Quinta-feira, 2 de Dezembro de 2010
Júlio Mota, Luís Lopes, Margarida Antunes*
Conclusão — Colocar em debate a política económica, traçar vias para refundar a união europeia
A Europa tem-se construído, desde há três décadas, numa base tecnocrática, excluindo as populações do debate da política económica. A doutrina neoliberal, que se baseia na hipótese de eficiência dos mercados financeiros, hoje indefensável, deve ser abandonada. É necessário reabrir o espaço das políticas possíveis e discutir propostas alternativas e consistentes que limitem o poder da finança e organizem a harmonização e a melhoria do sistema económico e social na Europa. Isto requer a inter-mutualidade de importantes recursos orçamentais, libertados pela institucionalização de uma fiscalidade europeia fortemente redistributiva na Europa. É também necessário libertar os Estados do estrangulamento dos mercados financeiros. Só assim é que o projecto de construção europeia poderá esperar reencontrar a legitimidade popular e democrática que hoje lhe falta.
Não é, obviamente, realista imaginar que 27 países vão decidir, ao mesmo tempo, fazer uma tal ruptura nos métodos e nos objectivos da construção europeia. A Comunidade Económica Europeia começou com seis países: a refundação da União Europeia passará, também, inicialmente, por um acordo entre um pequeno número de países dispostos a explorar vias alternativas. À medida que se tornem evidentes as consequências desastrosas das políticas adoptadas hoje, o debate sobre alternativas aumentará na Europa. Lutas sociais e mudanças políticas ocorrerão a um ritmo diferente de país para país. Haverá governos a tomar decisões inovadoras. Aqueles que o desejarem deverão adoptar uma cooperação reforçada, para tomarem medidas ousadas em matéria de regulamentação financeira, de política fiscal ou social. Através de propostas concretas estenderão a mão aos outros países para que estes se juntem ao movimento.
É por isso que nos parece importante expor e colocar em debate, desde já, as grandes linhas das políticas económicas alternativas que tornarão possível a refundação da construção europeia.
*Docentes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Quarta-feira, 1 de Dezembro de 2010
Júlio Mota, Luís Lopes e
Margarida Antunes *
FALSA EVIDÊNCIA N.º 8: A UNIÃO EUROPEIA DEFENDE O MODELO SOCIAL EUROPEUA construção europeia apresenta-se como uma experiência ambígua. Duas visões da Europa coexistem, sem se atreverem a confrontar-se abertamente. Para os social-democratas a Europa deveria ter como objectivo a promoção do modelo social europeu, fruto do compromisso social do pós-Segunda Guerra Mundial, com a sua protecção social, os seus serviços públicos e as suas políticas industriais. Deveria ser um baluarte contra a globalização liberal, uma forma de proteger, manter e fazer avançar este modelo. A Europa deveria defender uma visão própria da organização da economia mundial, a globalização regulada por instituições de governação mundial. Deveria permitir aos países-membros manterem um nível elevado de despesas públicas e de redistribuição, protegendo a sua capacidade de as financiar através da harmonização fiscal sobre as pessoas, sobre as empresas e sobre os rendimentos de capital.
Todavia, a Europa não quis assumir a sua especificidade. A visão que prevalece actualmente em Bruxelas e na maioria dos governos nacionais é, em vez disso, a de uma Europa liberal, cujo objectivo é o de adaptar as empresas europeias às exigências da globalização: a construção europeia é uma oportunidade para pôr em causa o modelo social europeu e para desregulamentar a economia. A prevalência do direito europeu da concorrência sobre as regulamentações nacionais e sobre os direitos sociais no Mercado Único permite introduzir maior concorrência nos mercados de produtos e serviços, diminuir a importância dos serviços públicos e organizar a concorrência entre os trabalhadores europeus. A concorrência fiscal e social permitiu reduzir os impostos, nomeadamente sobre os rendimentos de capitais e empresas (as “bases móveis”) e permitiu fazer pressão sobre as despesas sociais. Os tratados garantem quatro liberdades fundamentais: a livre circulação das pessoas, bens, serviços e capitais. Mas, longe de se limitar ao mercado interno, a liberdade de circulação de capitais tem sido dada aos investidores do mundo inteiro, submetendo assim o tecido produtivo aos constrangimentos da valorização do capital internacional. A construção europeia apresenta-se como uma forma de impor reformas neoliberais aos seus povos.
A organização da política macroeconómica (independência do Banco Central Europeu face ao poder político, o Pacto de Estabilidade) é marcada pela desconfiança para com os governos democraticamente eleitos. Trata-se de privar os países de qualquer autonomia, tanto em termos de política monetária, como em termos de política orçamental. O equilíbrio orçamental deve ser alcançado, estando banidas quaisquer políticas discricionárias de relançamento da economia, para deixar funcionar unicamente os “estabilizadores automáticos”. Nenhuma política económica conjuntural comum é posta em prática ao nível do espaço europeu, nenhum objectivo comum é definido em termos de crescimento e de emprego. As diferenças de situação entre os países não são tidas em conta, porque o Pacto não tem em conta nem as taxas de inflação nem os défices externos nacionais; os objectivos das finanças públicas não têm em conta as situações económicas nacionais.
As instâncias europeias têm tentado impulsionar reformas estruturais (pelas Grandes Orientações de Políticas Económicas, pelo Método Aberto de Coordenação, ou pela Agenda de Lisboa) com um sucesso muito desigual. O seu modo de elaboração não foi democrático nem mobilizador, a sua orientação liberal não correspondia necessariamente às políticas decididas a nível nacional, dada a relação de forças em cada país. Essa orientação não teve desde logo um sucesso brilhante que a teria legitimado. O movimento de liberalização económica tem sido posto em causa (o falhanço da directiva Bolkestein); alguns países têm tentado nacionalizar a sua política industrial, enquanto a maioria está contra a europeização das suas políticas fiscais e sociais. A Europa social tem-se mantido uma palavra vazia, só a Europa da concorrência e da finança é que se tem realmente afirmado.
Para que a Europa possa promover verdadeiramente um modelo social europeu, colocamos a debate duas medidas:
Medida n.º 16: Pôr em causa a livre circulação de capitais e de mercadorias entre a União Europeia e o resto do mundo, através da negociação de acordos bilaterais ou multilaterais, se necessário.
Medida n.º 17: Em vez da política de concorrência, fazer da “harmonização no progresso” o princípio norteador da construção europeia. Estabelecer objectivos comuns obrigatórios tanto em matéria de progresso social como em matéria de macroeconomia (as GOPS, grandes orientações de política social).
