Sexta-feira, 24 de Dezembro de 2010

Natal e marketing - Natal é marketing

Carlos Loures

Natal e marketing - Natal é marketing – um simples acento agudo colocado sobre o e, transforma a conjunção em tempo verbal e converte dois conceitos que desde há muitos anos andam juntos numa afirmação que, não sendo toda a verdade, consubstancia toda uma verdade.


Não vou aqui repetir a consabida história da Coca Cola que pegou no São Nicolau lhe vestiu um traje vermelho e o transformou numa «tradição». Foi em 1929, no Natal, dois meses após a quinta-feira negra de 24 de Outubro, do crash da bolsa novaiorquina. As vendas haviam caído vertiginosamente, era preciso um golpe de asa e… voilá! - sai um Pai Natal. As tradições agora são assim – os touros de morte em Barrancos começaram em 1928 e também já são «uma tradição». Não há paciência para deixar passar os séculos – queremos uma tradição, já!

Mas estávamos a falar do Pai Natal, da Coca-Cola, do marketing…Acredito que para muita gente o Natal seja algo mais do que as iluminações, os centros comerciais, as prendas, mas...

O dia da Mãe, o dia do Pai. O dia dos Namorados, o dia das Bruxas... maneiras de animar as vendas, marketing, numa palavra. O Natal é o dia da Família – como se nos outros dias todos não houvesse família, amor fraterno, paz… Coisas que vão para o contentor do lixo com os papéis coloridos, as fitas, as embalagens e algum pseudo sentimento de solidariedade, de amor familiar, essas coisas.

Não tenho o hábito de me auto-citar, mas desta vez parece-me oportuno repetir o que há meses atrás aqui disse sobre a incontinência consumista que, neste período, se torna particularmente aguda. Trancrevo parcialmente o texto  "O Consumo consome o amor".


Consumir. - gastar, destruir, extinguir, corroer até completa destruição.


Recorri ao dicionário do meu saudoso amigo José Pedro Machado e, mais uma vez, não me deixou ficar mal. A consulta foi à palavra Consumir. A entrada diz: «v. tr. (do lat. Consumere). Gastar, destruir, extinguir, corroer até completa destruição. Enfraquecer, abater.» E continua com muitas outras acepções terminando com «Enganar, iludir». Pelo meio, tem as acepções mais comuns - «Dar extracção, procurar géneros alimentícios, artigos fabricados, etc.\\ Despender, gastar» e outras menos comuns «Matar, assassinar. Devorar em silêncio. E entra no foro da liturgia católica: «Desfazer a hóstia na boca. Receber (o sacerdote), na missa, o corpo e o sangue de Cristo, sob as espécies do pão e do vinho consagrados.» Está aqui a entrada quase toda, não escamoteei acepções importantes. Não esqueçamos, porém, que a primeira acepção, é sempre a mais importante - «gastar, destruir, extinguir, corroer…» Corroer até à completa destruição - uma boa definição do que é o consumo elevado à categoria de projecto de vida. (...)Na facilidade de comprar, reside o grande fascínio do consumo – mesmo que não tenhamos dinheiro vivo, podemos sempre utilizar cartões de crédito… Compra-se por impulso, o gesto de tirar os produtos das prateleiras e de os pôr no carrinho é gratuito. Só na caixa nos apercebemos do dinheiro que gastámos. Tem-se a falsa sensação de que as coisas não custam dinheiro.


Há relativamente poucos anos, vivíamos numa economia de poupança – as roupas usavam-se enquanto duravam, os géneros alimentícios não tinham prazo de validade, sendo esta determinada pelo bom ou mau aspecto que apresentavam, as pastas dentífricas eram gastas até ao fim (havia uns artefactos, primeiro em madeira e depois em plástico, para as espremer), se saíamos de uma sala, apagávamos as luzes… Era uma economia e uma cultura de penúria, mesmo para as famílias «remediadas», aquilo a que agora se chama classe média. Hoje, vê-se pessoas com graves problemas económicos, mas incapazes de economizar. Não sabem. Nem relacionam o facto de deixarem todas as luzes acesas, de se desfazerem de roupas em bom estado (mas que «já se não usam»), com as dificuldades por que passam e com o facto de a meio do mês já não terem dinheiro e começarem a viver com a conta-ordenado e com o crédito dos cartões levados até ao limite. Nem com o número de chamadas que fazem com o telemóvel, muitas delas (para não dizer a maioria) dispensáveis. Troca-se de carro, embora aquele que se larga possa ser melhor do que o que se adquire. E por aí fora. Consome-se.


