Quinta-feira, 23 de Dezembro de 2010

De uma carta encontrada no café Santa Cruz

(Foto de José Magalhães)
Carla Romualdo

Pela Corpo de Deus abaixo, nesse plano inclinado de empedrado sujo, a arder em brasa, onde me cruzo com a velhota que vai subindo com o mundo aos ombros - transfigurado numa trouxa de roupa -, e pára muito antes de se cruzar comigo para poder ver-me bem, com os olhos semicerrados para que o sol não estorve esse escrutínio lento, o rosto emoldurado pelas farripas de cabelo cinza que se escapam do lenço negro. Pela Corpo de Deus abaixo, penso que em todos os momentos desci esta rua. Sempre esta rua, à chuva e ao sol, sempre esta rua. Quando se chega lá abaixo, à Visconde da Luz, a decisão já vai tomada, e tudo parece acertado. Tudo o que fora sombrio e incerto na descida pela rua sinuosa amplia-se e ilumina-se quando se chega lá abaixo e a calçada se faz suave, plana, as famílias caminham em passo de domingo, os adolescentes partilham auriculares, nenhuma inquietude, nenhuma razão para o desassossego.

E depois já sabes, deixo-me levar pela corrente até ao Santa Cruz, abrigo dos que chegam das vielas. Os romenos trazem os miúdos a pedir aqui para a praça e respondem com um safanão quando eles lhes pedem um chupa ou um gelado. Não são todos, já sei, exagero. Vi essa cena uma vez e nunca mais entrei no Santa Cruz sem lembrar-me do pai embrutecido e da cara do miúdo, os olhos incendiados do miúdo. 'Daqui a uns anos espeta-te uma faca na garganta e nunca mais lhe dirás que não', foi o que pensei quando o vi, e dei por mim especado frente a eles, sem conseguir voltar-lhes as costas para entrar no café. E agora é sempre essa imagem que regressa, de cada vez que atravesso a esplanada, vem-me à mente o raio do miúdo e penso que assisti ao nascimento de um assassino.


Nem sei porque te conto isto, não é nada do que queria escrever-te. Sabes onde estou, tenho a certeza. Mesma mesa, mesma cadeira. Daqui vejo e sou pouco visto, pouco mas o suficiente para ser encontrado se alguém me buscasse. Sento-me, bebo um café ou uma cerveja, um copo de água, um brandy, tanto dá, porque o que eu faço aqui é sobretudo rezar, compreendes? Estas rezas só minhas, sem deus nenhum, só eu e às vezes tu, a velhota da Corpo de Deus, o ciganito que quer matar o pai. Estas rezas que não levam a lado nenhum, só a que eu fique aqui sentado, parado ou a escrever-te estas cartas, e a pensar que rezar é isto, ficar quieto, ficar calado, deixar que tudo se aquiete e que os rostos venham à tona, o que eu vi, o que fiz, não fiz, tudo desfila à minha frente, e à luz do Santa Cruz, a esta luz que os vitrais da porta filtraram, não sinto alegria mas pelo menos tenho paz. Estar lúcido traz-nos paz mas raramente alegria, não te parece?


Mas isto tudo é só para dizer-te que pensei muito e acho que é melhor que não voltes. Pensa bem: o mais difícil já está, que era saíres. Agora só tens de continuar a afastar-te, cada vez mais, até já não sobrar nada. Que levaste daqui? Não te mostrei nenhuma cidade romântica, nem sombra de capas de estudante ou serenatas ao luar. Um quarto de pensão, com os tectos picados pela humidade; uma subida penosa pela Sá da Bandeira, com o barulho dos carros a abafar tudo o que eu queria dizer-te, um tipo a gritar à mulher de uma varanda num terceiro andar, enquanto ela se afastava pela rua abaixo, tanto nos custou chegar lá ao cimo, porque eu tinha a ideia de sentar-me contigo no jardim da sereia, estava convencido de que ali encontraria as palavras para dizer-te tudo o que acreditava que tinha de dizer-te, e quando chegámos tu não quiseste entrar no jardim. E eu não insisti e fiquei o resto da tarde calado, enquanto andávamos por aí sem rumo.


