Quarta-feira, 6 de Julho de 2011
O Movimento Realista e Novas Direcções
Assinala Foerster que em 1890 nos EUA houve mais greves do que em qualquer outro ano do século. A situação social e económica continuou agitadíssima nos anos seguintes, até 1896, ano em que foi eleito Presidente o republicano Mckinley. Entretanto, em 1898 foi anexado o Hawai. Desencadeia-se a guerra com a Espanha, para “libertar” Cuba, e depois com as Filipinas. Os EUA entram na posse de uma série de territórios além-mar (como Porto Rico e as Filipinas), mantêm protectorados sobre Cuba, Panamá e Nicarágua, intervêm no Extremo Oriente. Foerster refere que o Washington Post diz na época que “O gosto do Império está na boca do povo do mesmo modo que o gosto de sangue está na selva”. Esta frase brutal é talvez exagerada nalguns aspectos, mas sem dúvida que ajuda a explicar muito da história americana até hoje.
Nesta altura são muitos os aspectos novos na Literatura Americana. Ela cresce enormemente e conhece uma série de correntes e de inovações. Aparece uma literatura de ideias, em avultam HenryGeorge(1839-1897), Thorstein Veblen (1857-1929), sociólogo reputado, William James (1842-1910), psicólogo e filósofo, defensor do pragmatismo, e Henry Adams (1938-1918), historiador. O debate social tem fortes repercussões na ficção. A novela Looking Backward (1888), de Edward Bellamy, vende mais de 500.000 exemplares. Upton Sinclair (1878-1968) escreve A Selva (1906), sobre a destruição de uma família imigrante pela exploração a que estão sujeitos. A corrente naturalista ganha força, destacando-se Stephen Crane (1871-1900), com Maggie: A Girl of the Streets (1893) e The Red Badge of Courage (1895), Frank Norris (1870-1902), seguidor de Zola, que escreveu sobre a epopeia do trigo e Jack London (1876-1916), o mais famoso a nível mundial, e com enorme influência em muitos escritores. Houve também Theodore Dreiser (1871-1945), cujas obras mais famosas terão sido Sister Carrie (1900) e An American Tragedy (1925). Persiste uma corrente que alguns classificam de tradicionalista, na medida em que a integram escritores que estudam a realidade a partir de velhos valores. Incluirá (de modo talvez discutível) Edith Wharton (1862-1837), Willa Cather (1873-1947) e Sinclair Lewis (1885-1941), cuja obra inclui Main Street (1920), que terá sido classificado como “o livro mais importante da década do pós-guerra”, Babbitt (1922) e Elmer Gantry (1927), e foi o primeiro americano a vencer o Prémio Nobel de Literatura, em 1930.
Outro aspecto marcante é o renascimento da poesia norte-americana. Ele foi marcado pelo primeiro número de Poetry: A magazine of Verse, que apareceu em Chicago em 1912, e foi editado por Harriet Monroe. Foerster refere o poema dedicado a Chicago, Hog Butcher for the World, de Carl Sandburg (que VerbArte hoje publicou às 7.00). E dá-nos uma lista parcial de 22 livros de poesia publicados de1912 a 1917, entre cujos autores aparecem Amy Lowell (1874-1925), Ezra Pound (1885-1972), Carl Sandburg (1878-1967), Robert Frost (1874-1963) e T. S. Eliot (1888-1965).
A literatura norte-americana é um mundo que não cabe num pequeno post como este. A dramaturgia, o romance policial, outras correntes e especialidades, a análise do que foi a geração perdida, são questões que aqui não podemos tratar por falta de tempo e de espaço. Vamos referir apenas que escritores como James T. Farrell (1904-1979), John Steinbeck (1902-1968), John dos Passos (1896-1970) e Erskine Caldwell (1903-1987) são quatro nomes importantes de uma literatura de protesto que surge como consequência das convulsões que dilaceram nos anos 20 e 30 do século passado os EUA e o mundo.
Não se pode terminar sem referir Scott Fitzgerald (1896-1940), Ernest Hemingway (1899-1961) e William Faulkner (1897-1962). Os contemporâneos ficarão, tal como os temas acima referidos para outro post.
Scott Fitzgerald – escreveu novelas e contos, estudou em Priceton e combateu na I Guerra Mundial. A sua obra é grande, mas o expoente será The Great Gatsby (1925), que aborda o problema sucesso fácil e a qualquer preço, a partir da história de um contrabandista de álcool que quer ser aceite pela sociedade de Long Island. Outros livros seus famosos foram This Side of Paradise (1920) e Tender is the Night (1934).
Hemingway – a sua prosa, com um estilo muito cuidado, foi a sua marca dominante. Foi muito influenciado por Mark Twain e Stephen Crane, principalmente. É difícil escolher entre The Sun Also Rises (1926), A Farewell to Arms (1929) ou For Whom the Bell Tolls (1940). Serão os máximos da sua obra … Mas depois de The Old Man and the Sea (1952)… Prémio Nobel em 1954. Tido como o símbolo máximo dos escritores geração perdida.
William Faulkner – intérprete e crítico do espírito do Sul norte-americano profundo, a sua obra mais famosa será The Sound and the Fury (1929), sobre a decadência de uma família, outrora rica e famosa. Curiosamente, começa o romance partindo do olhar de um débil mental. Faulkner foi poeta, contista e escreveu uma obra muito vasta, que só relativamente tarde começou a ser reconhecida. Prémio Nobel em 1949.
(1878 - 1967)
HOG Butcher for the World,
Tool Maker, Stacker of Wheat,
Player with Railroads and the Nation's Freight Handler;
Stormy, husky, brawling,
City of the Big Shoulders:
They tell me you are wicked and I believe them, for I
have seen your painted women under the gas lamps
luring the farm boys.
And they tell me you are crooked and I answer: Yes, it
is true I have seen the gunman kill and go free to
kill again.
And they tell me you are brutal and my reply is: On the
faces of women and children I have seen the marks
of wanton hunger.
And having answered so I turn once more to those who
sneer at this my city, and I give them back the sneer
and say to them:
Come and show me another city with lifted head singing
so proud to be alive and coarse and strong and cunning.
Flinging magnetic curses amid the toil of piling job on
job, here is a tall bold slugger set vivid against the
little soft cities;
Fierce as a dog with tongue lapping for action, cunning
as a savage pitted against the wilderness,
Bareheaded,
Shoveling,
Wrecking,
Planning,
Building, breaking, rebuilding,
Under the smoke, dust all over his mouth, laughing with
white teeth,
Under the terrible burden of destiny laughing as a young
man laughs,
Laughing even as an ignorant fighter laughs who has
never lost a battle,
Bragging and laughing that under his wrist is the pulse.
and under his ribs the heart of the people,
Laughing!
Laughing the stormy, husky, brawling laughter of
Youth, half-naked, sweating, proud to be Hog
Butcher, Tool Maker, Stacker of Wheat, Player with
Railroads and Freight Handler to the Nation.
Terça-feira, 5 de Julho de 2011
(Continuação)
O Aparecimento do Realismo
Sobretudo após o fim da Guerra Civil (1861-1865), os Estados-Unidos conhecem um processo de crescimento e desenvolvimento para o qual é difícil, senão impossível, encontrar um paralelo na história do mundo. O crescimento industrial gigantesco, o desenvolvimento económico em todos os sectores, o crescimento populacional exponencial alimentado pela imigração, e a marcha para oeste (onde os pioneiros vão desbravar algumas das terras mais férteis do mundo) são componentes desse princípio. Assiste-se a um crescimento desmesurado do capitalismo. A outra face da moeda são o agravamento das tensões sociais, da miséria e das depressões económicas. A especulação financeira invade a economia. Foerster refere o papel dos magnatas no processo, procurando mostrar o lado positivo e o negativo. Mas não deixa de apontar o caso de Jim Fisk, aventureiro, corretor da bolsa de Nova Iorque, assassinado por um rival. Não esquece os índios, que são perseguidos, subjugados e reduzidos à miséria, principalmente devido ao massacre dos búfalos, para facilitar a expansão do caminho de ferro e a introdução do gado.
A literatura tinha de reflectir estas realidades tão gritantes. Em 1874, Mark Twain (Samuel Langhorne Clemens, 1835-1910), em conjunto com Charles Dudley Warner (1829-1900), publica a sua primeira obra de ficção, The Gilded Age, uma sátira social inspirada num caso real. É de salientar que Foerster informa que a ficção ficou muito aquém da realidade, pois o caso real envolveria verbas muito maiores do que as contadas no livro. Mark Twain tornou-se um escritor de nível mundial, porque, para além do seu formidável talento e do seu sentido de humor, as suas obras mais conhecidas, The Adventures of Tom Sawyer e The Adventures of Huckleberry Finn, não só reproduzem os modos de falar e o estilo de vida da região do Mississípi de uma maneira muito realista, mas sobretudo transmitem valores reconhecidos universalmente, mas pouco compatíveis com os dominantes nos EUA em expansão.
Para além de Mark Twain, dois outros escritores estão na vanguarda desta transição do romantismo para o realismo. William Dean Howells (1837- 1920), natural do Ohio, teve desde novo uma experiência de vida que o despertou para as realidades à sua volta, mas ao mesmo tempo recebeu uma educação clássica. Admirava Poe e Jane Austen. Os excessos do romantismo, contudo, fizeram com que se inclinasse para o realismo. De entre as suas obras destaca-se The Rise of Silas Lapham (1885), cujo personagem central é um empresário que se arruína devido à sua decisão de vender a sua fábrica de um modo ético.
Henry James (1843-1916), nasceu em Nova Iorque, e pertencia a uma família culta e abastada. O filósofo William James era seu irmão mais velho. Viveu muito tempo na Europa, tendo falecido em Londres. Osproblemas básicos que ressaltam das suas obras, logo desde o início da sua carreira, são a contradição entre as maneiras de ser e de proceder dos americanos e dos europeus, as realidades conflituais da arte e da vida e a confusão entre a psicologia e a ética na abordagem do bem e do mal. Deixou uma obra gigantesca. The Portrait of a Lady (1981) foi a sua primeira obra a ter grande êxito junto do público.