FALSA EVIDÊNCIA N.º 9: O EURO É UM ESCUDO CONTRA A CRISEO euro deveria ser um factor de protecção contra a crise financeira global. No fim de contas, a eliminação de toda e qualquer incerteza sobre as taxas de câmbio entre as moedas europeias eliminou um dos principais factores de instabilidade. No entanto, não foi nada assim: a Europa foi mais duramente e mais prolongadamente afectada pela crise do que o resto do mundo. Isto deve-se às modalidades específicas da construção da união monetária.
Depois de 1999, a zona do euro registou um crescimento relativamente medíocre e um aprofundamento do processo de divergência entre os Estados-Membros, em termos de crescimento, inflação, desemprego e dos desequilíbrios externos. O quadro da política económica da zona euro, que tende a impor políticas macroeconómicas similares para todos os países-membros, mesmo que estes estejam em situações muito diferenciadas, alargou as disparidades de crescimento entre os Estados-Membros. Na maioria dos países, especialmente nos maiores, a introdução do euro não provocou a prometida aceleração do crescimento. Para outros, tem havido crescimento, mas ao preço de desequilíbrios dificilmente sustentáveis. A rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, permitiu fazer incidir sobre o trabalho todo o peso dos ajustamentos empreendidos. Promoveu-se a flexibilidade e a austeridade salarial, reduziu-se a parcela dos salários no rendimento total, aumentaram as desigualdades.
Esta corrida à minimização da dimensão social foi ganha pela Alemanha, que foi capaz de obter grandes excedentes comerciais, à custa dos seus vizinhos e, sobretudo, dos seus próprios assalariados, impondo uma redução do custo do trabalho e dos benefícios sociais, o que lhe conferiu uma vantagem comercial relativamente aos seus vizinhos, que não puderam tratar tão duramente os seus trabalhadores. Os excedentes comerciais alemães pesam [negativamente] sobre o crescimento dos outros países. Os défices orçamentais e comerciais de uns não são mais do que a contrapartida dos excedentes dos outros... Os Estados-Membros não foram capazes de definir uma estratégia coordenada.
A zona euro deveria ter sido menos atingida do que os Estados Unidos ou o Reino Unido por esta crise financeira. As famílias estão claramente muito menos envolvidas nos mercados financeiros e estes são menos sofisticados. As finanças públicas estavam em melhor situação, o défice do conjunto de todos os países da zona euro era de 0,6% do PIB, em 2007, contra quase 3% nos Estados Unidos, no Reino Unido ou no Japão. Mas a zona euro sofria um agravamento dos seus desequilíbrios: os países do Norte (Alemanha, Áustria, Holanda, Países Escandinavos) travavam os salários e a procura interna e acumulavam excedentes externos, enquanto os países do Sul (Espanha, Grécia, Irlanda) registavam um forte crescimento, impulsionado por taxas de juro baixas em relação à taxa de crescimento, ao mesmo tempo que acumulavam défices externos.
Embora a crise financeira tenha tido origem nos Estados Unidos, estes tentaram fazer uma verdadeira política de relançamento orçamental e monetário e, ao mesmo tempo, iniciaram um movimento de reforço da regulação financeira. A Europa, pelo contrário, não foi capaz de empreender uma política suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental foi de cerca de 1,6 pontos percentuais do PIB na zona euro, 3,2 pontos no Reino Unido e 4,2 pontos nos Estados Unidos. A queda da produção devido à crise foi nitidamente mais forte na zona euro do que nos Estados Unidos. O agravamento dos défices na zona euro foi sobretudo inelutável e não o resultado de uma política activa.
Entretanto, a Comissão continuou a accionar procedimentos por défice excessivo contra os Estados-Membros, de tal modo que, em meados de 2010, praticamente todos os Estados da zona euro estavam nessa situação. Exigiu aos Estados-Membros que se empenhassem em voltar, antes de 2013 ou de 2014, a valores abaixo dos 3%, independentemente da evolução económica. As autoridades europeias continuaram a clamar por políticas salariais restritivas e que se pusessem em causa os sistemas públicos de pensões e de saúde, com o risco, evidentemente óbvio, de afundar o continente numa profunda depressão e de aumentar as tensões entre os países. Esta ausência de coordenação e, fundamentalmente, a ausência de um verdadeiro orçamento da União Europeia que possibilitasse uma solidariedade efectiva entre os Estados-Membros incentivaram os operadores financeiros a afastar-se do euro e mesmo a especular abertamente contra ele.
Para que o euro possa realmente proteger os cidadãos europeus, em caso de crise, colocamos em debate duas medidas:
Medida n.º 18: Assegurar uma efectiva coordenação de políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus.
Medida n.º 19: Compensar os desequilíbrios de pagamentos na Europa, através de um Banco de Regularização de Pagamentos (organizando os empréstimos entre os diversos países europeus).
Medida n.º 20: Se a crise do euro levar ao seu estilhaçamento, e contando com a possível institucionalização de um orçamento europeu (ver abaixo), criar um sistema monetário intra-europeu (moeda comum do tipo “bancor”), que organize a reabsorção dos desequilíbrios das balanças comerciais no interior da Europa.
FALSA EVIDÊNCIA N.º 10: A CRISE GREGA POSSIBILITOU FINALMENTE AVANÇAR PARA UM GOVERNO ECONÓMICO E PARA UMA VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIAA partir de meados de 2009, os mercados financeiros começaram a especular sobre a dívida dos países europeus. Globalmente, a forte subida das dívidas e dos défices públicos à escala mundial não resultou (ainda) em aumentos das taxas de longo prazo: os operadores financeiros acreditam que os bancos centrais vão manter durante muito tempo as taxas monetárias reais em valores muito próximos de zero, e que não há, nem o perigo de inflação, nem o risco de um grande país entrar em situação de incumprimento das suas dívidas. Mas os especuladores viram bem as falhas na organização da zona euro. Enquanto os governos de outros países desenvolvidos podem sempre ser financiados pelo respectivo Banco Central, os países da zona euro renunciaram a esta opção e estão totalmente dependentes dos mercados para financiar os seus défices. Em resultado, a especulação pôde desencadear-se sobre os países mais frágeis da zona: Grécia, Espanha, Irlanda.
