Sábado, 14 de Maio de 2011

Manuel de Castro, por Carlos Loures

 

 

 

 

 

 

Este texto sobre o Manuel de Castro já tinha saído no nosso blogue em Setembro passado. Será interessante conhecermos mais sobre este poeta, também desaparecido prematuramente. 

 


 

Como sendo um eco da “Maratona Poética” que às 24 horas de ontem terminou e que tanto interesse suscitou, provocando um acentuado acréscimo no número de visitas e no de leituras, balanço de que daremos conta proximamente, vou continuar por estes dias a falar de poetas que conheci e que já não estão entre nós. Hoje será a vez do Manuel de Castro.

 

Conheci o Manuel de Castro no café Gelo, em 1958. Tinha um feitio difícil, passando facilmente de uma extrema afabilidade para uma agressividade também excessiva (ou vice-versa). Se fosse hoje, dir-se-ia que sofria de bipolaridade. Na época atribuíam-se estas coisas a razões mais prosaicas – ao excesso de álcool, por exemplo. Porque Manuel de Castro foi um grande poeta, era uma excelente pessoa, mas abstémio não era. À medida que o íamos conhecendo, ia dissolvendo-se a sua carapaça de formalismo ou de grande animosidade, e aparecia o verdadeiro Manuel – cordial, bem humorado, irónico, com grande capacidade de encaixe para aceitar críticas. Ria-se em prolongadas casquinadas que lhe faziam estremecer os ombros.

 

Eu não valorizaria nem a eventual bipolaridade, nem o real alcoolismo – diria que Manuel de Castro era uma pessoa tímida e sem jeito para o convívio. Não fazia concessões nem fretes – se lhe liam um poema e se ele não gostava, dizia-o logo de forma brutal e demolidora ou de maneira delicada, mas consistente, consoante estava em dia sim ou em dia não. Tinha uma personalidade vincada e, sobretudo, era um grande poeta a quem nunca foi dado o merecido valor.

 

Éramos muito amigos. Uma vez até andámos à porrada (e há lá melhor maneira de selar uma amizade!). Uma piada envenenada que ele disse sobre a «Pirâmide» e que eu levei a mal. Felizmente que estávamos ambos com os copos e, diz quem assistiu à cena, que a maioria dos murros acertou no vácuo. Ele tinha uma direita potente e aleijou os dedos nos azulejos da parede. Talvez mais sóbrio, esquivei-me a tempo e o Manuel andou com a mão ligada nos dias seguintes. Se me tem acertado, partia-me ao meio. Foi na festa de despedida do Café Royal, salvo erro, no fim de 1960 ou no princípio de 1961. Passou a ser um banco.

 

Com um outro amigo que apenas me lembro chamar-se Toninho, fomos uma vez acampar para o Zambujal, perto de Bucelas. Foi uma épica semana de copos e aventuras várias. Houve também, no Verão de 61, um agradável almoço em minha casa, perto de Carcavelos, com o Renato Ribeiro e a Fernanda, o Benjamim Marques e a companheira, de cujo nome não me lembro, do Manuel e a Natália, sua mulher, eu e a Helena, que tínhamos acabado de casar.

 

Depois saí de Lisboa. Poucas cartas escrevemos, pois não éramos de grandes epistolografias. Quando vinha a Lisboa, víamo-nos e pude ir apercebendo-me de que a doença iria levar a melhor (o Luiz Pacheco afirmava que foi uma espécie de suicídio, continuando a beber depois de saber que isso lhe seria fatal). Com 37 anos, morreu. Um amigo e um grande poeta que desapareceu.

 

Mas não da minha memória.

 

Manuel de Castro, nasceu em 17 de Novembro de 1934 em Lisboa e faleceu, também em Lisboa em 12 de Setembro de 1971. Viveu os primeiros anos em Goa, onde o seu pai era encarregado do Governo e depois na antiga Lourenço Marques. Regressado a Lisboa e tendo perdido a mãe aos 6 anos, o pai enviou-o aos 8 anos para o Seminário dos Padres da Consolata. Sem vocação sacerdotal, fugiu do seminário. Autodidacta, interessou-se por diversos ramos do conhecimento – a literatura, a poesia, a filosofia, as línguas. Sabia sete idiomas para além do português., incluindo o alemão e o dialecto de Heidenheim, cidade em que viveu cerca de 4 anos e em que foi interprete da polícia e dos tribunais, face a quantidade de emigrantes ali existentes das mais diversas nacionalidades.

