Sábado, 26 de Março de 2011

Cartas da Terra 6 - Mark Twain

Mark Twain  Cartas da Terra - A Arca (continuação)

 

(tradução de Miguel Batista)

 

 

 

CARTA VI


No terceiro dia, por volta do meio-dia, descobriu-se que ti­nha ficado uma mosca para trás. A viagem de regresso revelou-se longa e difícil, por conta da falta de uma carta de marear e de uma bússola, e devido à configuração alterada de todas as costas, pois a subida constante da água tinha submergido alguns dos pontos de referência mais baixos e dado um aspecto pouco fa­miliar aos mais altos; mas, ao fim de dezasseis dias de zelosa e fiel busca, a mosca foi enfim encontrada e recebida a bordo com hinos de louvor e gratidão, com a Família entretanto desco­berta, em sinal de reverência pela sua origem divina. Estava can­sada e moída, e tinha sofrido um pouco por causa do tempo, mas, fora isso, encontrava-se em bom estado. Os homens e as suas famílias haviam morrido de fome em cumes de montanha áridos, mas a ela não faltara alimento, com os inumeráveis cadá­veres a fornecerem-no numa fétida e pútrida riqueza. A ave sa­grada foi deste modo providencialmente preservada.

 

Providencialmente. É esta a palavra. Porque a mosca não ti­nha sido deixada para trás por acaso. Não, a mão da Providência andava ali metida. Não há acasos. Todas as coisas que acon­tecem, acontecem com uma finalidade. Estão previstas desde o princípio dos tempos, estão destinadas desde o princípio dos tempos. Desde a aurora da Criação que o Senhor tinha previsto que Noé, alarmado e confuso com a invasão dos prodigiosos fósseis oficiais, fugiria prematuramente para o mar desprovido de uma determinada doença de enorme valor. Estaria na posse de todas as outras doenças e poderia distribuí-las entre as novas raças de homens, à medida que elas fossem aparecendo no mun­do, mas faltar-lhe-ia a melhor de todas: a febre tifóide, uma doença que, quando as circunstâncias são especialmente favorá­veis, tem a capacidade de destruir completamente um paciente, sem o matar -, pois pode voltar a pô-lo de pé com uma longa vida dentro de si, ainda que surdo, mudo, cego, aleijado e idiota. A mosca-doméstica é o seu principal disseminador e é mais competente e calamitosamente eficaz do que todos os demais distribuidores do temível flagelo juntos. E, portanto, por predes­tinação desde o princípio dos tempos, esta mosca foi deixada pa­ra trás para procurar um cadáver tifóide e se alimentar da sua corrupção e infeccionar as suas pernas com germes e transmiti-los ao mundo repovoado como sua actividade permanente. Da­quela única mosca, nas épocas que desde então transcorreram, milhares de milhões de leitos de doença foram abastecidos, mi­lhares de milhões de corpos destruídos foram enviados para cambalear pela Terra, e milhares de milhões de cemitérios foram reforçados com mortos.

 

É deveras difícil compreender o temperamento do Deus da Bíblia; é uma tal confusão de contradições, de instabilidades aguadas e firmezas de ferro; de princípios abstractos e santarrões feitos de palavras e de outros, concretos e infernais, feitos de ac­tos; de bondades fugazes que o arrependimento converteu em permanentes malignidades.

 

Contudo, quando após muita perplexidade se alcança a cha­ve do Seu temperamento, ao menos chega-se enfim a uma espé­cie de compreensão do mesmo. Com uma franqueza assaz bizar­ra e juvenil e surpreendente, foi Ele próprio a fornecer essa chave. É ciúme!

 

Espero que isto vos faça ficar de boca aberta. Estais cientes - pois já vos contei isso numa carta anterior — de que, entre os seres humanos, o ciúme é declaradamente considerado uma fra­queza; uma imagem de marca de espíritos mesquinhos; uma pro­priedade de todos os espíritos mesquinhos; todavia, uma proprie­dade da qual até o mais mesquinho de todos se envergonha - e, quando acusado da sua posse, mentirosamente a negará e, me­lindrado, tomará a acusação como um insulto.

 

Ciúme. Não o esqueceis, tende-o presente. É a chave. Com ela, ireis em parte compreender Deus à medida que formos avançando; sem ela, ninguém O pode compreender. Como vos disse, Ele próprio ergueu abertamente esta chave para que todos a vissem. E Ele diz ingenuamente, com franqueza e sem sugestão de embaraço: «Eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus ciumento.»

Estais a ver, é só outra maneira de dizer: «Eu, o Senhor vos­so Deus, sou um Deus mesquinho - um Deus mesquinho, e ir­ritável com coisas pequenas.»

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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Sexta-feira, 25 de Março de 2011

Cartas da Terra 5 - Mark Twain

Mark Twain Cartas da Terra - A Arca

 

(tradução de Miguel Batista)

 

(e Noé encheu o barco...a arca)

 

 

 

CARTA V

 

 

 

Noé começou a reunir animais. Era para haver um casal de toda e qualquer criatura que andasse ou rastejasse, nadasse ou voasse, no mundo da natureza animada. Temos de tentar adivi­nhar quanto tempo levou a reunir todas as criaturas e quanto é que isso custou, uma vez que não há registo dessas minúcias. Quando Símaco tratou dos preparativos para iniciar o seu jovem filho na vida adulta na Roma Imperial, enviou homens à Ásia, a África e a toda a parte para reunirem animais para os combates na arena. Demorou aos homens três anos a acumular os animais e a trazê-los até Roma. E tratava-se tão-somente de quadrúpedes e jacarés, como compreendereis; não havia cá aves, cobras, rãs, minhocas, piolhos, ratos, pulgas, carraças, lagartas, aranhas, moscas-domésticas, mosquitos — só puros e simples quadrúpe­des e jacarés, e nenhum quadrúpede que não fosse de combate. Não obstante, é como eu disse: levou três anos a reuni-los, e o custo dos animais e do transporte e do salário dos homens tota­lizou quatro milhões e quinhentos mil dólares.

 

Quantos animais eram? Não sabemos. Mas eram menos de cinco mil, pois esse foi o maior número jamais reunido para aqueles espectáculos romanos, e foi Tito, e não Símaco, que fez essa colectânea. Comparados com a empreitada de Noé, não passavam de museus miúdos. Só de aves e animais terrestres e criaturas de água doce, ele tinha de reunir cento e quarenta e seis mil espécies, além de para cima de dois milhões de tipos de insectos.

