Terça-feira, 5 de Julho de 2011

Ida sem volta, de Mário-Henrique Leiria

 

 

 

 

 

 

 

Acordar na cidade logo de manhã

e esperar a noite com exactidão

no encontrar do último comboio

que parte conciso para outro dia

sair na estação que é central

de outra cidade já a anoitecer

onde talvez seja o lugar habitual

do vendedor ambulante das sortes

quase grandes

no caminho designadamente antecipado

pelo voo dos pássaros migradores

que agora mesmo se vão de partida

para outra cidade de amanhecer definitivo

e depois da viagem sempre conhecida

da porta em porta na cidade

adormecer ao aviso da madrugada

e esperar o sinal propício indicado

pelo caminho persistente dos peixes

a subir o rio exaustivamente nele

acordar na noite da noite na cidade

até chegar o momento muito matinal

de partir no primeiro comboio efectivo

da manhã de outra cidade a entardecer

 

 

 

Este poema integra a obra Contos do Gin-Tonic, de Mário-Henrique Leiria. Reproduzimo-lo a partir da 6.ª edição, da Editorial Estampa. Pedimos a compreensão da da editora, assim como a dos herdeiros do autor. A ambos enviamos os nossos cumprimentos.

publicado por João Machado às 07:00
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Segunda-feira, 19 de Julho de 2010

As certezas socráticas de ontem...


Luís Moreira

Quem ver e ouvir na televisão, o então ministro-adjunto de Guterres a gritar que os estádios de futebol de 2004 seriam a salvação do país,percebe o que deverá pensar do TGV, terceira ponte e aeroporto.

Com o cabelo ainda preto, mais jovem, mas já com aquela maneira convicta de falar do que não sabe, José Sócrates grita aos quatro ventos que tudo se vai pagar, autofinanciar, tirar as Câmaras locais da miséria, o desporto da mediocridade, enfim, vinha aí o céu...

Agora são as próprias Câmaras que querem implodir os estádios, não têm dinheiro para os pagar, nem sequer para manter a limpeza e a operacionalidade,não sabem o que lhes fazer. Aveiro, com um estádio novinho em folha a substituir o belo Mário Duarte, tem lá a jogar uma equipa de futebol que anda pelas divisões inferiores, o Beira- Mar da minha infância.

Coimbra, quer sair daquele estádio e construir um novo, com a dimensão recomendável, não tem dinheiro para aguentar o estádio socrático. Leiria, mete por jogo 200 pessoas, o presidente do clube diz que não pode pagar, quer jogar em Torres Novas.O do Algarve anda a ser chutado entre as autarquias, é alugado para corridas de automóveis e para eventos musicais.

As autarquias têm dívidas para 20 anos, por causa de estádios desnecessários e sobredimensionados,o Tribunal de Contas diz, em relatório, que houve derrapagens nos custos, elevadíssimas, dificeis de explicar, o Estado derreteu nos estádios 1 000 milhões de euros !

Se o homem tivesse um bocado de humildade e visse no que deram as certezas de ontem...
publicado por Luis Moreira às 16:30
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Quinta-feira, 15 de Julho de 2010

Insones, noctívagos & afins - Contos de Mário Henrique Leiria

CASO 37 007 339 – 3º VIII

Mário Henrique Leiria

Sector de Rigel

(Crostol contra Pul-Tra)

Pul-Tra, rastejador polipoide de Algol-7, caixeiro viajante de máquinas de solidão, ao desembarcar no porto estelar de Troikalan em actividade profissional, foi abordado no bar do dito astroporto por Crostol, indivíduo insecto-voador, indígena do planeta, que delicadamente o convidou a tomar um recipiente de «Grum-Kvas VOP» como símbolo de boas vindas.

Pul-Tra, com dois tentáculos e extremo cuidado, pegou no insecto indígena e, em gesto ritual, arrancou-lhe cerimoniosamente os órgãos visuais.