As autoridades europeias e os governos nacionais têm sido lentos na resposta, não querendo dar a impressão de que os países-membros tinham direito a apoio ilimitado dos seus parceiros, e querendo castigar a Grécia, culpada de ter escondido — com a ajuda do banco Goldman Sachs — a dimensão dos seus défices. No entanto, em Maio de 2010, o BCE e os países-membros tiveram de criar de emergência um Fundo de Estabilização, para sinalizar aos mercados que dariam aquele apoio ilimitado aos países ameaçados. Em troca, estes tiveram que anunciar programas de austeridade orçamental sem precedentes, que os vai condenar a um abrandamento da actividade económica a curto prazo e a um longo período de recessão. Sob pressão do FMI e da Comissão Europeia, a Grécia deve privatizar serviços públicos e a Espanha deve flexibilizar o mercado de trabalho. Mesmo a França e a Alemanha, que não são objecto de especulação, anunciaram medidas restritivas.
No entanto, a procura não é, de forma alguma, globalmente excessiva na Europa. A situação orçamental é melhor do que a dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, possibilitando margem de manobra orçamental. É necessário reabsorver os desequilíbrios de forma coordenada: os países do norte e do centro da Europa, com excedentes comerciais, devem empreender políticas expansionistas — salários mais elevados, mais despesas sociais... — para compensar as políticas restritivas dos países do Sul. A política orçamental não deve ser globalmente restritiva na zona euro enquanto a economia europeia não se aproximar, a um ritmo satisfatório, da situação de pleno emprego.
Mas os defensores da política orçamental automática e restritiva na Europa estão hoje, infelizmente, com mais força. A crise grega permite fazer esquecer as origens da crise financeira. Aqueles que concordaram em apoiar financeiramente os países do Sul querem impor, em troca, um endurecimento do Pacto de Estabilidade. A Comissão Europeia e a Alemanha querem impor a todos os países-membros que inscrevam nas respectivas Constituições o objectivo de equilíbrio orçamental e que as respectivas políticas orçamentais sejam controladas por comissões de peritos independentes. A Comissão Europeia quer impor aos países uma longa cura de austeridade, para que a dívida pública volte a ser inferior a 60% do PIB. Se há um passo rumo a um governo económico europeu, é para um governo que, em vez de afrouxar o grilhão da finança, vai impor austeridade e um aprofundamento das “reformas” estruturais, em detrimento da solidariedade social em cada país e entre os diversos países.
A crise proporciona às elites financeiras e aos tecnocratas europeus a tentação para porem em prática a “estratégia de choque”, aproveitando a crise para radicalizar ainda mais a agenda neoliberal. Mas essa política tem poucas possibilidades de sucesso:
— A redução da despesa pública vai comprometer os esforços necessários a nível europeu para apoiar as despesas orientadas para o futuro (investigação, educação, política familiar), para ajudar a indústria europeia a manter e a investir em áreas de futuro (economia verde).
— A crise vai permitir a imposição de cortes profundos nas despesas sociais, objectivo incansavelmente perseguido pelos defensores do neoliberalismo, com o risco de comprometer a coesão social, de reduzir a procura efectiva e de pressionar as pessoas a pouparem, para garantir as suas pensões de reforma e os cuidados de saúde, e a colocarem as suas poupanças junto das instituições financeiras, os responsáveis pela crise.
— Os governos e as instâncias europeias recusam-se a organizar a harmonização fiscal, que permitiria o necessário aumento dos impostos sobre o sector financeiro, sobre os grandes valores patrimoniais e sobre os rendimentos elevados.
— Os países europeus instauram, de forma duradoura, políticas orçamentais restritivas, que pesam [negativamente] sobre o crescimento. As receitas fiscais vão cair. Deste modo, os saldos das contas públicas nunca poderão melhorar, os rácios da dívida pública irão degradar-se e os mercados não serão acalmados.
— Os países europeus, devido à diversidade das suas culturas políticas e sociais, não foram todos capazes de se sujeitar à disciplina de ferro imposta pelo Tratado de Maastricht, e não serão todos capazes de se sujeitar ao seu reforço actualmente instituído. O risco de desencadear uma dinâmica generalizada de os países se fecharem sobre si próprios é real.
Para avançar para um verdadeiro governo económico e uma verdadeira solidariedade europeia, colocamos duas medidas em debate:
Medida n.º 21: Instituir uma fiscalidade europeia (imposto sobre o carbono, imposto sobre os lucros...) e um verdadeiro orçamento europeu, para apoiar a convergência das economias e para caminhar no sentido da igualdade de condições de acesso aos serviços públicos e sociais nos diversos Estados-Membros, com base nas melhores práticas.
Medida n.º 22: Lançar um vasto plano a nível europeu, financiado por subscrição junto dos particulares, com taxa de juro baixa mas garantida e/ou por criação monetária pelo BCE, para empreender a reconversão ecológica da economia europeia.
* Docentes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Terça-feira, 30 de Novembro de 2010
(Continuação)
Júlio Mota, Luís Lopes e
Margarida Antunes*FALSA EVIDÊNCIA N.º 1: OS MERCADOS FINANCEIROS SÃO EFICIENTES
Hoje, todos os observadores constatam um facto: o papel fundamental que desempenham os mercados financeiros no funcionamento da economia. É o resultado de uma longa evolução, que começou no final dos anos setenta. Qualquer que seja a forma de a analisar, esta evolução marca uma ruptura clara, tanto quantitativa como qualitativa, em relação às décadas anteriores. Sob pressão dos mercados financeiros, a regulação geral do capitalismo modificou-se profundamente, dando origem a uma nova forma de capitalismo, que alguns apelidaram de “capitalismo patrimonial”, de “capitalismo financeiro” ou ainda de “capitalismo neoliberal”.
Estas mutações encontraram a sua justificação teórica no postulado da eficiência informacional dos mercados financeiros. De facto, segundo este postulado, importa desenvolver os mercados financeiros, garantir que eles possam operar tão livremente quanto possível, porque são o único mecanismo de afectação eficiente do capital. As políticas obstinadamente levadas a cabo ao longo dos últimos trinta anos estão em conformidade com esta recomendação. Trata-se de criar um mercado financeiro integrado a nível mundial, em que todos os agentes (empresas, famílias, Estados, instituições financeiras) podem negociar qualquer tipo de valor mobiliário (acções, obrigações, dívidas, derivados, divisas) para qualquer maturidade (longo prazo, médio prazo, curto prazo). Os mercados financeiros têm vindo a assemelhar-se aos mercados “sem fricção” dos manuais: o discurso económico conseguiu recriar a realidade. Sendo os mercados cada vez mais “perfeitos”, no sentido da teoria económica dominante, os analistas acreditaram que o sistema financeiro estava agora muito mais estável do que no passado. A “grande moderação” — este período de crescimento económico sem aumento de salários que os Estados Unidos viveram entre 1990 e 2007 — pareceu confirmá-lo.