Um dos motivos para o aumento do número de divórcios é o facto de ao período (por vezes, prolongado) de namoro, em que os pais continuam a resolver os problemas básicos, se sucede a chamada «vida real» - contas para pagar, coisas para comprar – assuntos «mesquinhos» do dia-a-dia, que dão lugar a discussões mesquinhas e, sobretudo, ao choque de vontades pouco treinadas para serem contrariadas, porque desde o berço foram habituados a não aceitar o não como resposta. E não é uma palavra para ser usada, como qualquer outra. O confronto de vontades, gera discussões, desilusões e a estas seguem-se muitas vezes os divórcios. Habituadas como estão agora as pessoas aos produtos descartáveis, deitam fora uma relação e começam outra. A geração dos anos 60, a minha, tem responsabilidades nesta disfunção. Criámos os filhos seguindo o princípio de que era proibido proibir. Uma educação, que quase se traduziu numa ausência de educação, criou estes cidadãos que, generalizando (o que é perigoso) podemos dizer que é uma geração que não luta pelas coisas, não luta inclusive pelo amor – gasta o amor como se fosse um produto descartável.

O consumo também consome o amor.
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Bom Natal para todos os amigos do Estrolabio. Não gosto do Natal mas, como dizia um conhecido homem do futebol, «vocês sabem o que eu quero dizer».
publicado por Carlos Loures às 12:00
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Quarta-feira, 20 de Outubro de 2010

Os valores de todas as coisas (II)

(Conclusão)
George Monbiot

Esta viragem foi reforçada pela publicidade e pela comunicação social. O fascínio da comunicação social pelos políticos no poder, as suas listas de ricos, os seus catálogos das 100 pessoas mais poderosas, influentes, inteligentes ou bonitas, a promoção obsessiva que faz da celebridade, da moda, dos carros velozes, das férias caras: tudo isto incute valores extrínsecos. Ao gerar sentimentos de insegurança e de inadequação – o que equivale a reduzir o sentimento de estar bem consigo próprio – também afasta os objectivos intrínsecos.


Os publicitários, que empregam muitos psicólogos, estão perfeitamente conscientes disto. Crompton cita Guy Murphy, director do planeamento global da companhia de marketing JWT. Os técnicos de marketing, diz Murphy, “deviam ver-se a si próprios como agentes de manipulação da cultura; como sendo engenheiros sociais, não como gestores de marcas; a manipularem forças culturais, e não a impor marcas”(4) . Quanto mais promovem valores extrínsecos, mais fácil se torna venderem os seus produtos.

Os políticos de direita também perceberam, instintivamente, a importância dos valores para mudar o mapa político. Ficou famosa a afirmação de Margaret Thatcher de que “a economia é o método; o objectivo é mudar o coração e a alma” (5). Os conservadores nos Estados Unidos costumam evitar debater factos e contas. Em vez disso procuram caminhos que levem a apelar e a reforçar os valores extrínsecos. De ano para ano, através de mecanismos difíceis de ver à vista desarmada e raras vezes discutidos, o espaço onde as ideias progressistas podem florescer encolhe mais um pouco. A resposta progressista a esta tendência tem sido desastrosa.