 

Milhares e milhares destes bichos são muito difíceis de apa­nhar, e, se Noé não tivesse desistido e parado, ainda hoje estaria de roda daquilo, como costumava dizer Levítico. Contudo, não quero com isto dizer que ele renunciou; não, ele não o fez. Reu­niu todas as criaturas para as quais tinha espaço e então é que parou.

 

Se ele estivesse a par de todos os requisitos desde o início, teria ficado desde logo ciente de que o que era necessário era uma frota de arcas. Mas ele não sabia quantas espécies de criatu­ras havia, tal como o seu Chefe não sabia. Por isso não tinha ne­nhum canguru, nenhum opossum, e nenhum monstro-de-gila, e nenhum ornitorrinco, e faltava-lhe um sem-número de outras bênçãos indispensáveis que um Criador amoroso proporcionara ao homem e das quais depois se esquecera, visto que elas há muito haviam deambulado para um lado deste mundo que ele nunca vira e de cujos afazeres não estava ao corrente. E, por conseguinte, só por um triz é que todas elas não se afogaram.

 

Só escaparam por acaso. Não havia água que chegasse para tudo. Só tinha sido fornecida a suficiente para inundar um pe­queno canto do globo — o resto do globo não era então conhe­cido, e julgava-se que fosse inexistente.

 

Contudo, aquilo que real e final e definitivamente fez com que Noé decidisse parar, tendo já espécies suficientes para fins puramente comerciais, deixando assim que as outras se extin­guissem, foi um incidente ocorrido nos últimos dias: um foras­teiro agitado chegou trazendo notícias extremamente alarmantes. Disse que estivera a acampar no meio de algumas montanhas e vales, a cerca de mil quilómetros de distância, e que ali vira uma coisa prodigiosa: estava à beira de um precipício com vista para um extenso vale onde divisou um mar de estranha vida animal, negro e encapelado, a aproximar-se. Passado pouco tempo, as criaturas passaram por ele, debatendo-se, lutando, bulhando, guinchando, bufando — uma imensa e horrível mole de

carne tumultuosa! Preguiças do tamanho de elefantes; rãs do tamanho de vacas; um megatério e o seu harém, inacreditavelmente gigan­tescos; sáurios e sáurios e sáurios, grupo após grupo, família após família, espécie após espécie — com trinta metros de com­primento, dez metros de altura, e duas vezes mais conflituosos: um deles deu uma pancada com a cauda num touro de Durham, perfeitamente inculpado, e mandou-o ao ar, com um assobio, a uma altura de quase cem metros, e ele caiu ao pés do homem com um gemido e deixou de existir. O homem disse que esses prodigiosos animais tinham ouvido falar da arca e vinham a ca­minho. Vinham para se salvarem do dilúvio. E não vinham em casal, vinham todos: eles não sabiam que os passageiros estavam limitados a casais, disse o homem, e, de qualquer modo, também se estariam a marimbar para as regras — iriam zarpar naquela Arca, ou alguém ia ter de lhes explicar porquê. O homem disse que a Arca não aguentaria nem metade deles — e, além disso, eles vinham com fome e devorariam tudo o que lhes aparecesse à frente, incluindo a colecção de animais e a família.

 

Todos estes factos foram suprimidos do relato bíblico. Não encontrareis uma alusão que seja a eles por lá. A cena inteira foi abafada. Nem sequer os nomes daquelas enormes criaturas são mencionados. Isto mostra-vos que, quando alguém deixa uma lacuna repreensível num contrato, pode ser tão desonesto em re­lação a isso em Bíblias como noutro sítio qualquer. Aqueles po­derosos animais seriam de inestimável valor para o homem nos dias de hoje, nos quais o transporte é tão solicitado e tão caro, mas todos eles estão perdidos para ele. Todos eles perdidos, e por culpa de Noé. Afogaram-se todos. Alguns deles já há oito milhões de anos.

 

Muito bem, então o estranho contou o que tinha para con­tar, e Noé viu que tinha de se ir embora antes de os monstros chegarem. Teria zarpado de imediato, mas os estofadores e os decoradores da sala de estar da mosca-doméstica ainda tinham alguns acabamentos para fazer, o que o fez perder um dia. Per­deu-se outro dia a pôr as moscas a bordo, pois havia sessenta e oito mil milhões delas, e a Divindade ainda estava com receio de que não fossem suficientes. Perdeu-se outro dia a estivar qua­renta toneladas de porcaria para sustento das moscas.

 

Depois disso, enfim Noé zarpou — e foi mesmo na altura certa, pois a Arca tinha acabado de desaparecer no horizonte, quando os monstros chegaram e juntaram os seus lamentos aos da multidão de pais e mães chorosos e de criancinhas assustadas que, debaixo da chuva torrencial, se agarravam às rochas batidas pelas ondas e faziam ascender preces suplicantes a um Ser Todo-Justo e Todo-Clemente e Todo-Compassivo que nunca res­pondera a qualquer prece desde que aqueles rochedos haviam sido construídos, grão após grão tirado das areias, e que conti­nuaria sem responder a nenhuma, quando as eras fizessem com que eles se desmoronassem e voltassem a ser areia.

 

(in Cartas da Terra, Bertrand Editora)


 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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Terça-feira, 1 de Março de 2011

Cartas da Terra - Mark Twain IV

 coordenação de Augusta Clara de Matos

 

Boas e Más Memórias ... Satanás continua a escrever as suas cartas a Miguel e a Gabriel

 

(ofereço estas maçãs

ao Carlos Loures em agradecimento pelo seu excelente trabalho) 

 

 

 

Mark Twain  Cartas da Terra

(Tradução de Miguel Batista)

 

 

CARTA III


Já vos apercebestes de que o ser humano é uma curiosidade. Em tempos que já lá vão, ele teve (e gastou e deitou fora) cente­nas e centenas de religiões; hoje em dia, tem centenas e centenas de religiões, e lança no mínimo três novas por ano. Eu podia fa­zer crescer esse número e estar ainda a cingir-me aos factos.

 

Uma das principais religiões chama-se religião cristã. Uma perspectiva geral dela interessar-vos-á. Está descrita ao porme­nor num livro que contém dois milhões de palavras chamado o Antigo e o Novo Testamentos. Também tem outro nome: a Palavra de Deus. Pois o cristão pensa que cada palavra dele foi ditada por Deus — aquele de quem tenho vindo a falar.

 

É cheio de interesse. Inclui nobre poesia; e algumas fábulas engenhosas; e alguma história encharcada de sangue; e alguns bons princípios; e uma abundância de obscenidade; e para cima de um milhar de mentiras.