 

Em 1958 saiu o seu primeiro livro de poesia – «A Zona». Mais tarde publicou «Paralelo W» com capa de João Vieira, e «Estrela Rutilante». Colaborou na revista Pirâmide, com Alfredo Margarido, Ángel Crespo, Edmundo Bettencourt e outros grandes nomes da cultura portuguesa e internacional, nos Cadernos do Meio Dia, na Poesia 71, na Colóquio, na Árvore, na & ETC, na Contraponto…Foi incluído na Antologia do Surrealismo e o Abjeccionismo. Foi também integrado nas duas antologias da Novíssima Poesia Portuguesa da responsabilidade dos escritores Mello e Castro e Maria Alberta Menéres e ainda na do Humor Português que abrange escritores dos séculos XVIII a fins do século XX. Numa bienal de Paris entre 1963-66 foi considerado, com Carlos Drummond de Andrade, um dos melhores poetas da língua portuguesa. Do número 2 da Pirâmide, seleccionei um poema. Ei-lo:

 

Poema

 

A noite está líquida oclusa vegetal

é um corpo longilíneo e desmembrado

flui como um rio de si mesmo alheio

flui e envolve pressagiando cárceres

a noite tem hoje uma altitude especial

com aves negrejando lentamente

neste desintegrar-se de memória

e eu sou uma alucinação rítmica

com um tempo corpóreo a devorar

um mar excessivamente quieto na cabeça

excessivamente muscular e lúcido

a noite distribui pedaços de lua

aos farrapos na inconsciência dos prédios

sobre a cidade a cidade a cidade louca

que desvairou nas minhas mãos nos dedos

possuída de um candelabro antigo a partir-se

um lampadário cristalino e rutilante

a quebrar-se com súbitos estilhaços pela noite fora

viajo nitidamente pelo passado

na organização de um jogo de perigo:

o meu amor é a aquisição de uma técnica

um processo de transformação dos corpos

a prospecção dramática dos ritos

uma queda livre e vertical

um olhar imóvel sobre o mar

a oferta do tempo sem comércio nem ódio

fibra a fibra

do tempo crivado de buracos baleado

assassinado corrupto perdido

o meu amor é correcta magia dos sons

a ultrapassagem da noite

fulminante e arrebatada num círculo de fogo

coberta de engenhos de destruição

correndo extensamente sem peso

o meu amor é uma trovoada nas margens da noite

uma proposta veiculada a sangue

patrocinada pelos mortos deambulantes

e é ainda a carcaça húmida dos barcos

destroçados n’areia

a noite é um coral magnífico na noite

publicado por João Machado às 15:00
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Sábado, 6 de Novembro de 2010

Recordando Alfredo Margarido (1)

Carlos Loures

Conheci o Alfredo Margarido em 1958. Fora-me apresentado no Café Restauração, na Rua 1º de Dezembro, não me lembro por quem, embora tenha a ideia de que foi o Renato Ribeiro que me introduziu nessa tertúlia de fim de tarde. Ao mesmo tempo conheci Edmundo Bettencourt que aparecia por ali, o pintor Cândido Costa Pinto e outros amigos.

Durante umas semanas mantivemos uma relação formal. O Margarido falava sobre tudo com uma grande segurança, era mais velho, muito mais sabedor, e eu não me atrevia a discordar, mesmo que às vezes estivesse tentado a fazê-lo ou a manifestar a minha concordância. Ele tinha o dom de formular com grande correcção ideias que andavam à solta pela minha cabeça. E muitas vezes, tentava reter na memória as formulações de Margarido. Naquele período, o Alfredo foi uma referência para mim.

Em 16 de Maio, uma sexta-feira, o general Humberto Delgado chegou a Lisboa, regressando de uma triunfal viagem ao Porto. Uma enorme multidão esperava-o em Santa Apolónia e logo aí forças da PSP e da GNR carregaram sobre os milhares de apoiantes. Junto da sede da candidatura, que funcionava na Avenida da Liberdade, no velho Teatro Avenida, cerca das 18 horas, juntou-se também uma multidão de muitos milhares de pessoas. Quando o cortejo, que vinha de Santa Apolónia, chegou perto do teatro – da Rua das Pretas e da Praça da Alegria saíram guardas da PSP e agentes da GNR a cavalo, num dispositivo destinado a impedir os apoiantes de se aproximarem do teatro. O primeiro troço do metropolitano estava a ser construído, havia pedras com abundância, e os «agentes da ordem» perderam o primeiro round – foram levados à frente do tsunami humano, alguns perderam os cassetetes para os manifestantes. Os que não fugiram a tempo e se distraíram a bater, foram mesmo espancados. Nessa tarde e até ao anoitecer andei lado a lado com o Ernesto Sampaio que se ria muito de todos aqueles episódios. À noite a luta recrudesceu, mas nós já estávamos no Gelo contando a nossa aventura.

