Quarta-feira, 15 de Junho de 2011

A Comunicação Social e a Democracia – II - Le Monde está à venda, por João Machado

 

 

 


 

 

No New York Times do dia 14 do corrente mês de Junho saiu uma notícia informando que Nicolas Sarkozy, Presidente da República Francesa, convocou para o Palácio do Eliseu Éric Fottorino, editor de Le Monde, para lhe exprimir a sua preocupação por um grupo de três personalidades próximas do Partido Socialista de França se proporem comprar o jornal. Noutra notícia, saída no Finantial Times de 11 de Junho, refere-se que Fottorino terá dito que Sarkozy ameaçou reter apoios estatais ao jornal se se consumasse aquela entrada no capital do jornal de três adversários políticos seus.

 

A precária situação financeira do prestigioso Le Monde obrigou os actuais  proprietários a procurar novos investidores, na medida em que já em Julho próximo terão dificuldade em fazer pagamentos. Para além do grupo das três personalidades de esquerda muito moderada (um apoiou a anterior candidata do partido Socialista às presidenciais Ségolène Royal, outro Dominique Strauss-Kahn, actual líder do FMI, e o terceiro navega nas mesmas águas), perfila-se a France Telecom em conjunto com o Nouvel Observateur como outro candidato. O grupo espanhol Prisa (que já detém acções de Le Monde) também parece ter manifestado interesse, assim como suíços e italianos. A intervenção de Sarkozy poderá ter tido um peso considerável na decisão final, que deverá estar pronta no próximo dia 28 de Junho.

 

Para Le Monde é hora de grande incerteza. Os seus mais de 200 jornalistas e a sociedade de leitores têm tido um grande peso na sua orientação e na defesa da sua independência editorial. Dominam parte significativa do capital e os jornalistas detêm poderes estatutários que lhes permitem influenciar a escolha das chefias. Obviamente que estes poderes vão estar em causa neste processo, apesar das promessas de várias quadrantes no sentido da manutenção da independência editorial, pedra angular do óptimo trabalho desenvolvido pelo jornal desde 1944, quando foi fundado por Hubert Beuve-Méry, a pedido do General De Gaulle.

 

Nicolas Sarkozy parece deter uma influência crescente na comunicação social francesa, contando com amigos seus à frente de vários jornais influentes, como o Figaro. O Finantial Times, na notícia acima citada, diz ter conseguido uma alteração legislativa que lhe permite nomear o director da televisão pública. A intervenção do poder na comunicação social em França não é propriamente um fenómeno novo, mas não será exagero interrogarmo-nos se, neste caso de Le Monde, não estaremos perante uma tentativa de aproveitar a sua precária situação financeira para domesticar um jornal incómodo, não só para Sarkozy, mas para os poderes em geral.

 

Não posso concluir sem fazer uma rápida conclusão com o caso TVI/PT em Portugal. É claro que é preciso desde logo fazer o reparo de que há uma grande diferença entre a qualidade jornalística de Le Monde e a da TVI. Contudo parece estabelecido que também neste caso ocorreu uma tentativa de calar uma voz contrária, apesar dos veementes desmentidos. Põe-se aqui uma grande questão: até quando os jornalistas e a comunicação social em geral conseguirão suportar estas investidas?  É um erro pensar que estas provêem apenas de alguns políticos mal formados ou pouco avisados. 

 

(Este texto já tinha saído no nosso blogue em Junho de 2010. Dado o assunto que aborda, VerbArte achou valer a pena publicá-lo novamente)

publicado por João Machado às 15:00
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Quarta-feira, 4 de Maio de 2011

Dívida: quem pagará? Pierre-Cyrille Hautcoeur Le Monde

O Norte da Europa a viver à custa do Sul da Europa, esta é a política da União Europeia, esta é a política conduzida pelo Durão Barroso. Certo ?

 

Errado? Leiam o texto que se segue.

 

Júlio Marques Mota
Coimbra, 3 de Maio  de 2011.

Dívida: quem pagará?
Pierre-Cyrille Hautcoeur

 

Le Monde

 

Portugal, a Grécia, a Irlanda e a Espanha multiplicam os planos de austeridade e prometem pagar as suas dívidas, mesmo se para isso devam  “reestruturar a sua economia”, ou seja devam  reduzir a protecção social, reduzir os salários e aumentar o desemprego.

 

Estas purgas não são, no entanto, suficientes para  tranquilizar os credores: as taxas de juro pagas sobre as dívidas públicas dos países ditos “periféricos” aumentam  constantemente e atingem níveis insustentáveis. A dívida grega a  10 anos rende cerca  de  14%, a irlandesa quase 10%, a portuguesa 9%, contra cerca de  3,5%  “no centro” da Europa.

 

Para além da subida das taxas, a queda na oferta de crédito provoca falências em série  e agrava a recessão . Se esta não for compensada por políticas expansionistas noutros lugares  na zona euro, então a recessão vai-se  estender-se de forma duradoira por  toda a Europa.

 

Com efeito, a principal lição da história das zonas de câmbios fixos  como a zona euro - uma história conhecida menos desde Keynes - mostra-nos  que forçar os países em défice a reequilibrar a sua posição sem que os países credores relancem a sua procura interna nunca tem êxito - a queda do rendimento agrava as taxas de endividamento  mesmo quando a dívida nominal recua - mas generaliza a depressão económica.

 

Hostil a qualquer inflação

 

Perante as tensões sobre o sistema financeiro e a grave recessão destes  últimos anos, a zona euro utilizou a política monetária com uma relativa moderação (em relação aos Estados Unidos). O Banco Central Europeu (BCE) é independente mas está, sobre este ponto, próximo da hostilidade alemã  a toda e qualquer  ideia de inflação.

 

Tranquilizada quanto à  política monetária - que outros desejariam utilizar para reduzir as dívidas sem dor -  Alemanha deveria praticar uma política orçamental expansionista, da qual beneficiaria a sua população, reduzindo a taxa de IVA ou aumento os salários.

 

Esta atitude  apoiaria a retoma e reduziria o peso da dívida que pesa sobre as outras economias da zona euro.

 

Com efeito, as suas políticas orçamentais, postas a contribuir  aquando da recessão, hoje estão ameaçadas pelo risco de incumprimento.