Ainda hoje, o G20 continua a defender a ideia de que os mercados financeiros são o mecanismo adequado para a afectação de capital. A primazia e a integridade dos mercados financeiros continuam a ser os objectivos finais da sua nova regulação financeira. A crise não é interpretada como um resultado inevitável da lógica da desregulamentação dos mercados, mas sim como uma consequência da desonestidade e da irresponsabilidade de alguns agentes financeiros, mal enquadrados pelos poderes públicos.
No entanto, a crise encarregou-se de demonstrar que os mercados não são eficientes e que também não conduzem à afectação eficiente do capital. As consequências desta realidade factual são imensas, em matéria de regulação e de política económica. A teoria da eficiência assenta na ideia de que os investidores procuram e encontram a informação mais fiável possível sobre o valor dos projectos alternativos que disputam entre si o financiamento. A acreditar nesta teoria, o preço que se estabelece no mercado reflecte as decisões dos investidores e sintetiza toda a informação disponível: constitui, portanto, uma boa estimativa do efectivo valor dos títulos. Ora, pressupõe-se que este valor sintetize toda a informação necessária para orientar a actividade económica e, deste modo, a vida social. Assim, o capital é investido nos projectos mais rentáveis e deixa os que são menos eficientes. Esta é a ideia central desta teoria: a concorrência financeira gera preços justos, os quais constituem sinais fiáveis para os investidores, orientando eficazmente o desenvolvimento económico.
Mas a crise veio confirmar os vários trabalhos críticos que tinham posto em causa esta ideia. A concorrência financeira não gera necessariamente preços justos. Pior, a concorrência financeira é muitas vezes desestabilizadora e leva a movimentos de preços excessivos e irracionais, as bolhas financeiras especulativas.
O principal erro da teoria da eficiência dos mercados financeiros consiste em transpor para os produtos financeiros a teoria usada para os mercados de bens comuns. Nestes mercados, a concorrência é parcialmente auto-reguladora devido ao que se chama a “lei” da oferta e da procura: quando o preço de um bem sobe, os produtores aumentam a oferta, enquanto os compradores reduzem a procura; em consequência, o preço irá descer e chegar perto do seu nível de equilíbrio. Por outras palavras, quando o preço de um bem sobe, as forças de mercado tendem a impedir e depois a inverter esse aumento. A concorrência produz o que se chama “feedbacks negativos”, ou seja, forças de repercussão em sentido oposto, na direcção oposta à do choque inicial. A ideia de eficiência decorre de uma transposição directa deste mecanismo para os mercados financeiros.
Ora, para estes últimos, a situação é muito diferente. Quando o preço aumenta, é comum observar-se, não uma diminuição, mas um aumento na procura! Na verdade, o aumento nos preços significa uma rentabilidade maior para os detentores dos títulos, devido às mais-valias realizadas. O aumento de preços atrai assim novos compradores, o que reforça ainda mais o aumento inicial. As promessas de bónus estimulam os traders a reforçar ainda mais este movimento. Até se verificar um incidente, imprevisível mas inevitável, que provoque a reversão das expectativas e o crash. Este fenómeno, digno dos rebanhos de carneiros panúrgicos, é um processo de “feedbacks positivos” que agrava os desequilíbrios. É a bolha especulativa: um aumento cumulativo de preços que se auto-alimenta. Este processo não produz preços justos, mas, antes pelo contrário, produz preços inadequados.
A posição preponderante que os mercados financeiros ocupam não pode assim conduzir a nenhuma eficiência. Pior ainda, é uma fonte permanente de instabilidade, como é evidenciado pela série ininterrupta de bolhas especulativas conhecidas desde há 20 anos: Japão, Sudeste Asiático, Internet, Mercados Emergentes, Imobiliário, Titularização. A instabilidade financeira traduz-se desta forma nas fortes flutuações das taxas de câmbio e das Bolsas, claramente sem qualquer relação com os fundamentais da economia. Esta instabilidade, nascida no sector financeiro, propaga-se à economia real através de vários mecanismos.
Para reduzir a ineficiência e a instabilidade dos mercados financeiros, sugerimos quatro medidas:
Medida n.º 1: Compartimentar estritamente os mercados financeiros e as actividades dos agentes financeiros, proibir aos bancos especularem por sua própria conta, para evitar a propagação de bolhas especulativas e crashs.
Medida n.º 2: Reduzir a liquidez e a especulação desestabilizadora, através do controlo dos movimentos de capitais e de impostos sobre as transacções financeiras.
Medida n.º 3: Restringir as transacções financeiras às que correspondam às necessidades da economia real (por exemplo, CDS apenas aos detentores de títulos segurados, etc.).
Medida n.º 4: Estabelecer limites máximos para a remuneração dos traders.
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FALSA EVIDÊNCIA N.º 2: OS MERCADOS FINANCEIROS FAVORECEM O CRESCIMENTO ECONÓMICOA integração financeira alcandorou o poder da finança ao seu zénite, na medida em que unificou e centralizou a propriedade capitalista à escala global. Agora é a finança que determina as normas de rentabilidade exigidas pelo conjunto de todos os capitais. O projecto era o de a finança de mercado substituir o sistema de financiamento bancário dos investimentos. Projecto que aliás falhou, uma vez que hoje, globalmente, são as empresas que financiam os accionistas e não o contrário. A governança das grandes empresas foi, no entanto, profundamente transformada para corresponder às normas de rentabilidade do mercado. Com a ascensão dominante do valor accionista, instituiu-se uma nova concepção da empresa e da gestão, pensadas como estando ao serviço exclusivo do accionista. A ideia de interesse próprio comum dos diferentes interessados na vida da empresa desapareceu. Os gestores das empresas cotadas na Bolsa têm agora a principal missão de satisfazer o desejo de enriquecimento dos accionistas e nada mais. Consequentemente, deixam eles próprios de ser assalariados, como mostra bem o aumento desmesurado das respectivas remunerações. Como sugere a teoria do “agenciamento”, trata-se de fazer com que os interesses dos gestores passem a estar em convergência com os dos accionistas.
