Segunda-feira, 11 de Outubro de 2010

Edgar Allan Poe (1809 - 1849)

João Machado

Introdução

Passou no dia 7 de Outubro mais um aniversário da morte de Edgar Allan Poe. Ocorrida em circunstâncias que não estão completamente estabelecidas, pôs fim a uma vida difícil, recheada de dramas e dificuldades de toda a espécie. Entre elas, o do reconhecimento no seu próprio país, que só aconteceu bastantes anos depois.

Poe é hoje reconhecido como um dos vultos mais interessantes da literatura norte americana. E mesmo da literatura mundial. Contudo é famoso em primeiro lugar pelas histórias de terror e mistério que escreveu. Já o é menos pelo seu talento como poeta. E ainda menos por ter sido o criador da chamada detective story, que nós vulgarmente chamamos história policial, ou romance policial, e ser assim o precursor de Conan Doyle, Agatha Christie e tantos outros escritores famosos. E é muito pouco conhecido por ter sido um teorizador da literatura, à qual pretendeu mesmo dar um carácter científico.

Uma personalidade controversa

Helena Barbas, na introdução ao seu livro Poética (Textos Teóricos)[1], que inclui a tradução de quatro textos teóricos de Poe, começa por recordar que não existe nenhuma biografia fidedigna deste. Jean Royère (1871-1956), no seu livro Clartés sur la Poésie[2], refere que o primeiro biógrafo oficial de Poe,  Rufus Wilmot Griswold, introduziu no seu trabalho graves calúnias, que terão sido reproduzidas por outros autores. Mesmo a causa da sua morte é muito discutida. Uns atribuem-na ao alcoolismo, outros a doença, e ainda há outros que aventam a hipótese de ter sido vítima de uma agressão.

A maioria dos biógrafos concorda em que o escritor teve uma existência infeliz, com numerosos episódios de desastres afectivos. O primeiro foi sem dúvida a morte do pai e da mãe quando ainda era uma criança pequena, o que fez com que tivesse de ser recolhido por outra família, de onde lhe vem o apelido Allan. Desde novo que teve grandes desgostos amorosos, que culminaram com a morte de Virgínia, a sua jovem esposa, vítima de tuberculose, em 1847, portanto dois anos antes da morte do próprio Poe. Entretanto frequenta a Universidade da Virgínia, e mais tarde, a Academia Militar de West Point. Em ambos os casos,  não terá concluído os estudos.

Poe era sem dúvida dotado de uma inteligência excepcional e de uma cultura vastíssima, e interessava-se pelos mais variados assuntos. Amante de História Natural, chegou a publicar um manual de conquiliologia. Também escreveu sobre criptografia. Ganhava a vida escrevendo para jornais e revistas, chegando a vender por quantias módicas alguns dos seus melhores trabalhos. A sua actividade como crítico literário granjeou-lhe muitas polémicas e mesmo inimizades. As críticas a Longfellow, a Emerson e a outros contemporâneos produziram um grande impacto, muitas vezes desfavorável, sendo sem dúvida uma das razões porque, durante muito tempo, não foi tido em grande conta no seu próprio país. Foi sobretudo em França que começou a ser grandemente valorizado.

Sob o signo de Edgar Poe

Fui buscar o subtítulo acima a La Littérature Fantastique, de Jean-Luc Steinmetz[3]. Este assinala que Poe teve muitos imitadores, mas que poucos conseguiram captar o humor, a distinção e a inteligência com que ele tratou o que o legado do romantismo lhe tinha trazido em estado de terror em bruto.

Poe foi obviamente influenciado por Ann Radcliffe (1764-1823)[4], e por outros seguidores do chamado romance gótico. The Fall of the House of Usher (1839) é o seu conto que mais claramente mostra essa influência. A propósito, é de referir que enunciou a ideia de que o conto (“the Tale”) proporciona “a melhor oportunidade de prosa para exibir o talento mais elevado”, numa crítica à obra de Hawthorne[5].