 

Se as opiniões públicas do centro da Europa não querem pagar para os reformados da periferia, os da periferia ameaçam deixar de  pagar os juros das  obrigações detidas pelos reformados do Norte.

 

Emprestar dinheiro público aos Estados periféricos - a solução utilizada até agora - revela-se insatisfatória: o sobre-endividamento aumentou, daí ainda mais austeridade, mais recessão,  enquanto a socialização das perdas  incita à irresponsabilidade.

 

É tempos de dar a palavra os anunciantes de falências. Desde há vinte anos, os governos reduzem os direitos sociais em toda a Europa - um movimento que reforça os efeitos da crise para além do que pode ser considerado suportável.

 

Tornou-se  razoável de reduzir os direitos financeiros  que se tem vindo sucessivamente a reforçar e que estão, com o aumento das taxas de juro sobre as dívidas públicas da periferia, em concorrência directa com os direitos sociais.

 

A Europa tem a chance de ter  sistemas de reforma por distribuição que asseguram um mínimo de rendimento aos mais idosos. Este facto  permite reduzir os rendimentos do capital sem estar a arriscar a ruína dos accionistas, que tinham feito  a cama do nazismo entre as duas guerras.

 

Pierre-Cyrille Hautcoeur, Dette: qui paiera ?, Le Monde, 27 de Abril de 2011.

publicado por Luis Moreira às 23:00
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Domingo, 26 de Dezembro de 2010

Ainda a Irlanda, ainda a União Económica e Monetária (2)

(Conclusão)


Marc Roche

(Texto enviado por Júlio Marques Mota)

Nem sabemos por que partitura devemos começar para apresentar Sean FitzPatrick, o homem orquestra deste banco que se tornará em 2007 o primeiro banco do país em termos de capitalização bolsista? Pelas pratos da história atormentada desta terra céltica, pelos címbalos da bolha imobiliária ou pelo violino deste que pretendia enganar o seu destino de contabilista? Este filho de pequeno agricultor, jogador e grande adepto do jogo do rugby na sua juventude, confundir-se-ia.


Com um diploma no bolso de estudos comerciais do University Colégio de Dublim, Sean Fitz Patrick entra em 1976 como tesoureiro para um pequeno banco de negócios, o Irish Bank of Commerce. Passa rapidamente a figura dominante neste banco . No fim de uma série de fusões-aquisições audaciosas, nasce, uma década mais tarde, Anglo Irish Bank na sua forma actual.


A obsessão deste personagem estranho , pequeno em estatura e de sorriso malicioso, era a de alcançar o pelotão da frente. Na ausência de uma rede de balcões não pode fazer forte concorrência aos dois mastodontes locais, Bank of Ireland e Allied Irish Bank, como banco comercial. Sean FitzPatrick atira-se de frente para o sector do imobiliário , ferro de lança da formidável expansão da economia irlandesa. O estabelecimento bancário financia-se junto do mercado interbancário.


Para satisfazer as necessidades dos promotores apressados, o Anglo Irish concede os seus empréstimos em poucas horas enquanto que os seus rivais exigem várias semanas de reflexão. Para este negociador impar com uma moral de aço, só o resultado conta, disposto a sacrificar as verificações habituais . O dinheiro brilha.


O microcosmo de Dublin olha para com ironia para a carreira deste outsider que não quer continuar a sê-lo. Porque Sean Fitz Patrick anda mesmo à procura de respeitabilidade. Este sujeito exuberante por vezes incómoda, “Seanie”, que não actua nem com discrição nem de luvas brancas está totalmente sintonizado com os seus mais fortes clientes , uma dúzia de promotores do imobiliário. “Self-made-men reaccionários, filisteus cúpidos, novos ricos no pior sentido do termo”, martela Frank McDonald, jornalista do Irish Times.


A elite financeira tira-lhe o seu chapéu. Acedendo em 2000 à presidência da associação bancária irlandesa, Sean FitzPatrick torna-se uma das peças soberanas deste famoso triângulo tóxico que compreende banqueiros, profissionais da construção e políticos. O patrão de Anglo Irish Bank joga evidentemente com mestria o jogo dos pequenos truques e das cunhas que são a norma nesta sociedade clânica onde todos se conhecem. Administrador da Dublin Docklands Development Authority, a organização responsável pela renovação dos estaleiros da capital, nomeia o presidente desta instituição para o seu conselho fiscal.


Autoritário, o patrão de Anglo Irish Bank é um adepto do exercício solitário do poder. A direcção oferece-se a si-mesma salários e bónus exorbitantes, vantagens em espécies e em planos de reforma colossais sem sequer informar a Administração . Este decepador de cabeças rebeldes neutraliza os controladores de riscos. A imprensa é silenciada pelos rendimentos em publicidade da bolha imobiliária. Irish Times, o jornal diário de referência, que investiu maciçamente num site de anúncios imobiliários, passa sob silêncio as advertências dos raros peritos que gritam à avisar dos perigos de sobreaquecimento, da bolha..






Luxuosos escritórios de representação são abertos nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e na Suíça, a fim de financiar grandes obras à Nero. Um departamento de fusões-aquisições, a actividade de cambista, a gestão de tesouraria e um banco privado são assim criados para oferecer toda a gama dos serviços aos promotores. Se tal loucura das grandezas houve, esta foi claramente inspirada e incentivada pela explosão das actividades financeiras . Anglo Irish Bank sonhava simplesmente imitar Goldman Sachs. É de resto o responsável das actividades americanas, David Drumm, que Sean FitzPatrick escolhe, em 2005, para lhe suceder na Direcção-Geral. Um delfim de 38 anos não fará sombra àquele que se tornará o presidente não executivo.


A partir daí, em meados de 2007, a máquina ganha embalagem . Sob o efeito do rebentamento “da bolha”, as cotações na Bolsa caem a pique . Anglo Irish Bank jura alto e bom som que não há fogo no lago e que o Banco sairá das suas dificuldades: Mas o contribuinte deve levar a mão à carteira. Em Dezembro de 2008, Sean FitzPatrick e David Drumm são forçados à demissão.