Em vez de enfrentarmos a viragem no campo dos valores, procurámos adaptar-nos a ela. Partidos políticos que em tempos foram progressistas tentaram aclamar atitudes do público em vias de alteração: lembrem-se de todos aqueles apelos do New Labour (6) à Inglaterra Média, que muitas não eram mais do que normas de defesa dos interesses pessoais. Ao procederem assim assumem e legitimam valores extrínsecos. Muitos promotores da defesa da natureza e da justiça social também tentaram chegar às pessoas apelando ao interesse pessoal: por exemplo quando afirmam que combater a pobreza nos países em desenvolvimento vai criar mercados para os produtos britânicos, ou quando sugerem que o comprador de um carro híbrido impressiona favoravelmente os amigos e eleva o seu estatuto social. Esta táctica também fortalece os valores extrínsecos, reduzindo ainda mais as possibilidades de sucesso de campanhas futuras. O consumismo verde foi um erro catastrófico.

Common Cause propõe um remédio simples: que deixemos de esconder os nossos valores e passemos a explicá-los e promovê-los. Sugere que os activistas progressistas ajudem a promover uma compreensão da psicologia que imbui a mudança política e a mostrar como foi manipulada. Também deveriam unir-se para enfrentar as forças – em particular a indústria da publicidade – que nos tornam inseguros e egoístas.

Ed Milliband dá a ideia de ter compreendido esta necessidade. Disse no congresso dos trabalhistas que “quer mudar a nossa sociedade de modo a valorizar a comunidade e a família, não apenas o trabalho” e que “quer mudar a nossa política estrangeira de modo a que seja baseada em valores, não apenas em alianças… Temos de mudar o velho pensamento e apoiar os que acreditam em que a vida não se resume ao nível de sobrevivência.” Mas há aqui um paradoxo, o que quer dizer que não podemos confiar nos políticos para impulsionar estas mudanças. Os que triunfam na política são, por definição, pessoas que dão prioridade aos valores extrínsecos. A ambição fá-los pôr em segundo plano a paz de espírito, a vida familiar, a amizade – até o amor fraternal.

Assim nós próprios vamos ter de conduzir esta viragem. As pessoas com valores intrínsecos fortes têm de os assumir abertamente. Temos de argumentar pelas políticas que queremos não numa base de oportunismo mas na base da empatia e da benevolência; e contra outras porque são egoístas e cruéis. Ao fazermos valer os nossos valores tornamo-nos na mudança a que queremos assistir.

_____________

(4)Guy Murphy, 2005. Influenciando o tamanho do seu mercado. Instituto dos Profissionais de Publicidade. Citado por Tom Crompton (ver nota 2).



(5)Margaret Thatcher, 3 de Maio de 1981. Entrevista ao Sunday Times. Citada por Tom Crompton (ver nota 2).


(6)O New Labour apareceu como uma reorientação política do partido trabalhista britânico, sob Tony Blair, aproximando-o do centro e da chamada terceira via. Julgo que pode ser classificado como uma tendência política dentro do partido (Nota do tradutor).


http://www.guardian.co.uk/politics/2010/sep/28/ed-milliband-labour-conference-speech.

(Tradução de João Machado)

publicado por Carlos Loures às 19:30
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Quarta-feira, 7 de Julho de 2010

Um case study

Carlos Loures


 – Estou lixado. Desta vez nem tu me vais poder salvar...

Viera sentar-se à minha frente a beberricar, com um ar taciturno e carregado de preocupação, o seu insólito copo de leite, enquanto eu bebia o uísque de malte que ele, gentilmente, me enviara momentos antes à mesa como emissário anunciador da sua chegada.