 

Esta Bíblia é maioritariamente construída de fragmentos de Bíblias mais antigas que tiveram a sua época e depois ruíram. Deste modo, revela-se visivelmente falha em originalida­de, como era inevitável. Os seus três ou quatro acontecimen­tos mais imponentes e impressionantes aconteceram todos em Bíblias mais antigas; os seus melhores preceitos e regras de conduta também vieram todos dessas Bíblias; só há lá duas coisas novas: o inferno, em particular, e aquele singular céu de que vos falei.

 

Que havemos de fazer? Se acreditarmos, juntamente com es­tas pessoas, que o Deus delas inventou estas coisas cruéis, esta­mos a caluniá-Lo; se acreditarmos que estas pessoas as inven­taram elas mesmas, estamos a caluniá-las a elas. É um dilema desagradável em ambos os casos, porquanto nenhuma das partes nos fez mal nenhum.

 

Por uma questão de tranquilidade, tomemos partido. Una­mos esforços com o povo e ponhamos o desaprazível fardo, na sua totalidade, sobre ele — céu, inferno, Bíblia, tudo. Não parece certo, não parece justo — e, no entanto, quando se pensa na­quele céu e em como ele está opressivamente carregado com tudo o que é repulsivo para um ser humano, como podemos acreditar que tenha sido um ser humano a inventá-lo? E, quando eu chegar à parte de vos falar sobre o céu, o esforço que tereis de fazer será maior ainda, e é provável que digais: «Não, um ho­mem não estabeleceria semelhante lugar, nem para ele, nem para ninguém — simplesmente não poderia fazê-lo.»

 

Essa Bíblia inocente fala-nos sobre a Criação. De quê — do universo? Sim, do universo. Em seis dias!

 

Foi Deus que o fez. Não lhe chamou «universo» — esse no­me é moderno. Toda a sua atenção estava centrada neste mun­do. Construiu-o em cinco dias; e depois? Só lhe levou mais um dia a fazer vinte milhões de sóis e oitenta milhões de planetas!

 

Para que serviam eles, de acordo com a ideia dele? Para for­necer luz a este pequeno brinquedo-mundo, O propósito dele era só esse — não havia outro. Um dos vinte milhões de sóis (o mais pequeno) devia alumiá-lo durante o dia, os restantes eram para ajudar uma das incontáveis luas do universo a modifi­car a escuridão das suas noites.

 

Torna-se bastante claro que Ele acreditava que os seus céus, acabados de fazer, haviam sido diamantizados com aquelas miríades de estrelas cintilantes no momento em que o Sol do pri­meiro dia caiu no horizonte; enquanto, na verdade, nem uma única estrela tremeluziu naquela negra abóbada senão três anos e

meio depois de as formidáveis indústrias daquela semana me­morável terem sido completadas1. Nessa altura, apareceu uma estrela, totalmente solitária e sozinha, e começou a cintilar. Três anos depois, apareceu outra. As duas brilharam juntas mais de quatro anos, antes de uma terceira se lhes juntar. Ao fim dos pri­meiros cem anos, ainda não havia vinte e cinco estrelas a brilhar na vastidão daqueles céus umbrosos. Ao fim de mil anos, não havia ainda estrelas suficientes visíveis para causar impacto. Ao fim de um milhão de anos, só metade da actual colecção tinha enviado a sua luz através das fronteiras telescópicas, e demorou outro milhão até que as restantes lhes seguissem as pisadas, co­mo é vulgar dizer-se. Como, ao tempo, não havia telescópio, o seu advento não foi observado.

 

Há trezentos anos, então, que o astrónomo cristão sabe que a sua divindade não fez as estrelas nesses seis tremendos dias —, mas o astrónomo cristão não se alonga em relação a esse porme­nor. Tal como o padre.

 

No seu livro, Deus é eloquente nos encómios às Suas pode­rosas obras e chama-as pelos nomes mais generosos que encon­tra — indicando assim que tem uma forte e justa admiração por magnitudes; e, contudo, fez esses milhões de prodigiosos sóis para iluminar este pequenino orbe, em vez de designar o peque­nino sol deste orbe para andar atrás deles com subserviência. Ele alude a Arcturo no seu Livro... lembrais-vos de Arcturo: fomos lá uma vez. É um dos lampiões desta Terra! — aquele globo que é cinquenta mil vezes maior que o Sol desta Terra e compara-se a ela como um melão se compara a uma catedral.

 

Não obstante, a catequese2 ainda ensina às crianças que Arc­turo foi criado para ajudar à iluminação desta Terra, e as crianças crescem e continuam a acreditar nisso muito depois de terem descoberto que as probabilidades são contrárias a que assim seja.

 

Segundo o Livro e seus servos, o universo tem apenas seis mil anos. Foi só nos últimos cem anos que espíritos estudiosos e perscrutadores descobriram que ele anda perto dos cem mi­lhões.

 

Durante os Seis Dias, Deus criou o homem e os outros ani­mais.

 

Fez um homem e uma mulher, e colocou-os num agradável jardim juntamente com as outras criaturas. Todos eles viveram ali juntos, em harmonia e contentamento e florescente juventu­de, durante algum tempo — depois é

que foram elas. Deus avi­sara o homem e a mulher que eles não deveriam comer o fruto de uma determinada árvore. E acrescentara uma observação deveras estranha: disse que, se o comessem, era garantido que morreriam. Era estranha pela razão de que eles, na medida em que nunca tinham visto um exemplo de morte, não poderiam possivelmente saber a que Ele se referia. Nem Ele, nem qual­quer outro deus, teria sido capaz de fazer com que aquelas crian­ças ignorantes percebessem ao que se referia, sem lhes fornecer um exemplo. A mera palavra não poderia ter qualquer significa­do para eles, mais do que teria para um bebé de dias.

 

Passado pouco tempo, uma serpente procurou-os em priva­do e aproximou-se deles a caminhar direita, que era como as ser­pentes faziam nesse tempo. A serpente disse que o fruto proibi­do abasteceria de conhecimento as suas mentes vagantes. Por isso comeram-no, como é bastante natural, visto que o homem é feito de tal forma que deseja ardentemente saber; ao passo que o padre, tal como Deus, de quem é imitador e representante, se encarregou desde o início de impedir que ele ficasse a saber qual­quer coisa de útil.

 

Adão e Eva comeram o fruto proibido, e imediatamente uma grande luz jorrou para dentro das suas cabeças obscureci­das. Tinham adquirido conhecimento. Que conhecimento — conhecimento útil? Não, tão-só conhecimento de que existe uma coisa chamada bem e uma coisa chamada mal, e ainda de como fazer o mal. Não o poderiam ter feito antes. Por conse­guinte, todos os seus actos até este dia tinham sido sem mácula, sem culpa, sem ofensa.

 

Mas agora eles podiam fazer o mal — e sofrer por causa dis­so; agora tinham adquirido aquilo a que a Igreja chama um «bem inestimável», o Sentido Moral: esse sentido que diferencia o ho­mem do animal e o coloca acima do animal. Em vez de abaixo do animal — que se supunha fosse o lugar mais apropriado para ele, porquanto o homem é sempre mal-intencionado e culposo, e o animal, sempre bem-intencionado e inocente. É como dar mais valor a um relógio que tem obrigatoriamente de se avariar do que a um que não se pode avariar.

 

A Igreja ainda hoje preza o Sentido Moral como a mais no­bre faculdade do homem, a despeito de saber que Deus a tem visivelmente em pouca conta e fez o que pôde, naquele seu jeito desajeitado, para impedir que as suas felizes Crianças do Jardim a adquirissem.

 

Muito bem, Adão e Eva sabiam agora o que era o mal e co­mo fazê-lo. Sabiam fazer vários tipos de coisas erradas e, entre elas, uma das principais — aquela em que Deus pensara em par­ticular. Era a arte e o mistério das relações sexuais. Para eles, tra­tava-se de uma descoberta magnífica, e deixaram de andar ocio­sos e devotaram-lhe toda a sua atenção, pobres criaturinhas exultantes!


No meio de uma destas celebrações, ouviram Deus a passear entre os arbustos, o que era um hábito vespertino dele, e ficaram dominados pelo pavor. Porquê? Porque estavam nus. Não o sa­biam antes. Não tinham feito caso disso antes — tal como Deus.

 

Nesse momento memorável, a imodéstia nasceu — e algu­mas pessoas vêm-na estimando desde então, ainda que seja certo que ficariam atrapalhadas, se lhes fosse pedido para explicarem porquê.

 

Adão e Eva entraram no mundo nus e sem vergonha — nus e puros de espírito; e nenhum dos seus descendentes alguma vez entrou nele de outra maneira. Todos entraram nele nus, sem ver­gonha e de espírito limpo. Entraram nele modestos. Tiveram de adquirir a imodéstia e o espírito conspurcado — não havia ne­nhuma outra maneira de os obter. O primeiro dever de uma mãe cristã é conspurcar o espírito do seu filho, e ela não o descura. O seu rapaz cresce, torna-se missionário e vai para junto dos inocentes selvagens e dos civilizados japoneses, e conspurca os seus espíritos. Após o que eles adoptam a imodéstia, escondem os seus corpos, deixam de tomar banho nus uns com os outros.

 

 

 

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Sexta-feira, 4 de Fevereiro de 2011

Cartas da Terra 3 - Mark Twain

coordenação de Augusta Clara de Matos

 

 

Boas e Más Memórias

E Satanás, que fora expulso para a Terra, de lá continuou a enviar cartas com as suas impressões aos arcanjos Miguel e Gabriel

Mark Twain  Cartas da Terra

CARTA II

 

 

 

«Não vos contei nada sobre o homem que não seja verdade.» Deveis perdoar-me, se repito esta observação aqui e ali nes­tas cartas: quero que leveis a sério as coisas que vos conto e jul­go que, se estivesse no vosso lugar e vós no meu, necessitaria dessa chamada de atenção de quando em quando para impedir que a minha credulidade esmorecesse.

(Mirando el Suelo - Pastor Outeiral, Ourense)

Pois não há nada acerca do homem que não seja estranho para um imortal. Ele não olha para nada como nós olhamos, a sua noção das proporções é completamente diferente da nossa, e a sua noção do que são valores é de tal maneira divergente da nossa que, malgrado toda a nossa imensa capacidade intelectual, não é provável que mesmo os mais dotados de nós fossem algu­ma vez capazes de o compreender plenamente.

Considerai esta amostra, por exemplo: ele imaginou um céu e deixou completamente de fora dele a mais suprema de todas as delícias, o êxtase ímpar que aparece antes de tudo o resto no âmago de cada indivíduo da sua raça — e da nossa —: as rela­ções sexuais!

É como se uma pessoa estivesse perdida e moribunda num deserto abrasador e lhe fosse dito por um salvador que podia es­colher e ter todas as coisas por que ansiava, excepto uma, e ela escolhesse prescindir da água!

O céu dele é como ele próprio: estranho, interessante, sur­preendente, grotesco. Palavra de honra que não tem uma única característica que ele realmente aprecie. Consiste — única e exclusi­vamente — em distracções a que ele praticamente não liga aqui na Terra, contudo tem a certeza absoluta de que vai gostar delas no céu. Não é curioso? Não é interessante? Não deveis pensar que estou a exagerar, pois não é o caso. Vou dar-vos pormeno­res.

A maior parte dos homens não canta, a maior parte dos ho­mens não sabe cantar, a maior parte dos homens não se demora onde outros estão a cantar, se tal se prolongar por mais de duas horas. Registai isso.

Somente cerca de dois homens em cada cem sabe tocar um instrumento musical, e nem quatro em cem têm qualquer desejo de aprender a fazê-lo. Tomai nota disso.

Muitos homens rezam, não há muitos que gostem de o fa­zer. Uns quantos rezam demoradamente, os demais preferem atalhar.

Há mais homens a ir à igreja do que aqueles que desejariam fazê-lo. Para quarenta e nove homens em cinquenta, o Dia do Senhor1 é uma tremenda maçada.

De todos os homens presentes numa igreja a um domingo, dois terços estão cansados, quando o serviço vai a meio, e os restantes antes de ele ter terminado.

O momento de maior satisfação para todos eles é quando o pregador ergue as mãos para a bênção final. Consegue ouvir-se o suave sussurro de alívio que se estende a todo o edifício e re­conhece-se que ele é eloquente de gratidão.

Todas as nações olham com sobranceria para todas as outras nações.

Todas as nações detestam todas as outras nações.

Todas as nações brancas desprezam todas as nações de cor, seja de que matiz for, e oprimem-nas, quando podem.

Os homens brancos não se relacionam com «pretos», nem se casam com eles.

Não os deixam entrar nas suas escolas e igrejas.

O mundo inteiro odeia o judeu e não o suporta senão quan­do ele é rico.

Peço-vos que registeis todas essas características.