De um dia para outro, os ídolos dos jovens diplomados irlandeses tornaram-se uma caricatura dos novos ricos . Os grandes conversadores como são as gentes de Dublin diziam mal deles nos pubs com o mesmo ardor com que os elogiavam ainda há pouco tempo antes . Cada um se interroga sobre a atitude incompreensível dos revisores de contas e auditores que não deram nenhum sinal de alarme quando ainda era tempo, sobre a carência das autoridades de tutela que nada foram capazes de prever e enfim sobre a forma ligeira dos políticos que fecharam os olhos .


Sobretudo, um dos mitos fundadores da República do Sudeste ganhou nesta tormenta: o acesso à propriedade. Na National Gallery de Merrion Square, um quadro de Erskine Nicol datado de 1853 mostra uma família de roupa esfarrapada que carrega com os seus magros haveres a lançar um último olhar para a exploração agrícola de que acabam de ser expropriados. “Como a fome e as perseguições, a proibição aos católicos de comprar um bem imobiliário imposta pelo colonizador britânico até 1882 permaneceu no imaginária de um povo durante muito tempo oprimido”, insiste o senador independente David Norris, professor de Literatura comparada.


“A casa de um Irlandês é o seu castelo ”, tinha-se o costume de dizer aquando do triunfo do Tigre céltico, parafraseando a obsessão dos vizinhos britânicos em tornarem-se proprietários. Nestes dias, os muros do Shelbourne Hotel, lugar diariamente frequentado por James Joyce, ressoam com a advertência de Finnegans Wake, um das suas obras-primas: “A casa de um irlandês é o seu caixão“.


(Marc Roche, Anglo Irish Bank - Un scandale irlandais, Le Monde, 19.12.2010 )

















publicado por Carlos Loures às 22:00
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Terça-feira, 14 de Dezembro de 2010

Uma aula prática de Economia no reino do neoliberalismo

O artigo A boa sorte do barão de Seillière, publicado no jornal Le Monde e textos restantes, complementares, constituem um verdadeiro conto de costumes do século XXI. Se necessárias referências, podíamos falar de Zola ou sobretudo de Balzac. Trata-se da grande arte, estejam certos. Não percam. Nem que tenham que pegar num papel e caneta para não perderem o fio do imbróglio, que pode também ser visto com uma comédia em três actos, a representar a farsa que o modelo neoliberal tanto em voga na Europa nos tende cada vez mais a impor. Sinceramente, vale o esforço de leitura.


Trata-se também de uma lição sobre o capitalismo actual e da forma como este se exerce, dada não por um aluno qualquer, de uma faculdade qualquer e de um país qualquer, mas sim pelo que foi o presidente da Confederação do Patronato Francês, agora Medef, e é, desde 2005, o presidente de UNICE, agora Business Europa, a Federação das Empresas Europeias. com sede em Bruxelas. Boa leitura, então!


Os tempos são difíceis, a crise aperta e face a ela estamos com o problema de não vermos saídas. Aqui vos deixo, então, uma grande lição de economia, de economia financeira aplicada, uma lição de sucesso, uma lição magistral, dada por um grande expert, a mostrar como se sai da crise ou como se pode nunca estar em crise quando assim se age com toda a impunidade.


Mas já agora, uma pergunta vos deixo eu no ar: se entrassem neste país dois ou três mestres deste quilate, a concretizarem aulas magistrais como a que vão ler, que restaria do nosso património? Mas o que é que nos está a restar exactamente deste nosso património, desta nossa forma de estar na vida e de reinventar o próprio futuro que nos tem caracterizado até agora ? Já muito pouco e portanto é de concluir que professores deste quilate mas por outros canais nos começam a invadir o nosso quotidiano procurando destrui-lo. Descubramo-los, desmistifiquemo-los a tempo se não quisermos ficar mesmo sem nada. Eles vêm na calada da noite, mesmo que à luz do dia, protegidos pela opacidade dos mercados, deixando-nos surdos com o matraquear dos teclados dos computadores, deixando-nos cegos com os sinais luminosos das cotações espelhadas nos ecrãs gigantes das bolsas, deixando-nos tontos com os cálculos matemáticos sofisticados a mostrar que tudo isto é a mais pura da eficiência e esta exige que os mercados sejam auto-regulados e os Estados relativamente anulados e insistem, e insistem até à exaustão que isto é transparência e transparência há uma só, a certeza de que se trata agora, como o assinalou outrora Proudhon num outro contexto, que se trata de um roubo que sobre nós estão a realizar e com os nossos Estados a tudo isso, e na maior cumplicidade, a legalizar.


Júlio Marques Mota





1.A boa sorte do barão Ernest-Antoine Seillière


“La société française est divisée en riscophiles et riscophobes”, Ernest-Antoine Seillière
O dia 29 de Maio de 2007 permanecerá marcado por uma pedra branca para o “management”, a equipa da direcção de Wendel. Neste dia, os accionistas ofereceram a alguns dos seus quadros a possibilidade de comprarem quase 5% do capital do grupo, o que representa uma soma colossal, 324 milhões de euros em acções, a repartir por quinze elementos. O preço a pagar era modesto: para adquirir estes 5%, só tinham que desembolsar unicamente 83 milhões. Os quinze gestores beneficiados conseguiram mesmo desembolsarem menos de metade deste montante.

Tudo isto graças a uma montagem jurídica e fiscal infinitamente complexa, pensada e concebida com as mais importantes firmas de consultoria, e foi assim que a equipa dirigente de Wendel, que passa por ser uma das melhores da praça de Paris, teve êxito na obtenção destes 324 milhões de euros. Este mecanismo, ei-lo pois aqui exposto.

Quase todos os elementos do dispositivo utilizado estão legalmente acessíveis junto do tribunal de comércio, mas a compreensão da montagem, de um formalismo perfeito, é difícil, e não nos perdermos é uma verdadeira aventura, financeira e fiscal. Cada etapa está inscrita num quadro legal, mas o conjunto levanta, pelo menos, algumas questões éticas.

Três altos dirigentes repartiram a parte de leão. Ernest-Antoine Seillière, o primeiro, presidente da conselho fiscal de Wendel, recebeu cerca de 79 milhões de euros em títulos. Bernard Gautier, o segundo, membro do directório, ficou com 36 milhões, e enfim Jean-Bernard Lafonta, por último, presidente do directório, atribuiu a si mesmo um pouco mais de 83 milhões de euros. Doze outros quadros repartiram entre si os 85 milhões que restavam, após terem regulado o essencial dos 41 milhões em encargos e em empréstimos.