No que respeita a influências poéticas, há que assinalar a de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), cujas ideias Poe chegou mesmo a ser acusado de usurpar. É preciso dizer neste campo que Poe se apresentava como um cultor da forma, defendendo que a música, como a forma de arte mais perfeita, deveria ser o principal padrão de referência para a poesia, até por ser a melhor maneira de produzir efeito no ouvinte ou no leitor. Defendeu também que o poema deve ser breve, para poder ser lido de uma só vez, e assim tornar mais intenso o efeito poético. Estas e outras ideias que apresenta nos seus textos teóricos foram contestadas pelos seus contemporâneos americanos, mas o seu interesse foi posteriormente reconhecido, não só em França, mas pelos meios literários em geral.

Na verdade, a fama de Poe em França (e também em Inglaterra), na segunda metade do século XIX, foi enorme. Baudelaire e Mallarmé traduzem Poe para francês, Júlio Verne escreve uma sequência ao romance The Narrative of Arthur Gordon Pym, intitulada Sphinx des Glaces, Villiers  de l’Isle-Adam e até Maupassant denotam a sua influência. A norte do canal, Tennyson presta-lhe tributo. E quem negará que The Happy Prince e The Portrait of Dorian Gray, de Oscar Wilde, ou Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Stevenson, têm a influência de Poe?

Já falei acima da detective story, ou romance policial, para todos nós. Género muito menosprezado pelo snobismo intelectual, só há pouco tempo começa a ser compreendido todo o seu potencial. A sua criação deve-se sem dúvida a Poe. Até o sistema narrativo, de um escriba a relatar os trabalhos de um decifrador de mistérios, foi retomado pelos seus seguidores. O Dr. Watson, narrador das aventuras de Sherlock Holmes, é inspirado no narrador das brilhantes deduções de Auguste Dupin. The Murders in the Rue Morgue (1841), são a abertura para um novo género literário.

Edgar Allan Poe foi um poeta extraordinário, contista fenomenal, teórico e crítico literário. Mas foi também um desbravador de novos caminhos para a literatura em geral. Permitam-me que termine este breve trecho com a tradução de O Corvo, por Fernando Pessoa (que, ao que parece, não apreciava muito o resto da obra de Poe):

  
FERNANDO PESSOA

(1888-1935)

O CORVO

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
            É só isso e nada mais.»
 
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais —
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
            Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
            É só isso e nada mais».
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi...» E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
            Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
            Isto só e nada mais.
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.»
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
            «É o vento, e nada mais.»
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
            Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Diz-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»
            Disse-me o corvo, «Nunca mais».
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
            Com o nome «Nunca mais».
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais. Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais
Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais».
            Disse o corvo, «Nunca mais».
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
«Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
            Era este «Nunca mais».
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
            Com aquele «Nunca mais».
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
            Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»
            Disse o corvo, «Nunca mais».
«Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Diz a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»
            Disse o corvo, «Nunca mais».
«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»
            Disse o corvo, «Nunca mais».
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,
E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
            Libertar-se-á... nunca mais!
 
Agradecimentos

Para além dos autores citados, Helena Barbas (que magnífico trabalho!), Jean Royère (falecido há tanto tempo, mas nunca é demais frisar o entusiasmo que tinha por Poe), Jean-Luc Steinmetz, e outros, cumpre lembrar o estupendo trabalho da The Edgar Allan Poe Society of Baltimore, a quem peço que continue a investigação sobre a vida e obra deste grande autor. E peço aos proprietários legítimos da fotografia que juntei a este trabalho, que desculpem o abuso, se for caso disso.


[1] Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, de 2004. As traduções são de Helena Barbas.
[2] Edição de Albert Messein, Paris, 1925.
[3] Colecção Que sais-je?, Presses Universitaires de France, Paris, 1990.
[4] O mais famoso dos seus romances foi The Mysteries of Udolpho. O primeiro romance gótico a tornar-se conhecido foi The Castle of Otranto (1765), de Horace Walpole.
[5] Ver o livro de Helena Barbas, acima referido, pág. XXIV da introdução.
publicado por João Machado às 16:30
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Domingo, 18 de Julho de 2010

Insones, noctívagos & afins - Arthur Koestler

O último julgamento

Arthur Koestler



O gongo soou três vezes. As suas vibrações expandiram-se em esferas concêntricas através da escuridão e a voz anunciou:


- Senhores, o Último Julgamento.