Dado este acontecimento, foi detido para averiguações por um membro do Departamento Gravito-Sentencioso que gravitava de serviço no astroporto.

A queixa foi imediatamente apresentada por Brastol, membro do grupo reprodutivo de Crostol (5º sexo), baseada na alegação de destruição desnecessária praticada na pessoa de um indivíduo do citado grupo.
Processando-se em seguida a análise de Conjuntos, Circunstâncias e Condições, alegou a defesa que Pul-Tra, como todos os naturais de Algol-7, era de condição pacífica, sempre pronto a retribuir qualquer delicadeza recebida.

Dado que, por contingência psico-somática, todos os naturais dessa região prezam e consideram como o maior bem a solidão e a contemplação interna (zan-zan-dag), Pul-Tra, ele mesmo vendedor das mais requintadas máquinas de solidão produzidas pela sua raça, devolvera no melhor estilo a amabilidade de Crostol, libertando-o dos órgãos visuais e, assim, da presença de imagens externas inoportunas.

A acusação (Ministério Público – Comarca de Troikalan) no entanto, não aceitou esta argumentação, considerando que, como é sabido, os órgãos visuais dos indígenas de Troikalan são o elemento sustentador do equilíbrio sexual (5º sexo) dos grupos reprodutivos e a destruição desnecessária dos mesmos pode pôr em grave risco a imprescindível polinização das fecundações de grupo. A ignorância deste facto, disse, não pode de forma alguma servir como argumento para a absolvição do rastejador polipoide Pul-Tra, de Algol-7. Como fez notar, há outras maneiras de ser agradecido além de «andar por aí a vazar olhos» (sic).

A sentença (Sector de Rigel – Comarca de Troikalan) foi benigna, considerando como circunstância atenuante a boa-fé com que o acto fora praticado, embora a acusação tivesse protestado energicamente.
Pul-Tra foi sentenciado a suportar luz nos olhos directa e ininterruptamente durante 37 rotações algolianas (factor + 7), com pena suspensa por 3 ciclos de Rigel. Ao grupo reprodutivo de Crostol foram concedidos dois binóculos reprodutores extra e, como indemnização simbólica, a posse temporária, durante a pena suspensa, do apêndice caudo-solitário de Pul-Tra.

Pergunta-se aos estudantes atentos: foi a sentença coerente com os trâmites planetários em vigor (Sector de Rigel) ou houve abuso de poder?

(Casos de Direito Galático)

Torah

Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a Moisés.

Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente. Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro. No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.

Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.

Alguns foram.

Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.

Depois disso, é o que se vê
.
(Contos do Gin-Tonic)

Bus stop

Deu uma corrida rápida e saltou para o autocarro no momento exacto em que a porta começava a fechar-se.

Sentiu a pancada atrás de si e ouviu a campainha.

O autocarro arrancou, talvez com violência excessiva. Agarrou-se ao varão metálico e respirou fundo, para aliviar o cansaço vindo da corrida inesperada.

Procurou as moedas necessárias no bolso das calças e entregou-as ao cobrador, ao passar o torniquete.
 Deu uns passos pelo corredor central, deteve-se, deitou a mão à argola que lhe pendia por cima da cabeça para garantir o equilíbrio e olhou em volta. Nenhum lugar sentado.

Baixou os olhos. No chão parecia que alguém havia pisado flores e deixado uma pasta esmagada, viscosa, com vestígios de vermelho e amarelo. Escorregava, quando lhe passou com o pé por cima. Afastou-se um poco e mudou a mão para a argola da frente.

Os passageiros liam ou olhavam pela janela. Num silêncio pouco vulgar. Lá, no lado de fora do banco do fundo e com uma perna meio estendida para o corredor, um velho de longa barba ainda quase ruiva e um boné gasto de pala amachucada olhava para ele fixamente, impassível. Desviou os olhos com uma sensação de súbito desconforto que não conseguiu compreender.