A instrução da Direcção-Geral dos impostos (DG I), a 12 de Maio de 1995, dita “instrução Taly”, avisa os grupos contra “os mecanismos” que permitem aos dirigentes “obterem vantagens financeiras importantes”, nomeadamente com as opções de compra sobre títulos, que é precisamente o objecto desta montagem. “Na maioria dos casos, constatou-se que as sociedades em causa privaram-se de um lucro importante para benefício dos interessados", sublinha a DG I. Os dirigentes serão então tributados sobre o rendimento se “a vantagem realizada é oculta, ou resulta de um acto de gestão anormal da sociedade, ou se tem por efeito levar a remuneração total do beneficiário para um montante exagerado”.

O grupo defende-se argumentando que nunca, no quer que fosse, ultrapassou a lei. “As operações realizadas pela equipa de direcção, diz Arnaud Desclèves, o director dos negócios jurídicos de Wendel, numa carta registada enviada ao Le Monde, está em conformidade com a legislação fiscal e com a doutrina administrativa em vigor.” Desclèves, que recebeu nestas operações um pouco mais de 11 milhões, apresenta um certificado do gabinete de consultoria Debevoise & Plimpton que confirma a perfeita legalidade do dispositivo.

A aventura começa a 25 de Outubro de 2004, quando a direcção obtém uma opção de compra sobre títulos detidos por uma obscura sociedade, Solfur, uma empresa outrora especializada na distribuição de energia. Esta já não passa de uma casca vazia, uma migalha esquecida do antigo império industrial. Isto porque o grupo se transformou profundamente. Tem sido sempre controlado pela família Wendel, 950 pessoas descendentes de François de Wendel, fundador da dinastia, agrupados na SLPS, a Sociedade lorena de participações siderúrgicas, mas que já não tem mais nada a ver nem com a Lorena nem com a siderurgia.

Jean-Bernard Lafonta, com a idade de 41 anos, em 2001, numa holding familiar a envelhecer, arejou o grupo, para dele fazer uma sociedade de participações extremamente rentável, que investe nas empresas mais diversas e acumula copiosos dividendos. A cotação da acção até 2007 progrediu 50% ao ano e Wendel distribuiu em 2007 dividendos de 2 euros por acção. Jean-Bernard Lafonta tinha em 2006 uma ambição simples: duplicar o valor do grupo nos cinco próximos anos. Mas o organigrama é então ainda muito complexo. A família, na SLPS, controla 86,5% do capital de Wendel-Participações, que detém por sua vez 35% de Wendel Investimentos, que possui 100% da famosa Solfur… Solfur não valeria nada, se não detivesse 13,5% dos títulos de Wendel-Participações. O grupo decide logicamente suprimir “a tampa de autocontrolo” que é a Solfur, esta sociedade que é, pois, um dos accionistas de Wendel-Participações. Aproveita-se a ocasião para fundir a SLPS e a Wendel-Participações. Para a família, o negócio tem um interesse: suprimindo “um andar” do grupo, pode beneficiar da lei Dutreil, votada em 2003, que permite uma redução do ISF, o imposto de solidariedade sobre a fortuna. Para os gestores, será a ocasião de compartilharem-se 324 milhões de euros. Cada etapa da montagem é inscrita num quadro legal, mas no total, os accionistas familiares pagaram mais de 300 milhões de euros a um punhado de quadros.
Na Solfur dormem com efeito 569.333 títulos Wendel-Participações. Trata-se de acções que não estão cotadas na Bolsa, e que só se podem comprar ou vender com o acordo dos accionistas familiares. Valem em contrapartida cada uma delas 4,4 acções Wendel Investimento, que estão cotadas, e em pleno crescimento. Todo o problema vai pois consistir, para a gestão, em trocar umas contra as outras. Evitando o que os fiscalistas chamam, com alguma piada, “as fricções fiscais”.

A direcção explica aos accionistas que este dispositivo “é destinado aos quadros dirigentes que têm desejado assumir um risco de capital no Grupo e sobre a evolução do seu valor”. Trata-se de reduzir “a dimensão do programa de stock-options”, anteriormente distribuídos à gestão, e de permitir “sair do balanço de Wendel os títulos Wendel-Participações, muito dificilmente cedíveis, tendo em conta o seu carácter ilíquido”.

É necessário portanto para a gestão a aquisição da Solfur. Estes obtêm em Outubro de 2004 uma opção de compra, “a prazo de Outubro 2010”. Isto não é de graça, o preço da opção é avaliada, naquela época, em 4 milhões de euros. A equipa dirigente apenas avança com um sinal de 1.6 milhões de euros. Três dias antes, Jean Bernard Lafonta e Ernest-Antoine Seillière criaram uma sociedade quase homónima, a Companhia de Solfur, situada no n,º 89, rue Taitbout, no 9.º bairro de Paris — a sede de Wendel.
Ao longo dos meses, quinze membros da gestão compram acções desta nova Companhia de Solfur, a 1 euro a unidade. Cada um investe aí até um montante médio de 20.000 euros. Com uma condição: se um deles deixar o grupo, é reembolsado do valor da sua aplicação de fundos e nada mais. Um meio para unir a equipa sobre a promessa de lucros próximos. A sede é transferida seguidamente para uma caixa de correio - Boulevard des Italiens, e, depois, em Julho de 2006, para melhor complicar as coisas, a Companhia de Solfur transforma-se em Companhia de Audon.

Tudo está pronto em 2007 para desencadear a operação, isto é, para a gestão comprar as acções de Solfur. Contrariamente ao que possam ter compreendido os accionistas de Wendel, a opção de compra pode ser utilizada em qualquer momento — mas antes de Outubro de 2010. Os especialistas em engenharia financeira desenvolveram um dispositivo sofisticado, a acção do grupo está na cotação mais elevada, o barão Seillière está a manobrar.