Outros autores se poderiam referir. Refira-se apenas Harriet Beecher Stowe (1811-1896), autora de Uncle Tom’s Cabin (1851), obra talvez de escasso valor literário, mas de poderoso conteúdo humano, e a quem Lincoln disse quando lhe foi apresentado, já se travava a Guerra Civil: “Como é que uma senhora tão pequena pode ter causado uma guerra tão grande?"
(Continua)
Segunda-feira, 4 de Julho de 2011
A melhor maneira de conhecer um povo é estudando a sua cultura. E a sua literatura pode revelar-nos os aspectos mais diversos da sua vida, da sua história e das maneiras de ser das suas gentes. Estudando-a ao longo dos tempos, conseguimos chegar a uma ideia dos valores desse povo, das suas ambições, dos seus sofrimentos e do caminho que percorreu.
O Professor Norman Foerster no seu livro Image of America, de 1962, traduzido no Brasil por Lúcia Carvalho Alves, para a Editora Lidador, do Rio de Janeiro (colecção Mimesis), com o título A Literatura como Imagem, distingue cinco fases na história da literatura dos Estados Unidos.
A Época Puritana.
Em 1620 um grupo de puritanos, que fugiam das perseguições em Inglaterra, fundaram Plymouth, em Massachusetts. Depoisvieram vagas sucessivas de emigrantes. Deram à Nova Inglaterra uma carácter especial, que, em alguns aspectos, perdurou até hoje. William Bradford (1590 – 1657), que governou a colónia de Plymouth durante mais de trinta anos, escreveu a History of Plymouth Plantation, onde conta a história do seu grupo de peregrinos e as razões porque viajaram até à América. Foerster assinala que a colónia era governada pelo clero, cujos elementos eram pessoas conhecedoras de teologia, hebreu e grego. E os puritanos eram ingleses, fortemente marcados pela cultura inglesa, e desejosos de assim continuar, transmitindo aos seus filhos a cultura que lhes fora legada. Escreveram sobretudo biografias e autobiografias, sermões e outros textos muito enformados pelo espírito religioso. A maior figura desta época terá sido Jonathan Edwards (1703 -1758), pregador revivalista, defensor do calvinismo.
A Idade Neoclássica
Foerster chama a atenção para que o século XVIII já não foi dedicado à religião mas à ciência e à política. Nesta fase a ficção continuou num lugar secundário nas letras norte-americanas. Liam-se, é verdade, escritores ingleses como os romancistas Defoe, Fielding, Sterne, poetas como Alexander Pope, e também Jonathan Swift, o Dr. Johnson e outros. Mas os escritores locais mais lidos eram, sem dúvida Benjamin Franklin (1706 – 1790) e Thomas Jefferson (1743 – 1826), o presidente da comissão que redigiu a Declaração da Independência. Os escritos políticos eram numerosos, como o Common Sense e The American Crisis, de Thomas Paine (1737 – 1809). Deu-se grande ênfase ao estudo dos autores clássicos. Data de 1789 The Power of Sympathy, de William Hill Brown, a primeira novela americana, segundo nos informa Foerster. Em 1767 tinha sido representada em Filadélfia (o maior centro cultural do país na época) The Prince of Parthia, uma peça de Thomas Godfrey, a primeira a ser encenada por uma companhia profissional. Philip Morin Freneau (1752 – 1832) foi o principal poeta da época.
O Movimento Romântico
A América entrou numa fase de expansão rápida, sobretudo depois da guerra com a Inglaterra de 1812, e do fim das guerras napoleónicas. A população aumentou, a expansão para o oeste abriu novos horizontes. As diferenças regionais, em meados do século XIX, eram enormes. Houve como que uma recuperação do espírito religioso. Na Europa irrompeu o romantismo, curiosamente alimentado também pela epopeia americana. Em 1820, diz-nos Foerster, alguém perguntava: “Quem lê um livro americano?”. Esta pergunta, pouco tempo depois, deixou de ter razão de ser. Em Nova Iorqueapareceu a Escola Knickerbocker, uma associação de escritores, que está na origem do Movimento Romântico norte-americano. As suas figuras principais foram Washington Irving (1783–1859), James Fenimore Cooper (1789–1851) e William Cullen Bryant (1794-1878). Em Setembro de 1836, forma-se o grupo de Concord (uma vila perto de Boston), cujas figuras mais notáveis terão sido Ralph Waldo Emerson (1803-1882) e Henry David Thoreau (1817-1862). Edgar Allan Poe (1809-1849), poeta, contista, crítico literário, figura maior da literatura mundial, tem como tema dominante a procura da beleza que a tudo supera, e procura aliar-lhe o culto pelo exótico. Nathaniel Hawthorne (1804-1864) escreve The Scarlet Letter, sobre os efeitos do pecado e da sua ocultação. Herman Melville (1819-1891), ao contrário dos outros românticos norte-americanos, vira-se para temas mundiais e contemporâneos, e tem como obra máxima Moby Dick. Henry Wadsworth Longfellow (1807-1882) era o poeta mais lido na altura. James Russell Lowell (1819-1891) escreveu The Biglow Papers. Walt Whitman (1819-1892) é considerado como o maior poeta norte-americano do século XIX. E muitos outros nomes acompanham estes, passando a literatura norte-americana para a primeira linha mundial.
(Continua)
Segunda-feira, 17 de Janeiro de 2011
Aquest espai, dedicat a tots els amics d'Estrolabio i, de manera molt especial, als que segueixen el nostre bloc des de les terres de parla catalana. Aquí parlarem de cultura lusòfona i de cultura catalana, i de les qüestions i els problemes que ens afecten als uns i als altres.
En acabar l'any 2010 ha arribat a les llibreries la versió catalana de Vidas Sêcas (Vides seques), de Graciliano Ramos, en una traducció del poeta català Josep Domènech Ponsatí, editada per Adesiara, Barcelona.
Aquesta obra capdavantera de la literatura brasilera, publicada en 1938, és un títol cabdal d'una narrativa que, si la volguéssim singularitzar amb una categoria pròpia, podríem molt bé anomenar l'"èpica de la impotència". La peripècia de Fabiano, heroi sense grandesa èpica i tanmateix tan pregonament arrelat en l'essència de dignitat de la vida humana, és el paradigma de l'existència de milers de milions d'éssers humans que han poblat la Terra al llarg dels segles, lluitant contra l'adversitat del paisatge, del clima, de l'eixutesa de la terra erma o improductiva, de la misèria, i també de l'opressió, de la injústicia, dels privilegis dels poderosos que no només els han negat el dret a gaudir de tota aspiració humana, sinó també el dret a formar part de la història. Carn de canó, força de treball, tota la riquesa, tot el poder, tota la grandesa que en la història passada o present ens enlluerna s'ha construït amb la força de treball dels desposseïts de tot, dels menystinguts i els ignorats que no han entrat mai en la història.
La novel·la de Graciliano Ramos va coincidir en el temps amb una altra de las grans obres de l'èpica de la impotència, The Grapes of Wrath, de John Steinbeck, publicada el 1939, que em sembla una de les grans novel·les del segle XX. Al capítol 3, Steinbeck construeix una metàfora d'aquesta èpica de la impotència amb la descripció dels esforços d'una tortuga que, arrossegant la feixuga càrrega amb què l'ha dotada la naturalesa, intenta salvar el desnivell rost que separa els camps d'ordi del ferm de la carretera. Formant part de la munió de petits animalons invisibles entre els sembrats (in the shade under the grass the insects moved, ants and ant lions to set traps for them, grasshoppers to jump into the air and flick their yellow wings for a second, sow bugs like little armadillos, plodding restlessly on many tender feet) la petita tortuga intenta remuntar el marge que la separa de la carretera. L'animal lluita contra el terreny, contra la gravetat i contra la pròpia naturalesa:
"...the hill, which was the highway embankment, reared up ahead of him. For a moment he stopped, his head held high. He blinked and looked up and down. At last he started to climb the embankment. Front clawed feet reached forward but did not touch. The hind feet kicked his shell along, and it scraped on the grass, and on the gravel. As the embankment grew steeper and steeper, the more frantic were the efforts of the land turtle. Pushing hind legs strained and slipped, boosting the shell along, and the horny head protruded as far as the neck could stretch.[...] The back legs went to work, straining like elephant legs, and the shell tipped to an angle so that the front legs could not reach the level cement plain. But higher and higher the hind legs boosted it, until at last the center of balance was reached, the front tipped down, the front legs scratched at the pavement, ad it was up."
Quan la tortuga assoleix la carretera, el conductor d'un camió –amo i senyor de la carretera– la veu i fa una maniobra forçada per aixafar-la (...the driver saw the turtle and swerved to hit it). La tortuga, empesa per la roda del camió, és llançada fora de la carretera, novament a la pols dels sembrats, al nivell inferior que amb tant d'esforç havia provat de superar:
"... Lying on its back, the turtle was tight in its shell for a long time. But at last its legs waved in the air, reaching for something to pull it over. Its front foot caught a piece of quartz and little by little the shell pulled over and flopped upright. [...] The turtle entered a dust road and jerked itself along, drawing a wavy shallow trench in the dust with its shell. The old humorous eyes looked ahead, and the horny beak opened a little. His yellow toe nails slipped a fraction in the dust."
A cada nou intent, un nou fracàs, i amb cada nou fracàs, la lluita recomença, amb una cadència cíclica i sense fi. Així, en un camí d'objectius impossibles, es consumeix la vida dels personatges de Steinbeck, i així es consuma la peripècia de Fabiano i la seva família en la novel·la de Graciliano Ramos. Aquestes "vides seques" que omplen les pàgines del que he anomenat l'èpica de la impotència són el paradigma de la vida de tants éssers humans, no ja de la història passada, sinó del nostre món actual.
Si les nostres "reconstruccions" del passat, de les quals ens sentim sovint tant cofois i orgullosos i que tant alimenten la vanitat de les nostres societats, obrissin les seves portes a tots els protagonistes silenciats, oblidats, expulsats de la història –com la tortuga de Steinbeck–, tota la grandesa de les nostres èpiques miserables quedaria en no res, com les bombolles de sabó que, en esclatar, desapareixen. I si això és així en relació amb el passat, què direm del present? Què en restarà, de l'estat del benestar, si la realitat en què vivim instal·lats s'eixampla per donar cabuda a tots els éssers humans, per fer realitat per a tothom sense excepció l'acompliment d'aquests drets humans amb què tan sovint ens omplim la boca? No ja els dret a l'habitatge, a l'educació, a la sanitat, al lleure..., sinó el dret encara molt més elemental a la supervivència.
