Segunda-feira, 17 de Janeiro de 2011

José Eduardo Agualusa - O Homem da Luz

Coordenação de Augusta Clara de Matos

 

 

 

 

Quem conta um conto...

 

 

 

Nicolau Alicerces Peshkov tinha uma ca­beça enorme, ou talvez o corpo fosse mirrado para ela, o certo é que parecia colocada por en­gano num físico alheio. O cabelo, o que restava, era daninho e ruivo e o rosto coberto de sardas. O nome improvável, a fisionomia ainda mais extraordinária, tudo isso se devia à passagem pelas terras altas do Huambo de um russo extraviado, um russo branco, que nos seus delírios alcoóli­cos se vangloriava de ter servido Nicolau II como oficial de cavalaria. Além do nome e das sardas Nicolau Alicerces Peshkov herdara do pai a paixão pelo cinema e uma velha máquina de pro­jectar. Foi precisamente o nome, as sardas, a máquina de projectar, digamos pois, a herança russa, que quase o levou a enfrentar um pelotão de fuzilamento.

 

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

Antes disso havia passado dois dias e uma noite escondido dentro de uma caixa de peixe se­co. Acordara sobressaltado com o latido dos ti­ros. Não sabia onde estava. Isso acontecia-lhe sempre. Sentou-se na cama e procurou lembrar-se, enquanto o tiroteio crescia lá fora: chegara ao entardecer, pedalando na sua velha bicicleta, alu­gara um quarto na pensão de um português, des­pedira o miúdo James, que tinha família na vila, e fora-se deitar. O quarto era pequeno. Uma cama de ferro com uma tábua por cima e sem colchão. Um lençol, limpo mas muito usado, puído, a cobrir a tábua. Um penico de esmalte. Nas pare­des alguém pintara um anjo azul. Era um bom desenho, aquele. O anjo olhava-o de frente, olha­va para alguma coisa que não estava ali, com o mesmo alheamento luminoso e sem esperança de Marlene Dietrich.

 

Nicolau Alicerces Peshkov, a quem os mucubais chamavam o Homem da Luz, abriu a janela do seu quarto para se inteirar das razões da guerra. Espreitou para fora e viu que ao longo de toda a rua se agitava uma turba armada, mili­tares alguns, a maioria jovens civis com fitinhas vermelhas amarradas na cabeça. Um dos jovens apontou-o aos gritos e logo outro fez fogo na sua direcção. Nicolau ainda não sabia que guerra era aquela mas compreendeu que, qualquer que fosse, estava do lado errado — ele era o índio, ali, e não tinha sequer um javite (machadinha) para se defender. Saiu do quarto, em cuecas, en­trou pela cozinha, abriu uma porta e encontro um quintalão estreito, fechado ao fundo por um alto muro de adobe. Conseguiu saltar o muro, trepando por uma mangueira esquá­lida, que crescia ao lado, e achou-se num outro quintal, este mais ancho, mais desamparado, junto a uma barraca de pau a pique que parecia servir de arrecadação. Pensou em James Dean. O que faria o garoto naquela situação? Certa­mente saberia o que fazer, James era um espe­cialista em fugas. Viu um tanque de lavar roupa, com água até cima, coberto por uma lona. James Dean entraria para dentro do tanque, e ficaria ali, o tempo que fosse necessário, à espera que lhe nascessem escamas. Ele, porém, não cabia naquela prisão. O corpo até se encaixava mas não a cabeça. Estava neste desespero, podia ou­vir a turba a aproximar-se, quando deu com a caixa de peixe. O cheiro era pavoroso, um odor forte a mares putrefactos, mas tinha o espaço exacto para um homem agachado. Assim me­teu-se dentro da caixa e aguardou.

 

 

publicado por Carlos Loures às 14:00

editado por Luis Moreira às 14:19
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