Coordenação de Augusta Clara de Matos
Quem conta um conto...
Nicolau Alicerces Peshkov tinha uma cabeça enorme, ou talvez o corpo fosse mirrado para ela, o certo é que parecia colocada por engano num físico alheio. O cabelo, o que restava, era daninho e ruivo e o rosto coberto de sardas. O nome improvável, a fisionomia ainda mais extraordinária, tudo isso se devia à passagem pelas terras altas do Huambo de um russo extraviado, um russo branco, que nos seus delírios alcoólicos se vangloriava de ter servido Nicolau II como oficial de cavalaria. Além do nome e das sardas Nicolau Alicerces Peshkov herdara do pai a paixão pelo cinema e uma velha máquina de projectar. Foi precisamente o nome, as sardas, a máquina de projectar, digamos pois, a herança russa, que quase o levou a enfrentar um pelotão de fuzilamento.
(ilustração de Adão Cruz)
Antes disso havia passado dois dias e uma noite escondido dentro de uma caixa de peixe seco. Acordara sobressaltado com o latido dos tiros. Não sabia onde estava. Isso acontecia-lhe sempre. Sentou-se na cama e procurou lembrar-se, enquanto o tiroteio crescia lá fora: chegara ao entardecer, pedalando na sua velha bicicleta, alugara um quarto na pensão de um português, despedira o miúdo James, que tinha família na vila, e fora-se deitar. O quarto era pequeno. Uma cama de ferro com uma tábua por cima e sem colchão. Um lençol, limpo mas muito usado, puído, a cobrir a tábua. Um penico de esmalte. Nas paredes alguém pintara um anjo azul. Era um bom desenho, aquele. O anjo olhava-o de frente, olhava para alguma coisa que não estava ali, com o mesmo alheamento luminoso e sem esperança de Marlene Dietrich.
Nicolau Alicerces Peshkov, a quem os mucubais chamavam o Homem da Luz, abriu a janela do seu quarto para se inteirar das razões da guerra. Espreitou para fora e viu que ao longo de toda a rua se agitava uma turba armada, militares alguns, a maioria jovens civis com fitinhas vermelhas amarradas na cabeça. Um dos jovens apontou-o aos gritos e logo outro fez fogo na sua direcção. Nicolau ainda não sabia que guerra era aquela mas compreendeu que, qualquer que fosse, estava do lado errado — ele era o índio, ali, e não tinha sequer um javite (machadinha) para se defender. Saiu do quarto, em cuecas, entrou pela cozinha, abriu uma porta e encontro um quintalão estreito, fechado ao fundo por um alto muro de adobe. Conseguiu saltar o muro, trepando por uma mangueira esquálida, que crescia ao lado, e achou-se num outro quintal, este mais ancho, mais desamparado, junto a uma barraca de pau a pique que parecia servir de arrecadação. Pensou em James Dean. O que faria o garoto naquela situação? Certamente saberia o que fazer, James era um especialista em fugas. Viu um tanque de lavar roupa, com água até cima, coberto por uma lona. James Dean entraria para dentro do tanque, e ficaria ali, o tempo que fosse necessário, à espera que lhe nascessem escamas. Ele, porém, não cabia naquela prisão. O corpo até se encaixava mas não a cabeça. Estava neste desespero, podia ouvir a turba a aproximar-se, quando deu com a caixa de peixe. O cheiro era pavoroso, um odor forte a mares putrefactos, mas tinha o espaço exacto para um homem agachado. Assim meteu-se dentro da caixa e aguardou.
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