Adiante. Todas as pessoas sãs de espírito detestam barulho.

Todas as pessoas, sãs de espírito ou insanas, gostam de ter variedade na sua vida. A monotonia rapidamente as cansa.

Cada homem, segundo o equipamento mental que lhe coube em sorte, exercita o seu intelecto constantemente, incessante­mente, e este exercício constitui uma parte considerável e valiosa e essencial da sua vida. O intelecto mais chão, tal como o mais elevado, possui algum tipo de aptidão e tem grande prazer em testá-la, pô-la à prova, aperfeiçoá-la. O diabrete, que é superior aos seus companheiros em jogos, é tão diligente e entusiástico na sua prática como o são o escultor, o pintor, o pianista, o ma­temático e os demais. Nenhum deles poderia ser feliz, se o seu talento fosse interditado.

Ora bem, já tendes os factos. Sabeis do que a raça humana gosta e do que não gosta. Ela inventou um céu, saído da sua própria cabeça, sem ajuda de ninguém: adivinhai como ele é! Nem em mil e quinhentas eternidades o conseguiríeis. A mente mais capaz por vós ou por mim conhecida em cinquenta mi­lhões de evos não o conseguiria. Muito bem, vou falar-vos sobre ele.

1. Antes de mais nada, chamo-vos de novo a atenção para o facto extraordinário com que comecei. Isto é, que o ser huma­no, como os imortais, coloca naturalmente as relações sexuais de longe acima de todos os outros prazeres — e, todavia, deixou-as de fora do seu céu! A simples ideia de as ter excita-o; a oportunidade deixa-o frenético; neste estado, arriscará a vida, a reputa­ção, tudo — até mesmo o seu insólito céu —, para concretizar essa oportunidade e aproveitá-la até ao seu irrefreável clímax. Da juventude à meia-idade, todos os homens e todas as mulheres apreciam a cópula acima de todos os outros prazeres juntos, po­rém, na verdade, é como vos disse: ela não existe no céu deles; a oração ocupa o seu lugar.

Deste modo, têm-lhe um elevado apreço; contudo, tal como as suas supostas «mercês», trata-se de uma coisa pobre. No seu melhor e mais demorado, o acto é breve para além da imagina­ção — a imaginação de um imortal, quer dizer. Em termos de repetição, o varão é limitado... oh, bem para além do concebimento imortal. Nós, que prolongamos o acto e os seus êxtases mais supremos de forma continuada e sem interrupções durante séculos, jamais seremos capazes de compreender ou de nos condoermos de forma adequada da horrível pobreza destas pessoas no que toca a esse valioso dom que, se possuído como nós o possuímos, faz com que todas as outras posses sejam triviais e nem valham o trabalho de passar factura.

2. No céu dos homens, toda a gente canta! O homem que não cantava na Terra, ali canta; o homem que não conseguia cantar na Terra, ali consegue cantar. Esta cantoria  universal não é for­tuita, nem ocasional, nem aliviada por intervalos de silêncio; prossegue, ao longo de todo o dia, e dia após dia, durante um período de doze horas. E toda a gente se queda — enquanto na Terra o lugar ficaria vazio em duas horas. A cantoria consta uni­camente de hinos. Não, consta somente de um hino. As palavras são sempre as mesmas, em número serão para aí uma dúzia, não há rima, não há poesia: «Hosana, hosana, hosana, Senhor Deus dos Exércitos, 'rra! 'rra! 'rra! ssss! — bum!... a-a-ah!»

3. Entretanto, cada pessoa está a tocar harpa — aqueles mi­lhões e milhões! —, ao passo que não mais de vinte em mil delas sabiam tocar um instrumento na Terra, ou sequer alguma vez quiseram saber.

Imaginem o ensurdecedor furacão de som — milhões e mi­lhões de vozes a berrarem em uníssono, e milhões e milhões de harpas a rangerem os dentes ao mesmo tempo! Pergunto-vos: é medonho, é odioso, é horrível?

Imaginem também: trata-se de um serviço de louvor— um serviço de elogio, de lisonja, de adulação! Perguntais quem está disposto a aguentar este estranho cumprimento, este insano cumprimento — e quem não somente o aguenta, mas gosta de­le, desfruta dele, precisa dele, o ordena? Preparai-vos!

É Deus! O Deus desta raça, quer dizer. Ele senta-se no seu trono, servido pelos seus vinte e quatro anciãos e outros dignitá­rios quaisquer pertencentes à sua corte, e olha por sobre quiló­metros e quilómetros de tempestuosos adoradores e sorri, e sol­ta suspiros maviosos, e mostra a sua satisfação acenando com a cabeça para norte, para este, para sul — no que imagino seja o espectáculo mais bizarro e ingénuo até agora concebido neste universo.

É fácil de ver que o inventor do céu não foi o autor desta ideia, antes a copiou dos espectáculos-cerimónias de algum des­graçado Estadito soberano situado algures nas distantes colónias do Oriente.

Todas as pessoas brancas sãs de espírito odeiam barulho, porém aceitaram tranquilamente este tipo de céu — sem pensar, sem reflectir, sem examinar — e querem de facto ir para lá! Ve­lhos de cabelo grisalho profundamente devotos dedicam grande parte do seu tempo a sonhar com o ditoso dia em que largarão as preocupações desta vida e entrarão nos prazeres daquele lo­cal. Não obstante, podeis ver quão irreal esse local é para eles e o quão pouco lhes prende a atenção como sendo realmente um facto, uma vez que não fazem nenhuma preparação prática para a grande mudança — nunca se vê nenhum deles com uma harpa, nunca se ouve nenhum deles a cantar.

Como já vistes, esse espectáculo singular é um serviço de louvor: louvor por hino, louvor por prostração. Substitui a «igreja». Vamos lá a ver: na Terra, estas pessoas não aguentam lá mui­ta igreja — uma hora e um quarto é o máximo, e uma vez por semana, o limite que estabelecem. Que é o mesmo que dizer, ao domingo. Um dia em sete; e nem assim eles esperam por ele com impaciência. E por isso... considerai o que o céu deles lhes proporciona: «igreja» que dura para sempre, e um Dia do Senhor que não conhece fim! Eles cansam-se rapidamente deste breve Dia do Senhor hebdomadário que por aqui têm, contudo alme­jam um eterno: sonham com ele, falam sobre ele, pensam que pensam que vão gostar dele — do fundo dos seus corações sim­ples, eles pensam que pensam que vão ser felizes nele!