Conheci-o poucos anos antes do 25 de Abril. Fomos colegas numa agência publicitária e, porque nessa altura eu o safara de uma alhada terrível, ficou-me para sempre muito grato, tratando-me com carinho pelo diminutivo, oferecendo-me, no Natal e aniversário, livros, gravatas, cachimbos, e pagando-me bebidas sempre que me encontrava. Embora inteligente e perspicaz, é uma daquelas pessoas que, parecendo transpirar autoconfiança, são inseguras e complexadas. Se, pelo Natal ou pelo aniversário, lhes oferecemos um dicionário, desconfiam que lhes estamos a chamar analfabetos e, se lhes damos uma água-de-colónia, suspeitam de que estamos a acusá-los de higiene precária. No caso deste meu amigo, é justamente essa insegurança congénita que, aliada à sua incultura enciclopédica, fruto de leituras dispersas e sempre apressadas, e a uma estranha vaidade, ou, mais precisamente, a uma incontrolável atracção pelo abismo, o faz entrar constantemente em territórios desconhecidos, gera uma fatal propensão para se envolver em trapalhadas, em situações difíceis e, sobretudo, complicadas. Penso que ele é vítima de um uso exagerado do chamado método de «leitura em diagonal», ou «método Kennedy» como também outros chamam a um sistema de leitura que consiste sobretudo em não ler, em tresler. Aprendera o tal método, salvo erro num livro das «Selecções do Reader’s Digest» e gabava-se de ler com rapidez meteórica mesmo as grandes obras da literatura universal. «Apanho sempre o essencial», dizia.

Porém, tirando estes traumas e estas idiossincrasias que, aliás, só a ele verdadeiramente prejudicam, é um excelente rapaz, cordial, bom amigo, inteligente, como já disse, esperto com um apurado sentido de humor e, sobretudo, um excelente conversador.

O tal favor que eu lhe fiz, ou que ele acha que eu lhe fiz, consistiu numa coisa muito simples. Há quase três dezenas de anos, numa manhã em que me sentei à mesa do café ao lado da agência onde ambos trabalhávamos para, como habitualmente, tomar o meu pequeno-almoço antes de começar as minhas tarefas diárias, apareceu ele, com um ar estranho, com a face pálida e a voz um pouco trémula:

– Estou lixado! – E contou.

Como eu e toda a gente na casa sabia, porque ele, impante de orgulho, não falava noutra coisa, o director da agência encarregara-o de conduzir a campanha de um importante cliente, uma multinacional de electrodomésticos que com a venda de uma nova marca de frigoríficos se propunha oferecer viagens à União Soviética. Naqueles distantes anos setenta, ir à Rússia era uma novidade quase tão grande como ir a outro planeta. Naquela manhã, quando chegara, a recepcionista disse-lhe que o director executivo o procurava com insistência e parecia muito irritado. Como ele não chegara, o director saíra e fora reunir-se com o cliente. Ela ouvira-o gritar pelos corredores. Era qualquer coisa relacionada com a campanha dos frigoríficos. Parece, acrescentava a rapariga, que havia um erro nos folhetos, nos cartazes para os pontos de venda, nos anúncios de imprensa e, o que era ainda mais grave, nos spots de televisão. Momentos antes, o director telefonara a dizer que o queria, às onze horas em ponto, numa reunião de emergência com ele e com o staff da multinacional.

Correra logo para o gabinete e, febrilmente, lera os textos de ponta a ponta. Não encontrara erro nenhum. O que o deixara ainda mais preocupado. Por isso descera à rua e viera ter comigo ao café, onde, conhecendo a minha rotina, me sabia a tomar o pequeno-almoço. Mostrou-me um folheto. Li-o. O disparate era evidente e a única coisa surpreendente é que ninguém, entre as muitas pessoas por cujas mãos o texto passara – criativos, revisores, o realizador do spot, o conceituado actor do D. Maria que lera o texto em off –, ninguém se apercebera do erro. Por fatalidade, como viemos depois a saber, em todo aquele vasto circuito de cérebros brilhantes, só um obscuro contabilista da multinacional, que vira por mera casualidade as peças da campanha, dera pelo erro. Dizia a prosa do meu amigo que, ao comprar o frigorífico da marca em questão, o comprador se habilitava ao sorteio de diversas viagens a Leninegrado, a «fascinante Sampetersburgo das cúpulas douradas, das Noites Brancas, de Tchecov».

– Não foi o Tchecov quem escreveu as Noites Brancas.

Bateu com a mão na testa:

– Porra! Tens razão. Foi o Tchaikovski.

– O Dostoievski.

– Ou isso.

Ficou com a cabeça entre as mãos:

– Não volto a pôr os pés na agência. Vou desaparecer.