Bocejando, os acusados ocuparam os seus lugares nos acanhados vagões; a pequena locomotiva rangeu e partiram. Tratava-se de um comboio do Caminho de Ferro Pictórico, que os levou por um túnel sinuoso e escuro.

Em ambas as paredes do túnel havia grutas fortemente iluminadas e isoladas por vidraças, como montras; por detrás dos vidros, engenhosos autómatos, lembrando figuras de um relógio medieval, representavam charadas referentes ao passado dos acusados. A princípio, as charadas eram de natureza embaraçante, mas inofensiva; porém, à medida que o túnel se internava, as cenas tornavam-se mais violentas e obscenas; os movimentos dos autómatos, repetindo continuamente a mesma acção, multiplicavam o horror e a vergonha. Mais adiante, as figuras começavam a perder as suas feições humanas; criaturas cabeludas e simiescas, armadas com maças, contorciam-se violentamente, fazendo caretas hediondas atrás das vidraças. No comboio, os passageiros queixavam-se e gemiam; os seus gritos, as suas respirações aceleradas enchiam o ar abafado do túnel; tentavam fechar os olhos, mas a luz brilhante das grutas penetrava através dos cílios, obrigando-os a ver.

Após algum tempo, o comboio parou e os passageiros desceram para uma plataforma fronteira a uma catedral.

Os pórticos estavam abertos e podia-se ver a Corte já reunida na outra extremidade da nave. O interior sombrio da catedral estava submerso no rumorejar do órgão. Entraram em fila indiana; a música cessou. À medida que cada acusado se adiantava pela nave central, via um numeroso público enchendo as filas de cadeirais. As nuca dos espectadores eram todas iguais, mas não era possível virar o rosto para lhes ver as caras; à medida que avançavam, o juiz e os magistrados recuavam, de maneira a que os seus rostos também não se pudessem ver.

Entretanto, o julgamento do primeiro acusado tinha começado. Era um homem ascético e magro. Estava de pé, encarando a Corte.

- Como se sente? – perguntou o juiz com uma voz terrível, que ecoou pela nave.

- Humildemente, meu senhor – disse o acusado. Mas a sua voz era tão fina que quebrou o ar sem eco e tombou lastimavelmente, de asas quebradas, sobre o mármore do chão.

- Mau eco – rugia o juiz – Mas continue.

- Ele sacrificou a sua fortuna para ajudar os pobres – disse o advogado de defesa, O seu rosto assemelhava-se ao do acusado, mas o seu corpo era mais robusto e mais firme a sua voz.

- O que foi que jantou hoje? – trovejou o juiz.

- Um copo de leite e côdea de pão, meu Senhor – respondeu o acusado.


- O Promotor ergueu-se de repente. Assemelhava-se também ao acusado; tinha uma aparência mais macilenta. A sua voz era um chicote:

- Enquanto ele se encharcava de leite e pão, uma criança morreu de fome na China! – gritou.

- Condenado – bramiu o Juiz; e o público fez eco, com vozes amedrontadas:

- Condenado, condenado.

O acusado saiu vagarosamente da catedral e, sentando-se no comboio, no lugar que anteriormente ocupara, cobriu o rosto com as mãos.

O acusado seguinte era jovial, homem simplório e rubicundo. Avançou, com o rosto brilhando e, à medida que avançava, os magistrados opostos mudavam de aparência; novamente se assemelhavam ambos ao acusado; o Defensor parecia ainda mais bonacheirão e obeso.

- O que foi que jantou hoje? – rugiu o Juiz.

Bem, meu Senhor – disse o acusado – pensamos que poderíamos ter começado com salmão fresco, pois está na sua época, e uma garrafa de vinho branco do Reno, para o manter nadando e frio.

