Mahler sempre me levou e leva pelos ares. Não há outra música com que eu acompanhe a escrita, de forma rápida e escorreita, como com a de Mahler. Com que a minha sensibilidade se sinta confortada.
Mal soam os metais e os violinos, com o toque de fundo de um dedilhar de harpa, qualquer coisa me eleva e arrasta, a tal asa metálica que eu reconheço na sua música, evocando os mitos germânicos de “O Anel” de Wagner com o qual, provavelmente não terá nada a ver.
Sei lá se isto é verdade. Que mo digam os músicos. Acho que não passa de divagações de quem não percebe nada de técnica dos sons. Mas é o que eu sinto. Apenas posso perceber que a sua vida atormentada o tenha feito criar esta agreste e arrebatadora beleza.
Há força, há violência, mas é uma potência de vida inultrapassável. Uma verdade que não é permitido a ninguém questionar. É livre e selvagem como a vida quando é genuinamente vivida.
Mahler é como as ondas do oceano, como as asas de uma águia, como a erupção dos vulcões, como a paixão que nos explode no peito. Não é possível fruir esta música sem paixão, ou é melhor não a ouvir.
Quando oiço Mahler, alguém me sussura ao ouvido palavras de amor, de terna e forte sensualidade que chegam não se sabe donde nem onde regressam. Independentes de mim, vão pelos ares, montadas nessa asa, retornam à origem com o acrescento que a música de Mahler em mim lhes deu.
Feliz de quem as receba porque levam o meu coração por inteiro. _____________
Ouçamos o 3º andamento da Sinfonia No. 1 "Titan" de Mahler. Claudio Abbado, o grande maestro milanês, dirige a Filarmónica de Berlim num concerto realizado em Dezembro de 1989.
Tinha pensado escrever sobre África mas, vergonhosamente tarde, descobri Mahler. E a minha felicidade disparou.
Quem opta pela dor perante o prazer?
Fui arrastada, arrasada, por esse fragor e fiquei à deriva. Uma ampla asa metálica levou-me pelos espaços e esqueci-me do discurso que tinha engendrado sobre aquela penosa realidade.
Não se pode ser feliz ao mesmo tempo que se constata a dor dos outros. É da natureza humana.
O que Ki-Zerbo defendia, também, era a felicidade para África. Não sabia era para quando.
Joseph Ki-Zerbo desmistificou a África exótica, dos cheiros e das cores, cujo rasto apenas encontrou na História da Europa, a propósito do comércio de escravos, quando estudava na Sorbonne.
O que ele queria para essa parte do mundo, onde a Humanidade se descobriu a si própria, à sua fala, à sua escrita, à sua música, era o reconhecimento duma genuinidade, ao contrário da vil classificação de Pré-História para todo o seu percurso vivencial. Pré-História da História Europeia, claro está, à qual não deixaria mais de estar ligada, mas apenas como um apêndice. Joseph Ki-Zerbo não era um nostálgico da África pré-colonial, mas soube reconhecer como, ao interromper os fluxos comerciais e culturais entre a África Central e os povos do Norte do continente, o colonialismo enfraqueceu deliberadamente o progresso que se processava de forma harmoniosa para os povos das sociedades africanas. Cidades como Tombuctu, nos séculos XIII e XIV, tinham um desenvolvimento cultural maior que muitas cidades da Europa, a ela afluindo professores universitários e alunos de além Sara. Essa foi a evolução que o colonialismo travou.
Ele não repudiava o desenvolvimento das tecnologias de informação e de outras tecnologias de ponta. O que constatava era que a importação pura e simples dessas tecnologias tal como eram concebidas nos países do Norte não servia os genuínos objectivos das sociedades africanas no seu todo. Haveria que, aproveitando esses valiosos instrumentos, pô-los ao seu serviço mas impedindo que minassem os valores intrínsecos dessas sociedades por ele identificados como o amor, a descoberta de uma verdade científica, a amizade, a estética ou a música. Para ele “o mundo dos valores é uma imensidade que ultrapassa de longe o mundo material”.
Pelos auscultadores, entra-me, agora, o “Allegreto” da 5ª.Sinfonia, considerado já como um dos mais preciosos trechos da música clássica. A mim, analfabeta musical, soa-me a beleza em estado puro. Thomas Mann, “A Morte em Veneza”, Visconti. Quando as imagens se associam o prazer é mais intenso
O que esse velho sábio burquino, nascido no antigo Alto Volta, queria era o contrário do que está a acontecer hoje: a África há séculos saqueada das suas matérias-primas, vê-as, agora, irem-se tornando progressivamente inúteis pelo desenvolvimento tecnológico dos seus predadores de sempre. Exemplo deste facto é o aparecimento da fibra óptica que arruinou a Zâmbia substituindo o cobre que era a sua principal matéria-prima. Não quereria ter visto o desenvolvimento erróneo de uma classe média despolitizada, perdida da sua cultura original e transformada em presa consumidora de marcas das transnacionais em fuga às zonas mundiais em crise.
Mas eis os violinos, em massa, em uníssono, em apoteose. Verdadeiro sortilégio.
O meu cérebro suspendeu-se. Só pulsa o coração e muitas outras fibras de que não sei a designação anatómica.
Estou em morte cerebral. Passei para outro mundo.
África fica para depois. A felicidade não se pode adiar. Não se deve. Puro egoísmo humano? Que me perdoem os deuses mas a vida é curta. Não chega para tanto
Também, tem tempo. Poucos africanos se terão apercebido bem do que Ki-Zerbo desejava. Uns porque ainda não têm condições para isso; outros porque nem o desejam mesmo. Há visões mais tentadoras de imediato.
Quanto a mim, Mahler, o avassalador Mahler fez-me apaixonar. Quando estiver saciada deste prazer, logo volto a pensar. _____________________________________
Referências bibliográficas:
1. Joseph Ki-Zerbo (entrevista de René Holenstein), Para Quando África?, Campo das Letras, 2006.
2. Jean-Christophe Servant, “A Miragem das Classes Médias Africanas”, Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, Agosto de 2010.