Uma ROE (“Return on Equity” ou rentabilidade dos capitais próprios) de 15% a 25% passa a ser a norma imposta pelo poder da finança às empresas e aos assalariados. A liquidez é o instrumento deste poder, permitindo a todo o momento aos capitais não satisfeitos de mudarem para outras paragens. Confrontados com este poder, os assalariados, tal como a soberania política, surgem, pela sua fragmentação, em situação de inferioridade. Esta situação de desequilíbrio leva a exigências de lucros irrazoáveis, porque definham o crescimento económico e conduzem a um aumento contínuo das desigualdades de rendimentos. Por um lado, as exigências de lucros inibem fortemente o investimento: quanto mais elevada for a rentabilidade exigida, mais difícil é encontrar projectos que sejam suficientemente rentáveis para a satisfazer. As taxas de investimento continuam a ser historicamente fracas na Europa e nos Estados Unidos. Por outro lado, esses requisitos provocam uma pressão constante sobre a baixa dos salários e sobre o poder de compra, o que não é favorável à procura. A travagem simultânea do investimento e do consumo conduzem a um baixo crescimento e a um desemprego endémico. Os países anglo-saxónicos têm procurado opor-se a esta tendência através do aumento crescente do endividamento das famílias e através de bolhas financeiras especulativas, que criam uma riqueza fictícia, permitindo o crescimento do consumo sem salários, mas que acabam por redundar em crashs.
Para ultrapassar os efeitos negativos dos mercados financeiros sobre a actividade económica, colocamos em debate três medidas:
Medida n.º 5: Reforçar significativamente os contra-poderes nas empresas, para obrigar as direcções a ter em conta os interesses de todas as partes.
Medida n.º 6: Aumentar significativamente a imposição fiscal sobre os rendimentos muito elevados, para desencorajar a corrida a rendimentos insustentáveis.
Medida n.º 7: Reduzir a dependência das empresas face aos mercados financeiros, desenvolvendo uma política pública de crédito (taxas preferenciais para as actividades prioritárias no plano social e ambiental)
FALSA EVIDÊNCIA N.º 3: OS MERCADOS AJUÍZAM BEM A SOLVABILIDADE DOS ESTADOS
Segundo os defensores da eficiência dos mercados financeiros, os operadores do mercado têm em conta a situação objectiva das finanças públicas para avaliar o risco de subscrição de um empréstimo ao Estado. Tomemos o caso da dívida grega: os operadores financeiros e os políticos decidem exclusivamente na base de avaliações financeiras para avaliar a situação. Assim, quando a taxa de juro exigida à Grécia aumentou para mais de 10%, todos concluíram que o risco de incumprimento estava próximo: se os investidores exigem um tal prémio de risco, é porque o perigo é extremo.
Trata-se de um profundo erro, quando se conhece a verdadeira natureza da avaliação pelos mercados financeiros. Não sendo os mercados financeiros eficientes, geram muito frequentemente preços totalmente dissociados dos “fundamentais económicos”. Nestas circunstâncias, não é razoável confiar exclusivamente nas avaliações financeiras para julgar uma determinada situação. Avaliar o valor de um título financeiro não é uma operação que se compare a medir uma grandeza objectiva, como por exemplo, a estimar o peso de um objecto. Um título financeiro é um direito sobre rendimentos futuros: para o avaliar é necessário prever o que será este futuro. Trata-se de uma questão de julgar, não de medida objectiva, porque no momento t, o futuro não está de forma nenhuma predeterminado. Nas salas dos mercados financeiros, trata-se só do que os operadores imaginam o que vai ser. O preço de um activo financeiro resulta de um acto de julgar, de uma crença, de uma aposta no futuro: não há nenhuma garantia de que os juízos feitos pelos mercados financeiros tenham qualquer superioridade sobre outras formas de julgar.
Sobretudo, a avaliação financeira não é neutra: afecta o objecto medido, compromete e constrói o futuro que ela própria imagina. Assim, as agências de rating desempenham um papel importante na determinação das taxas de juro nos mercados de obrigações, através da atribuição de notações de risco marcadas por forte subjectividade e, até mesmo, pelo desejo de alimentar a instabilidade, fonte de lucros especulativos. Ao degradar a notação de um Estado, estas agências aumentam a taxa de juro cobrada pelos actores financeiros para adquirir os títulos da dívida pública desse Estado e, consequentemente, aumentam por aí mesmo o risco de falência que anunciaram.
Para reduzir a influência da psicologia dos mercados no financiamento dos Estados, colocamos em debate duas medidas:
Medida n.º 8: As agências de rating não devem ser autorizadas a apoiar arbitrariamente a elevação das taxas de juro nos mercados das obrigações pela degradação da notação financeira de um Estado: dever-se-ia regulamentar as suas actividades, exigindo que as notações resultem de um cálculo económico transparente.
Medida n.º 8bis: Libertar os Estados da ameaça dos mercados financeiros, garantindo a recompra dos títulos públicos por parte do BCE.
FALSA EVIDÊNCIA N.º 4: A FORTE E RÁPIDA SUBIDA DA DÍVIDA PÚBLICA RESULTA DE UM EXCESSO DE DESPESAMichel Pebereau, um dos “padrinhos” da banca francesa, descrevia, em 2005, num desses relatórios oficiais ad hoc, uma França sufocada pela dívida pública e a sacrificar as gerações futuras, ao permitir-se despesas sociais descomunais. O Estado a endividar-se como um pai alcoólico que bebe acima das suas posses: esta é a visão normalmente propagandeada pela maioria dos editorialistas. A recente explosão da divida pública na Europa e no mundo deve-se, porém, a uma outra coisa: aos planos de salvamento da finança e, especialmente, à recessão causada pela crise bancária e financeira, que começou em 2008: o défice público médio na zona euro era apenas de 0,6% do PIB em 2007, mas a crise fê-lo passar para 7% em 2010. A dívida pública aumentou, ao mesmo tempo, de 66% para 84% do PIB.
No entanto, a subida da dívida pública, em França e em muitos países europeus, foi inicialmente moderada e anterior a esta recessão: a subida tem origem, fundamentalmente, não numa tendência ascendente das despesas públicas — já que estas, em proporção do PIB, têm, pelo contrário, níveis estáveis ou mesmo em declínio na UE, desde o início dos anos 90 — mas sim na erosão das receitas públicas, devido ao fraco crescimento económico nesse período e à contra-revolução fiscal levada a cabo pela maioria dos governos nestes últimos vinte e cinco anos. Em termos de mais longo prazo, a contra-revolução fiscal tem continuamente alimentado o empolamento do volume da dívida, de recessão em recessão. Assim, em França, um recente relatório parlamentar calculou em cerca de 100 mil milhões de euros o custo, em 2010, das reduções de impostos feitas entre 2000 e 2010, mesmo sem incluir as isenções das contribuições sociais (30 mil milhões) e outras “despesas fiscais”. Na ausência de harmonização fiscal, os Estados europeus têm-se envolvido numa concorrência fiscal, baixando os impostos sobre as empresas, sobre as pessoas de altos rendimentos e sobre os grandes valores patrimoniais, as grandes fortunas. Mesmo que o peso relativo destas componentes varie de país para país, a subida quase geral dos défices públicos e dos rácios da dívida na Europa, no decurso destes últimos trinta anos, não resulta principalmente de um descontrolo condenável da despesa pública. Um diagnóstico que, obviamente, abre outros caminhos para além da sempiterna redução da despesa pública.