Isto acontece porque eles não pensam de todo — eles só pensam que pensam. Porquanto não pensam — nem dois seres humanos em dez mil têm algo com que possam pensar. E, quan­to a imaginação... oh, bem, olhem para o céu deles! Aceitam-no, aprovam-no, admiram-no. Isso dá-vos a sua medida intelectual.

4. O inventor do céu deles despeja lá todos os países da Ter­ra, no que é uma verdadeira salgalhada. Todos estão em igualda­de absoluta, nenhum tem precedência sobre os demais, todostêm de ser «irmãos», têm de se misturar, de rezar juntos, tocar harpa juntos, soltar hosanas juntos - brancos, pretos, judeus, toda a gente, sem distinções. Aqui na Terra, todas as nações se odeiam umas às outras, e todas elas odeiam o judeu. Porém, to­da e qualquer pessoa piedosa adora o tal céu e quer entrar nele. Quer mesmo. E, quando está em pleno arroubo sagrado, essa pessoa pensa que pensa que, se ao menos estivesse lá, apertaria toda a populaça contra o seu peito e abraçaria e abraçaria e abra­çaria!

É um prodígio — o homem. Quisera eu saber quem o in­ventou.

5. Todo o homem na Terra possui alguma parcela de intelec­to, grande ou pequena — e, seja grande ou pequena, sente orgu­lho nela. Ademais, o seu coração enfuna-se à menção dos nomes dos majestosos líderes intelectuais da sua raça, e ele adora as his­tórias das suas esplêndidas realizações. Pois ele é sangue do seu sangue, e, ao enobrecerem-se a si mesmos, eles enobreceram-no a ele. Vede!, o que a mente do homem pode fazer! ele lacrimeja; e faz a chamada dos ilustres de todas as eras; e faz referência às imperecíveis literaturas que eles deram ao mundo, e às maravi­lhas mecânicas que eles inventaram, e às glórias com que eles re­vestiram a ciência e as artes; e perante eles se descobre, como se reis fossem, e presta-lhes a mais profunda homenagem, e tam­bém a mais sincera, que o seu coração exultante pode prover — desta forma exaltando o intelecto acima de todas as outras coisas no mundo e entronizando-o sob a arcadura dos céus, numa su­premacia inatingível. E depois concebe um céu onde não há um pingo de intelectualidade em lado nenhum!

É estranho, é curioso, é complicado? Por incrível que pare­ça, é exactamente como vos contei. Este sincero adorador do in­telecto e pródigo recompensador dos seus poderosos serviços aqui na Terra inventou uma religião e um céu que não fazem quaisquer elogios ao intelecto, não lhe oferecem quaisquer dis­tinções, não lhe concedem qualquer dádiva; na verdade, nem se­quer lhe fazem referência.

Por esta altura já tereis reparado que o céu do ser humano foi cuidadosamente pensado e construído de acordo com um plano absolutamente definido — e que este plano é, que ele de­verá conter, em laborioso pormenor, toda e qualquer coisa ima­ginável que seja repugnante ao homem, e nem uma única de que ele goste!

Muito bem, quanto mais prosseguirmos, mais este facto curioso se tornará evidente.

Tomem nota: no céu dos homens, não há exercícios para o intelecto, nada de que este possa viver. Uma vez ali, apodreceria num ano — apodreceria e federia. Apodreceria e federia — e nessa altura tornar-se-ia santo. É uma coisa abençoada — pois só os santos conseguem suportar os prazeres daquele manicómio

_______

1. Sabbath, no original (N. do T.)

(in Cartas da Terra, Bertrand Editora)

 

publicado por Augusta Clara às 14:00

editado por Luis Moreira às 00:03
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Segunda-feira, 24 de Janeiro de 2011

Cartas da Terra II - Mark Twain

 

 

coordenação de Augusta Clara de Matos

 

 

Boas e Más Memórias

 

 

Mark Twain  Cartas da Terra

 

 

O Criador sentou-se no trono a pensar. Atrás dele estendia-se o ilimitável continente celeste, mergulhado numa glória de luz e cor; diante dele erguia-se, como um muro, a noite negra do Espaço. O Seu descomunal vulto torreava escarpado, como uma montanha, contra o zénite, e a Sua cabeça divina resplandecia ao longe como um sol distante. A Seus pés, estavam três colossais figuras, diminuídas quase até à extinção, por contraste — arcan­jos —, as cabeças ao nível do osso do Seu tornozelo.

 

Quando o Criador acabou de pensar, disse:

 

- Pensei. Vede!

 

Levantou a Sua mão, e dela brotou um jacto de fogo, um milhão de estupendos sóis, que fenderam a treva e alaram para longe, para muito longe, diminuindo em magnitude e intensida­de à medida que atravessavam as longínquas fronteiras do Espa­ço, até que, por fim, não eram mais do que cabeças de prego adamantinas a cintilarem debaixo do imenso telhado abobadado do universo.

 

Ao fim de uma hora, o Grande Conselho foi dissolvido.

 

Deixaram a Presença impressionados e pensativos, e retira­ram-se para um local isolado, onde pudessem falar com liberda­de. Nenhum dos três parecia querer ser ele a começar, embora todos quisessem que alguém o fizesse. Cada um deles estava ansioso por discutir o grande acontecimento, mas preferia não se comprometer até saber como os demais o encaravam. Por isso houve alguma conversa frívola e hesitante sobre assuntos sem importância, o que se arrastou fastidiosamente, sem levar a lado nenhum, até que finalmente o arcanjo Satanás reuniu toda a sua coragem — da qual estava bem provido — e abriu caminho. Disse:

 

- Sabemos do que queremos falar aqui, meus senhores, por isso mais vale pormos os fingimentos de lado e começarmos. Se for esta a opinião do Conselho...

 

- É, é! — disseram Gabriel e Miguel, interrompendo-o, agradecidos.

 

- Muito bem, então avancemos. Testemunhámos uma coi­sa maravilhosa: quanto a isso, estamos forçosamente de acordo. Quanto ao valor dessa coisa, se é que ela tem algum, esse é um assunto que não nos diz pessoalmente respeito. Podemos ter tantas opiniões sobre ele quanto quisermos, e esse é o nosso li­mite. Não temos voto nisso. Penso que o Espaço estava sufi­cientemente bem como estava, e além disso era útil. Frio e escu­ro... um lugar sossegado, de quando em vez, depois de uma temporada do clima excessivamente delicado e dos fadigosos es­plendores do céu. Mas estes são pormenores de alcance pouco considerável; a nova característica, a imensa característica, é...o quê, cavalheiros?