Aqui tudo seca, tudo arde. A cidade vive do que passou, respira melancolia fajuta, tudo é ruína, escombros, sombras de qualquer coisa que já não está lá ou talvez nunca tenha estado. E eu sou igual, tu sabes. E por isso venho de lá de cima com os ombros descaídos pelo peso do mundo, decidido a dizer-te que não voltes, ansioso por poder afundar-me numa tristeza que passo a vida a evocar, como se tudo fosse só isto, belas fachadas em ruínas, casas destroçadas, um passeio ao cair da noite de domingo pelas ruas desertas, com essa tristeza que têm as ruas ao domingo à noite, as grades corridas, os armazéns de atoalhados, um cartaz de aluga-se de uma casa invariavelmente apodrecida, de um senhorio que invariavelmente se chama Sr. Marques. Um romantismo fora de tempo, atrasado, bafiento. Voltar para quê? Rasga esta carta e esquece esta cidade.


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Pela Corpo de Deus abaixo, penso que em todos os momentos desci esta rua. Sempre esta rua, à chuva e ao sol, sempre esta rua. Quando se chega lá abaixo, à Visconde da Luz, a decisão já vai tomada, e tudo parece acertado. Tudo o que fora sombrio e incerto na descida pela rua sinuosa amplia-se e ilumina-se quando se chega lá abaixo e a calçada se faz suave, plana, as famílias caminham em passo de domingo, os adolescentes partilham auriculares, nenhuma inquietude, nenhuma razão para o desassossego.</span><br /><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;"><a name="more" rel="noopener"></a><br /><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;">E depois já sabes, deixo-me levar pela corrente até ao Santa Cruz, abrigo dos que chegam das vielas. Os romenos trazem os miúdos a pedir aqui para a praça e respondem com um safanão quando eles lhes pedem um chupa ou um gelado. Não são todos, já sei, exagero. Vi essa cena uma vez e nunca mais entrei no Santa Cruz sem lembrar-me do pai embrutecido e da cara do miúdo, os olhos incendiados do miúdo. 'Daqui a uns anos espeta-te uma faca na garganta e nunca mais lhe dirás que não', foi o que pensei quando o vi, e dei por mim especado frente a eles, sem conseguir voltar-lhes as costas para entrar no café. E agora é sempre essa imagem que regressa, de cada vez que atravesso a esplanada, vem-me à mente o raio do miúdo e penso que assisti ao nascimento de um assassino.</span><br /><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span><br /><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;">Nem sei porque te conto isto, não é nada do que queria escrever-te. Sabes onde estou, tenho a certeza. Mesma mesa, mesma cadeira. Daqui vejo e sou pouco visto, pouco mas o suficiente para ser encontrado se alguém me buscasse. Sento-me, bebo um café ou uma cerveja, um copo de água, um brandy, tanto dá, porque o que eu faço aqui é sobretudo rezar, compreendes? Estas rezas só minhas, sem deus nenhum, só eu e às vezes tu, a velhota da Corpo de Deus, o ciganito que quer matar o pai. Estas rezas que não levam a lado nenhum, só a que eu fique aqui sentado, parado ou a escrever-te estas cartas, e a pensar que rezar é isto, ficar quieto, ficar calado, deixar que tudo se aquiete e que os rostos venham à tona, o que eu vi, o que fiz, não fiz, tudo desfila à minha frente, e à luz do Santa Cruz, a esta luz que os vitrais da porta filtraram, não sinto alegria mas pelo menos tenho paz. Estar lúcido traz-nos paz mas raramente alegria, não te parece?</span><br /><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span><br /><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;">Mas isto tudo é só para dizer-te que pensei muito e acho que é melhor que não voltes. Pensa bem: o mais difícil já está, que era saíres. Agora só tens de continuar a afastar-te, cada vez mais, até já não sobrar nada. Que levaste daqui? Não te mostrei nenhuma cidade romântica, nem sombra de capas de estudante ou serenatas ao luar. Um quarto de pensão, com os tectos picados pela humidade; uma subida penosa pela Sá da Bandeira, com o barulho dos carros a abafar tudo o que eu queria dizer-te, um tipo a gritar à mulher de uma varanda num terceiro andar, enquanto ela se afastava pela rua abaixo, tanto nos custou chegar lá ao cimo, porque eu tinha a ideia de sentar-me contigo no jardim da sereia, estava convencido de que ali encontraria as palavras para dizer-te tudo o que acreditava que tinha de dizer-te, e quando chegámos tu não quiseste entrar no jardim. E eu não insisti e fiquei o resto da tarde calado, enquanto andávamos por aí sem rumo.</span><br /><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span><br /><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;">Aqui tudo seca, tudo arde. A cidade vive do que passou, respira melancolia fajuta, tudo é ruína, escombros, sombras de qualquer coisa que já não está lá ou talvez nunca tenha estado. E eu sou igual, tu sabes. E por isso venho de lá de cima com os ombros descaídos pelo peso do mundo, decidido a dizer-te que não voltes, ansioso por poder afundar-me numa tristeza que passo a vida a evocar, como se tudo fosse só isto, belas fachadas em ruínas, casas destroçadas, um passeio ao cair da noite de domingo pelas ruas desertas, com essa tristeza que têm as ruas ao domingo à noite, as grades corridas, os armazéns de atoalhados, um cartaz de aluga-se de uma casa invariavelmente apodrecida, de um senhorio que invariavelmente se chama Sr. Marques. Um romantismo fora de tempo, atrasado, bafiento. Voltar para quê? Rasga esta carta e esquece esta cidade.</span><br /><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;"><br /></span><br /><div class="MsoNormal" style="tab-stops: 146.05pt; text-align: justify;"><span style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;"><object height="385" width="480"><paramname="movie"value="http://www.youtube.com/v/edatXwNwIxk?fs=1&amp;hl=pt_PT"></param><paramname="allowFullScreen" value="true"></param><paramname="allowscriptaccess"value="always"></param><embed src="http://www.youtube.com/v/edatXwNwIxk?fs=1&amp;hl=pt_PT"type="application/x-shockwave-flash"allowscriptaccess="always" allowfullscreen="true"width="480" height="385"></embed></object></span></div></span><div class="blogger-post-footer">www.estrolabio.net</div>
publicado por CRomualdo às 19:00
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Nem só de fado vive Coimbra