Para restaurar um debate público informado sobre a origem da dívida e, portanto, sobre os meios para a superar, colocamos em debate uma proposta:
Medida n.º 9: Realizar uma auditoria pública e de cidadania sobre a dívida pública, para determinar a sua origem e conhecer a identidade dos principais detentores de títulos de dívida e quais os montantes detidos.
FALSA EVIDÊNCIA N.º 5: É NECESSÁRIO REDUZIR AS DESPESAS PARA REDUZIR A DÍVIDA PÚBLICAMesmo que o aumento da dívida pública resultasse em parte do aumento das despesas públicas, reduzir as despesas não contribuiria necessariamente para a solução. Porque a dinâmica da dívida pública pouco tem a ver com a de uma família: a macroeconomia não é redutível à economia doméstica. A dinâmica da dívida depende na sua grande generalidade de vários factores: do nível do défice primário, mas também da diferença entre a taxa de juro e a taxa de crescimento nominal da economia.
Pois, se esta última taxa for inferior à taxa de juro, a dívida vai aumentar mecanicamente por causa do "efeito bola de neve": o montante dos juros explode e o défice total (incluindo os juros da dívida) também. Assim, no início de 1990, a política do franco forte, conduzida por Beregovoy, e mantida apesar da recessão de 1993-94, levou a uma taxa de juro mais elevada que a taxa de crescimento, o que explica o aumento da dívida pública da França durante esse período. É o mesmo mecanismo que explica o aumento da dívida, na primeira metade da década de 80, sob o impacto da revolução neoliberal e das políticas de altas taxas de juro conduzidas por Ronald Reagan e Margaret Thatcher.
Mas a própria taxa de crescimento económico não é, em si mesmo, independente das despesas públicas: a curto prazo, a existência de despesas públicas estáveis limita a dimensão das recessões (“estabilizadores automáticos”); a longo prazo, os investimentos e as despesas públicas (educação, saúde, investigação, infra-estruturas...) estimulam o crescimento. É errado dizer que todo e qualquer défice faz crescer, no mesmo montante, a dívida pública, ou que qualquer redução do défice reduz a dívida de igual montante. Se a redução do défice tem efeitos negativos sobre a actividade económica, a dívida tornar-se-á cada vez mais pesada. Os comentadores liberais sublinham que alguns países (Canadá, Suécia, Israel) realizaram cortes brutais nas suas contas públicas nos anos 90 e que conseguiram imediatamente uma recuperação económica, um forte crescimento. Mas isto só é possível se o ajustamento se referir a um país isolado, que ganhe rapidamente competitividade sobre os seus concorrentes. Mas, obviamente, esquecem os adeptos dos ajustamentos estruturais europeus que os países europeus têm como principais clientes e concorrentes os outros países europeus, uma vez que a UE é globalmente pouco aberta ao exterior. Uma redução simultânea e maciça da despesa pública dos países da UE só pode ter como efeito o agravamento da recessão e, portanto, um novo avolumar da dívida pública.
Para evitar que a recuperação das finanças públicas não venha a provocar um desastre social e político colocamos em debate duas medidas:
Medida n.º 10: Manter o nível de protecção social, ou mesmo melhorá-lo (subsídio de desemprego, de habitação…).
Medida n.º 11: Aumentar o esforço orçamental em matéria de educação, de investigação, de investimento na reconversão ambiental... para materializar as condições de um crescimento sustentável, capaz de induzir uma significativa diminuição do desemprego.
FALSA EVIDÊNCIA N.º 6: A DÍVIDA PÚBLICA TRANSFERE PARA OS NOSSOS NETOS OS ENCARGOS DOS NOSSOS EXCESSOSÉ uma outra declaração falaciosa, que confunde a economia das famílias com a macroeconomia, segundo a qual a dívida seria uma transferência de riqueza em detrimento das gerações futuras. A dívida pública é, com certeza, um mecanismo de transferência de riqueza, mas, sobretudo, uma transferência dos contribuintes comuns para quem vive dos rendimentos.
De facto, com base na crença, raramente confirmada na realidade, de que baixando os impostos estimular-se-ia o crescimento e, no final de tudo, aumentar-se-iam as receitas públicas, os Estados europeus, depois de 1980, puseram-se a imitar os Estados Unidos, com uma política sistemática de minimização fiscal. A redução dos impostos e das cotizações sociais patronais multiplicaram-se (impostos sobre os lucros das empresas, sobre os rendimentos dos mais ricos e sobre o património, sobre as contribuições patronais para a segurança social...), mas o seu impacto sobre o crescimento económico manteve-se muito incerto. Estas políticas fiscais anti-redistributivas agravaram, assim, de forma cumulativa, as desigualdades sociais e os défices públicos.
Estas políticas fiscais forçaram os governos a endividarem-se junto dos detentores de mais elevados rendimentos e dos mercados financeiros para financiar os défices entretanto criados. É aquilo que poderia chamar-se um “efeito jackpot”: com o dinheiro economizado nos impostos, os ricos puderam adquirir títulos de dívida pública (que rendem juros), títulos esses emitidos para financiar os défices públicos causados pelos cortes de impostos... O serviço da dívida pública em França representa assim 40 mil milhões de euros anuais, quase tanto como as receitas do imposto sobre o rendimento. Um golpe tanto mais brilhante quanto, em seguida, se conseguiu convencer o público de que a dívida pública se devia aos funcionários públicos, aos reformados e aos doentes.
O aumento da dívida pública na Europa ou nos Estados Unidos não resulta de políticas keynesianas expansionistas ou de dispendiosas políticas sociais, mas sim de uma política que favorece as classes privilegiadas: as “despesas fiscais” (baixas de impostos e de cotizações patronais) aumentam o rendimento disponível daqueles que menos precisam, os quais, nessa sequência, podem aumentar ainda mais as suas aplicações financeiras, nomeadamente em Títulos do Tesouro, cuja remuneração de juros é paga pelos impostos cobrados a todos os contribuintes. Em suma, desenvolve-se um mecanismo de redistribuição em sentido inverso, das classes mais baixas para as classes de maiores rendimentos, através da dívida pública, cuja contrapartida vai sempre parar aos detentores de rendimentos privados.