No Domingo 18, á noite, realizou-se um comício do general no ginásio do liceu Camões. A sala encheu-se rapidamente e no exterior ficaram muitos milhares de pessoas. Andando por ali, fui dar ao San Remo. E lá estava a uma mesa o Alfredo Margarido. Trocámos umas impressões sobre o que se estava a passar. Falámos da posição do PCP (que começara por acusar o general de aventureirismo e de estar a soldo dos americanos, mas que face ao apoio popular, começava a mudar o discurso). Anoiteceu e no exterior a multidão que rondava toda a aquela zona não cessava de aumentar. Os gritos de «Delgado! Delgado!» ouviam-se como um trovoada de violência crescente. Patrulhas da PSP, a pé e em viaturas, desta vez armados de metralhadoras ligeiras e da GNR, com agentes a cavalo, percorriam incessantemente toda a área. Subitamente, ouvimos muito perto diversas rajadas de metralhadora. No San Remo entrou desordenadamente muita gente, deixando o café apinhado – as mesas foram arredadas e pusemo-nos de pé. No exterior, à mistura com os tiros, ouviam - se gritos. A polícia e a guarda tinham começado a carregar sobre os manifestantes. Soubemos depois que uma das rajadas destruíra a vidraça do café Monumental, no Saldanha. Houve feridos, mas julgo que ninguém morreu.

Dentro do San Remo, o Margarido assumiu o comando das operações. Para mim comentou «isto atingiu um clima de guerra civil» - Para o encarregado ou patrão deu uma ordem - «Apague as luzes! Já!» e para as dezenas de pessoas acumuladas dentro do café, com as mulheres a chorar e a gritar de medo, berrou uma ordem: «Calem-se, suas bestas!». O responsável pelo café cortou imediatamente a electricidade – as mulheres calaram-se com mais medo do Margarido do que da polícia. Eu fui ajudar um empregado a fechar as portas. Lá fora era um pandemónio – gente correndo com os agentes perseguindo-os e batendo-lhes com os bastões ou com as coronhas das espingardas. Uma manada desses desgraçados biltres passou pela montra e pela porta do café – um deles encostou a cara ao vidro e olhou para o interior, mas estava tudo tão imóvel e silencioso que, chamado pelos colegas, correu a juntar-se-lhes. Depois organizou a saída das pessoas em pequenos grupos. Todos lhe obedeceram.

O Margarido tinha essa qualidade de liderança inata, fosse na especulação filosófica ou política, na análise literária ou na acção, nunca duvidava de si mesmo. Ficámos amigos. Passei a frequentar a tertúlia do Restauração e pude ver que o Margarido pontificava naquele pequeno grupo de poetas e artistas plásticos – A Maria Manuela Margarido, mulher do Alfredo e grande poetisa são-tomense, o Edmundo Bettencourt, o poeta Manuel de Castro, o pintor Cândido Costa Pinto, o Renato Ribeiro – tudo gente de grande inteligência, mas com as hesitações e as dúvidas próprias de quem faz versos – com o último contradizendo o primeiro. O Alfredo expunha com o seu ar zangado, firme e assertivo. Mas sem ser o convencido que só se ouve a si mesmo – quando alguém falava ele ouvia com grande atenção e sem interromper.

Eu era um rapazito, meio estudante, vagamente trabalhador, o interior da minha cabeça assemelhava-se a uma zona de catástrofe, com Marx, Breton, Thomas Mann, Trotsky, Sartre e Camus, acotovelando-se, pontapeando-se – e metia-me às vezes em cavalarias altas, começando frases que não fazia ideia de como acabar – opinando sobre o Le mur, A Montanha Mágica ou sobre um dos manifestos o comunista ou o surrealista… Quando parava e via todos aqueles sábios à espera da conclusão, era por vezes tomado de pânico. O Margarido ajudava, apontando-me uma saída para o labirinto de palavras e conceitos em que eu me enredara.