Al Brasil, aquella terra immensa en un trosset de la qual Graciliano Ramos construeix –amb sensibilitat d'educador i coherència de militant de la igualtat entre els homes– la peripècia vital de Fabiano, la nova presidenta, Dilma Roussef, es planteja com a objectiu –així ho diu– acabar amb la pobresa. És fàcil caure en la temptació de dir que es planteja un objectiu impossible, però no és cert. Moltes de les mil cares de la pobresa –al Brasil i arreu– es poden eliminar. Perquè la pobresa no és condició natural de ningú, sinó càrrega social i arbitraria, i això vol dir que és fruit de la injustícia, la desigualtat, l'abús de poder, la usurpació dels béns i de les fonts de riquesa... I, si és cert que volem proveir-nos d'una societat de drets, la lluita contra aquests mals, que es poden identificar tan inequívocament, ha de ser possible.
No sé la difusió que aquesta traducció de Vidas seques tindrà entre els lectors catalans. Però, vull convidar-los a llegir-la. No hi trobaran herois, ni sants, ni màrtirs, ni glòries nacionals, ni l'èpica de l'astúcia o de la força, temes als quals estem tan avesats i que han omplert tantes i tantes pàgines de ficció literària. Hi trobaran –a més de la qualitat de l'escriptura– una narració honesta, compromesa, que apel·la, sense demagògies, a la consciència, a la dimensió social i ètica del lector, amb el simple testimoni d'aquestes vides seques en una terra –i una societat– hostil. Personatges damnats, itinerants, condemnats a un exili sense fi, mancats de grandesa, protagonistes d'una èpica que no té cabuda en els llibres d'història, l'èpica de la impotència.
Josep A. Vidal
publicado por Josep Anton Vidal às 10:00
editado por Luis Moreira em 16/01/2011 às 23:19
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Segunda-feira, 6 de Dezembro de 2010
O PEÃO
Ray Bradbury
Penetrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de Novembro, pousar os pés sobre o sólido passeio de cimento, pisar as fendas com ervas, e andar, de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Ficaria numa esquina de um cruzamento, olhando as ruas banhadas pelo luar nas quatro direcções, decidindo por onde ir, mas realmente, não faria diferença; estava sozinho, neste mundo de 2053 a.D., ou, como se estivesse só. Tomada uma decisão definitiva, escolhido um caminho, começaria a andar, soltando baforadas de ar congelado à sua frente, como o fumo de um cigarro. Às vezes, andava durante horas, milhas, e voltava para casa só à meia-noite. E, no caminho, via casas, grandes e pequenas, com as suas janelas escuras; era como caminhar por um cemitério, pois só leves clarões de luz fantasmagórica eclodiam por detrás das janelas. Súbitos e cinzentos espectros pareciam surgir sobre as paredes das salas, onde uma cortina ainda estava aberta para a noite, ou cicios e murmúrios onde uma janela num edifício-túmulo estava ainda aberta.
O Sr. Leonard Mead parava, inclinava a cabeça, ouvia, olhava, e continuava a marcha, os pés sem fazer ruído no pavimento irregular. Há muito que, prudentemente, passara a usar sapatos de ténis para passear à noite, porque os cães, em alguns quarteirões, seguiriam a sua caminhada com latidos, se usasse calçado com sola de couro, as luzes poderiam acender-se, e rostos aparecer, toda uma rua se alvoroçar com a passagem de um vulto solitário; ele mesmo, no começo de uma noite de Novembro.
Nesta noite, em particular, tomara a direcção Oeste, rumo ao mar, invisível. Havia um frio cristalino no ar que cortava o nariz e fazia os pulmões arder por dentro, como uma árvore de Natal; podia-se sentir as luzes acendendo e apagando, os ramos cheios de uma neve invisível. Escutava com prazer o calçado macio empurrando delicadamente as folhas de Outono, assobiava frio e baixinho, entre dentes, arrancando ocasionalmente uma folha de passagem, examinando o desenho esqueletal, à luz de um raro candeeiro público, enquanto caminhava, aspirando seu odor ferruginoso.
-- Ó da casa -- murmurava para cada casa, por todo lado, enquanto passava. -- O que passa hoje no Canal 4; Canal 7; Canal 9? Para onde estão correndo os "cow-boys", e onde está a Cavalaria dos Estados Unidos, para sair daquela colina, e salvar a situação?
A rua silente, longa, vazia, apenas com a sua sombra movendo-se, como a sombra de um falcão, no meio de uma planície. Fechou os olhos, e permaneceu imóvel, gelado. Podia imaginar-se no meio de uma planície, numa pradaria americana, sem ventos, inverno, sem qualquer casa num raio de mil milhas - só leitos secos de rios, como aquelas ruas.
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-- E agora, o que temos? -- perguntou para as casas, olhando o relógio de pulso -- Oito e meia? Hora de uma dúzia de episódios de assassínios? Um concurso? Um musical? Um comediante tropeçando e caindo do palco?
Terá ouvido um murmúrio de risos, vindo de uma das casas brancas ao luar? Hesitou, mas continuou, quando nada mais aconteceu. Tropeçou numa irregularidade maior do passeio. O cimento estava a desaparecer, sob flores e mato. Em dez anos de caminhada, noite e dia, por milhares de milhas, nunca encontrara outra pessoa passeando, nunca, nem uma só vez. Chegou a um cruzamento deserto, onde duas avenidas principais atravessavam a cidade. Durante o dia, era uma trovejante corrente de carros, os postos de gasolina abertos, um grande farfalhar de insectos, e um incessante mudar de posição, enquanto os carros-escaravelho, uma névoa de incenso saindo dos tubos de escape, corriam para casa, nas mais diversas direcções. Mas agora, estas estradas, eram como os leitos de rios secos no Verão, banhados pelo luar.
Virou numa rua secundária, de regresso a casa. Estava a um quarteirão de chegar, quando, subitamente, um carro solitário dobrou a esquina e fez incidir um forte cone de luz branca sobre ele. Deteve-se, aturdido, como uma borboleta, atordoado pela luz, mas por ela atraído.
Uma voz metálica advertiu-o:
-- Fique onde está! Não se mova!
Parou.
-- Levante as mãos!
-- Mas... – disse ele.
-- Mãos para cima! Ou atiramos!
A polícia, claro, mais que coisa rara, incrível; numa cidade de três milhões de habitantes, restava só um carro de polícia, não era isso? Já havia um ano, desde 2052, o ano das eleições, que a força policial havia sido cortada de três para um carro. O crime estava a desaparecer; não havia necessidade de polícia, excepto este carro solitário vagueando pelas ruas desertas.
-- O seu nome? -- disse o carro, num chiado metálico. Ele não podia ver os guardas lá dentro, por causa da luz muito forte nos seus olhos.
-- Leonard Mead -- respondeu.
-- Mais alto!
- Lonard Mead!
-- Negócio, ou profissão?
-- Acho que me pode considerar um escritor.
-- Sem profissão -- disse o carro-patrulha, como que falando sozinho. A luz mantinha-o fixado como um espécime de museu, com uma agulha espetada no meio do peito.
-Pode-se dizer-se assim -- afirmou o Sr. Mead. Havia anos que não escrevia. Já não se vendiam livros e revistas. Tudo continuava como sempre nas casas-túmulos, à noite, pensou. Os túmulos, mal iluminados pela luz da televisão, onde as pessoas se sentavam como os mortos, as luzes cinzentas ou multicoloridas tocando suas faces, mas nunca tocando o seu íntimo.
-- Sem profissão -- chiou a voz fonográfica. – O que está a fazer cá fora?
-- A passear -- disse Leonard Mead.
-- A passear?
-- Só a passear -- disse, simplesmente, percorrido por um arrepio.
-- Passeando, passeando, passeando?
-- Sim, senhor.
-- Indo para onde? Para quê?
-- Para apanhar ar. Passeando para ver.
- A sua morada.
-- Onze, Sul, rua Saint James.
-- E não há ar na sua casa; o senhor não tem ar condicionado, Sr. Mead?
-- Sim.
-- E tem uma tela visora, na sua casa?
-- Não.
-- Não? -- Houve uma interrupção crepitante, que em si era já uma acusação.
-- É casado, Sr. Mead?
-- Não.
-- Não casado -- disse a voz policial atrás do facho, que queimava. A luz estava alta e clara, por entre as estrelas, e as casas escuras e silenciosas.
-- Ninguém me quis -- disse Leonard Mead, sorrindo.
-- Não fale, a menos que seja interpelado!
Leonard Mead esperou, sob a fria noite.
-- Apenas passeando, Sr. Mead?
- Mas ainda não explicou com que propósito.
-- Já expliquei; para apanhar ar, ver, e simplesmente pelo prazer de andar.
-- Já fez isso muitas vezes?
-- Todas as noites, há anos.
O carro-patrulha estava estacionado no meio da rua, com sua garganta de rádio zumbindo fracamente.
-- Bem, Sr. Mead -- disse.
-- Isso é tudo? -- perguntou, polidamente.
-- Sim -- respondeu a voz. -- Por aqui. -- Houve um sopro, e um estalido. A porta traseira do carro da polícia escancarou-se. -- Entre.
- Olhe lá, eu não fiz nada!
-- Entre.
-- Protesto.
-- Sr. Mead.
Avançou como um homem subitamente embriagado. Ao passar pela janela dianteira do carro, olhou para o interior. Como esperava, não havia ninguém no assento dianteiro, não havia ninguém no carro.
-- Entre.
Pôs a mão na porta e olhou para o banco traseiro, que era uma pequena cela, uma pequena cela escura, com grades. Cheirava a aço rebitado e a anti-séptico forte; um intenso odor higiénico, metálico. Nada era macio, ali dentro.
