Quarta-feira, 6 de Outubro de 2010

Otelo

Carlos Loures

Excepcionalmente, naquele sábado, dia 13 de Julho de 1974, não houve reuniões ou manifes. Coisa rara naquele Verão que se seguiu ao 25 de Abril. Estava com a mulher e os filhos em casa do meu compadre Joaquim Reis na Parede (eu morava perto). Estava também o Jaime Camecelha, meu amigo de infância, e a respectiva tribo. A comadre Lurdes fizera um petisco e bebíamos umas cervejas, e conversávamos animadamente, como de costume.

O televisor estava ligado, com o som baixo, e enquanto comíamos e falávamos, íamos olhando distraidamente. Estavam a transmitir uma cerimónia qualquer em directo. Reparámos que estava presente toda a Junta de Salvação Nacional. Um de nós foi subir o som. E demos atenção. O general Jaime Silvério Marques fazia um discurso oco exaltando a juventude de espírito dos membros da Junta de Salvação Nacional, todos eles oficiais generais, chamando à Junta os louros da Revolução. Nós ríamos e íamos comendo, bebendo e mandando bocas. Era a habitual conversa de chacha.

Foi então que um jovem major de cabelo cortado curto, precocemente embranquecido, elevou a voz e perguntou: «-Dá-me licença, meu general?» Silvério Marques apanhado de surpresa disse que sim. Acho que foi o meu compadre quem disse, referindo-se ao major: «- Este gajo parece o Nasser!».E o «Nasser» saiu-se com esta:



Soubemos depois que aquele acto solene se destinava a graduar em brigadeiro o tal major de cabelos brancos e a nomeá-lo para comandante-adjunto de uma coisa chamada COPCON (que o MRPP dizia ser a nova PIDE). Com o discurso do empossado a cerimónia estava estragada.
Os generais estavam furiosos, o monóculo do Spínola lançava chispas, a bonomia desaparecera-lhe das bochechas. Costa Gomes mantinha o seu sorriso discreto e era o único que não parecia muito incomodado. Nós os seis desatámos a bater palmas. «Embrulha!»O Joaquim Reis lançou este modismo, na época muito em voga, dirigido ao Silvério Marques que gaguejava atabalhoadamente as palavras de encerramento do acto.
Nunca mais deixámos de seguir com atenção a carreira deste homem com o qual, passado relativamente pouco tempo travei uma relação de amizade. Tínhamos frequentes reuniões em Lisboa, morávamos ambos na linha de Cascais, éramos quase vizinhos (eu vivia na Parede e ele em Oeiras) e ia até sua casa no meu carro. Alternadamente seguíamos depois no carro de um ou de outro, porque, mais ainda do que agora, os tempos não estavam para despesas inúteis. Pude ver, durante esse convívio, como Otelo, ao contrário do que se diz, é uma pessoa de grande cultura, gostando de bons livros, de bom cinema, de boa música. Um militar atípico, dir-se-ia mesmo.

Mais tarde, tive o prazer de ser seu editor, publicando-lhe numa colecção dirigida pelo António Reis uma edição encadernada do seu «Alvorada em Abril». Justamente em «Alvorada em Abril», Otelo conta como, no comando clandestino instalado no Quartel da Pontinha, terminada a sua missão se sente desnecessário. É um belo momento literário – a Revolução triunfou após 48 anos de ditadura e o homem que planificou a acção e a controlou até ao fim, acha que a sua missão terminou:

«Retiro da prancheta o meu “mapa de estradas”, recolho a “ordem de operações”. Luís Macedo mandará depois arrumar a sala e Garcia dos Santos providenciará para a recolha dos rádios e telefones. Dou um último olhar pelo compartimento, apago as luzes e fecho a porta. Sou o último a sair. No quarto de oficiais, dispo a farda e visto-me à paisana. Meto no carro a pasta e o saco de napa com o uniforme e saio a porta de armas da unidade. O velho Morris 1100 rola pela fita da estrada a caminho de casa, num país diferente.»
Otelo Saraiva de Carvalho foi o cérebro da Revolução de Abril, o homem que planificou toda a operação. No terreno, Salgueiro Maia foi o mais brilhante executor dessa «ordem de operações». Sabe-se que o MFA era constituído por muita gente e que todos foram importantes, mas se tivesse de escolher os nomes mais representativos desse grupo de jovens oficiais, Otelo e Salgueiro Maia seriam os eleitos. Sem hesitar.
publicado por Carlos Loures às 12:00
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