Pela janela reparou que estava na Avenida da Liberdade. Do lado de lá dos vidros as pessoas moviam-se pelos passeios e os carros deslizavam num ruído que lhe chegava abafado. As casas, as árvores e o tempo iam ficando para trás.

Começou a admirar-se. Não havia paragens. Ninguém saía nem entrava. No entanto, como o autocarro ia realmente cheio, talvez fosse assim mesmo. Andam sempre a mudar os regulamentos, não há nada a fazer.
O autocarro dobrou a esquina e entrou por uma rua estreita, empedrada, escura. Que era aquilo? De um lado e doutro pequenos prédios de tijolo avermelhado, sujo, perfilavam-se, monótonos. As pessoas na rua eram poucas e pareciam caminhar com extrema cautela. Nenhum carro. Apenas o som insistente do motor do autocarro.

Sentiu-se inquieto. Desviou os olhos da rua. Um ressalto dos pneus fê-lo procurar o equilíbrio apoiando-se levemente com a mão esquerda, no ombro da menina que, no banco ao lado, lia uma revista muito colorida. A menina ergueu os olhos. Tristes. Uns cabelos exactamente negros e longos ladeavam-lhe o pequeno sorriso só esboçado. Baixou a cabeça e retomou a leitura da revista colorida.

Retirou a mão numa desculpa silenciosa e ficou ainda a olhar os cabelos negros que desciam sobre os ombros e tornavam a esconder o rosto da menina.

Depois, de novo inquieto, voltou a observar a rua.

Teve uma sensação repousante de alívio. O autocarro acabava de entrar na Avenida da República. Mas que volta aquela!

Olhou o relógio. Tinha 17 minutos para apanhar o comboio. Era pouco. Com aquele caminho disparatado ia com certeza perdê-lo. E ter que esperar meia hora pelo outro. Que chatice, o trânsito.

O autocarro travou chiando, para deixar passar um grupo que, com uniforme leopardo e olhando correctamente em frente, atravessava a praça.

Aproveitou para admirar mais uma vez o Monumento. Realmente era bonito. Sempre apreciara a escultura.

 Devia ter dado um trabalhão dos diabos, o Monumento.

Num solavanco sem aviso o autocarro seguiu.

O ruído da Avenida deixou de se ouvir e apenas restou o silêncio interior, com o ciciar discreto de alguém que virava a página.

Lá fora, passada a praça, o campo estendia-se, o sol poente a desenhá-lo com nitidez e alguma melancolia.
Começou a fixar a janela quase obsessivamente. Viu as vacas que pastavam, as casas pequenas e distantes e até lhe pareceu ouvir um sino a badalar.

Não se conteve. Assim ia perder todos os comboios.

Largou a argola em que se pendurava e, com passos de marinheiro em autocarro, chegou junto do condutor.
- Mudaram o percurso? – interrogou quase agressivo.

O condutor não virou a cabeça. Continuou a olhar em frente, para a estrada que surgia, recta. Disse só:

- Não.

O autocarro acelerou um pouco.

Voltou para a sua argola e pendurou-se de novo.

No banco da frente, uma criança, ao colo da mulher forte de cabeça inclinada, virou-se para ele e ergueu um braço pequenino, num gesto mais pequeno ainda. E inútil.

Sempre preocupado com o comboio, ficou a olhar e a tentar compreender o que acontecia lá fora.

Passado o último renque de árvores, o autocarro entrou de novo na Avenida.

Respirou fundo. Talvez ainda chegasse a tempo.

Mas não conseguia saber onde se encontrava. Uma Avenida muito longa e larga sem nome conhecido, com prédios excessivamente altos de um lado e de outro. Rigorosamente iguais até ao fim.
Uma avenida. Vazia. Sem carros. Sem gente. Sem árvores.

Desistiu.