-- Se tivesse uma esposa que lhe desse um álibi -- disse a voz de aço. -- Mas...
-- Para onde me vai levar?
O carro hesitou, ou melhor, houve um zumbido abafado, como se a informação, algures, fosse dada por cartões perfurados, e olhos eléctricos -- Ao Centro Psiquiátrico de Pesquisa sobre Tendências Regressivas.
Entrou. A porta fechou-se com um som abafado. O carro da polícia rodou pelas avenidas, a meio à noite, com os faróis acesos.
Passaram por uma casa, numa rua, um momento depois, uma casa, em toda uma cidade de casas escuras, mas esta casa, em particular, tinha todas as luzes bem acesas, cada janela uma berrante iluminação amarela, quadrada e quente na fria escuridão.
- Aquela é minha casa -- disse Leonard Mead.
Ninguém respondeu.
O carro foi pelas ruas vazias, como leitos de rios secos, afastando-se, deixando as ruas vazias, com os seus passeios vazios, sem som nem movimento, na fria noite de Novembro.
Extraído de E de Espaço © 1978 by Hemus-Livraria Editora Ltda -Título original: S is for Space © 1966 by Ray Bradbury
Sexta-feira, 26 de Novembro de 2010
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Foto: José Magalhães |
José MagalhãesNa minha cidade
Nasce o Norte insubmisso
E gente de rostos rugosos
Falando com impropérios
Nasce o regionalismo com viço
E nos belos Invernos chuvosos
Também nascem os mistérios
A minha cidade
Cheira a rio e cheira a mar
E tem poentes de ouro
A enfeitar o granito.
Tem pombas a esvoaçar
Rabelos colorindo o Douro
E mar até ao infinito.
Tem uma bruma no ar
Gente que é um tesouro
E pregões ditos em grito.
Na minha cidade
Fala o pobre e fala o rico
Comendo sardinhas e iscas
Fala a voz de uma paixão
Contra qualquer mexerico
Loas aos quadrados e às riscas
Gritam na pantera e no dragão
E quando os ouço, absorto
Sinto dentro de mim um frémito,
e ouço um grito
“VIVA, PORTO,
ÉS UMA NAÇÃO!”
Segunda-feira, 8 de Novembro de 2010
Fernando Moreira de Sá
Nestes tempos estranhos de crise leio muito blogger a culpar o D. Afonso Henriques desta nossa desdita. Eu, ignorante, atribuía a culpa a outras personagens, assim de raspão: José Sócrates, Teixeira dos Santos ou Pedro Silva Pereira. Afinal estava equivocado. Ou não.
Na verdade, nunca percebi a estratégia de D. Afonso Henriques. Ele preferiu rumar a Sul em vez de tomar o Norte. Reparem, o Sul é como um galanteador, uma espécie de vida paralela de visita esporádica. Nunca um compromisso eterno. No caso, um local de rara beleza – Lisboa é uma donzela de caracóis loiros e tentadora de tão bela e o Alentejo é estonteante de tão sedutor – mas não pode ser levado a sério nem devemos com ele assumir compromissos de longo prazo fruto de ser estouvado, gastador e com a mania das grandezas. Independentemente dos sopapos que o nosso Primeiro terá dado a sua Mãe (uma mentira pois um verdadeiro Homem do Norte jamais seria capaz de bater numa mulher, bem pelo contrário) o seu verdadeiro primeiro erro foi geográfico.
O problema de D. Afonso Henriques foi a falta de um estrolabio e não ter tido um consultor de comunicação. Nem, tão pouco, ter escutado os Deuses. Caso contrário, a tomada das terras galaicas, da actual Galiza, teria sido a estratégia seguida. O estrolabio indicaria, com precisão, o caminho a seguir (Tuy, Vigo, Pontevedra, Ourense, Lugo, Santiago, Corunha, Ferrol, em suma, o Alto Minho); o consultor de comunicação preparava toda a estratégia justificativa da opção tomada e os Deuses saberiam inspirar e convencer o jovem guerreiro da importância da empreitada. Foi uma tolice.
Por isso, neste primeiro semestre do Estrolabio, só espero que este instrumento de elevada precisão me possa ajudar a manter-me atento ao horizonte e perceber que a Sul está a beleza mas é a Norte que encontro a inspiração.
Por Toutatis, Pinto da Costa e Hulk, F.C.Porto, Celta de Vigo e Depor. Pelo Douro e Minho, sem esquecer, Abadín, Baxoi, Arnoi e Asma. Uma mesma Língua e Geografia, um mesmo Povo. Um grande abraço a todos os companheiros de blogue e aos nossos leitores neste primeiro semestre de existência!
Segunda-feira, 11 de Outubro de 2010
João MachadoIntrodução
Passou no dia 7 de Outubro mais um aniversário da morte de Edgar Allan Poe. Ocorrida em circunstâncias que não estão completamente estabelecidas, pôs fim a uma vida difícil, recheada de dramas e dificuldades de toda a espécie. Entre elas, o do reconhecimento no seu próprio país, que só aconteceu bastantes anos depois.
Poe é hoje reconhecido como um dos vultos mais interessantes da literatura norte americana. E mesmo da literatura mundial. Contudo é famoso em primeiro lugar pelas histórias de terror e mistério que escreveu. Já o é menos pelo seu talento como poeta. E ainda menos por ter sido o criador da chamada detective story, que nós vulgarmente chamamos história policial, ou romance policial, e ser assim o precursor de Conan Doyle, Agatha Christie e tantos outros escritores famosos. E é muito pouco conhecido por ter sido um teorizador da literatura, à qual pretendeu mesmo dar um carácter científico.
Uma personalidade controversa
Helena Barbas, na introdução ao seu livro
Poética (Textos Teóricos), que inclui a tradução de quatro textos teóricos de Poe, começa por recordar que não existe nenhuma biografia fidedigna deste. Jean Royère (1871-1956), no seu livro
Clartés sur la Poésie, refere que o primeiro biógrafo oficial de Poe, Rufus Wilmot Griswold, introduziu no seu trabalho graves calúnias, que terão sido reproduzidas por outros autores. Mesmo a causa da sua morte é muito discutida. Uns atribuem-na ao alcoolismo, outros a doença, e ainda há outros que aventam a hipótese de ter sido vítima de uma agressão.
A maioria dos biógrafos concorda em que o escritor teve uma existência infeliz, com numerosos episódios de desastres afectivos. O primeiro foi sem dúvida a morte do pai e da mãe quando ainda era uma criança pequena, o que fez com que tivesse de ser recolhido por outra família, de onde lhe vem o apelido Allan. Desde novo que teve grandes desgostos amorosos, que culminaram com a morte de Virgínia, a sua jovem esposa, vítima de tuberculose, em 1847, portanto dois anos antes da morte do próprio Poe. Entretanto frequenta a Universidade da Virgínia, e mais tarde, a Academia Militar de West Point. Em ambos os casos, não terá concluído os estudos.
Poe era sem dúvida dotado de uma inteligência excepcional e de uma cultura vastíssima, e interessava-se pelos mais variados assuntos. Amante de História Natural, chegou a publicar um manual de conquiliologia. Também escreveu sobre criptografia. Ganhava a vida escrevendo para jornais e revistas, chegando a vender por quantias módicas alguns dos seus melhores trabalhos. A sua actividade como crítico literário granjeou-lhe muitas polémicas e mesmo inimizades. As críticas a Longfellow, a Emerson e a outros contemporâneos produziram um grande impacto, muitas vezes desfavorável, sendo sem dúvida uma das razões porque, durante muito tempo, não foi tido em grande conta no seu próprio país. Foi sobretudo em França que começou a ser grandemente valorizado.
Sob o signo de Edgar Poe
Fui buscar o subtítulo acima a
La Littérature Fantastique, de Jean-Luc Steinmetz
. Este assinala que Poe teve muitos imitadores, mas que poucos conseguiram captar o humor, a distinção e a inteligência com que ele tratou o que o legado do romantismo lhe tinha trazido em estado de terror em bruto.
Poe foi obviamente influenciado por Ann Radcliffe (1764-1823)
, e por outros seguidores do chamado romance gótico.
The Fall of the House of Usher (1839) é o seu conto que mais claramente mostra essa influência. A propósito, é de referir que enunciou a ideia de que o conto (“the Tale”) proporciona “a melhor oportunidade de prosa para exibir o talento mais elevado”, numa crítica à obra de Hawthorne
.
No que respeita a influências poéticas, há que assinalar a de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), cujas ideias Poe chegou mesmo a ser acusado de usurpar. É preciso dizer neste campo que Poe se apresentava como um cultor da forma, defendendo que a música, como a forma de arte mais perfeita, deveria ser o principal padrão de referência para a poesia, até por ser a melhor maneira de produzir efeito no ouvinte ou no leitor. Defendeu também que o poema deve ser breve, para poder ser lido de uma só vez, e assim tornar mais intenso o efeito poético. Estas e outras ideias que apresenta nos seus textos teóricos foram contestadas pelos seus contemporâneos americanos, mas o seu interesse foi posteriormente reconhecido, não só em França, mas pelos meios literários em geral.
Na verdade, a fama de Poe em França (e também em Inglaterra), na segunda metade do século XIX, foi enorme. Baudelaire e Mallarmé traduzem Poe para francês, Júlio Verne escreve uma sequência ao romance The Narrative of Arthur Gordon Pym, intitulada Sphinx des Glaces, Villiers de l’Isle-Adam e até Maupassant denotam a sua influência. A norte do canal, Tennyson presta-lhe tributo. E quem negará que The Happy Prince e The Portrait of Dorian Gray, de Oscar Wilde, ou Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Stevenson, têm a influência de Poe?
Já falei acima da detective story, ou romance policial, para todos nós. Género muito menosprezado pelo snobismo intelectual, só há pouco tempo começa a ser compreendido todo o seu potencial. A sua criação deve-se sem dúvida a Poe. Até o sistema narrativo, de um escriba a relatar os trabalhos de um decifrador de mistérios, foi retomado pelos seus seguidores. O Dr. Watson, narrador das aventuras de Sherlock Holmes, é inspirado no narrador das brilhantes deduções de Auguste Dupin. The Murders in the Rue Morgue (1841), são a abertura para um novo género literário.