Isto para dizer que o Alfredo Margarido era de uma extrema lealdade para com os amigos e implacável para os inimigos. E tinha inimigos de estimação. Não era mal dizente, era rigoroso. A lealdade aos amigos nunca o impediu de lhes apontar erros, cara a cara, se fosse preciso. Para ele não existiam aqueles elogios de circunstância - dizia sempre o que pensava. E também o ouvi elogiar inimigos - e quem o conheceu sabe como ele era parco em elogios.

(Continua)
publicado por Carlos Loures às 12:00
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Quinta-feira, 9 de Setembro de 2010

Manuel de Castro

Carlos Loures

Como sendo um eco da “Maratona Poética” que às 24 horas de ontem terminou e que tanto interesse suscitou, provocando um acentuado acréscimo no número de visitas e no de leituras, balanço de que daremos conta proximamente, vou continuar por estes dias a falar de poetas que conheci e que já não estão entre nós. Hoje será a vez do Manuel de Castro.

Conheci o Manuel de Castro no café Gelo, em 1958. Tinha um feitio difícil, passando facilmente de uma extrema afabilidade para uma agressividade também excessiva (ou vice-versa). Se fosse hoje, dir-se-ia que sofria de bipolaridade. Na época atribuíam-se estas coisas a razões mais prosaicas – ao excesso de álcool, por exemplo. Porque Manuel de Castro foi um grande poeta, era uma excelente pessoa, mas abstémio não era. À medida que o íamos conhecendo, ia dissolvendo-se a sua carapaça de formalismo ou de grande animosidade, e aparecia o verdadeiro Manuel – cordial, bem humorado, irónico, com grande capacidade de encaixe para aceitar críticas. Ria-se em prolongadas casquinadas que lhe faziam estremecer os ombros.

Eu não valorizaria nem a eventual bipolaridade, nem o real alcoolismo – diria que Manuel de Castro era uma pessoa tímida e sem jeito para o convívio. Não fazia concessões nem fretes – se lhe liam um poema e se ele não gostava, dizia-o logo de forma brutal e demolidora ou de maneira delicada, mas consistente, consoante estava em dia sim ou em dia não. Tinha uma personalidade vincada e, sobretudo, era um grande poeta a quem nunca foi dado o merecido valor.

Éramos muito amigos. Uma vez até andámos à porrada (e há lá melhor maneira de selar uma amizade!). Uma piada envenenada que ele disse sobre a «Pirâmide» e que eu levei a mal. Felizmente que estávamos ambos com os copos e, diz quem assistiu à cena, que a maioria dos murros acertou no vácuo. Ele tinha uma direita potente e aleijou os dedos nos azulejos da parede. Talvez mais sóbrio, esquivei-me a tempo e o Manuel andou com a mão ligada nos dias seguintes. Se me tem acertado, partia-me ao meio. Foi na festa de despedida do Café Royal, salvo erro, no fim de 1960 ou no princípio de 1961. Passou a ser um banco.

Com um outro amigo que apenas me lembro chamar-se Toninho, fomos uma vez acampar para o Zambujal, perto de Bucelas. Foi uma épica semana de copos e aventuras várias. Houve também, no Verão de 61, um agradável almoço em minha casa, perto de Carcavelos, com o Renato Ribeiro e a Fernanda, o Benjamim Marques e a companheira, de cujo nome não me lembro, do Manuel e a Natália, sua mulher, eu e a Helena, que tínhamos acabado de casar.

Depois saí de Lisboa. Poucas cartas escrevemos, pois não éramos de grandes epistolografias. Quando vinha a Lisboa, víamo-nos e pude ir apercebendo-me de que a doença iria levar a melhor (o Luiz Pacheco afirmava que foi uma espécie de suicídio, continuando a beber depois de saber que isso lhe seria fatal). Com 37 anos, morreu. Um amigo e um grande poeta que desapareceu.

Mas não da minha memória.