Passou algum tempo, no silêncio que o envolvia, sempre pendurado na argola e olhando inutilmente a mancha das flores esmagadas que marcava o chão.
O autocarro estacou de repente.

Balançou, desequilibrado, mas logo recuperou o equilíbrio e avançou para a porta que se abria, automática,
Foi o primeiro a saltar. Olhou em volta.

Uma estrada asfaltada prolongava-se até à entrada distante do que lhe pareceu, dali, ser uma quinta com um portão largo.

De cada lado surgiram-lhe dois homens altos e calados, uniformes negros e pequena metralhadora em bandoleira.

Seguraram-no. Um pelo cotovelo esquerdo, o outro pelo cotovelo direito. Começaram a andar. Os três. Em silêncio.

Sentiu passos atrás de si. Muitos.

Ao aproximar-se, o portão tornou-se-lhe mais nítido. Era bastante largo e gradeado.

Então, quando a distância lho permitiu, leu em letras metálicas numa faixa ondulante por cima da entrada

ARBEIT MACHT FREI

Realmente não se preocupou muito. Nem sequer sabia alemão.

(Novos Contos do Gin)
publicado por Carlos Loures às 01:00
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Quinta-feira, 8 de Julho de 2010

Operação Papagaio – a acção armada dos surrealistas contra a ditadura.(a realidade competindo com a ficção)

Carlos Loures

Quando se fala nas acções armadas contra a ditadura, recorda-se a ARA e a sua espectacular ofensiva contra o aeródromo militar de Tancos, destruindo 28 aeronaves, aviões e helicópteros, ou nas acções das Brigadas Revolucionárias contra as instalações da NATO ou ainda a LUAR, de Palma Inácio, com o seu audacioso plano de tomada da cidade da Covilhã. Mas esquecem-se os especialistas neste período da nossa História recente, da «Operação Papagaio». Inconsequente, com o seu quê de anedótica, organizada por civis – ainda por cima, poetas surrealistas. Contudo, se alguém quiser pegar nesta investigação deparará com a falta de fontes. Luiz Pacheco em “Prazo de Validade” (Contraponto, 1998) dedica um capítulo à operação. Com muitas falhas, a começar pela data. Logo no começo do texto, diz que tudo aconteceu quinze anos antes da Revolução de Abril, o que situaria os acontecimentos em 1959. Impossível.



Em 1959, sei que nada se passou, ninguém daquele grupo foi preso nesse ano. Idem nos dois anos seguintes. Inclinar-me-ia para 1962 ou mesmo em 1963. Em Dezembro de 1961 saí de Lisboa e, à cidade onde trabalhava, chegou-me a notícia (salvo erro, através do Adriano de Carvalho) da prisão de alguns amigos escritores do café Gelo na sua maior parte. Em Agosto tive as habituais férias. Passava-as com a família numa casita perto da Caparica. Não tinha carro (nem havia ainda a ponte) e uma manhã em que fora a Lisboa tratar de qualquer assunto, no regresso à Costa encontrei o Virgílio Martinho (1928-1994), o autor de «O Grande Cidadão», que morava em Almada ou nos subúrbios.

Fizemos juntos a travessia no «cacilheiro» onde apanhávamos os respectivos autocarros. Como disse, o Forte e mais uns «manos» tinham estado presos, mas não conhecia os pormenores. Foi ele que pela primeira vez me descreveu no que consistira a «Operação Papagaio», nome de código para uma tentativa de derrube da ditadura, feita por gente do chamado grupo do Gelo e do Royal – o António José Forte (1931-1988), o Renato Ribeiro, o Manuel de Castro (1935-1971) e o Mário Henrique-Leiria (1923-1980), que não pertencia ao grupo, mas era grande amigo de alguns dos seus elementos, como era o caso do Forte. Aliás, o Pacheco esqueceu o Mário-Henrique Leiria que, tanto quanto julgo saber, foi o elemento principal do grupo