Edgar Allan Poe foi um poeta extraordinário, contista fenomenal, teórico e crítico literário. Mas foi também um desbravador de novos caminhos para a literatura
em geral. Permitam-me que termine este breve trecho com a tradução de
O Corvo, por Fernando Pessoa (que, ao que parece, não apreciava muito o resto da obra de Poe):
FERNANDO PESSOA
(1888-1935)
O CORVO
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
É só isso e nada mais.»
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais —
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isso e nada mais».
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi...» E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isto só e nada mais.
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.»
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
«É o vento, e nada mais.»
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Diz-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»
Disse-me o corvo, «Nunca mais».
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome «Nunca mais».
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto, Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais. Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais». Disse o corvo, «Nunca mais». A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
«Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este «Nunca mais».
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele «Nunca mais».
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».
«Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Diz a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».
«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,
E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
Agradecimentos
Para além dos autores citados, Helena Barbas (que magnífico trabalho!), Jean Royère (falecido há tanto tempo, mas nunca é demais frisar o entusiasmo que tinha por Poe), Jean-Luc Steinmetz, e outros, cumpre lembrar o estupendo trabalho da The Edgar Allan Poe Society of Baltimore, a quem peço que continue a investigação sobre a vida e obra deste grande autor. E peço aos proprietários legítimos da fotografia que juntei a este trabalho, que desculpem o abuso, se for caso disso.
Segunda-feira, 19 de Julho de 2010
O PEÃO
Ray BradburyPenetrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de Novembro, pousar os pés sobre o sólido passeio de cimento, pisar as fendas com ervas, e andar, de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Ficaria numa esquina de um cruzamento, olhando as ruas banhadas pelo luar nas quatro direcções, decidindo por onde ir, mas realmente, não faria diferença; estava sozinho, neste mundo de 2053 a.D., ou, como se estivesse só. Tomada uma decisão definitiva, escolhido um caminho, começaria a andar, soltando baforadas de ar congelado à sua frente, como o fumo de um cigarro. Às vezes, andava durante horas, milhas, e voltava para casa só à meia-noite. E, no caminho, via casas, grandes e pequenas, com as suas janelas escuras; era como caminhar por um cemitério, pois só leves clarões de luz fantasmagórica eclodiam por detrás das janelas. Súbitos e cinzentos espectros pareciam surgir sobre as paredes das salas, onde uma cortina ainda estava aberta para a noite, ou cicios e murmúrios onde uma janela num edifício-túmulo estava ainda aberta.
O Sr. Leonard Mead parava, inclinava a cabeça, ouvia, olhava, e continuava a marcha, os pés sem fazer ruído no pavimento irregular. Há muito que, prudentemente, passara a usar sapatos de ténis para passear à noite, porque os cães, em alguns quarteirões, seguiriam a sua caminhada com latidos, se usasse calçado com sola de couro, as luzes poderiam acender-se, e rostos aparecer, toda uma rua se alvoroçar com a passagem de um vulto solitário; ele mesmo, no começo de uma noite de Novembro.
Nesta noite, em particular, tomara a direcção Oeste, rumo ao mar, invisível. Havia um frio cristalino no ar que cortava o nariz e fazia os pulmões arder por dentro, como uma árvore de Natal; podia-se sentir as luzes acendendo e apagando, os ramos cheios de uma neve invisível. Escutava com prazer o calçado macio empurrando delicadamente as folhas de Outono, assobiava frio e baixinho, entre dentes, arrancando ocasionalmente uma folha de passagem, examinando o desenho esqueletal, à luz de um raro candeeiro público, enquanto caminhava, aspirando seu odor ferruginoso.
-- Ó da casa -- murmurava para cada casa, por todo lado, enquanto passava. -- O que passa hoje no Canal 4; Canal 7; Canal 9? Para onde estão correndo os "cow-boys", e onde está a Cavalaria dos Estados Unidos, para sair daquela colina, e salvar a situação?
A rua silente, longa, vazia, apenas com a sua sombra movendo-se, como a sombra de um falcão, no meio de uma planície. Fechou os olhos, e permaneceu imóvel, gelado. Podia imaginar-se no meio de uma planície, numa pradaria americana, sem ventos, inverno, sem qualquer casa num raio de mil milhas - só leitos secos de rios, como aquelas ruas.
-- E agora, o que temos? -- perguntou para as casas, olhando o relógio de pulso -- Oito e meia? Hora de uma dúzia de episódios de assassínios? Um concurso? Um musical? Um comediante tropeçando e caindo do palco?
Terá ouvido um murmúrio de risos, vindo de uma das casas brancas ao luar? Hesitou, mas continuou, quando nada mais aconteceu. Tropeçou numa irregularidade maior do passeio. O cimento estava a desaparecer, sob flores e mato. Em dez anos de caminhada, noite e dia, por milhares de milhas, nunca encontrara outra pessoa passeando, nunca, nem uma só vez. Chegou a um cruzamento deserto, onde duas avenidas principais atravessavam a cidade. Durante o dia, era uma trovejante corrente de carros, os postos de gasolina abertos, um grande farfalhar de insectos, e um incessante mudar de posição, enquanto os carros-escaravelho, uma névoa de incenso saindo dos tubos de escape, corriam para casa, nas mais diversas direcções. Mas agora, estas estradas, eram como os leitos de rios secos no Verão, banhados pelo luar.
Virou numa rua secundária, de regresso a casa. Estava a um quarteirão de chegar, quando, subitamente, um carro solitário dobrou a esquina e fez incidir um forte cone de luz branca sobre ele. Deteve-se, aturdido, como uma borboleta, atordoado pela luz, mas por ela atraído.
Uma voz metálica advertiu-o:
-- Fique onde está! Não se mova!
Parou.
-- Levante as mãos!
-- Mas... – disse ele.
-- Mãos para cima! Ou atiramos!
A polícia, claro, mais que coisa rara, incrível; numa cidade de três milhões de habitantes, restava só um carro de polícia, não era isso? Já havia um ano, desde 2052, o ano das eleições, que a força policial havia sido cortada de três para um carro. O crime estava a desaparecer; não havia necessidade de polícia, excepto este carro solitário vagueando pelas ruas desertas.
-- O seu nome? -- disse o carro, num chiado metálico. Ele não podia ver os guardas lá dentro, por causa da luz muito forte nos seus olhos.
-- Leonard Mead -- respondeu.
-- Mais alto!
-- Leonard Mead!
-- Negócio, ou profissão?
-- Acho que me pode considerar um escritor.
-- Sem profissão -- disse o carro-patrulha, como que falando sozinho. A luz mantinha-o fixado como um espécime de museu, com uma agulha espetada no meio do peito.
-- Pode-se dizer-se assim -- afirmou o Sr. Mead. Havia anos que não escrevia. Já não se vendiam livros e revistas. Tudo continuava como sempre nas casas-túmulos, à noite, pensou. Os túmulos, mal iluminados pela luz da televisão, onde as pessoas se sentavam como os mortos, as luzes cinzentas ou multicoloridas tocando suas faces, mas nunca tocando o seu íntimo.
-- Sem profissão -- chiou a voz fonográfica. – O que está a fazer cá fora?
-- A passear -- disse Leonard Mead.
-- A passear?
-- Só a passear -- disse, simplesmente, percorrido por um arrepio.
-- Passeando, passeando, passeando?
-- Sim, senhor.
-- Indo para onde? Para quê?
-- Para apanhar ar. Passeando para ver.
-- A sua morada.
-- Onze, Sul, rua Saint James.
-- E não há ar na sua casa; o senhor não tem ar condicionado, Sr. Mead?
-- Sim.
-- E tem uma tela visora, na sua casa?
-- Não.
-- Não? -- Houve uma interrupção crepitante, que em si era já uma acusação.
-- É casado, Sr. Mead?
-- Não.
-- Não casado -- disse a voz policial atrás do facho, que queimava. A luz estava alta e clara, por entre as estrelas, e as casas escuras e silenciosas.
-- Ninguém me quis -- disse Leonard Mead, sorrindo.
-- Não fale, a menos que seja interpelado!
Leonard Mead esperou, sob a fria noite.
-- Apenas passeando, Sr. Mead?
-- Sim.
-- Mas ainda não explicou com que propósito.
-- Já expliquei; para apanhar ar, ver, e simplesmente pelo prazer de andar.
-- Já fez isso muitas vezes?
-- Todas as noites, há anos.
O carro-patrulha estava estacionado no meio da rua, com sua garganta de rádio zumbindo fracamente.
-- Bem, Sr. Mead -- disse.
-- Isso é tudo? -- perguntou, polidamente.
-- Sim -- respondeu a voz. -- Por aqui. -- Houve um sopro, e um estalido. A porta traseira do carro da polícia escancarou-se. -- Entre.
-- Olhe lá, eu não fiz nada!
-- Entre.
-- Protesto.
-- Sr. Mead.
Avançou como um homem subitamente embriagado. Ao passar pela janela dianteira do carro, olhou para o interior. Como esperava, não havia ninguém no assento dianteiro, não havia ninguém no carro.
-- Entre.
Pôs a mão na porta e olhou para o banco traseiro, que era uma pequena cela, uma pequena cela escura, com grades. Cheirava a aço rebitado e a anti-séptico forte; um intenso odor higiénico, metálico. Nada era macio, ali dentro.
-- Se tivesse uma esposa que lhe desse um álibi -- disse a voz de aço. -- Mas...
-- Para onde me vai levar?
O carro hesitou, ou melhor, houve um zumbido abafado, como se a informação, algures, fosse dada por cartões perfurados, e olhos eléctricos -- Ao Centro Psiquiátrico de Pesquisa sobre Tendências Regressivas.
Entrou. A porta fechou-se com um som abafado. O carro da polícia rodou pelas avenidas, a meio à noite, com os faróis acesos.
Passaram por uma casa, numa rua, um momento depois, uma casa, em toda uma cidade de casas escuras, mas esta casa, em particular, tinha todas as luzes bem acesas, cada janela uma berrante iluminação amarela, quadrada e quente na fria escuridão.
- Aquela é minha casa -- disse Leonard Mead.
Ninguém respondeu.