No início de 2007, Ernest-Antoine Seillière, presidente de Wendel-Participações, escreve a… Ernest-Antoine Seillière, presidente de SLPS, para lhe propor que compre as famosas acções detidas na Solfur. SLPS não está interessada. A família, no entanto, que detinha 55% do capital do grupo em 2002, só controlará agora 36,3% após a simplificação das estruturas. Os 5% de capital suplementar não teriam sido negligenciáveis. Ernest-Antoine Seillière escreve então à Companhia de Audon, de que é precisamente o fundador, que aceite comprar.

O preço de resgate é fixado por um perito independente em 79 milhões de euros — a que se acrescentam por conseguinte os 4 milhões da opção de compra. É pouco. O preço foi calculado sobre a cotação da acção Wendel Investimento em 2004 (40 euros), e vale 127 euros em Maio de 2007, mas trata-se de títulos Wendel-Participações, não cotados, por conseguinte pouco vendáveis. Um “desconto” , um abatimento sobre o preço, é por conseguinte normal, mas os peritos consultados pelo Le Monde estão um pouco surpreendidos pela sua amplitude. No mercado, os activos de Solfur valem com efeito 283,4 milhões de euros, e não 79. Para a gestão, mais que nunca mobilizada para o resgate de Solfur, urge encontrar estes 79 milhões. Esta equipa de direcção tem certamente economias numa outra estrutura, a Companhia de Aurette, uma sociedade que não tem “nenhum assalariado e nenhuma actividade operacional”, onde os quadros colocaram os seus proveitos originados por Legrand, outra sociedade do grupo. Esta Companhia de Aurette detém em carteira de títulos 31 milhões de euros. A Companhia de Audon absorve-a em Janeiro de 2007 e pode, enfim, pagar o saldo dos 4 milhões de euros acordados em 2004 — os gestores apenas tinham avançado com 1,6 milhões. Para concluir a montagem, o banco JP Morgan empresta 38 milhões de euros à Companhia de Audon, Jean-Bernard Lafonta avança por sua vez durante um mês com uma parte das suas próprias stock-opções, 100.000 títulos Wendel investimento (11,3 milhões de euros), Wendel investimento empresta, por último, 75.000 das suas acções (9,5 milhões). No total, a gestão só desembolsou os 31 milhões da Companhia de Aurette e os 1,6 milhões adiantados em 2004, ou seja 32,6 milhões. O resto foi financiado com os dinheiros dos títulos detidos por Solfur, e por empréstimo. “ Tudo se passa como se comprasse um automóvel e que metade do dinheiro estivesse no porta-luvas” , ironiza um analista. Última delicadeza, Wendel Investimento, a casa mãe de Solfur, deixou 12,4 milhões de euros em tesouraria na sociedade Solfur, que foram arrecadados pelos novos proprietários.

Este grupo de gestores ultrapassou a primeira etapa, possui Solfur. Ainda falta a segunda etapa, a mais difícil: tornar líquidos estes famosos “títulos dificilmente transferíveis”. Os gestores, aqui, organizam um golpe de mestre: renunciam à sua opção de compra sobre os títulos de Solfur adquirida em 2004. A Companhia de Audon, inteiramente controlada pela gestão, encontra-se embaraçada com as 569.333 acções Wendel-Participações que acabava de comprar. Vende-as ao grupo Wendel, que as troca a 29 de Maio de 2007 contra uma fortuna, 2.536.700 títulos Wendel Investimento, que valem, eles, 324 milhões de euros.

Wendel-Participações resgatou assim 13,5% do seu capital e pagou 324 milhões de euros pelo que tinha sido adquirido pela gestão por quatro vezes menos. Wendel-Participações não tinha evidentemente nenhum interesse nisso. Habitualmente, aplica-se para o resgate de uma participação minoritária numa sociedade “fechada” um abatimento importante. Mas não foi nada disso. O “presente” aos líderes está lá todo.
Estes gestores possuem doravante uma pequena fortuna na Companhia de Audon, e podem consagrar-se à terceira etapa: distribuir sólidas acções Wendel Investimento aos seus quadros. A técnica, clássica, é elegante e quase líquida de impostos. A Companhia de Audon decide-se de repente a reduzir o seu capital. Isto é, a resgatar aos gerentes de Wendel 10 dos 17 milhões dos seus próprios títulos, as acções da Companhia da Audon. Paga-os com o que tem no seu activo: títulos Wendel Investimento, a 127,89 euros por título em Maio de 2007.


PARTICIPAÇÃO E FILIAIS (30 de Maio de 2008)


Os membros da gestão prepararam o terreno. Criaram, com um belo conjunto, durante a segunda quinzena de Abril, uma ou duas sociedades civis, frequentemente domiciliadas na mesma caixa do correio. A 3 de Maio, onze quadros entregam uma parte das suas acções Companhia de Audon a uma das suas sociedades pessoais. A um preço que desafia qualquer concorrência (7 cêntimos em média por acção), o que reduz na mesma proporção o imposto a pagar sobre as cessações. Levam-nas no mesmo dia para a sua segunda sociedade civil a um preço razoável (19,17 euros por acção), com suspensões de imposição fiscal: pagarão mais tarde os impostos, quando a sociedade civil se dissolver, ou for revendida, ou se lhes distribuir dividendos. Quando, a 29 de Maio de 2007, a Companhia de Audon resgata os seus próprios títulos, fá-lo a 19,17 euros a unidade. Como os tinha vendido ao mesmo preço, não há mais-valia, por conseguinte, não há impostos. E não pagam nada em líquido, em cash, mas em títulos Wendel Investimento. Cada um recupera assim na sua pequena sociedade estas acções, que valem 127 euros por unidade. O barão Seillière recupera 79.795.847 euros, Bernard Gautier recupera 36.247.684 euros, os outros, entre 1 e 11 milhões.
Só Jean-Bernard Lafonta deixou a sua participação, quase 83 milhões de euros, na Companhia de Audon, da qual possui 92% do capital. A companhia não se ressentiu demasiado destes movimentos. Esta pagou apenas 6. 427,96 euros de direitos de registo e zero imposto sobre as sociedades. O barão Seillière, Lafonta e Gautier, que são mandatários sociais de Wendel, declaram estes títulos à AMF, a Autoridade dos mercados financeiros, de que guardam a metade enquanto estão na direcção do grupo. Os três mais elevados dirigentes de Wendel recebem além disso remunerações confortáveis, 1.563.790 euros em 2006 para Lafonta (62% a mais que em 2005), 870.000 euros para Gautier (+150%) e 507.694 euros para Seillière, em fichas de presença.