O Mário era «entendido em armas; os outros. eram o mais civis que é possível. O Renato percebia alguma coisa do assunto, pois fora durante a 2ª Guerra oficial miliciano nos Açores, chegando ao posto de tenente e servindo na arma de Artilharia: foi degradado em Tribunal Militar, baixando a soldado raso devido a uma história rocambolesca ocorrida em São Miguel, em que teria protegido um soldado da sua bateria envolvido num crime de morte. Contava-se também que, antes de ser castigado, fizera fogo com uma anti-aérea sobre um avião norte-americano. Não foi castigado porque, estando a comandar a bateria, tinha ordem para atirar sobre todos os aviões não-identificados, o que era o caso, embora essa ordem fosse letra morta. Contavam-se muitas histórias do Renato, poeta de «Sombras»), colaborador da Pirâmide. Uma figura mítica, o Renato Ribeiro (o meu filho chama-se Renato em homenagem a ele). Perdi-lhe completamente o rasto, nem sei se ainda é vivo. Oxalá seja. Adiante.

A versão de Pacheco em «Prazo de Validade»(1998), não coincide totalmente com a que o Virgílio me contou. Mas o Pacheco não esteve envolvido na operação. O Virgílio também não, mas estava mais inteirado. Mais coincidente é a que Fernando Correia da Silva conta na sua biografia de Mário-Henrique Leiria (1923-1980), pois talvez a tenha ouvido do próprio Mário que esteve comigo no PRP, mas nunca me falou no assunto, embora divirja num aspecto essencial – O Fernando dá a operação como realizada o que comprovadamente é um equívoco (talvez da sua memória) – a operação abortou – aí o que o Martinho me contou e o que Pacheco diz no seu livro coincide totalmente. Quanto ao Forte, tendo sido seu colega na Fundação Gulbenkian, de onde saí em 1971, demo-nos até à sua morte, em 1988, almoçando juntos em regra uma vez por mês, além de vários passeios de fins-de-semana que demos juntos, eu, ele, a minha mulher e a sua, a artista plástica Aldina. Mas, tal como o Mário, o Forte não gostava de falar neste assunto. Tendo já falecido todos os participantes na operação (o Renato, se ainda vive terá perto de 90 anos), os dados são poucos. Será que nos arquivos da PIDE se encontrarão as respostas que faltam, nomeadamente as que dizem respeito à data.?

Em todo o caso, Pacheco dá-nos uma pista importante – Luiz Filipe Costa terá feito «uma artigalhada», segundo a pachequiana expressão, sobre o tema, publicando-a num semanário, o Extra, de existência efémera e de que não existem exemplares na Hemeroteca. Numa conversa com o Pacheco há muito anos numa esplanada do Parque Eduardo VII (durante uma Feira do Livro) em que nos referimos de passagem a este caso, deu-me a entender que o Luís Filipe Costa estaria por dentro da operação. O que faria sentido, pois era locutor do RCP. Luís Filipe Costa, um homem ligado ao 25 de Abril (foi ele que se encarregou de transmitir as senhas que serviram de arranque às operações). Só ele poderá esclarecer-nos.

Com todas estas limitações e interrogações, vamos lá então tentar uma quarta versão, subsidiária das outras três: a versão do Pacheco, a do Correia da Silva (herdada do Mário-Henrique Leiria e a minha recordação da conversa com o Virgílio no cacilheiro.

Na Primavera de 1962 (inclino-me mais para este ano), já tinha começado no ano anterior a Guerra Colonial, um grupo de escritores, surrealistas na sua maior parte, do qual faziam parte pelo menos aqueles que já citei, gizou um plano simples, mas que parecia eficaz. Com a casa do Mário-Henrique a servir de base de apoio, pois tinha uma moradia no largo principal de Carcavelos, junto da igreja e do Café São Jorge, transportando-se em dois carros (não sei de quem, pois nenhum dos citados tinha automóvel), cerca das dez da noite, atacariam o Rádio Clube Português na Parede. Dispunham de informações dadas do interior estação.