Manuel de Castro, nasceu em 17 de Novembro de 1934 em Lisboa e faleceu, também em Lisboa em 12 de Setembro de 1971. Viveu os primeiros anos em Goa, onde o seu pai era encarregado do Governo e depois na antiga Lourenço Marques. Regressado a Lisboa e tendo perdido a mãe aos 6 anos, o pai enviou-o aos 8 anos para o Seminário dos Padres da Consolata. Sem vocação sacerdotal, fugiu do seminário. Autodidacta, interessou-se por diversos ramos do conhecimento – a literatura, a poesia, a filosofia, as línguas. Sabia sete idiomas para além do português., incluindo o alemão e o dialecto de Heidenheim, cidade em que viveu cerca de 4 anos e em que foi interprete da polícia e dos tribunais, face a quantidade de emigrantes ali existentes das mais diversas nacionalidades.

Em 1958 saiu o seu primeiro livro de poesia – «A Zona». Mais tarde publicou «Paralelo W» com capa de João Vieira, e «Estrela Rutilante». Colaborou na revista Pirâmide, com Alfredo Margarido, Ángel Crespo, Edmundo Bettencourt e outros grandes nomes da cultura portuguesa e internacional, nos Cadernos do Meio Dia, na Poesia 71, na Colóquio, na Árvore, na & ETC, na Contraponto…Foi incluído na Antologia do Surrealismo e o Abjeccionismo. Foi também integrado nas duas antologias da Novíssima Poesia Portuguesa da responsabilidade dos escritores Mello e Castro e Maria Alberta Menéres e ainda na do Humor Português que abrange escritores dos séculos XVIII a fins do século XX. Numa bienal de Paris entre 1963-66 foi considerado, com Carlos Drummond de Andrade, um dos melhores poetas da língua portuguesa. Do número 2 da Pirâmide, seleccionei um poema. Ei-lo:

Poema

A noite está líquida oclusa vegetal
é um corpo longilíneo e desmembrado
flui como um rio de si mesmo alheio
flui e envolve pressagiando cárceres
a noite tem hoje uma altitude especial
com aves negrejando lentamente
neste desintegrar-se de memória
e eu sou uma alucinação rítmica
com um tempo corpóreo a devorar
um mar excessivamente quieto na cabeça
excessivamente muscular e lúcido
a noite distribui pedaços de lua
aos farrapos na inconsciência dos prédios
sobre a cidade a cidade a cidade louca
que desvairou nas minhas mãos nos dedos
possuída de um candelabro antigo a partir-se
um lampadário cristalino e rutilante
a quebrar-se com súbitos estilhaços pela noite fora
viajo nitidamente pelo passado
na organização de um jogo de perigo:
o meu amor é a aquisição de uma técnica
um processo de transformação dos corpos
a prospecção dramática dos ritos
uma queda livre e vertical
um olhar imóvel sobre o mar
a oferta do tempo sem comércio nem ódio
fibra a fibra
do tempo crivado de buracos baleado
assassinado corrupto perdido
o meu amor é correcta magia dos sons
a ultrapassagem da noite
fulminante e arrebatada num círculo de fogo
coberta de engenhos de destruição
correndo extensamente sem peso
o meu amor é uma trovoada nas margens da noite
uma proposta veiculada a sangue
patrocinada pelos mortos deambulantes
e é ainda a carcaça húmida dos barcos
destroçados n’areia
a noite é um coral magnífico na noite
publicado por Carlos Loures às 12:00
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Segunda-feira, 6 de Setembro de 2010

Edmundo de Bettencourt

Carlos Loures

Nestes dias dedicados à poesia, tenho estado a recordar poetas que conheci e que já morreram. Hoje vou falar um pouco sobre Edmundo de Bettencourt,

Conheci Edmundo de Bettencourt numa tertúlia, uma das muitas, que se reunia nos fins de tarde no café Restauração da Rua 1º de Dezembro, no centro de Lisboa. Paravam por ali, além do poeta e cantor madeirense, o Alfredo Margarido, que viria a ser professor da Sorbonne e que hoje, jubilado, mantém a sua inteligência e grande saber ao serviço da cultura, o Manuel de Castro (1934-1971), um grande poeta quase desconhecido, às vezes, outro madeirense célebre, o Herberto Hélder. Mais raramente o Renato Ribeiro, com a sua mulher a Fernanda Barreira. Ocasionalmente, algum «imigrante» vindo do Gelo – era só atravessar a rua e andar meia dúzia de metros.

