outros processos de tratamento, criadas pelos médicos e inventadas pelos meios de diagnóstico, são mais do que muitas. São as chamadas doenças iatrogénicas, e constituem um grande capítulo da medicina. Provavelmente dos menos divulgados e investigados, já que colide com poderosos interesses. Daí, a minha convicção, já antiga, de que a saúde não é, muitas vezes, um fim mas um pretexto para atingir outros fins.

Cuidado com os remédios. Sobretudo nas pessoas de idade. O consumo de remédios pelo paciente idoso é um problema actual e de importância crescente. Intencionalmente, foi-se criando a ideia de que a terceira idade é uma doença, o que não é verdade. A terceira idade é uma fase da vida carecendo de atenção específica e de cuidados sociais, humanos e diferenciados. Não é, de forma alguma, uma mina a explorar pelos vendedores de falsa saúde. Muitas vezes tenho dito aos meus pacientes que a cara dos oitenta não é igual à dos vinte, as pernas dos oitenta não são iguais às dos vinte e o coração dos oitenta não é igual ao dos vinte. O coração dos oitenta também tem as suas “engelhas” e também se cansa como as pernas. Mas não é um coração doente e não precisa de quaisquer remédios. Estes, quando prescritos inadvertidamente, podem acabar com ele, dado que a tolerância, a capacidade de adaptação e as margens de manobra e segurança são muito inferiores às de um coração jovem. Há mesmo lesões cardíacas que, a despeito de serem irreversíveis, não alteram fundamentalmente o funcionamento do coração e não são modificáveis por qualquer medicamento. Não passa de perigosa fantasia convencer a pessoa a tratar o que não é tratável, fazendo-a correr riscos sem qualquer contrapartida. A receita, sem observação cuidada e sem uma avaliação responsável do paciente, é um hábito lamentavelmente institucionalizado.

A constante pressão sobre os médicos, por parte dos próprios doentes, e das estonteantes aliciações pseudo-científicas, cria uma tendência e mesmo uma obrigação crescentes de polimedicar e prolongar excessivamente os tratamentos, sem qualquer respeito pela própria dignidade profissional nem pelo cumprimento das regras básicas da farmacologia clínica. Não se têm muitas vezes em linha de conta as alterações farmacocinéticas e farmacodinâmicas próprias do idoso, bem como os seus processos patológicos múltiplos e complexos. Num dos poucos estudos efectuados chegou-se à conclusão de que a iatrogenia medicamentosa era uma importante causa de internamento dos doentes idosos, constituindo uma realidade no dia-a-dia da enfermaria (25%). Um outro estudo recente revelou que um quarto dos americanos com mais de 65 anos toma, por receita médica, medicamentos que nunca lhes deveriam ter sido prescritos. Um simples comprimido pode causar amnésias, confusão mental, desequilíbrios, desmaios, síncopes, hipotensões graves. Um tratamento, ainda que curto, pode ocasionar fadiga, insónias, tosse rebelde, reacções alérgicas difíceis de diagnosticar, vómitos, diarreias, dispepsias duradoiras, lesões tóxicas do rim e do fígado, graves anomalias sanguíneas. Um tratamento mais prolongado, além das consequências atrás descritas, pode originar intoxicações (traduzidas por mal-estar geral, perda de apetite e de forças, náuseas e vómitos), perturbações respiratórias, arritmias ameaçadoras da vida e perigosos bloqueios cardíacos, bem como graves situações de falência cardíaca. Nós médicos, e mesmo os doentes, muitas vezes chegamos ao cúmulo de considerar que os próprios efeitos secundários dos remédios e as suas acções nocivas são sintomas próprios da idade, e zás de aumentar as doses e receitar novas drogas, agravando drasticamente a situação. Tentar apagar o fogo com a própria gasolina.

Apesar de tudo isto, a maneira mais vulgar de terminar uma consulta é passar uma receita. Por vezes, toda a consulta se resume a uma receita. O tempo e a atenção há muito que foram substituídos pelos remédios.

Vale mais não tratar do que tratar mal. Quantas vezes eu prescrevo, com prudência e até algum receio, drogas que vejo receitadas a torto e a direito por dá cá aquela palha. A minha acção, numa boa parte dos pacientes, resume-se a desaconselhar os medicamentos que eles ingerem e que muitas vezes transportam em sacos. A experiência, grande apoio da minha consciência, tem demonstrado que essa é a atitude mais correcta.
publicado por Carlos Loures às 11:00
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