 

- A invenção e introdução de uma lei automática, não vigia­da e auto-reguladora, para o governo dessas miríades de sóis e mundos girantes e acelerados!

 

- É isso! — disse Satanás. — Percebeis que se trata de uma ideia estupenda. Nada que se aproxime disto alguma vez se de­senvolvera a partir do Intelecto Mestre. Lei, Lei Automática, Lei exacta e invariável, que não necessita de vigilância, de correcção, de reajustamento, enquanto as eternidades perdurarem. Ele disse que esses incontáveis e imensos corpos celestes mergulhariam através da imensidão do Espaço ao longo de eras e eras, a uma velocidade inimaginável, percorrendo órbitas estupendas, porém sem jamais colidirem, e nunca aumentando ou encurtando os seus períodos orbitais por uma centésima parte de segundo que seja em dois mil anos! Esse é o novo milagre, e o maior de to­dos: Lei Automática! E Ele deu-lhe um nome, a LEI DA NATUREZA, e disse que a Lei Natural é a LEI DE DEUS: nomes intercambiáveis para uma coisa só.

 

- Sim — disse Miguel —, e Ele disse que iria estabelecer a Lei Natural, a Lei de Deus, em todos os seus domínios, e que a autoridade dela deveria ser suprema e inviolável.

 

- Além disso — disse Gabriel —, Ele disse que em breve criaria animais e que os colocaria, do mesmo modo, sob a auto­ridade dessa Lei.

 

- Sim — disse Satanás —, ouvi-O, mas não percebi. O que é animais, Gabriel?

 

- Ah, como hei eu de saber? É uma palavra nova.

 

[Intervalo de três séculos, tempo celeste o equivalente a cem milhões de anos, tempo terreno. Entra um Anjo-Mensageiro.]

 

- Meus senhores, Ele está a fazer animais. Gostaríeis de ir ver?

 

Eles foram, eles viram, e ficaram perplexos. Assaz perplexos — e o Criador apercebeu-se e disse:

 

- Perguntai. Eu responderei.

 

- Divino — disse Satanás, fazendo reverência —, para que servem eles?

 

- São uma experiência em Moralidade e Conduta. Obser­vai-os, e instruí-vos.

 

Havia-os aos milhares. Eram cheios de actividade. Atarefa­dos, todos eles atarefados — sobretudo em perseguirem-se uns aos outros. Satanás constatou — depois de examinar um deles através de um poderoso microscópio:

 

- Este bicho maior está a matar animais mais fracos, ó Di­vino.

 

- O tigre, sim. A lei da sua natureza é a ferocidade. A lei da sua natureza é a Lei de Deus. Ele não lhe pode desobedecer.

 

- Então, ao obedecer-lhe, ele não está a cometer qualquer transgressão, ó Divino?

 

- Não, ele é sem culpa.

 

- Esta outra criatura, aqui, é tímida, ó Divino, e morre sem resistir.

 

- O coelho, sim. Ele é sem coragem. É a lei da sua nature­za, a Lei de Deus. Ele deve obedecer-lhe.

 

- Então não lhe pode ser honradamente solicitado que vá contra a sua natureza e resista, ó Divino?

 

- Não. A nenhuma criatura pode ser honradamente solici­tado que vá contra a lei da sua natureza, a Lei de Deus.

 

Depois de muito tempo e de muitas perguntas, Satanás disse:

 

- A aranha mata a mosca e come-a; o pássaro mata a ara­nha e come-a; o gato-selvagem mata o ganso; o... bem, eles ma­tam-se todos uns aos outros. É assassínio em toda a linha. Aqui estão incontáveis multidões de criaturas, e todas elas matam, ma­tam, matam, são todas elas assassinas. E não têm culpa, ó Di­vino?

 

- Não têm culpa. É a lei da sua natureza. E a lei da nature­za é sempre a Lei de Deus. Agora... observai... vede! Uma nova criatura, e a obra-prima, o Homem!

 

Homens, mulheres, crianças, enxameavam-se por todo o la­do, em bandos, aos magotes, aos milhões.

 

- O que ides fazer com eles, ó Divino?

 

- Colocar em cada indivíduo, em tons e graus diferentes, todas as várias Qualidades Morais que foram distribuídas em massa, uma característica única e distintiva de cada vez, entre o mundo animal não falante: coragem, cobardia, fereza, docili­dade, equidade, justiça, astúcia, perfídia, magnanimidade, cruel­dade, malícia, malignidade, lascívia, misericórdia, piedade, pureza, egoísmo, doçura, honra, amor, ódio, vileza, nobreza, lealdade, falsidade, veracidade, insinceridade... cada ser huma­no tê-las-á a todas dentro de si, e elas constituirão a sua nature­za. Em alguns deles, haverá características elevadas e refinadas que submergirão as que são malignas, e a esses chamar-se-á homens bons; noutros, as características malignas terão domí­nio, e a esses chamar-se-á homens maus. Observai... vede!... Eles desaparecem!

 

- Para onde foram, ó Divino?

 

- Para a Terra... eles e os outros animais.

 

- O que é a Terra?

 

- Um pequeno globo que eu fiz há um tempo, dois tempos e metadede um tempo1. Vós viste-lo, mas não reparastes nele na explosão de

mundos e sóis que saiu em jacto da minha mão. O homem é uma experiência, os restantes animais são outra ex­periência. O tempo dirá

se valeram a pena, A apresentação che­gou ao fim: podeis retirar-vos meus senhores.

Passaram vários dias.

 

Isto representa uma longa extensão do (nosso) tempo, uma vez que, no céu, um dia é como mil anos.

 

Satanás vinha tecendo comentários elogiosos relativamente a algumas das cintilantes indústrias do Criador; comentários que, se se lesse nas entrelinhas, eram na verdade sarcasmos. Tecera-os em confidência aos seus amigos de confiança, os outros ar­canjos, mas eles haviam sido escutados por alguns anjos comuns e denunciados no Quartel-General.

 

Foi-lhe dada ordem de banimento por um dia — um dia ce­leste. Era um castigo ao qual ele estava habituado, por conta da sua língua demasiado flexível. Outrora, fora deportado para o Espaço, não havendo nenhum outro sítio para onde o enviar, e por lá batera fastidiosamente as asas, em meio à noite eterna e ao frio árctico; mas desta vez ocorrera-lhe pôr-se a caminho e procurar a Terra e ver como estava a progredir a experiência da Raça Humana.

 

Passado algum tempo, escreveu para casa — com todo o si­gilo —, a S. Miguel e S. Gabriel, sobre o que viu.