Os outros quadros estão hoje teoricamente livres de vender as suas acções. Mas sem dúvida para confortar a sua lealdade à Wendel, as sociedades pessoais dos dirigentes tiveram, neste mesmo 29 de Maio de 2007, que entregar por alguns euros uma parte a uma misteriosa sociedade luxemburguesa, Phylahe. Mas isto não é simbólico: as cessações de acções fazem-se, nas sociedades civis, por unanimidade. Sem o acordo de Phylahe, que se tornou accionista destas sociedades pessoais, a gestão nada pode vender.

De quem é Phylahe? Não é legalmente possível sabê-lo. A pequena SARL foi fundada para a ocasião, a 24 de Maio de 2007, por uma grande companhia fiduciária luxemburguesas, Experta Luxemburgo, que delegou a gestão a uma das suas sucursais, Lannage SA. A gestão está representada por um quadro parisiense do banco JP Morgan, que se recusa evidentemente a qualquer comentário. “Os nossos factos e números falam por si mesmos”, indica Experta sobre o seu sítio Internet. Certamente: esta sucursal de Dexia Privatbank, na Suíça (grupo Dexia), tem estabelecimentos no Luxemburgo, nas Baamas, em Jersey e em Montevideu.
“Não há rigorosamente nada de escondido nesta montagem, sorri Ernest-Antoine Seillière, estou extraordinariamente à vontade para falar disso. Estamos numa sociedade que não pode absolutamente permitir-se fazer seja o que for que não seja conforme com a lei.” Com a crise financeira as acções aliás baixaram, os 324 milhões de Maio de 2007 não valem mais, no fim de Abril de 2008, que 220 milhões.

O barão fez os seus cálculos: estava previsto que o valor do grupo duplicaria em cinco anos. Pois bem, os rendimentos dos gestores também eles duplicaram: compraram acções a 40 euros, valem hoje 87 euros. “Evidentemente, quando apareceu a diferença entre 40 euros e 127 em Maio de 2007, os gestores e os accionistas ficaram um pouco estonteados admitiu Seillière, isto estava muito para além do que tinham imaginado”, mas, depois, tudo voltou à ordem.
Um dos accionistas familiares do grupo Wendel várias vezes se alarmou com esta montagem e dirigiu, em vão, várias cartas a Ernest-Antoine Seillière, aos dezassete outros administradores e aos revisores de contas. Sophie Boegner aí sublinhava que estava como outros membros do conselho de administração “penal e pessoalmente responsável” sobre os seus bens “por eventuais falhas” na gestão da sociedade.
O resto da família Wendel, no conselho de administração de SLPS, terminou por se comover, um pouco mais tarde, em Julho de 2007. Humbert de Wendel referenciou que a aliança de um terço com a gestão poderia fazer perder o controlo a família. Outro membro do conselho, François de Montfort, preocupou-se que “os gestores possam servir-se de uma aparente união com a família para prosseguir objectivos de enriquecimento rápido”. O barão Seillière, antigo presidente do Medef e sempre, aos 71 anos, o presidente do patronato europeu, tranquilizou-os. Só Boegner recusou votar, a 3 de Abril de 2008, a aprovação das contas de 2007. Recusa-se hoje a qualquer comentário, mas encarregou a advogada Patrick Maisonneuve de examinar os meios para dar início um procedimento judicial.

Claire Gatinois e Franck Johannês, “La bonne fortune du baron Seillière”, Le Monde, 2.05.08

publicado por Carlos Loures às 21:00
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Sábado, 11 de Dezembro de 2010

Semana do Ensino - Um Munique pedagógico

Antoine Prost*

Uma catástrofe está em marcha, mais grave ainda que os novos programas da escola primária ou as supressões de postos que se denuncia na imprensa ou na rua. Será fácil, com efeito, voltar a estas medidas.
A supressão de duas horas de aula no ensino primário e a semana de quatro dias correm o risco, pelo contrário, de se tornarem irreversíveis. E ninguém diz nada ou quase. E tudo isto é feito na indiferença geral. Munique foi acompanhado de um " cobarde alívio". Este cobarde consentimento, anuncia, também, uma derrota.

As comparações internacionais mostram-nos em má posição e 10% a 15% dos alunos que entram no 6º ano escolar são incapazes de continuar os estudos. E o que é que se faz? Reduz-se a duração do ensino! A quem é que se quer fazer crer que é possível aprender melhor e mais trabalhando menos? Mesmo o ministro não ousou dizer bem desta medida que lhe foi imposta - diz-se - por um presidente que decididamente não tem necessidade de reflectir para decidir. O ministro limitou-se a dizer que permanecíamos " bem acima da média dos países que obtêm os melhores resultados". Mas se têm êxito, é porque repartem as horas de aula por toda a semana. Vinte e quatro horas durante seis dias são muito mais eficazes que leccionadas em quatro: todos o sabem. Do professor Debré ao doutor Hubert Montagner, os médicos repetiram que seis horas de aula para crianças com menos de 8 anos, é demasiado para ser eficaz.
Com trinta e seis semanas de quatro dias, a Ascensão, a segunda-feira de Pentecostes, o 1 e o 8 de Maio, o 11 de Novembro, tudo isto fará menos de 140 dias de aulas por ano. Contudo, tem-se 210 no Japão, 200 na Itália e na Dinamarca, 188 na Finlândia, 190 na Grã-Bretanha. E tem-se pena do nível dos pequenos franceses? Só há uma coisa realmente importante na educação: é o trabalho dos alunos. Com que milagre, com que poção mágica, está o ministro Xavier Darcos a contar para compensar as amputações por si mesmo decretadas?

Todo o mundo o sabe, mas ninguém diz nada. Onde é que estão os defensores do nível, tão prontos a rapidamente denunciarem toda e qualquer inovação pedagógica? A vaga promessa dum regresso aos bons velhos métodos tranquiliza-os: estes métodos deram as suas provas, dizem. Mas à razão de trinta horas por semana, sem estar a contar as horas suplementares prodigalizadas nas vésperas do certificado de estudos. Acreditam eles, por acaso, que serão também eficazes à razão de vinte e quatro horas por semana?