- Chega – bradou o Juiz – O que tem a Defesa a alegar?

- Bendita digestão a dele – admitiu o Defensor honestamente, cruzando as mãos sobre o ventre. – E, já agora, qual é a acusação?

O Juiz voltou-se para a Acusação, mas o respectivo assento estava vazio.

- Absolvido por falta de acusação – rugiu, e o público repetiu alegremente:

- Absolvido, absolvido.

O acusado, curvando-se respeitosamente, saiu e foi para o seu velho assento no comboio onde depressa adormeceu.

Aproximou-se outro acusado e os magistrados transformaram-se novamente. Tratava-se de um homem de aparência arrojada e temerária. Logo que encarou a Corte, o Promotor levantou-se.

- Acuso este homem – disse, com voz suave e angélica – de assassínio, incêndio e traição.

- Confessamos com orgulho todas essas acções – gritou o Defensor – Agimos ao serviço da nossa causa.

- Nunca escutou a nossa voz a não ser quando adormecido – queixou-se o Promotor – Semeou desgraças por onde andou – choramingou, golpeando-se no peito.

- A fim de que o bem fosse colhido quando o tempo chegasse – gritou o Defensor.

- Você já viu a colheita? – berrou o Juiz.

- Ainda não – respondeu o acusado – mas…

- Acusado por falta de evidência – rugiu o Juiz; o público fez eco e o acusado, com um sorriso de provocação, saiu da Corte e voltou para o comboio.

O acusado seguinte era um homem muito velho, apoiava-se numa bengala nodosa e, à medida que avançava, o silêncio caía sobre a catedral. Estacou, com a cabeça inclinada, ignorando o que o circundava, como se estivesse escutando um som apenas audível por si; porém, o silêncio tornou-se tão profundo que os outros também o ouviram. Era um som estranho, agudo, que se erguia e morria a espaços, como se alguém estivesse afinando um velho clavicórdio.

- O que está ele a fazer? – perguntou o Juiz.

- Está a afinar o coração – disse o Defensor.

- Mas ele não tem o aparelho necessário – protestou o Juiz.

- Está a tentar afiná-lo de acordo com a tonalidade celeste – explicou o Defensor. – Quando o consegue, o seu eu expande-se e dissolve-se no espírito universal,

O Promotor ergueu-se. Era ainda mais velho do que o acusado; os seus lábios pálidos estavam torcidos num esgar de amargura e desilusão.

- Acuso este homem – disse ponderadament6e – de cumplicidade em todos os assassínios e crimes do presente, do passado e do futuro.

- Ele nunca matou uma mosca – protestou o Defensor.

- A mosca que ele não matou provocou uma epidemia de peste em toda uma região – respondeu o Promotor.

- Olhem-no e ouçam-no – murmurou o Defensor.

O velho tinha subitamente levantado a cabeça; o seu rosto iluminara-se com um sorriso de cego; o Juiz e o público apuraram a audição, mas a vibração do acorde tinha aumentado tanto que já não conseguiam saber se estavam realmente ouvindo alguma coisa ou se era apenas o silvo dos seus ouvidos.

- Condenado por existência de dúvidas – disse o Juiz; o público fez eco e o acusado, com o sorriso apagado e a cabeça de novo reclinada, manquejou vagarosamente até ao assento no comboio.

A Corte esteve reunida durante toda a noite e, acusado após acusado, veio receber o julgamento, uns tremendo, outros com simulada indiferença, alguns humildemente submissos, outros de sobrancelhas franzidas e rostos contorcidos; e apesar da voz ciciante do Promotor, o veredicto era para quase todos «condenado». Havia os que tinham sido correctos por razões erradas e os que tinham errado por razões correctas; havia os que tinham mortificado os seus corpos, mas cujas feridas de masoquistas não eram suficientemente profundas e aqueles que tinham colhido os frutos da carne, mas cujo gozo deixava muito a desejar. Alguns eram castigados por mandar, outros por obedecer; alguns por darem muito valor à vida, outros por morrerem com desprendimento pela causa errada; os doentes eram punidos pelas suas doenças e os sãos pela sua saúde.