 

1 Aqui, «tempo» é um literalismo da tradução bíblica, que em geral significa um ano.

Nes­te caso, tratar-se-ia de três anos e meio, tal como em Daniel, 12:7. (N. do T.)

 

 

 

 

A CARTA DE SATANÁS

 

Este é um lugar estranho, um lugar extraordinário e interes­sante. Não há nada que se lhe assemelhe por aí. As pessoas são todas loucas, os outros animais são todos loucos, a terra é louca, a própria Natureza é louca. O homem é uma curiosidade mara­vilhosa. Quando está no seu melhor, é uma espécie de anjo ni­quelado de baixa categoria; no seu pior, é inqualificável, inimagi­nável; e, tudo considerado e a toda a hora, é um sarcasmo. Apesar disso, intitula-se, de modo lisonjeiro e com toda a since­ridade, a «mais nobre obra de Deus». É a verdade, isto que vos conto. E esta ideia não é novidade nele: ele tem-na discutido ao longo dos tempos e acreditado nela. Acreditado nela, e não en­controu ninguém em toda a sua raça que se risse disso.

 

Além disso — se me é permitido obrigar-vos a mais este es­forço —, ele pensa que é o preferido do Criador. Acredita que o Criador tem orgulho nele, acredita até que o Criador o ama — que tem uma paixão por ele; que passa noites em claro a admirá-lo; sim, e que olha por ele e o mantém livre de sarilhos. Ele reza ao Criador e pensa que Ele o ouve. Não é uma ideia bizarra? Preenche as suas preces com toscas e corriqueiras e floridas lisonjas ao Criador, e pensa que Ele está sentado a soltar suspiros maviosos ao ouvir estas extravagâncias e que as aprecia. Reza por ajuda, e favor, e protecção, todos os dias; e fá-lo com espe rança e confiança, também, a despeito de nenhuma das suas pre­ces ter sido alguma vez atendida. A afronta diária, a derrota diá­ria, não o desencorajam, ele continua a rezar como dantes. Há algo de quase encantador nesta perseverança. Tenho de vos obrigar ainda a um esforço adicional: ele pensa que vai para o céu!

 

Tem professores assalariados que lhe dizem isso mesmo. Também lhe dizem que há um inferno, de fogo eterno, e que é para lá que ele irá, se não cumprir os Mandamentos. O que são os Mandamentos? São uma curiosidade. Falar-vos-ei deles em breve.

 

(in Cartas da Terra, Bertrand Editora)

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 14:00
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Terça-feira, 18 de Janeiro de 2011

Cartas da Terra - por Mark Twain

 

 

Coordenação da Augusta Clara de Matos

 

 

Boas e Más Memórias

 

 

 

 

 

 

 

 

por Mark Twain


 

 

Noé e a sua família foram salvos — se é que se pode chamar a isso uma vantagem. Pus o se aí no meio pela razão de que nun­ca houve uma pessoa inteligente com sessenta anos de idade que aquiescesse a viver novamente a sua vida. A sua ou a de outra pessoa.

 

A família foi salva, sim, mas não estava cómoda, pois estavam todos cheios de micróbios. Cheios até às orelhas; gor­dos deles; obesos deles; distendidos como balões. Era um estado desagradável, mas não podia ser evitado, já que era preciso salvar micróbios suficientes para abastecer as futuras raças do homem com doenças desoladoras, e não havia senão oito pessoas a bor­do para servirem de hotéis para eles. Os micróbios eram de lon­ge a parte mais importante da carga da Arca, e a parte em rela­ção à qual o Criador se sentia mais ansioso e com a qual estava mais enfeitiçado. Tinham de ter boa alimentação e quartos agra­dáveis.

 

Havia germes tifóides, e germes da cólera, e germes da hidrofobia, e germes do trismo, e germes da consumpção, e ger­mes da peste negra, e algumas centenas de outros aristocratas, criações especialmente preciosas, áureas portadoras do amor de Deus pelo homem, bem-aventuradas dádivas do enfeitiçado para os Seus filhos — e todos eles tinham de ser sumptuosamente alojados e ricamente recebidos. Estavam instalados nos locais de melhor qualidade que os interiores da Família podiam fornecer: nos pulmões, no coração, no cérebro, nos rins, no sangue, nas tripas. Sobretudo nas tripas. O grande intestino era o ponto de reunião favorito. Era aí que se juntavam, aos milhares de mi­lhões, e que trabalhavam e se alimentavam, e se enroscavam, e cantavam hinos de louvor e acção de graças — e à noite, quan­do tudo ficava silencioso, podia ouvir-se o seu suave murmúrio. O intestino grosso era efectivamente o seu céu. Atulharam-no por completo — fizeram com que ficasse rígido como o anel de um tubo de gás. Sentiam orgulho nisto. O seu principal hino fa­zia-lhe uma contentada referência:

 

Prisão de ventre, oh, prisão de ventre

O som rejubilante proclamará

Até que a mais remota entranha do homem

Louve o nome do seu Criador.

 

Os incómodos proporcionados pela Arca eram muitos e va­riados. A Família tinha de viver mesmo na presença dos múlti­plos animais e respirar o tormentoso fedor que eles faziam, e ser emouquecida dia e noite pelo estrépito trovejante que os seus rugidos e guinchos produziam — e, a juntar a estes intoleráveis incómodos, era um sítio especialmente penoso para as senhoras, que não podiam olhar em nenhuma direcção sem verem uns quantos milhares de criaturas envolvidas em tarefas de multipli­cação e satisfação. E depois havia as moscas. A praga voava para todo o lado e perseguia a Família o dia inteiro. Eram os primei­ros animais a levantar-se, de manhã, e os últimos a deitar-se, à noite. Mas não podiam ser mortos, não podiam ser feridos, eram sagrados, a sua origem era divina, eram os animais de esti­mação especiais do Criador, os seus mais-que-tudo.

 

Em breve, as outras criaturas começaram a ser distribuídas aqui e ali sobre a Terra, dispersas: os tigres foram para a índia, os leões e os elefantes para o deserto vacante e os lugares secretos da selva, as aves para as ilimitadas regiões de espaço vazio, os insectos para um ou para outro clima, consoante a natureza e as necessidades —, mas a mosca? Ela não tem nacionalidade - todos os climas são a sua casa, todo o globo é a sua provín­cia, todas as criaturas que respiram são a sua presa, e para todas elas ela é um flagelo e um inferno.

 

 

publicado por Carlos Loures às 14:00

editado por Luis Moreira às 12:16
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