Foi então que, embora sem muita convicção, lhe sugeri que tentasse transformar o erro numa estratégia deliberada. Olhou-me, desesperado, com uma expressão onde luzia alguma esperança:

 – Como é que faço uma coisa dessas?

– Dizes que o erro foi intencional. Uma maneira de chamar a atenção para os anúncios. Basta agora que produzam e publiquem novas peças dizendo que dão um prémio a quem detectar o erro que existe no primeiro texto – um desconto suplementar, uma torradeira, um exemplar das Noites Brancas, que é um livro pequeno e, portanto, barato, para mais comprado em quantidade. Pode ser que pegue. Nunca se sabe.

Ele voltou a mergulhar a cabeça entre as mãos e ficou durante algum tempo a digerir e ideia. Ao cabo de uns momentos, disse:

– Não sei se tenho lata. O director vai perguntar-me quem me autorizou, quem sou eu para definir uma estratégia secreta para a campanha e quem vai pagar os novos spots, os folhetos, as torradeiras ou os livros. Vou ser crucificado à mesma.

Mas, depois de mais algumas voltas à imaginação, não nos lembrámos de nada melhor e como não tinha alternativas à minha ideia, lá se decidiu. Ainda faltava cerca de uma hora para a tal reunião. Numa loja perto comprou uma camisa e uma gravata, ambas de boas marcas. Foi à casa de banho da agência, escanhoou a barba feita duas horas antes, encharcou-se em colónia e after shave, e bem penteado e com um sorriso de campeão hasteado nos lábios, apresentou-se na reunião com os responsáveis indígenas da multinacional e com o director da agência. Num ambiente de cortar à faca, expôs a ideia. Resumindo: a nova estratégia foi aceite, após uma discussão acesa em que ele se comprometera a pagar os prejuízos do seu bolso caso o truque não funcionasse (o que, não tendo qualquer base credível, pois a sua conta bancária costumava entrar nos números vermelhos muito antes do fim do mês, impressionara favoravelmente as hostes do cliente, pelo tom de convicção que tal trafulhice viera dar ao seu discurso).

Foi um grande êxito. A detecção do erro interessara milhares de pessoas e a marca tivera um boom de vendas ainda no decurso da campanha. Num almoço comemorativo do aniversário da casa em que, por acaso, fiquei ao lado do director, um esperto-estúpido, gordo e enfatuado, referindo-se ao meu amigo, que na outra ponta da mesa brilhava contando uma aldrabice qualquer aos convivas mais próximos, disse-me:

– Aquele gajo é pena ser maluco, porque é um génio!

Foi este o favor que lhe fiz e pelo qual me ficou eternamente grato, pois, segundo ele dizia, a questão do erro intencional dos folhetos ganhara foros de lenda e até nas incipientes cadeiras de marketing que, por essa altura, começavam a ser dadas na universidade, o tema fora já abordado. Transformara-se, disse, num autêntico case study, fora, sempre segundo ele, um ponto de viragem, um turning point, como gostava de dizer, na sua carreira. Entretanto, deu-se o 25 de Abril, eu saí da agência e, passados uns tempos, ele também. Fui-o encontrando ocasionalmente e foi-me sempre pagando copos e oferecendo livros e outros presentes. Nunca uma ideia tola me deu tanto rendimento na vida.

Voltando ao início da história, uma quente noite de Agosto, jantava eu sozinho num pequeno restaurante do Bairro Alto, quando, terminado o jantar, passava os olhos pelo jornal, o empregado me veio pôr à frente um copo de uísque de malte de boa marca, a minha preferida desde há muitos anos. E apontou-me para uma mesa junto à porta onde vi o meu amigo, que sabia estar desde há tempos como director literário de uma editora de dimensão média. Acenou-me e perguntou:

 – Ainda continuas a gostar desse?

Disse-lhe que sim e, claro, convidei-o a sentar-se junto de mim. O que se apressou a fazer, transportando consigo um copo de leite, o que, como já disse, foi uma grande surpresa, pois nunca o supusera consumidor de tal produto.