Edmundo Bettencourt, para além de notável poeta e ímpar cantor do fado de Coimbra, era uma pessoa afável, muito cordial, tentando atenuar com a sua delicadeza a frontalidade por vezes brutal de um Manuel de Castro que, talvez adivinhando a morte prematura, desistira já de ser simpático e dizia o que pensava. Por exemplo, eu aparecia por ali vindo da sede da RTP, onde então trabalhava. O fato e a gravata eram, por aqueles anos 60, uniforme obrigatório no tipo de funções que desempenhava. Pois o Manuel, esquecendo-se ou fingindo esquecer-se de que já tinha dito a mesma graça numerosas vezes, fazia sempre alusões pícaras ao meu aspecto burguês.

Foi na altura em que andava a organizar o terceiro número da revista «Pirâmide». Os dois primeiros números tinham reunido gente do «Gelo». Este terceiro, juntou colaboração de frequentadores da tertúlia do Restauração (embora tivesse também um poema inédito do argentino Rodolfo Alonso. E outro, igualmente escrito para a revista, do castelhano Ángel Crespo (1926-1995) que, anos depois, além de consagrado poeta, se converteria num dos principais pessoanos de língua castelhana. Edmundo Bettencourt colaborou com seis poemas, então inéditos, dos quais publico aqui um datado de 1954: «O Segredo e o Mistério». Os poemas eram acompanhados por um retrato do poeta, desenho inédito de Mário de Oliveira, que podemos ver acima.

Edmundo de Bettencourt nasceu em 1899 no Funchal. Quando estudante de Direito em Coimbra, fez parte da chamada «Geração de Oiro», onde pontificava o grande António Menano e o não menos virtuoso Artur Paredes, pai do Carlos. José Afonso, que ouvimos aqui a cantar um famoso poema de Bettencourt («Saudades de Coimbra»), considerava este o maior cantor de fado de Coimbra de todos os tempos (as suas canções eram acompanhadas pela guitarra de Paredes). Além do fado coimbrão, cantou também canções do folclore da Beira-Baixa, como «Senhora do Almortão». Como escritor, fez parte do grupo da revista «Presença». Em 1999, quando passava o centenário do seu nascimento, saiu uma antologia – «Poemas de Edmundo de Bettencourt», prefaciada e organizada por Herberto Hélder.

O Segredo e o Mistério

Mistérios a pouco e pouco vão morrendo
e extenuados de vigília os anjos
são afinal a sussurrantes sibilinas vozes
que desvendam adivinham segredos
atrás de sentinelas
cuja ferocidade é uma ironia de ternura…
Na palidez da luz
cercando uma velha cabeça
a quem um sono de embrião já tolda os olhos
sorriem enigmáticos os sonhos.

Ouçamos agora uma das mais conhecidas composições de Edmundo de Bettencourt,"Saudades de Coimbra". Canta o José Afonso:

publicado por Carlos Loures às 12:00
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Quinta-feira, 8 de Julho de 2010

Operação Papagaio – a acção armada dos surrealistas contra a ditadura.(a realidade competindo com a ficção)

Carlos Loures

Quando se fala nas acções armadas contra a ditadura, recorda-se a ARA e a sua espectacular ofensiva contra o aeródromo militar de Tancos, destruindo 28 aeronaves, aviões e helicópteros, ou nas acções das Brigadas Revolucionárias contra as instalações da NATO ou ainda a LUAR, de Palma Inácio, com o seu audacioso plano de tomada da cidade da Covilhã. Mas esquecem-se os especialistas neste período da nossa História recente, da «Operação Papagaio». Inconsequente, com o seu quê de anedótica, organizada por civis – ainda por cima, poetas surrealistas. Contudo, se alguém quiser pegar nesta investigação deparará com a falta de fontes. Luiz Pacheco em “Prazo de Validade” (Contraponto, 1998) dedica um capítulo à operação. Com muitas falhas, a começar pela data. Logo no começo do texto, diz que tudo aconteceu quinze anos antes da Revolução de Abril, o que situaria os acontecimentos em 1959. Impossível.



Em 1959, sei que nada se passou, ninguém daquele grupo foi preso nesse ano. Idem nos dois anos seguintes. Inclinar-me-ia para 1962 ou mesmo em 1963. Em Dezembro de 1961 saí de Lisboa e, à cidade onde trabalhava, chegou-me a notícia (salvo erro, através do Adriano de Carvalho) da prisão de alguns amigos escritores do café Gelo na sua maior parte. Em Agosto tive as habituais férias. Passava-as com a família numa casita perto da Caparica. Não tinha carro (nem havia ainda a ponte) e uma manhã em que fora a Lisboa tratar de qualquer assunto, no regresso à Costa encontrei o Virgílio Martinho (1928-1994), o autor de «O Grande Cidadão», que morava em Almada ou nos subúrbios.