Carla Romualdo


Pois não, e os últimos anos têm sido particularmente inspirados ou não tivesse Coimbra parido os Belle Chase Hotel, a já mítica banda nascida no final dos anos 1990, e acabadinha de regressar aos palcos após cinco anos de ausência.

Banda sonora kitsch de um país eternamente frustrado, cocktail de Weil, Jobim, Roxy Music, Peter Allen e muitos mais.




J.P. Simões, músico, autor de contos, letras de canções, argumentos para cinema e televisão e até de um libreto de ópera, actor, artista de cabaret. Foi membro dos Pop Dell'Arte e do Quinteto Tati, mas é sobretudo como fundador, compositor e vocalista dos Belle Chase Hotel que é mais conhecido. Nos últimos anos, temo-lo ouvido a solo e em colaborações com gente como Jorge Palma, Sérgio Godinho ou Rodrigo Leão.




Rock, soul, gospel, blues, Elvis Presley a cantar dentro de uma nave espacial, tudo isto é WrayGunn, e chega com laivos de banda sonora de Quentin Tarantino.




Fundador dos já extintos Tedio Boys, vocalista e compositor dos WrayGunn, Paulo Furtado é aquilo a que em português talvez se chame "banda-de-um-homem-só",   The Legendary Tiger Man, que em palco toca sozinho guitarra, harmónica e bateria. O seu mais recente álbum, Femina, composto unicamente por duetos com vozes femininas, acaba de ser eleito um dos 50 melhores do ano pela revista "Les Inrockuptibles". Daqui a poucos dias poderão ouvi-lo na Galeria Zé dos Bois, onde irá tocar, pelo décimo ano consecutivo, no dia de Natal.

publicado por CRomualdo às 15:00
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