– Estou lixado! Desta vez nem tu me vais poder salvar. Estou com um grande problema.

E contou.

Desde a questão da Arte Nova ficara um pouco malvisto na editora. Meses antes, folheando uns ozalides de um livro sobre arte, deparara-se-lhe o que lhe pareceu um disparate: A propósito da Arte Nova, dizia-se qualquer coisa no género «A Arte Nova recebeu em França o nome de Modern Style, em Inglaterra o de Art Nouveau, na Itália o de Floreale, na Alemanha o de Jugendstil, em Espanha o de Modernismo...». Estava mesmo a ver-se que havia engano, provavelmente um erro dos revisores. E ele, com a sua autoridade de director e a sua fatal queda para a desgraça, corrigiu imediatamente: «A Arte Nova recebeu em França o nome de Art Nouveau, em Inglaterra o de Modern Style...».

– Estava mesmo a ver-se, não é? Pois. A verdade é que os franceses dizem mesmo Modern Style e os ingleses Art Nouveau, vá lá entender-se a lógica de uma coisa destas!

– Deve ser pela mesma razão que os Ingleses chamam familiarmente french letter aos preservativos e os Franceses os designam por capote anglaise, que em Espanha uma fanfarronada, um exagero, se diz una portuguesada, e nós à mesma coisa chamamos uma espanholada. Amabilidades de vizinhos – concluí, só para não ficar calado.

Rimos. Pois o resultado foi que o autor do livro, um conceituado professor de Coimbra, exigira a substituição da página errada, o que implicara a reimpressão de um caderno, uma enorme despesa para a editora e um grande descrédito profissional para ele. Até arranjara uma úlcera gástrica. Apontou para o copo de leite. (Posteriormente, por mera curiosidade, aprofundando um pouco o tema, cheguei à conclusão de que o tal professor de Coimbra não teria assim tanta razão como isso. Se é verdade que em Inglaterra e nos Estados Unidos a Arte Nova foi frequentemente designada por Art Nouveau, apenas encontrei uma fonte francesa em que era utilizada a expressão Modern Style como alternativa a Art Nouveau. Ainda por cima, essa tal fonte isolada que detectei, tratava-se de uma enciclopédia sem grande importância). Mas adiante.

O administrador-delegado da editora, um sacana de um alemão, quase deixara de lhe falar e agora que as coisas se estavam quase a recompor estava metido noutra alhada – a do dicionário enciclopédico. A empresa comprara os direitos de tradução de uma enciclopédia estrangeira e também, a outra editora, esta portuguesa, os de um velho dicionário da língua portuguesa. A ideia era, misturando as duas coisas, fazer um dicionário enciclopédico, um «compacto», como agora se dizia, de 1200 páginas. Para o efeito, além da tradução, tinham criado uma série de entradas originais com temas portugueses e com actualizações. No dicionário tinham também procedido a uma operação de cosmética, rejuvenescendo-o com verbetes que reflectiam a evolução da ciência e da tecnologia, das questões sociais e políticas, tais como sida, software, clonagem, perestroika... Os crânios da agência de publicidade até tinham concebido uma headline catita para os anúncios de imprensa e para os mobiles dos pontos de venda – «Você sabe o que é a perestroika?». Nesse mesmo anúncio afirmava-se que se tratava da obra de referência mais actualizada disponível no mercado.

Quando tudo estava a correr sobre rodas, com os free lances a concluir os textos originais e os revisores a trabalhar na gáspea, zás: acordo ortográfico. Fontes bem informadas do Ministério da Educação garantiram que o Acordo ia mesmo ser aprovado a partir de Janeiro e que, se o dicionário enciclopédico fosse o primeiro a respeitar a nova norma, havia hipóteses de uma compra institucional avultada. Com o projecto e as bases do Acordo à frente, os revisores começaram a alterar toda a ortografia. O trabalho estava quase pronto. Começa a polémica sobre o Acordo, que até já estava aprovado pelos Parlamentos de Portugal e do Brasil. E fica tudo em águas de bacalhau. O Acordo só entraria em vigor lá para 1994 (o que não veio a acontecer). E os revisores vai de repor tudo na forma inicial. Entretanto estava-se quase no Verão. O objectivo era agora que o livro fosse para a máquina a tempo de ser posto à venda em Setembro, em Outubro no máximo, pois o público estudantil constituía um dos segmentos de mercado a atingir. Agora é que era? Ainda não. Em Abril caiu o muro de Berlim e foi preciso refazer a entrada sobre as Alemanhas, rectificar o mapa da Europa, apagando a fronteira entre a RDA e a RFA. Na entrada sobre as bandeiras houve que retirar das páginas coloridas um dos estandartes alemães.