Com um quinto de tempo a menos, demorariam um ano a mais. E que não nos venham contar que o ensino se vai concentrar-se nos " fundamentais" , uma vez que até se está a acrescentar ainda mais matérias. E os pais dos alunos? Estes são os primeiros interessados. Demasiado contentes por disporem do sábado de manhã, limitaram-se a protestos de princípio. Mas podia dar-se-lhes esta manhã em vez da de quarta-feira; um tribunal administrativo acaba de deliberar que isto seria compatível com o catecismo.

Podia-se também generalizar o que tinha sido aceite nos departamentos que adoptaram a semana de quatro dias: encurtar um pouco as férias. De forma nenhuma: suprimem-se estes dias suplementares. Os princípios que nos orientam não são mesquinhos… A prova? Esta medida não traz qualquer redução ao défice orçamental; é um puro presente.

E os professores? Faça-se-lhes justiça: estes não pediram nada. As professoras são as primeiras a mostrarem-se preocupadas. São elas que fazem trabalhar os alunos - porque uma sala de aulas não é um curso -, elas sabem melhor que ninguém como é impossível fazer mais com menos e sabem que, amanhã, farão delas as principais responsáveis dos malogros da escola. Mas como recusar um presente como este? E, no entanto, esta medida compromete, bastante mais do que outras que provocam greves, o ensino de elevado nível e a qualidade do serviço público que os sindicatos pretendem defender.

O resultado destas cobardias e destas hipocrisias é à priori bem conhecido: o número de alunos incapazes de seguir para além do 6º ano escolar vai aumentar. Pessoalmente, não reconheço a ninguém que não protestem hoje, com todas as suas forças, contra esta medida o direito de vir protestar amanhã para lamentar este falhanço brutal.

Os que se pretendem democratas e defensores do serviço público e não denunciam hoje este trabalho de destruição são mentirosos. Os pais informados das classes médias e superiores saberão e poderão compensar, por recursos diversos e onerosos, mas fiscalmente vantajosos, as insuficiências organizadas da escola pública. Os meios populares, estes, pagarão as despesas desta amputação.

Não basta virem com palavras. Eu espero que me expliquem como é que programas mais vastos contribuem para a melhoria do estudo dos fundamentais, e como é que se aprende mais e melhor trabalhando menos.
*Antoine Prost é historiador da educação.


(Publicado pelo LE MONDE em | 28.05.08 )

publicado por Carlos Loures às 14:00
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Quarta-feira, 29 de Setembro de 2010

Alçapões da linguagem: os "apenas assalariados"

Paulo Rato


Acrescentado de: "Meditações sobre a existência de "empresários de esquerda" e relacionados motivos de apoquentação de Pedro Godinho"

I – O Le Monde

O Le Monde foi fundado em 1944, sob os auspícios do próprio general De Gaulle. A "Sociedade de redactores" foi constituída em 1951. Nos finais dos anos 60, o jornal estruturou-se em duas sociedades: uma de redactores, outra abrangendo os restantes profissionais.

Os tempos eram outros. O Mundo mudou. A imprensa escrita de referência (e até a outra...) foi enfrentando dificuldades crescentes e múltiplas. O Le Monde seguiu os caminhos que, em cada momento, surgiram como os mais adequados à manutenção do jornal e outras publicações do grupo, de acordo com as decisões tomadas pelos seus responsáveis.

II – O Alçapão

A utilização, por Pedro Godinho, da palavra "apenas", para caracterizar os assalariados é um dos alçapões que invoca: explicita a diferença de nível que estabelece entre "empresários" (mesmo mesmo mesmo empresários!, como esmiuçariam os "Gato fedorento") e os "apenas", que, como se vê logo, não sendo empresários (oh! oh! oh!), não sabem empreender... A bem dizer, não são adequadamente ungidos pela entidade divina de serviço, como os reis do antigamente... Portanto, não têm legitimidade para empreender, gerir, abrir falência, fazer as coisas decentes e os disparates que o demiúrgico funcionário reservou para os eleitos do empresariado.

III – O Mistério dos Empresários de Esquerda

É este caso, dos "empresários de esquerda", um misterioso mistério, para cuja dilucidação ousarei contribuir.
Nesta coisa de haver Terra e pessoas à superfície da dita, a tentarem organizar-se em civilizações, que lá vão suando para progredir, desde os bons tempos em que andava tudo à mocada, com intervalos para as tarefas necessárias à sobrevivência de cada grupo ─ incluindo, com sorte, a oportunidade de dar mais umas mocadas em indivíduos de outros grupos ─ sempre houve diferenças: não só na arte da traulitada, mas também, por exemplo, no modo de analisar a realidade e de se posicionar perante ela, isto é, de a pensar.

Ora, nesta caminhada histórica, não encontro nada de extraordinário na existência de empresários, "apenas assalariados" e outros tipos de seres humanos classificáveis ideologicamente. Diria que, mais do aclarar-se, aqui se dissolve o tal mistério.

Numa vastíssima escala utilizável na caracterização de cada indivíduo, em que expressões como "esquerda", "centro" ou "direita" servem, como em tantas outras áreas, para simplificar uma distribuição tipológica, há quem tenha estratégias e práticas de gestão diversas, de acordo com princípios ideológicos diferentes. Muito mais distintas do que o comum telespectador ou leitor das mais "prestigiadas" revistas económicas imaginam: porque tudo se situa em relação a referências ideológicas, quer os seus protagonistas queiram ou não...

E, além disso, há também uma actuação na sociedade, não raro contraditória, o que também não é caso para berrar pelo Harry Potter.

Como quase tudo o que entra na linguagem humana, estas nomenclaturas surgem circunstancialmente (neste caso, radicam-se na época da revolução de 1789 e na "arrumação" partidária da Assembleia Nacional Francesa).