Para endireitar de forma justa as finanças públicas na Europa e em França, colocamos em debate duas medidas:
Medida n.º 12: Voltar a dar um carácter fortemente redistributivo à fiscalidade directa sobre o rendimento (supressão de nichos privilegiados, criação de novas segmentações e aumento das taxas de imposto sobre os rendimentos...)
Medida n.º 13: Eliminar as isenções fiscais concedidas às empresas que não tenham efeitos suficientes em termos de emprego.
FALSA EVIDÊNCIA N.º 7: É PRECISO TRANQUILIZAR OS MERCADOS FINANCEIROS PARA SE PODER FINANCIAR A DÍVIDA PÚBLICA
A nível mundial, o aumento da dívida pública deve ser analisado em correlação com o processo de “financeirização” da economia. Ao longo dos últimos trinta anos, graças à liberalização total dos fluxos de capitais, a finança reforçou de forma significativa o controlo sobre a economia. As grandes empresas recorrem cada vez menos aos empréstimos bancários e cada vez mais aos mercados financeiros. As famílias vêem também uma parte crescente das suas economias escoar-se para a finança no âmbito dos sistemas de pensões, por via dos diversos produtos de aplicações financeiras, ou ainda, em certos países, através do financiamento da habitação (empréstimos hipotecários). Os gestores de carteiras de títulos, para diversificarem os riscos, procuram títulos de dívida pública para contrabalançar as dívidas dos particulares. Encontram-nos facilmente no mercado porque os governos empreendem políticas no mesmo sentido, que levam a um aumento dos défices: taxas de juro elevadas, reduções fiscais beneficiando especificamente os altos rendimentos, incitações maciças à poupança das famílias para favorecer os sistemas de pensões assentes em aplicações financeiras de capitalização, etc.
Ao nível da União Europeia, a “financeirização” da dívida pública foi inscrita nos Tratados: a partir de Maastricht, os Bancos Centrais foram proibidos de financiar directamente os respectivos Estados, os quais têm que recorrer aos mercados financeiros. Esta “repressão monetária” acompanha a “liberalização financeira” e tem exactamente o sentido oposto das políticas adoptadas depois da Grande Depressão dos anos 30, que foram de “repressão financeira” (restrições severas à liberdade de acção da finança) e de “libertação monetária” (com o fim do “padrão-ouro”). Trata-se de submeter os Estados que, supostamente, por natureza, são muito gastadores, à disciplina dos mercados financeiros que, supostamente, por natureza, são eficientes e omniscientes.
Como resultado desta opção doutrinária, o Banco Central Europeu não tem, portanto, o direito de subscrever directamente as emissões de títulos de dívida pública dos Estados europeus. Privados da garantia de poderem financiar-se sempre junto dos respectivos Bancos Centrais, os países do Sul foram, assim, vítimas de ataques especulativos. Certamente, passados alguns meses, apesar de sempre se ter recusado a fazê-lo em nome de uma ortodoxia inabalável, o BCE passou a comprar títulos de dívida pública dos Estados, às taxas de juro de mercado, para acalmar as tensões no mercado obrigacionista europeu. Mas nada nos diz que isso será suficiente, caso a crise da dívida se agrave e as taxas de juro de mercado dispararem. Pode ser então difícil manter esta ortodoxia monetária, que não tem base científica sólida.
Para resolver o problema da dívida pública, colocamos em debate duas medidas:
Medida n.º 14: Autorizar o Banco Central Europeu a financiar directamente os Estados (ou a exigir que os bancos comerciais subscrevam a emissão de títulos públicos), com taxas de juro baixas, libertando-se assim da canga com que os mercados financeiros os sufocam.
Medida n.º 15: Se necessário, reestruturar a dívida pública, por exemplo, limitando o peso do serviço da dívida pública a uma determinada percentagem do PIB, introduzindo uma discriminação entre os credores de acordo com o volume de títulos que possuem: os detentores de grandes volumes de títulos da dívida pública (pessoas ou instituições) devem consentir fazer uma distensão substancial do perfil da dívida, e até mesmo a sua anulação total ou parcial. É também necessário renegociar as taxas de juro exorbitantes dos títulos emitidos pelos países em dificuldade desde que a crise começou.
* Docentes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
(Continua)
Segunda-feira, 29 de Novembro de 2010
Júlio Mota, Luís Lopes e Margarida Antunes*
(Continuação)
A realidade actual impõe assim que se realize um verdadeiro debate democrático quando às opções de política económica possíveis. Como se assinala num recente manifesto intitulado Manifesto de Economistas Aterrados .
A maioria dos economistas que intervêm no debate público fazem-no para justificar ou racionalizar a submissão das opções políticas às exigências dos mercados financeiros… O modelo neoliberal continua a ser o único modelo legitimado, apesar dos seus falhanços bem evidentes…
Como economistas, estamos aterrados ao ver que essas políticas continuam a estar na ordem do dia e que os seus fundamentos teóricos não estão a ser postos em causa. Os argumentos utilizados, desde há trinta anos, para orientar as escolhas das políticas económicas europeias são, contudo, postos em causa pelos factos. A crise pôs a nu o carácter dogmático e sem fundamento da maior parte das pretensas evidências repetidas à saciedade pelos decisores políticos e pelos seus assessores. Quer se trate de eficiência e da racionalidade dos mercados financeiros, da necessidade de reduzir as despesas públicas para reduzir a dívida ou para reforçar o “pacto de estabilidade”, estas falsas evidências devem ser questionadas e mostrar-se a pluralidade de escolhas possíveis em política económica. Há outras opções possíveis e desejáveis, desde que primeiro se liberte a canga imposta pelo sector financeiro às políticas públicas.
Neste sentido, o grupo de docentes responsável pelo Ciclo de Cinema Debates e Colóquios na FEUC decidiu assim iniciar o Ciclo no presente ano lectivo com um debate alargado, que se quer profundo, sobre a União Europeia, sobre os seus fundamentos, o seu modelo económico, as suas opções presentes de resposta à crise económico-financeira. Em suma, perguntar então: o que está por detrás de tudo isto? Para quê tudo isto? Perguntas que devem ser feitas, respostas que podemos e devem ser encontradas na Faculdade de Economia e no Teatro Académico Gil Vicente, dias 10, 11 e 12 de Outubro com o Colóquio sobre a Europa e a projecção do filme O Cerco: a democracia nas malhas do neoliberalismo.