– Mais uma porrada de meses perdidos. Mas o pessoal não esmoreceu e trabalhou que nem escravos.

Parecia que nada podia já impedir a saída do livro no início do ano escolar. Mas qual quê? Ia o meu amigo a caminho da praia, em 2 de Agosto, o Iraque invade o Koweit. Fez inversão de marcha em Canal Caveira e voltou a Lisboa. Havia que meter uma entrada sobre o assunto. Pequena, para não alterar a paginação toda para a frente. Um rapaz da Lusa lá esgalhou um belo texto sintético, com uma cronologia dos acontecimentos, tudo em 60 linhas, 4200 caracteres, mais ou menos. Os da agência fizeram questão de que a foto das duas páginas muito ilustradas dedicadas ao tema figurassem em primeiro plano no anúncio, até porque a pergunta sobre a perestroika já estava mais do que requentada, já cheirava a ranço. Já não havia cão nem gato que não soubesse o que era a perestroika e o glasnost. A headline era agora: «Esta é a mãe de todas as obras de consulta e referência!», alusão tosca à célebre frase de Saddam Hussein. Mas como o início do ano escolar estava mais uma vez perdido, já agora alterava-se de novo o texto da Alemanha e metia-se uma foto a cores das cerimónias da unificação em Berlim. Bem, a seguir foi a Conferência de Maastricht, a dissolução definitiva do Pacto de Varsóvia e o fim oficial da União Soviética, a Guerra do Golfo, o assassínio de Rajiv Gandhi, o fim do apartheid, o massacre em Díli, a reeleição de Mário Soares, a eleição de Bill Clinton, a morte da Marlene Dietrich...

– Em suma, o mundo a produzir notícias em catadupa e o sacana do administrador a querer que o dicionário esteja actualizado, que seja o «maiss àctualizado do merrcado, que não deixe de referrirre nada de verrdadeirramente imporrtante». Estás a ver o filme?

– Não seria melhor ele editar um jornal diário?

Entretanto o restaurante teve de fechar e viemos cá para fora. Estava uma noite quente e agradável e fomos descendo serenamente a Rua da Rosa. De facto, desta vez eu não o conseguiria safar, foi a conclusão a que chegámos. Para encerrar a questão, ainda dei uma última sugestão:

- Talvez contratando um assassino a soldo que faça desaparecer o alemão. Escreves um verbete com a biografia do animal, terminando assim: «misterriosamente desaparrecido em Lisboa». E mandas o maldito dicionário enciclopédico para imprimir. O que é que achas?

- Olha que não é nada má ideia, não senhor. Conheces algum assassino profissional disponível e que não leve muito caro?

Em sentido contrário vinha um rapaz nosso conhecido, redactor de um semanário.

– Então já sabem da bronca?

– Qual bronca?

– A Croácia separou-se da Jugoslávia. A Federação foi pró galheiro.

I. O meu amigo levou as mãos à cabeça

– Estou feito! Novos mapas, novos textos, novas bandeiras... –Despediu-se apressadamente. Deve ter ido a correr para o escritório.

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Passados anos, muito recentemente, encontrei-o em Francoforte, na Feira do Livro. Tinha saído daquela editora. A situação tinha-se tornado insustentável. O administrador já nem o cumprimentava. Pelos vistos considerava-o responsável pelos atrasos na saída do dicionário.

– Como se eu tivesse culpa de que o Gorbachov tivesse feito a perestroika, que o Saddam Hussein tivesse invadido o Koweit ou que os Sérvios, os Bósnios e os Croatas sejam tão amigos...

Agora estava a trabalhar numa editora especializada em livros infantis e em obras de crediário para educadoras de infância.

– Pelo menos no universo da Branca de Neve, do Patinho Feio e do Lobo Mau não há perestroikas, eleições ou guerras civis. Até já me curei da úlcera. É uma situação muito mais estável.

Situação mais estável? A da Branca de Neve, a do Lobo Mau ou a dele?

Fiquei sem saber.

Por via das dúvidas fomos até um dos bares da feira e ele pagou-me um uísque de malte.
publicado por Carlos Loures às 23:55
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Quinta-feira, 20 de Maio de 2010

O dinheiro fica todo na farmácia.


Carlos Mesquita

Entrei na farmácia perto de casa, virei à direita, nesta vira-se à direita, e ainda a curvar sou abalroado de chofre por uma bata branca, caiu-me em cima vedando a passagem, a bata tinha dentro uma mulher a falar. Havia algo estranho, fiquei alerta; os neurónios a rebate trocaram chistes, e antes da intrusa acabar a primeira frase, já o meu cérebro calejado nestes enredos tinha processado que estava a ser alvo duma emboscada. A bata era de farmacêutico (não é por acaso) o comportamento da mulher não. Perguntou-me com voz suficiente para se ouvir ao redor: -o senhor tem problema nas articulações? Disse-lhe que não. Ela, exibindo-me uma caixa colorida continuou, agora com o paleio B. Olhe que está na idade em que…cortei-lhe a palavra, e para a convencer que não me vendia nada para as articulações, articulei-lhe pausadamente e com bom som; - não tenho queixas e se as tivesse ia ao meu médico, ele receitaria o que fosse indicado, já o teria feito se fosse preciso como preventivo, depois disso viria aqui à farmácia aviar a receita, comprar o que ele prescrevesse, percebeu. Pareceu aturdida com o argumento, olhou para os outros clientes para verificar se tinham ouvido o meu responso, e profissionalmente desistiu. Ainda me refilou – é a sua opinião! Segui para a fila de clientes a remoer no disparate de ir ao médico ser uma questão de opinião e a vendedeira de produtos para as articulações foi pôr-se de atalaia atrás da porta. A presa foi a primeira pessoa que entrou, senhora de idade. Foi na conversa, ainda protestou que quarenta e tal euros era muito caro para ela, mas aceitou comprar o produto. A vendedora da bata contrafeita que tinha levado a freguesa até ali, acompanhou-a a tiracolo até à caixa, satisfeita por ir facturar.

Provavelmente a idosa, que não tinha ar de acumular várias reformas ou ter filhos gestores públicos, em casa olhando para os trocos irá arrepender-se. Presumivelmente irá lamentar-se às raparigas da sua idade e maleitas similares que o dinheiro fica todo na farmácia. De certeza quando entrou na farmácia não contava fazer esta despesa suplementar.

A técnica (de vendas) agressiva, aproveitando situações de fragilidade como é a dos doentes, e em espaços que são de confiança entre eles e os profissionais da saúde, como são as farmácias, é de todo inaceitável.

Cristo não descerá à Terra para correr com estes vendilhões. As farmácias correm o risco de se transformarem em locais de libertinagem comercial, com bancas modelo praça e regateiras a condizer. Imagine-se a farmácia do futuro; corredor extenso com pontos de venda de ambos os lados, e detrás dos balcões os vários propagandistas a apregoar as vantagens dos seus produtos; lá chegaremos.

Pelo sim pelo não, para acautelar embaraços, vou passar a espreitar para dentro das farmácias antes de entrar. Supunham que uma promotora comercial me aborda, e diz, – o senhor aparenta ter mais de 55 anos, sabe que nessa idade deve ter cuidado com a próstata, dá-me licença que lhe faça um toque rectal?
publicado por Carlos Loures às 10:00
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