O carro foi pelas ruas vazias, como leitos de rios secos, afastando-se, deixando as ruas vazias, com os seus passeios vazios, sem som nem movimento, na fria noite de Novembro.
Extraído de E de Espaço © 1978 by Hemus-Livraria Editora Ltda -Título original: S is for Space © 1966 by Ray Bradbury
Quarta-feira, 14 de Julho de 2010
Edgar Allan PoeNão espero nem solicito o crédito do leitor para a tão extraordinária e no entanto tão familiar história que vou contar. Louco seria esperá-lo, num caso cuja evidência até os meus próprios sentidos se recusam a aceitar. No entanto não estou louco, e com certeza que não estou a sonhar. Mas porque posso morrer amanhã, quero aliviar o meu espírito. O meu fim imediato é mostrar ao mundo, simples, sucintamente e sem comentários, uma série de meros acontecimentos domésticos. Nas suas consequências, estes acontecimentos aterrorizaram-me, torturaram-me, destruíram-me. No entanto, não procurarei esclarecê-los. O sentimento que em mim despertaram foi quase exclusivamente o do terror; a muitos outros parecerão menos terríveis do que extravagantes. Mais tarde, será possível que se encontre uma inteligência qualquer que reduza a minha fantasia a uma banalidade. Qualquer inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que a minha encontrará tão-somente nas circunstâncias que relato com terror uma sequência bastante normal de causas e efeitos.
Já na minha infância era notado pela docilidade e humanidade do meu carácter. Tão nobre era a ternura do meu coração, que eu acabava por tornar-me num joguete dos meus companheiros. Tinha uma especial afeição pelos animais e os meus pais permitiam-me possuir uma grande variedade deles. Com eles passava a maior parte do meu tempo e nunca me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer e os acariciava. Esta faceta do meu carácter acentuou-se com os anos, e, quando homem, aí achava uma das minhas principais fontes de prazer. Quanto àqueles que já tiveram uma afeição por um cão fiel e sagaz, escusado será preocupar-me em explicar-lhes a natureza ou a intensidade da compensação que daí se pode tirar. No amor desinteressado de um animal, no sacrifício de si mesmo, alguma coisa há que vai direito ao coração de quem tão frequentemente pôde comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade do homem.
Casei jovem e tive a felicidade de achar na minha mulher uma disposição de espírito que não era contrária à minha. Vendo o meu gosto por animais domésticos, nunca perdia a oportunidade de me proporcionar alguns exemplares das espécies mais agradáveis. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um lindo cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um animal notavelmente forte e belo, completamente preto e excepcionalmente esperto. Quando falávamos da sua inteligência, a minha mulher, que não era de todo impermeável à superstição, fazia frequentes alusões à crença popular que considera todos os gatos pretos como feiticeiros disfarçados. Não quero dizer que falasse deste assunto sempre a sério, e se me refiro agora a isto não é por qualquer motivo especial, mas apenas porque me veio à ideia.
Plutão, assim se chamava o gato, era o meu amigo predilecto e companheiro de brincadeiras. Só eu lhe dava de comer e seguia-me por toda a parte, dentro de casa. Era até com dificuldade que conseguia impedir que me seguisse na rua.
A nossa amizade durou assim vários anos, durante os quais o meu temperamento e o meu carácter sofreram uma alteração radical – envergonho-me de o confessar – para pior, devido ao demónio da intemperança. De dia para dia me tornava mais taciturno, mais irritável, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Permitia-me usar uma linguagem brutal com minha mulher. Com o tempo, cheguei até a usar de violência.
Evidentemente que os meus pobres animaizinhos sentiram a transformação do meu carácter. Não só os desprezava como os tratava mal. Por Plutão, porém, ainda nutria uma certa consideração que me não deixava maltratá-lo. Quanto aos outros, não tinha escrúpulos em maltratar os coelhos, o macaco e até o meu cão, quando por acaso ou por afeição se atravessavam no meu caminho.
Mas a doença tomava conta de mim – pois que doença se assemelha à do álcool? – e, por fim, até o próprio Plutão, que estava a ficar velho e, por consequência, um tanto impertinente, até o próprio Plutão começou a sentir os efeitos do meu carácter perverso.
Certa noite ao regressar a casa, completamente embriagado, de volta de um dos tugúrios da cidade, pareceu-me que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele horrorizado com a violência do meu gesto, feriu-me ligeiramente na mão com os dentes. Uma fúria dos demónios imediatamente se apossou de mim. Não me reconhecia. Dir-se-ia que minha alma original se evolara do meu corpo num instante e uma ruindade mais do que demoníaca, saturada de genebra, fazia estremecer cada uma das fibras do meu corpo. Tirei do bolso do colete um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pelo pescoço e, deliberadamente, arranquei-lhe um olho da órbita! Queima-me a vergonha e todo eu estremeço ao escrever esta abominável atrocidade.
Quando, com a manhã, me voltou a razão, quando se dissiparam os vapores da minha noite de estúrdia, experimentei um sentimento misto de horror e de remorso pelo crime que tinha cometido. Mas era um sentimento frágil e equívoco e o meu espírito continuava insensível. Voltei a mergulhar nos excessos, e depressa afoguei no álcool toda a recordação do acto.
Entretanto o gato curou-se lentamente. A órbita agora vazia apresentava, na verdade, um aspecto horroroso, mas o animal não aparentava qualquer sofrimento. Vagueava pela casa como de costume, mas, como seria de esperar, fugia aterrorizado quando eu me aproximava. Porém, restava-me ainda o suficiente do meu velho coração para me sentir agravado por esta evidente antipatia da parte de um animal que outrora tanto gostara de mim. Em breve este sentimento deu lugar à irritação. E para minha queda final e irrevogável, o espírito de PERVERSIDADE fez de seguida a sua aparição. Deste espírito não cura a filosofia. No entanto, não estou mais certo da existência da minha alma do que do facto de que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano; uma dessas indivisas faculdades primárias, ou sentimentos, que deu uma direcção ao carácter do homem. Quem não se surpreendeu já uma centena de vezes cometendo uma acção néscia ou vil, pela única razão de saber que não a devia cometer? Não temos nós uma inclinação perpétua, pese ao melhor do nosso juízo, para violar aquilo que constitui a Lei, só porque sabemos que o é? E digo que este espírito de perversidade surgiu para minha perda final. Foi este anseio insondável da alma por se atormentar, por oferecer violência à sua própria natureza, por fazer o mal só pelo mal, que me forçou a continuar e, finalmente, a consumar a maldade que infligi ao inofensivo animal. Certa manhã, a sangue-frio, passei-lhe um nó corredio pelo pescoço e enforquei-o no ramo de uma árvore; enforquei-o com lágrimas a saltarem-me dos olhos e com o mais amargo remorso no coração; enforquei-o porque sabia que me tinha dado afeição e porque sabia que não me tinha dado razão para a torpeza; enforquei-o porque sabia que ao fazê-lo estava cometendo um pecado, um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal a ponto de a colocar, se tal fosse possível, mesmo para além do alcance da infinita misericórdia do Deus Mais Piedoso e Mais Severo.
Na noite do próprio dia em que este acto cruel foi perpetrado, fui acordado do sono aos gritos de «Fogo!». As cortinas da minha cama estavam em chamas; toda a casa era um braseiro. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa, Todos os meus bens materiais foram destruídos, e daí em diante mergulhei no desespero.
Sou superior à fraqueza de procurar estabelecer uma sequência de causa e efeito entre a atrocidade e o desastre. Limito-me, porém, a narrar uma cadeia de acontecimentos e não quero deixar nem um elo sequer incompleto. Nos dias que se seguiram ao incêndio, visitei as ruínas. As paredes, à excepção de uma, tinham abatido por completo. Esta excepção era constituída por um tabique interior, não muito espesso, que estava sensivelmente a meio da casa, e de encontro ao qual antes ficava a cabeceira da minha cama. O reboco resistira em grande parte à acção do fogo, facto que atribuo a ter sido pouco antes restaurado.
Próximo desta parede juntara-se uma densa multidão e muitas pessoas pareciam estar a examinar certa zona em particular, com minúcia e grande atenção. A minha curiosidade foi despertada pelas palavras «estranho», «singular» e outras expressões semelhantes. Aproximei-me e vi, como se fora gravado em baixo relevo, sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem estava desenhada com uma precisão realmente espantosa. Em volta do pescoço do animal estava uma corda.
Mal vi a aparição, pois nem podia pensar que doutra coisa se tratasse, o meu assombro e o meu terror forma imensos. Por fim, a reflexão veio em meu auxílio. Lembrei-me que o gato fora enforcado num jardim junto à casa. Após o alarme de incêndio, o dito jardim fora imediatamente invadido pela multidão e por alguém que deve ter cortado a corda do gato e o deve ter lançado para dentro do meu quarto, por uma janela aberta. Isto deve ter sido feito, provavelmente, com a intenção de me acordar. A queda das outras paredes tinha comprimido a vítima da minha crueldade na substância do reboco recentemente aplicado e cuja cal, combinada com as chamas e o amoníaco do cadáver, tinha produzido a imagem tal como eu a via.
Tendo assim satisfeito prontamente a minha razão – que não totalmente a minha consciência – sobre o facto extraordinário atrás descrito, não deixou este, no entanto, de causar profunda impressão na minha imaginação. Durante meses não consegui libertar-me do fantasma do gato, e, durante este período, voltou-me ao espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, mas que não o era. Cheguei ao ponto de lamentar a perda do animal e a procurar à minha volta, nos sórdidos tugúrios que agora frequentava com assiduidade, um outro animal da mesma espécie e bastante parecido que preenchesse o seu lugar.
Uma noite, estava eu sentado meio aturdido num antro mais do que infamante, a minha atenção foi despertada por um objecto preto que repousava no topo de um dos enormes tonéis de gin ou de rum que constituíam o principal mobiliário do compartimento. Havia minutos que olhava para a parte superior do tonel e o que agora me causava surpresa era o facto de não me ter apercebido mais cedo do objecto que estava em cima. Aproximei-me e toquei-lhe com a mão. Era um gato preto, um gato enorme, tão grande como Plutão e semelhante a ele em todos os aspectos menos num. Plutão não tinha sequer um único pêlo branco em todo o corpo, enquanto este gato tinha uma mancha branca grande mas indefinida, que lhe cobria toda a região do peito.
Quando lhe toquei, imediatamente se levantou e ronronou com força, roçou-se pela minha mão, e parecia contente por o ter notado. Era este, pois, o animal que eu procurava. Imediatamente propus a compra ao dono, mas este nada tinha a reclamar pelo animal, nada sabia a seu respeito, nunca o tinha visto até então.
Continuei a acariciá-lo, e quando me preparava para ir para casa, o animal mostrou-se disposto a acompanhar-me. Permiti que o fizesse, inclinando-me de vez em quando para o acariciar enquanto caminhava. Quando chegou a casa, adaptou-se logo e logo se tornou muito amigo da minha mulher.
Pela minha parte, não tardou em surgir em mim uma antipatia por ele. Era exactamente o reverso do que eu esperava, mas, não sei como nem porquê, a sua evidente ternura por mim desgostava-me e aborrecia-me. Lentamente, a pouco e pouco, esses sentimentos de desgosto e de aborrecimento transformaram-se na amargura do ódio. Evitava o animal; um certo sentimento de vergonha e a lembrança do meu anterior acto de crueldade impediram-me de o maltratar fisicamente. Abstive-me durante semanas de o maltratar ou exercer sobre ele qualquer violência, mas, gradualmente, muito gradualmente, cheguei a nutrir por ele um horror indizível e a fugir silenciosamente da sua odiosa presença como do bafo da peste.
O que aumentou, sem dúvida, o meu ódio pelo animal foi descobrir, na manhã do dia seguinte a tê-lo trazido para casa, que, tal como Plutão, tinha também sido privado de um dos seus ódios. Esta circunstância, contudo, mais afeição despertou na minha mulher, que, como já disse, possuía em alto grau aquele sentimento de humanidade que fora em tempos característica minha e a fonte de muitos dos meus prazeres mais simples e mais puros.
Com a minha aversão pelo gato parecia crescer nele a sua preferência por mim. Seguia os meus passos com uma pertinácia que seria difícil fazer compreender ao leitor. Sempre que me sentava, enroscava-se debaixo da minha cadeira ou saltava-me para os joelhos, cobrindo-me com a suas repugnantes carícias. Se me levantava para caminhar, metia-se-me entre os pés e quase me fazia cair ou, fincando as suas garras compridas e aguçadas no meu roupão, trepava-me até ao peito. Em tais momentos, embora a minha vontade fosse matá-lo com uma pancada, era impedido de o fazer, em parte pela lembrança do meu crime anterior mas, principalmente, devo desde já confessá-lo, por um verdadeiro medo do animal.
Este medo não era exactamente o receio de um mal físico; no entanto, é-me difícil defini-lo de outro modo. Quase me envergonhava admitir – sim, mesmo aqui nesta cela de malfeitor, eu me envergonho de admitir – que o terror e o horror que o animal me infundia se viam acrescidos de uma das fantasias mais perfeitas que é possível conceber. Minha mulher tinha-me chamado várias vezes a atenção para o aspecto da mancha de pêlo branco de que já falei, e que era a única diferença aparente entre o estranho animal e aquele que tinha eliminado. O leitor lembrar-se-á que esta marca, embora grande, era originariamente bastante indefinida, mas, gradualmente, por fases quase imperceptíveis e que durante muito tempo a minha razão lutou por rejeitar como fantasiosas, assumira, finalmente um rigorosa nitidez de contornos. Era agora a imagem de um objecto que me repugna mencionar, e por isso eu o odiava e temia acima de tudo, e ter-me-ia visto livre do monstro se o ousasse. Era agora a imagem de uma coisa abominável e sinistra: a imagem da forca!, oh!, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte.
Por essa altura, eu era, na verdade, um miserável maior do que toda a miséria humana. E um bruto animal cujo semelhante eu destruíra com desprezo, um bruto animal a comandar-me, a mim, um homem feito à imagem do Altíssimo – oh!, desventura insuportável. Ah, nem de dia nem de noite, nunca, oh!, nunca mais, conheci a bênção do repouso! Durante o dia o animal não me deixava um só momento, de noite, a cada hora, quando despertava dos meus sonhos cheios de indefinível angústia, era para sentir o bafo quente daquela coisa sobre o meu rosto e o seu peso enorme, incarnação de um pesadelo que eu não tinha forças para afastar, pesando-me eternamente sobre o coração.
Sob a pressão de tormentos como estes, os fracos resquícios de bem que havia em mim desapareceram. Só os pensamentos pecaminosos me eram familiares – os mais sombrios e os mais infames dos pensamentos. A tristeza do meu temperamento aumentou até se tornar em ódio a tudo e à humanidade inteira. Entretanto, a minha dedicada mulher era a vítima mais usual e paciente da súbitas, frequentes e incontroláveis explosões de fúria a que então me abandonava cegamente.
Um dia acompanhou-me, por qualquer afazer doméstico, à cave do velho edifício onde a nossa pobreza nos forçava a habitar. O gato seguiu-me nas escadas íngremes e quase me derrubou, o que me exasperou até à loucura. Apoderei-me de um machado, e desvanecendo-se na minha fúria o receio infantil que até então tinha detido a minha mão, desferi um golpe sobre o animal que seria fatal se o tivesse atingido como eu queria. Mas o golpe foi sustido diabolicamente pela mão da minha mulher. Enraivecido pela sua intromissão, libertei o braço da sua mão e enterrei-lhe o machado no crânio. Caiu morta, ali mesmo, sem um queixume.
Consumado este horrível crime, entreguei-me de seguida, com toda a determinação, à tarefa de esconder o corpo. Sabia que não o podia retirar de casa, quer de dia quer de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Muitos projectos se atropelaram no meu cérebro. Em dado momento, cheguei a pensar em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los um a um pelo fogo. Noutro, decidi abrir uma cova no chão da cave. Depois pensei deitá-lo ao poço do jardim, ou metê-lo numa caixa como qualquer vulgar mercadoria e arranjar um carregador para o tirar de casa. Por fim, detive-me sobre o que considerei a melhor solução de todas. Decidi emparedá-lo na cave como, segundo as narrativas, faziam os monges da Idade Média às suas vítimas.
A cave parecia convir perfeitamente aos meus intentos. As paredes não tinham sido feitas com os acabamentos do costume e, recentemente, tinham sido todas rebocadas com uma argamassa grossa que a humidade ambiente não deixara endurecer. Além do mais, numa das paredes havia uma saliência causada por uma chaminé falsa ou por uma lareira que tinha sido entaipada para se assemelhar ao resto da cave. Não duvidei que me seria fácil retirar os tijolos neste ponto, meter lá dentro o cadáver e tornar a pôr a taipa como antes de modo que ninguém pudesse qualquer sinal suspeito.
Não me enganei nos meus cálculos. Com o auxílio de um pé-de-cabra retirei facilmente os tijolos, e depois de colocar cuidadosamente o corpo de encontro à parede interior, mantive-o naquela posição ao mesmo tempo que, com um certo trabalho, devolvia a toda a estrutura o seu aspecto primitivo.
Usando de toda a precaução, procurei argamassa, areia e fibras com que preparei um reboco que não se distinguia do antigo e, com o maior cuidado, cobri os tijolos. Quando terminei, vi com satisfação que tudo estava certo. A parede não denunciava o menor sinal de ter sido mexida. Com o maior escrúpulo, apanhei do chão os resíduos. Olhei em volta triunfante e disse para comigo: «Aqui, pelo menos, não foi infrutífero o meu trabalho.»
A seguir procurei o animal que tinha sido a causa de tanta desgraça, pois que, finalmente, tinha resolvido matá-lo. Se o tivesse encontrado naquele momento, era fatal o seu destino. Mas parecia que o astuto animal se alarmara com a violência da minha cólera anterior e evitou aparecer-me na frente, dado o meu estado de espírito. É impossível descrever ou imaginar a intensa e aprazível sensação de alívio que a ausência do detestável animal me trouxe. Não me apareceu durante toda a noite, e deste modo, pelo menos por uma noite, desde que o trouxera para casa, dormi bem e tranquilamente; si, dormi, mesmo com o crime a pesar-me na consciência. Passaram-se o segundo e terceiro dia e o meu verdugo não aparecia. Mais uma vez respirei como um homem livre. O monstro, aterrorizado, tinha abandonado a casa para sempre. Nunca mais voltaria a vê-lo!
Suprema felicidade a minha! A culpa da acção tenebrosa inquietava-me pouco. Fizeram-se alguns interrogatórios que colheram respostas satisfatórias. Fez-se inclusivamente uma busca, mas , naturalmente, nada se descobriu. Dava como certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o crime, surgiu inesperadamente em minha casa um grupo de agentes da Polícia que procedeu a uma rigorosa busca. Eu, porém, confiado na impenetrabilidade do esconderijo, não sentia qualquer embaraço. Os agentes quiseram que os acompanhasse na sua busca. Não deixaram o mínimo escaninho por investigar. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram à cave. Nem um músculo me tremeu. O meu coração batia calmamente como o coração de quem vive na inocência. Percorri a cave de ponta a ponta. De braços cruzados no peito, andava descontraído de um lado para o outro. Os agentes estavam completamente satisfeitos e prontos para partir. O júbilo do meu coração era demasiado intenso para que o pudesse suster. Ansiava por dizer pelo menos uma palavra à guisa de triunfo e para tornar duplamente evidente a sua convicção da minha inocência.
- Senhores – disse por fim, quando iam a subir os degraus. – Estou satisfeito por ter dissipado as vossas suspeitas. Desejo muita saúde a todos, e um pouco mais de cortesia. A propósito, esta casa está muito bem construída (e no meu furioso desejo de dizer qualquer coisa com à-vontade, mal sabia o que estava a dizer). Direi, até, que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes… vão-se já embora, meus senhores?... Estas paredes estão solidamente ligadas. – E neste momento, por uma frenética fanfarronice, bati com força, com uma bengala que tinha na mão, na parede atrás da qual se encontrava o cadáver da minha querida esposa.