Pronunciado o veredicto, todos voltavam aos seus lugares no comboio; e agora, o último da fila, um jovem de expressão tímida, avançou pela nave deserta para enfrentar a Corte.

- Quem é este? – rugiu o Juiz.

- Um cruzado que perdeu a sua cruz – disse o Promotor,

- Um cruzado que procura uma cruz – disse o Defensor.

- Bem, não podemos dar-lhe uma – estrondeou o Juiz. – Isso seria demasiado fácil.

- Fácil, meu Senhor – observou amargamente o Defensor. – Olhai para todo o ruidoso lastro metálico que a Acusação lhe pendurou ao pescoço.

- Tínhamos que contrabalançar a sua cabeça flutuante – respondeu o Promotor. – A Defesa tinha-lhe posto na cabeça uma quantidade excessiva de bolhas de ar.

- Ele não pôde flutuar com todo esse peso – protestou o Defensor.

- Há tempo para se flutuar e tempo para se afundar – observou o Juiz, impacientemente, pois tinha outros afazeres para aquela noite.

- A tempo ou não, a maioria dos meus clientes flutua – observou o Defensor, satisfeito.

- Só serão salvos os que se afundarem – disse o Promotor.

- Basta – disse o Juiz. Voltou-se para o acusado:

- Até que esses dois cheguem a acordo, não terás paz. A sentença é: Purgatório, para ser experimentado.

- Mas eu já estive no Purgatório – observou mansamente o jovem.

- Não tem importância – disse o Juiz – Alguns são postos à prova durante toda a vida.

- Toda a vida – fez eco o público.

- São os eternos adolescentes através dos quais a raça amadurece.

- Amadurece, amadurece, amadurece – cantou solenemente o público.

- A sessão está encerrada – disse o Juiz, e a Corte levantou-se.

- À medida que o jovem atravessava a nave em direcção ao pórtico, percebeu que não só os rostos do Promotor e do defensor, como os de todos os presente, eram moldados segundo a sua imagem. O coração contraiu-se-lhe de desespero.

- Estou sozinho? – perguntou.

E o público respondeu.

- Não há mais ninguém sob esta abóbada.

Finalmente estavam todos sentados; a locomotiva silvou e o comboio dirigiu-se ao ponto de partida. Contudo, agora as grutas estavam apagadas e o túnel acinzentado pela luz da aurora. Os passageiros dormiam. O jovem deu uma cotovelada ao vizinho.

- Que tribunal esquisito era este? – perguntou.

- Ora, era a Corte suprema – disse o vizinho. – Nunca veio aqui antes?

- Não – disse o jovem. – Volta-se para cá?

- Todas as noites – disse o outro, sonolentamente.

- E julgam-nos novamente?

- É sempre o Último Julgamento – disse o homem e adormeceu novamente.

Mas o jovem voltou a acordá-lo:

- Como é que toda esta gente volta no mesmo comboio?

- Ora, o que é que esperava? – indagou o vizinho.

- Mas uns foram condenados, outros absolvidos, alguns estão à experiência e, mesmo assim, não há nenhuma diferença?

- Acha que não há?... – perguntou o vizinho, bocejando.

- Se não há diferença, por que hei-de eu submeter-me às suas regras?

- Porque é o Último Julgamento – disse o outro, voltando a adormecer,

Após algum tempo, o comboio saiu do túnel e parou. Os passageiros espreguiçaram-se, saíram e dispersaram-se apressadamente, sem olhar para trás. A manhã era cinzenta e fria; toda a gente voltou aos seus afazeres, sem pensar que à noite se encontrariam novamente.



(Extraído do livro «Maravilhas do Conto Fantástico», organizado por Fernando Correia da Silva, Editora Cultrix, São Paulo, 1968, com adaptação à norma portuguesa)
publicado por Carlos Loures às 01:00
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