Fizemos juntos a travessia no «cacilheiro» onde apanhávamos os respectivos autocarros. Como disse, o Forte e mais uns «manos» tinham estado presos, mas não conhecia os pormenores. Foi ele que pela primeira vez me descreveu no que consistira a «Operação Papagaio», nome de código para uma tentativa de derrube da ditadura, feita por gente do chamado grupo do Gelo e do Royal – o António José Forte (1931-1988), o Renato Ribeiro, o Manuel de Castro (1935-1971) e o Mário Henrique-Leiria (1923-1980), que não pertencia ao grupo, mas era grande amigo de alguns dos seus elementos, como era o caso do Forte. Aliás, o Pacheco esqueceu o Mário-Henrique Leiria que, tanto quanto julgo saber, foi o elemento principal do grupo

O Mário era «entendido em armas; os outros. eram o mais civis que é possível. O Renato percebia alguma coisa do assunto, pois fora durante a 2ª Guerra oficial miliciano nos Açores, chegando ao posto de tenente e servindo na arma de Artilharia: foi degradado em Tribunal Militar, baixando a soldado raso devido a uma história rocambolesca ocorrida em São Miguel, em que teria protegido um soldado da sua bateria envolvido num crime de morte. Contava-se também que, antes de ser castigado, fizera fogo com uma anti-aérea sobre um avião norte-americano. Não foi castigado porque, estando a comandar a bateria, tinha ordem para atirar sobre todos os aviões não-identificados, o que era o caso, embora essa ordem fosse letra morta. Contavam-se muitas histórias do Renato, poeta de «Sombras»), colaborador da Pirâmide. Uma figura mítica, o Renato Ribeiro (o meu filho chama-se Renato em homenagem a ele). Perdi-lhe completamente o rasto, nem sei se ainda é vivo. Oxalá seja. Adiante.

A versão de Pacheco em «Prazo de Validade»(1998), não coincide totalmente com a que o Virgílio me contou. Mas o Pacheco não esteve envolvido na operação. O Virgílio também não, mas estava mais inteirado. Mais coincidente é a que Fernando Correia da Silva conta na sua biografia de Mário-Henrique Leiria (1923-1980), pois talvez a tenha ouvido do próprio Mário que esteve comigo no PRP, mas nunca me falou no assunto, embora divirja num aspecto essencial – O Fernando dá a operação como realizada o que comprovadamente é um equívoco (talvez da sua memória) – a operação abortou – aí o que o Martinho me contou e o que Pacheco diz no seu livro coincide totalmente. Quanto ao Forte, tendo sido seu colega na Fundação Gulbenkian, de onde saí em 1971, demo-nos até à sua morte, em 1988, almoçando juntos em regra uma vez por mês, além de vários passeios de fins-de-semana que demos juntos, eu, ele, a minha mulher e a sua, a artista plástica Aldina. Mas, tal como o Mário, o Forte não gostava de falar neste assunto. Tendo já falecido todos os participantes na operação (o Renato, se ainda vive terá perto de 90 anos), os dados são poucos. Será que nos arquivos da PIDE se encontrarão as respostas que faltam, nomeadamente as que dizem respeito à data.?

Em todo o caso, Pacheco dá-nos uma pista importante – Luiz Filipe Costa terá feito «uma artigalhada», segundo a pachequiana expressão, sobre o tema, publicando-a num semanário, o Extra, de existência efémera e de que não existem exemplares na Hemeroteca. Numa conversa com o Pacheco há muito anos numa esplanada do Parque Eduardo VII (durante uma Feira do Livro) em que nos referimos de passagem a este caso, deu-me a entender que o Luís Filipe Costa estaria por dentro da operação. O que faria sentido, pois era locutor do RCP. Luís Filipe Costa, um homem ligado ao 25 de Abril (foi ele que se encarregou de transmitir as senhas que serviram de arranque às operações). Só ele poderá esclarecer-nos.

Com todas estas limitações e interrogações, vamos lá então tentar uma quarta versão, subsidiária das outras três: a versão do Pacheco, a do Correia da Silva (herdada do Mário-Henrique Leiria e a minha recordação da conversa com o Virgílio no cacilheiro.