Sabia-se que àquela hora era posta a rodar uma bobina com um extenso programa do Igrejas Caeiro, «Os Companheiros da Alegria», e que até cerca da meia-noite só haveria um contínuo na estação, pois inclusivamente os intervalos para os blocos publicitários estavam gravados nessa bobina. A ideia era entrar, prender e amarrar o homem e pôr a rodar outra bobina que arrancava com o hino nacional e depois com uma voz grave que dizia, mais ou menos: «Interrompemos o nosso programa, para informar que se verificou um levantamento de tropas, havendo neste momento diversas unidades militares a caminho de Lisboa. Pedimos calma à população…, etc, etc. Marchas militares e, passados minutos, novo comunicado. Os comunicados seriam cada vez mais alarmistas, pedindo-se num dos últimos à população para se reunir no Rossio para saudar o advento da democracia, pois Salazar fora apeado e preso, dizia o «locutor».

Claro, que podia acontecer que alertadas as autoridades, a estação fosse ocupada e a bobina revolucionária fosse retirada antes de chegar ao fim. No fundo, o plano baseava-se na mesma ideia que Orson Welles, tivera com «A Guerra dos Mundos», em 1938, provocando o pânico nos ouvintes, que acreditaram que a Terra estava a ser invadida por marcianos. Neste caso, os marcianos eram as tais unidades que do Norte vinham sobre Lisboa, com a adesão maciça e crescente das unidades locais.

Quando à hora marcada os conspiradores chegaram junto dos portões da estação, tiveram uma desagradável surpresa – no ringue estava a disputar-se uma partida de hóquei em patins, com muita gente a assistir e polícia de serviço para manter a ordem. O RCP tinha instalações desportivas onde se disputavam provas nacionais – de hóquei, basquete, andebol, ginástica, etc.

Balbúrdia dentro dos carros, uns queriam avançar mesmo naquelas condições, mas a maioria decidiu sensatamente adiar o ataque para a semana seguinte, quando novamente estivesse a ser emitido o programa do Igrejas Caeiro.

Só que nos cafés onde paravam, nomeadamente o Café Royal do Cais do Sodré, o Gelo do Rossio e a Brasileira do Chiado, a «Operação Papagaio» era, desde há semanas, discutida e comentada de mesa para mesa como coisa trivial. Sobretudo na Brasileira, a dois passos da PIDE, paravam muitos agentes. Resumindo: os guerrilheiros surrealistas foram todos dentro. A polícia achou graça à ideia, nunca tinham por ali passado políticos como aqueles, poetas meio malucos que davam respostas inusitadas e transformavam os sinistros autos de perguntas numa espécie de «cadavre-exquis».

Durante os interrogatórios, aconteceu por diversas vezes os agentes saírem dos «gabinetes de investigação» e virem rir para o corredor. Não houve torturas. Não se formou processo. Umas chapadas, umas ameaças, e ficaram por ali. Tendo apanhado as armas que o Mário com tanto trabalho arranjara, a PIDE foi-os soltando. A «Operação Papagaio» fracassara. Aliás, como a maioria das que antes de 25 de Abril foram tentadas. Generais e figuras políticas da oposição não terão muitas razões para se rirem dos poetas surrealistas.

Cerca de dez anos depois, em Setembro de 1972, as forças armadas brasileiras, nomeadamente os fuzileiros, desencadearam uma grande operação contra os guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil que estavam acoitados numa região a Norte de Goiás. Chamaram-lhe «Operação Papagaio»: Mas, embora com o mesmo nome de código, não teve graça nenhuma esta operação. As forças da ditadura dos coronéis mataram diversos guerrilheiros comunistas e feriram muitos outros durante a investida.
publicado por Carlos Loures às 12:00
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