Este post do Manuel Simões já tinha saído no Estrolabio, a 6 de Dezembro de 2010. Reproduzimo-lo hoje, dia do descobrimento do Brasil, pelo seu interesse, ao abordar uma questão tão importante, a propósito de uma polémica que decorreu na altura entre o Sílvio Castro e o Carlos Loures, aqui no nosso blogue.
Manuel Simões
Por circunstâncias várias, um escritor pode pertencer a duas literaturas, sendo, por vezes, até difícil determinar a qual está mais directamente ligado. O método para essa determinação costuma ter em conta três factores: a nacionalidade, a língua que veiculou a escrita e o tema privilegiado no acto de criação literária. É por isso que Gil Vicente e Francisco Manuel de Melo, por exemplo, constam dos manuaiis de literatura espanhola, porque ambos escreveram em castelhano, mas confesso que a primeira vez que constatei esse facto, tido como incontroverso, a minha perplexidade foi espontânea, como se a literatura espanhola se quisesse “apoderar” de dois autores portugueses. Não já pela língua, como é óbvio, mas pelos temas e aspectos culturais específicos, o Padre António Vieira (Lisboa, 1608-Bahia, 1697) é simultaneamente um escritor português e brasileiro: percebe-se nos escritos do jesuíta uma afinidade com as coisas e os seres brasileiros ao ponto de ele próprio se considerar “mazombo”, isto é, filho do Brasil mas de pais europeus (neste caso, portugueses).
Ora é por estas razões que não me repugna aceitar, seguindo até a historiografia literária, a “Carta” de Pero Vaz de Caminha não só como o acto de nascimento do Brasil – não obstante lhe tenha chamado “Terra de Vera Cruz “ – mas como o primeiro documento e monumento da literatura brasileira, porque nela confluem todos os temas que os escritores brasileiros usarão como traços distintivos: o mito do bom selvagem, a literatura indianista que se lhe seguiu, a feminilidade inocente e sedutora, mais tarde largamente recuperada e ressemantizada por muitos poetas e prosadores.
Isto não invalida a aceitação de que o primeiro e verdadeiro literato do Brasil colónia tenha sido o Padre José de Anchieta, nascido em Tenerife (Canárias), chegado ao Brasil em 1553, co-fundador de S. Paulo, gramático da língua tupi, poeta lírico e dramaturgo segundo o modelo de Gil Vicente, através de autos que utilizou com a finalidade de converter os índios ao cristianismo.
Julgo por isso radical a argumentação de Carlos Loures, segundo a qual “antes de haver estado brasileiro não existe literatura brasileira”. E lembro os casos, entre outros, de Ambrósio Fernandes Leitão, funcionário da Coroa no Brasil, com os seus “Diálogos das Grandezas do Brasil”, de Cláudio Manuel da Costa ou de Gregório de Matos, mestiço, filho de pai português e de mãe bahiana. Tomás António Gonzaga (1744-1810), que viveu entre Portugal e o Brasil, pertence, por direito, quanto a mim, às duas literaturas. E algumas vezes se fez a ponte entre as duas culturas, como no caso do mulato Domingos Caldas Barbosa (1740-1800) que difunde em Lisboa as ternas “modinhas”, talvez ligadas às origens do fado.
Carlos Loures tem razão quando se refere aos casos de Angola, Moçambique ou Cabo Verde. Devo lembrar, todavia, que por muitos anos, mesmo depois da independência, as literaturas destes países foram designadas genericamente por “Literaturas africanas de expressão portuguesa”, “Literaturas africanas de língua oficial portuguesa” ou até “Literaturas africanas lusófonas”, não ousando a crítica conceder-lhes a “carta de alforria”. Manuel Ferreira, a quem devemos os fundamentos destas literaturas, ainda em 1986 lhes atribuía o título genérico, dividindo internamente o seu trabalho pelos vários países mas sem conceder autonomia às novas literaturas.
Júlio Conrado há muito que se tornou conhecido na literatura portuguesa contemporânea, sobretudo depois dos romances Era a Revolução (1977), Maldito entre as Mulheres (1999) ou Desaparecido no Salon du Livre (2001), saborosa narrativa de intenção satírica e que, como obra literária, ganharia maior densidade de análise se fosse menos explícita a personagem objecto de escárnio. Depois disso, ainda publicou, entre outros, o romance Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira de 2006) e agora Barbershop (Lisboa, Ed. Presença, 2010), título de algum modo provocatório mas que se insere num contexto considerado cosmopolita como Cascais (Cascale no romance), espaço onde evolui a representação romanesca, embora com ramificações em Lisboa ou na ilha de Armona, em Olhão, referência esta que evoca sons e odores que a semântica da memória traz à superfície do texto: “era o cheiro urbano, lavado, de uma cidade, outrora vila (Ai Vila de Olhão/ da Restauração…Olá, Zeca!)”, uma espécie de fronteira odorífera para o narrador/autor (pp.98-102).
Apesar do indicador do título, não é a barbearia o espaço privilegiado para o desenvolvimento das acções. Numa delas, de nome afrancesado “Ao Corte Superior”, que antecede a designação moderna, tem por assim dizer início a estória que culminará de modo trágico no interior da outra barbearia (“A Brilhante”), ambas dirigidas, em épocas distintas, pelo barbeiro Diamantino Neto, instrumento do jogo perverso do destino trágico. De resto, as acções mais significativas têm lugar em alcovas (Bairro Alto, em Lisboa; Condomínio, em Cascais; ilha de Armona, de que já se falou) até porque o romance acaba por ter o seu núcleo narrativo nas duas relações sentimentais do protagonista Rogério Bordalo, que desaguam no casamento e viuvez no primeiro caso e divórcio no segundo, arquitectado no seguimento da traição de Bordalo com a brasileira que lhe promoveu a “barbershop”, traição recíproca como vingança e armadilha preparadas pela mulher. Curiosamente até, neste sistema que conduz à situação picaresca de uma personagem socialmente desqualificada, são as mulheres que saem vencedoras, se nos lembrarmos que a segunda, “que não suporta o corneio de homem a quem pague para o ter em exclusivo” (p. 109), era sócia honorária do chamado “Movimento Feminista Global, Sector Donas de Casa Prontas para Tudo”, que a orientaram no que o movimento representa como “ataque ao machismo”.
Romance polifónico na medida em que a sua modelização textual assenta na pluralidade de registos discursivos – e até linguísticos: notável o repositório de termos da gíria e de outras formas da cultura popular -, nem sempre as acções narradas correspondem ao princípio da verosimilhança. Este aspecto, sobretudo evidente nas referências ao poeta F.F., residente em Cascais, a quem é comunicada a atribuição do Prémio Nobel da Literatura (com a consequente recusa) e na surpresa quanto ao percurso ideológico e cultural do barbeiro, explica-se pela operação textual própria do género – trata-se, afinal, de um romance – com a escolha do Autor pela situação paródica, isto é, pela condução de partes essenciais da narrativa em termos irónicos, pondo em evidência a crítica ao modelo, de resto um procedimento já anteriormente experimentado por Júlio Conrado, no já citado Desaparecido no Salon du Livre, por exemplo.
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