Na Primavera de 1962 (inclino-me mais para este ano), já tinha começado no ano anterior a Guerra Colonial, um grupo de escritores, surrealistas na sua maior parte, do qual faziam parte pelo menos aqueles que já citei, gizou um plano simples, mas que parecia eficaz. Com a casa do Mário-Henrique a servir de base de apoio, pois tinha uma moradia no largo principal de Carcavelos, junto da igreja e do Café São Jorge, transportando-se em dois carros (não sei de quem, pois nenhum dos citados tinha automóvel), cerca das dez da noite, atacariam o Rádio Clube Português na Parede. Dispunham de informações dadas do interior estação.

Sabia-se que àquela hora era posta a rodar uma bobina com um extenso programa do Igrejas Caeiro, «Os Companheiros da Alegria», e que até cerca da meia-noite só haveria um contínuo na estação, pois inclusivamente os intervalos para os blocos publicitários estavam gravados nessa bobina. A ideia era entrar, prender e amarrar o homem e pôr a rodar outra bobina que arrancava com o hino nacional e depois com uma voz grave que dizia, mais ou menos: «Interrompemos o nosso programa, para informar que se verificou um levantamento de tropas, havendo neste momento diversas unidades militares a caminho de Lisboa. Pedimos calma à população…, etc, etc. Marchas militares e, passados minutos, novo comunicado. Os comunicados seriam cada vez mais alarmistas, pedindo-se num dos últimos à população para se reunir no Rossio para saudar o advento da democracia, pois Salazar fora apeado e preso, dizia o «locutor».

Claro, que podia acontecer que alertadas as autoridades, a estação fosse ocupada e a bobina revolucionária fosse retirada antes de chegar ao fim. No fundo, o plano baseava-se na mesma ideia que Orson Welles, tivera com «A Guerra dos Mundos», em 1938, provocando o pânico nos ouvintes, que acreditaram que a Terra estava a ser invadida por marcianos. Neste caso, os marcianos eram as tais unidades que do Norte vinham sobre Lisboa, com a adesão maciça e crescente das unidades locais.

Quando à hora marcada os conspiradores chegaram junto dos portões da estação, tiveram uma desagradável surpresa – no ringue estava a disputar-se uma partida de hóquei em patins, com muita gente a assistir e polícia de serviço para manter a ordem. O RCP tinha instalações desportivas onde se disputavam provas nacionais – de hóquei, basquete, andebol, ginástica, etc.

Balbúrdia dentro dos carros, uns queriam avançar mesmo naquelas condições, mas a maioria decidiu sensatamente adiar o ataque para a semana seguinte, quando novamente estivesse a ser emitido o programa do Igrejas Caeiro.

Só que nos cafés onde paravam, nomeadamente o Café Royal do Cais do Sodré, o Gelo do Rossio e a Brasileira do Chiado, a «Operação Papagaio» era, desde há semanas, discutida e comentada de mesa para mesa como coisa trivial. Sobretudo na Brasileira, a dois passos da PIDE, paravam muitos agentes. Resumindo: os guerrilheiros surrealistas foram todos dentro. A polícia achou graça à ideia, nunca tinham por ali passado políticos como aqueles, poetas meio malucos que davam respostas inusitadas e transformavam os sinistros autos de perguntas numa espécie de «cadavre-exquis».

Durante os interrogatórios, aconteceu por diversas vezes os agentes saírem dos «gabinetes de investigação» e virem rir para o corredor. Não houve torturas. Não se formou processo. Umas chapadas, umas ameaças, e ficaram por ali. Tendo apanhado as armas que o Mário com tanto trabalho arranjara, a PIDE foi-os soltando. A «Operação Papagaio» fracassara. Aliás, como a maioria das que antes de 25 de Abril foram tentadas. Generais e figuras políticas da oposição não terão muitas razões para se rirem dos poetas surrealistas.

Cerca de dez anos depois, em Setembro de 1972, as forças armadas brasileiras, nomeadamente os fuzileiros, desencadearam uma grande operação contra os guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil que estavam acoitados numa região a Norte de Goiás. Chamaram-lhe «Operação Papagaio»: Mas, embora com o mesmo nome de código, não teve graça nenhuma esta operação. As forças da ditadura dos coronéis mataram diversos guerrilheiros comunistas e feriram muitos outros durante a investida.
publicado por Carlos Loures às 12:00
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