Ah!, que Deus me livre das garras do arquidemónio! Mal tinha o eco das minhas pancadas mergulhado no silêncio, quando uma voz lhes respondeu de dentro do túmulo: um gemido a princípio abafado e entrecortado como o choro de uma criança, que depois se transformou num prolongado grito sonoro e contínuo, extremamente anormal e inumano. Um bramido, um uivo, misto de horror e de triunfo, tal como só do inferno poderia vir, provindo das gargantas conjuntas dos condenados na sua agonia e dos demónios no gozo da condenação.
Seria insensato falar dos meus sentimentos. Senti-me desfalecer e encostei-me à parede da frente. Tolhidos pelo terror e pela surpresa, os agentes que subiam a escada detiveram-se por instantes. Logo a seguir, doze braços vigorosos atacavam a parede. Esta caiu de um só golpe. O cadáver, já bastante decomposto e coberto de postas de sangue, apareceu erecto frente aos circunstantes. Sobre a cabeça com as vermelhas fauces dilatadas e o olho solitário chispando, estava o odioso gato cuja astúcia me compelira ao crime e cuja voz delatora me entregava ao carrasco. Eu tinha emparedado o monstro no túmulo!
(Tradução de Tomé Santos Júnior, © Editorial Verbo, Lisboa, s/d).
(Extraído do livro «Histórias de Mistério e Imaginação», de Edgar Allan Poe, tradução de Tomé Santos Júnior, © Editorial Verbo, Lisboa, s/d).
Segunda-feira, 12 de Julho de 2010
Woody AllenAlgures na Transilvânia, Drácula, o monstro, jaz adormecido no caixão à espera que a noite caia. Como a exposição aos raios solares lhe causariam, por certo, a morte, ele protege-se na câmara orlada a cetim, com o nome da família gravado a prata. Quando o momento da escuridão chega, através de algum instinto miraculoso, o Demónio emerge da segurança do seu esconderijo e, assumindo as abomináveis formas do morcego ou do lobo, vagueia pelos campos, bebendo o sangue das vítimas. Por fim, antes que os primeiros raios do seu arqui-inimigo, o Sol, anunciem um novo dia, regressa sem demoras à segurança do caixão escondido e dorme. O ciclo recomeça.
Ei-lo que começa a mover-se. O estremecimento das pálpebras é uma resposta a um qualquer instinto remoto e inexplicável que lhe diz que o Sol está prestes a ocultar-se e que é chegada a sua hora. Esta noite, sente-se particularmente esfomeado e enquanto permanece deitado, agora completamente desperto, com a capa e o casaco de Inverno debruados a vermelho, à espera de sentir, com misteriosa percepção, o preciso momento da escuridão antes de abrir a tampa e sair, decide quais vão ser as vítimas da noite. O padeiro e a mulher, pensa de si para si. Suculentos, disponíveis e insuspeitos. Pensar no incauto casal, cuja confiança tinha cuidadosamente cultivado, excita febrilmente o seu desejo de sangue e quase não consegue aguentar os últimos segundos antes de trepar para fora do caixão em busca da presa.
Subitamente apercebe-se de que o Sol se pôs. Como um anjo do Inferno, ergue-se com rapidez e, transformado num morcego, voa atabalhoadamente em direcção à casa das vítimas que longamente esperara.
- Conde Drácula, que bela surpresa – diz a mulher do padeiro, abrindo a porta para o deixar entrar.
(Tinha de novo assumido a forma humana, quando entrou na casa, dissimulando com charme os seus objectivos rapaces.)
- O que é que o traz cá tão cedo? – pergunta o padeiro.
- A nossa combinação para jantar – responde o conde. – Espero não me ter enganado. Convidaram-me para jantar esta noite, não foi?
- Sim, esta noite, mas não dá para sete horas.
- Desculpe? – inquire Drácula, olhando em torno, embaraçado.
- Ou veio para ver o eclipse connosco?
- Eclipse?
- Sim, o eclipse total de hoje.
- O quê?
- Alguns momentos de escuridão desde o meio-dia até dois minutos depois. Olhe pela janela.
- Oh! Oh! Estou metido em trabalhos.
- Hem?
- E agora, se me dão licença…
- O quê, conde Drácula?
- Tenho de ir andando…mm… Oh, meu Deus… - Freneticamente, apalpa o puxador da porta.
- Já vai? Acabou de chegar.
- Sim, mas… penso que fiz mal…
- Conde Drácula, está pálido.
- Estou? Preciso de um pouco de ar fresco. Prazer em vê-los…
- Venha. Sente-se. Vamos beber um copo.
- Beber? Não, tenho de me apressar. Eh, está-me a pisar a capa.
- Claro. Acalme-se. Um pouco de vinho.
- Vinho? Oh!, não, deixei de beber; o fígado e todas essas coisas, sabe. Tenho mesmo de me despachar. Lembrei-me que deixei as luzes do castelo acesas; a conta vai ser enorme…
- Por favor – diz o padeiro abraçando o conde com firme amizade. – Você não está a incomodar. Não faça cerimónia. Portanto veio mais cedo.
- Na realidade gostava de ficar, mas há um encontro de velhos condes romenos na cidade e eu sou o responsável pelas carnes frias.
- Sempre com pressa. É um mistério como não arranja um ataque de coração.
- Sim, tem razão. E agora…
- Estou a fazer pilaf de galinha para esta noite – badala a mulher do padeiro. – Espero que goste.
- Esplêndido, esplêndido – diz o conde, sorrindo enquanto a empurra para cima da roupa suja. Então, abrindo por engano a porta do armário, entra. – Jesus, onde é que está o diabo da porta da rua?
- Ah! Ah! – ri a mulher do padeiro. – Que homem divertido que é o conde.
- Estava à espera que gostasse – diz Drácula, forçando um sorriso amarelo. – Agora deixem-me passar. – Enfim abre a porta da rua, mas o tempo tinha-o ultrapassado.
- Oh! Olha, mamã – diz o padeiro -, o eclipse deve ter acabado. O Sol está a aparecer outra vez.
- Exacto – diz Drácula, batendo com a porta da rua. – Decidi ficar. Baixem as persianas depressa, depressa! Mexam-se!
- Quais persianas? – pergunta o padeiro.
- Não há nenhumas, certo? Imaginem. Têm uma cave?
- Não – diz a mulher afavelmente. – Estou sempre a dizer ao Jarslov para fazer uma, mas ele nunca me dá ouvidos. Sabe lá como é o Jarslov, o meu marido.
- Estou a sentir-me mal. Onde é o armário?
- Já fez essa, conde Drácula. E a mamã e eu achámos muita graça.
- Ah, que homem divertido que é o conde.
- Olhem, vou para o armário. Batam às sete e meia.
- E com estas palavras o conde entra para o armário e bate com a porta.
- Eh! Eh! Ele é tão engraçado, Jarslov.
- Oh, conde. Saia do armário. Deixe-se de disparates. – Do interior do armário chega a voz abafada do Drácula.
- Por favor, palavra de honra. Deixem-me ficar aqui. Sinto-me bem. A sério.
- Conde Drácula, deixe-se de maluqueiras. Já estamos fartos de rir.
- Posso garantir-lhes, adoro este armário.
- Sim, mas…
- Eu sei, eu sei… parece estranho, e no entanto aqui estou eu em grande. Dizia justamente, um dia destes à senhora Hess: «Dêem-me um bom armário e eu sou capaz de ficar lá dentro durante hora.» Deliciosa mulher, a senhora Hess. Gorda mas deliciosa… E agora porque é não se vão embora e discutimos isso ao pôr do Sol? Oh, Ramona la da da di da da di, Ramona…
- Eis que chegam o presidente da Câmara e a mulher, Katia. Estão de passagem e decidem retribuir uma visita aos bons amigos, o padeiro e a mulher.
- Olá, Jarslov. Espero que eu a Katia não incomodemos.
- Claro que não, senhor presidente. Venha, conde Drácula! Temos visitas!
- O conde está cá? – pergunta o presidente surpreendido.
- Está e adivinhe onde – diz a mulher do padeiro.
- É raro vê-lo por aí tão cedo. De facto, nem me consigo lembrar de o ter visto de dia.
- Pois bem, está cá. Saia, conde Drácula!
- Onde é que está? – pergunta Katia, sem saber se havia de rir ou não.
- Saia agora!, vamos lá! – A mulher do padeiro começa a ficar impaciente.
- Está no armário – diz o padeiro apologeticamente,
- A sério? – pergunta o presidente da Câmara.
- Vamos lá – diz o padeiro, trocista e bem humorado, enquanto bate na porta do armário. – Já chega. O presidente da Câmara está aqui.
- Saia lá, Drácula – grita Sua Excelência -, vamos beber um copo.
- Não, vão-se embora. Tenho aqui que fazer.
- No armário?
- Sim, não estraguem o dia por minha causa. Eu consigo ouvir o que dizem. Vou ter com vocês se tiver algo a acrescentar.
Entreolharam-se e encolheram os ombros. O vinho soltou-se e todos beberam.
- Um pouco de eclipse hoje – diz o presidente da Câmara, beberricando no copo.
- Sim – concorda o padeiro. – Incrível.
- Sim. De meter medo – diz uma voz de dentro do armário.
- O quê, Drácula?
- Nada, nada. Deixe.
E assim o tempo passa, até que o presidente da Câmara já não suporta mais e, forçando a porta do armário, grita:
- Saia lá, Drácula. Sempre pensei que você era um homem com maturidade. Pare com este disparate.
A luz do dia entra, fazendo guinchar o monstro demoníaco, que lentamente se dissolve num esqueleto e depois em pó diante dos olhos das quatro pessoas presentes. Inclinando-se para o monte de cinzas brancas no chão do armário, a mulher do padeiro grita:
- Isto quer dizer que cancelamos o jantar desta noite?
Woody Allen (Nova Iorque, 1935), grande actor, escritor e realizador norte americano, dispensa qualquer apresentação. Este conto é extraído da colectânea Getting even, editada em 1966. O título escolhido para a edição portuguesa foi Para Acabar de Vez com a Cultura.
A tradução é de Jorge Leitão Ramos e a edição da Livraria Bertrand (1981).