IV – Das razões e necessidade da existência de quem pense e actue à esquerda

Para quem não acredita nos actuais mitos urbanos de que as ideologias morreram e a história está moribunda ─ ou outras patacoadas muito em uso para distrair o cidadão do exercício pleno da sua cidadania ─, empresários como Bill Gates, financeiros como George Soros, e outros são um bom exemplo de detentores de grandes fortunas (muitos deles empresários) que, social e politicamente, actuam "à esquerda", apesar de ─ sem pôr em causa a aspiração de contribuir para um avanço civilizacional efectivo, enquanto fundamento da sua prática filantrópica ─ eu costumar dizer que, quando Gates se empenha em conseguir uma aplicação nunca vista dessas grandes fortunas em acções de beneficência, está a inventar um grito, ainda que murmurado, o SOA: "save our asses".

Porque, quando as "crises" se aproximam tão perigosamente do ponto em que os dirigentes políticos de todo o orbe, para não beliscar o "sistema", não conseguem tomar uma medidazinha que seja para o pôr na ordem, parecendo tão-só empenhados em multiplicar as multidões famintas, doentes e já sem nada a perder; quando os bonzos de tal sistema falido, petrificados nas suas análises, se mostram incapazes de as alterar e insistem nas mesmas mezinhas bolorentas e fora de prazo (tipo Medina Carreira e outros venerandos fantasmas da "ciência" económica); então, estão criadas as condições de todas as grandes broncas históricas.

Só que, dantes, essas condições davam um Atila, depois um Napoleão, mais tarde um Hitler; e o âmbito das tragédias foi-se alargando.

Agora... estamos numa escala...

Chamam-lhe "globalização", não é?

É por isso que ainda vai havendo empresários e cantoneiros "de esquerda". E são indispensáveis ─ ou "eram", balbuciará o último empresário "sem ideologia"...
publicado por Carlos Loures às 09:00
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Sexta-feira, 16 de Julho de 2010

Alçapões da linguagem - Os empresários de esquerda

Pedro Godinho


Fazendo-se eco de agências internacionais, várias notícias referiram que a oferta de compra feita por três empresários de esquerda salvou da falência o diário francês Le Monde.

Presumo haver um significado especial na menção “empresários de esquerda”.

“Empresários” porque empresários, “de esquerda” porque de esquerda.

Mas porquê “empresários de esquerda”?

Se são “empresários de esquerda”, e não simplesmente “empresários” ou “de esquerda”, é porque haverá um tipo distinto de “empresários”: os “empresários de esquerda”. O que os caracteriza? Como se distinguem? Serão os empresários naturalmente de direita? O que faz deles “empresários de esquerda”?

Porque dirigem de forma diferente as suas empresas? Porque preferem o valor de uso ao valor de troca? Porque é outra a natureza das mais-valias? Porque partilham os ganhos com equidade?

No Le Monde, os jornalistas não aguentaram a sua condição de accionistas maioritários (antes considerada essencial para assegurar a independência editorial) e (com a aprovação de 90% dos próprios para entrega do controlo) passam a ser apenas assalariados.
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publicado por Carlos Loures às 13:30
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Sexta-feira, 18 de Junho de 2010

A Comunicação Social e a Democracia – II

João Machado


Le Monde está à venda

No New York Times do dia 14 do corrente mês de Junho saiu uma notícia informando que Nicolas Sarkozy, Presidente da República Francesa, convocou para o Palácio do Eliseu Éric Fottorino, editor de Le Monde, para lhe exprimir a sua preocupação por um grupo de três personalidades próximas do Partido Socialista de França se proporem comprar o jornal. Noutra notícia, saída no Finantial Times de 11 de Junho, refere-se que Fottorino terá dito que Sarkozy ameaçou reter apoios estatais ao jornal se se consumasse aquela entrada no capital do jornal de três adversários políticos seus.

A precária situação financeira do prestigioso Le Monde obrigou os actuais proprietários a procurar novos investidores, na medida em que já em Julho próximo terão dificuldade em fazer pagamentos. Para além do grupo das três personalidades de esquerda muito moderada (um apoiou a anterior candidata do partido Socialista às presidenciais Ségolène Royal, outro Dominique Strauss-Kahn, actual líder do FMI, e o terceiro navega nas mesmas águas), perfila-se a France Telecom em conjunto com o Nouvel Observateur como outro candidato. O grupo espanhol Prisa (que já detém acções de Le Monde) também parece ter manifestado interesse, assim como suíços e italianos. A intervenção de Sarkozy poderá ter tido um peso considerável na decisão final, que deverá estar pronta no próximo dia 28 de Junho.

Para Le Monde é hora de grande incerteza. Os seus mais de 200 jornalistas e a sociedade de leitores têm tido um grande peso na sua orientação e na defesa da sua independência editorial. Dominam parte significativa do capital e os jornalistas detêm poderes estatutários que lhes permitem influenciar a escolha das chefias. Obviamente que estes poderes vão estar em causa neste processo, apesar das promessas de várias quadrantes no sentido da manutenção da independência editorial, pedra angular do óptimo trabalho desenvolvido pelo jornal desde 1944, quando foi fundado por Hubert Beuve-Méry, a pedido do General De Gaulle.

Nicolas Sarkozy parece deter uma influência crescente na comunicação social francesa, contando com amigos seus à frente de vários jornais influentes, como o Figaro. O Finantial Times, na notícia acima citada, diz ter conseguido uma alteração legislativa que lhe permite nomear o director da televisão pública. A intervenção do poder na comunicação social em França não é propriamente um fenómeno novo, mas não será exagero interrogarmo-nos se, neste caso de Le Monde, não estaremos perante uma tentativa de aproveitar a sua precária situação financeira para domesticar um jornal incómodo, não só para Sarkozy, mas para os poderes em geral.

Não posso concluir sem fazer uma rápida conclusão com o caso TVI/PT em Portugal. É claro que é preciso desde logo fazer o reparo de que há uma grande diferença entre a qualidade jornalística de Le Monde e a da TVI. Contudo parece estabelecido que também neste caso ocorreu uma tentativa de calar uma voz contrária, apesar dos veementes desmentidos. Põe-se aqui uma grande questão: até quando os jornalistas e a comunicação social em geral conseguirão suportar estas investidas? É um erro pensar que estas provêem apenas de alguns políticos mal formados ou pouco avisados.
publicado por Carlos Loures às 09:00
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