Coimbra, 28 de Setembro de 2010
II. Manifesto de Economistas Aterrados “Crise e dívida na Europa: 10 falsas evidências, 22 medidas em debate para se sair do impasse”
1 de Setembro de 2010
Primeiros signatários: Philippe Askenazy (CNRS, Ecole d’économie de Paris), Thomas Coutrot (Conseil scientifique d’Attac), André Orléan (CNRS, EHESS), Henri Sterdyniak (OFCE)
Tradução para português: Júlio Mota, Luís Lopes e Margarida Antunes
Introdução
A recuperação económica global, possibilitada pela injecção maciça de despesas públicas na economia (desde os Estados Unidos à China), é frágil, mas real. Um só continente ficou para trás, a Europa. Retomar a via do crescimento deixou de ser a sua prioridade política. A Europa embarcou numa outra via: o da luta contra o défice público.
Na União Europeia, os défices são, é certo, elevados — 7% em média, em 2010 — mas muito menos do que os 11% registados pelos Estados Unidos. Embora alguns estados federais americanos com um peso económico mais importante do que o da Grécia, como, por exemplo, a Califórnia, estejam virtualmente falidos, os mercados financeiros decidiram especular sobre a dívida soberana dos países europeus, especialmente sobre os países do sul. A Europa deixou-se realmente cair na sua própria armadilha institucional: os Estados europeus têm de contrair empréstimos junto das instituições financeiras privadas, as quais, para concederem estes empréstimos, vão buscar liquidez, a baixo custo, ao Banco Central Europeu.
Os mercados financeiros têm, portanto, em seu poder a chave fundamental do financiamento dos Estados. Neste contexto, a falta de solidariedade europeia suscita a especulação, tanto mais que as agências de rating contribuem para aumentar a desconfiança.
Foi necessária a degradação da notação atribuída pela Moody's à dívida da Grécia, em 15 de Junho, para que os dirigentes europeus voltassem a falar de “irracionalidade”, termo que tinham tanto usado no início da crise dita do subprime. Da mesma forma, constata-se agora que a Espanha está muito mais ameaçada pela fragilidade do seu modelo de crescimento e do seu sistema bancário do que pela sua dívida pública.
A fim de “tranquilizar os mercados”, foi improvisado um Fundo de estabilização do euro e foram lançados por toda a Europa planos de cortes drásticos, frequentemente cegos, da despesa pública. Os funcionários públicos são os primeiros atingidos, nomeadamente em França, onde a subida das contribuições para a segurança social se traduzirá numa redução disfarçada dos salários. O número de funcionários diminui por toda parte, ameaçando os serviços públicos. Os benefícios sociais, da Holanda a Portugal, passando pela França, com a reforma das pensões actualmente em curso, estão em vias de ser gravemente amputados. O desemprego e a precariedade laboral vão necessariamente alastrar nos próximos anos. Estas medidas são irresponsáveis, quer do ponto de vista político, quer social, e até mesmo do ponto de vista estritamente económico.
Estas políticas, que terão acalmado momentaneamente a especulação, têm já consequências muito negativas no plano social em muitos países europeus, atingindo especialmente os jovens, o mundo do trabalho e os estratos mais frágeis. A prazo, irão inflamar as tensões na Europa e, consequentemente, ameaçar a própria construção europeia, que é muito mais do que um projecto económico. Pressupõe-se que a economia esteja ao serviço da construção de um continente democrático, pacificado e unido. Em vez disso, está a instalar-se por todo o lado uma espécie de ditadura dos mercados, em particular, actualmente, em Portugal, em Espanha e na Grécia, três países que ainda eram ditaduras no início da década de 70, há apenas cerca de quarenta anos.
A submissão a esta ditadura dos mercados não é aceitável, quer seja interpretada como uma forma de os governantes aterrados “tranquilizarem os mercados” ou como pretexto para imporem opções ideológicas, uma vez que está bem provada a sua ineficiência económica e o seu potencial destrutivo no plano político e social. Deve, portanto, ser lançado um verdadeiro debate democrático sobre as opções de política económica em França e na Europa. A maioria dos economistas que intervêm no debate público fazem-no para justificar ou racionalizar a submissão das opções políticas às exigências dos mercados financeiros. Certamente, todos os governos tiveram que improvisar planos de relançamento keynesiano e, até mesmo, em alguns casos, nacionalizar bancos temporariamente. Mas querem fechar este parêntesis o mais rapidamente possível. O modelo neoliberal continua a ser o único modelo legitimado, apesar dos seus falhanços bem evidentes. Fundado no pressuposto da eficiência dos mercados financeiros, este modelo propugna a redução das despesas públicas, a privatização dos serviços públicos, a flexibilização do mercado de trabalho, a liberalização do comércio, dos serviços financeiros e dos mercados de capitais, o alargamento da concorrência a todo o tempo e a todo o lado...
Como economistas, estamos aterrados ao ver que essas políticas continuam a estar na ordem do dia e que os seus fundamentos teóricos não estão a ser postos em causa. Os argumentos utilizados, desde há trinta anos, para orientar as escolhas das políticas económicas europeias são, contudo, postos em causa pelos factos. A crise pôs a nu o carácter dogmático e sem fundamento da maior parte das pretensas evidências repetidas à saciedade pelos decisores políticos e pelos seus assessores. Quer se trate de eficiência e da racionalidade dos mercados financeiros, da necessidade de reduzir as despesas públicas para reduzir a dívida ou para reforçar o “pacto de estabilidade”, estas falsas evidências devem ser questionadas e mostrar-se a pluralidade de escolhas possíveis em política económica. Há outras opções possíveis e desejáveis, desde que primeiro se liberte a canga imposta pelo sector financeiro às políticas públicas.
Fazemos seguidamente uma apresentação crítica dos dez postulados que continuam a inspirar quotidianamente as decisões das autoridades públicas em toda a Europa, apesar dos contundentes desmentidos espelhados na crise financeira e nas suas sequelas. Trata-se de falsas evidências que inspiram medidas injustas e ineficazes, em confronto com as quais apresentamos 22 contrapropostas. Cada uma delas não colhe necessariamente a unanimidade dos signatários deste texto, mas deverão ser levadas a sério, se queremos que a Europa saia do impasse.
(Continua)
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* Docentes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra