Dia 25 de Abril
23:30 - Chegada da EPC a Cavalria7 e a Lanceiros 2 que são ocupados, perante a rendição, sem resistência, dos seus comandantes.
Nessa noite o país festejou. À 1,30h do dia 26 foi feita a proclamação da Junta de Salvação Nacional.
FIM DE TARDE DE ABRIL Orlando Cardoso (1948)
atravessávamos a poalha do fim da tarde em abril
escuro lamento da voz rompíamos o círculo estreito de
amizades cinzentas o muro branco da lamentação
antiga abríamos um seco areal aí passava o sol
banhando a tua roupa a nudez do corpo macerado no
ofício dolorido dos navios
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Equipa responsável por este dia: Augusta Clara, Carlos Loures, Luís Moreira.
Dia 25 de Abril
22:00 - Pára-quedistas chegam à prisão de Caxias. A PIDE/DGS continua a resistir.
AS PORTAS QUE ABRIL ABRIU José Carlos Ary dos Santos
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Era uma vez um país Onde entre vinhas sobredos (…) Ora passou-se porém Era a semente da esperança Era já uma promessa (…) Posta a semente do cravo Foi então que o povo armado Pois também ele humilhado Era preso e exilado Capitão que não comanda Porque a força bem empregue
(in Poemabril, 2ª edição, Coimbra, 1994) |
Dia 25 de Abril
LEGENDA DE ABRIL Papiniano Carlos (1918)
Para os meninos do meu país
Eram
três capitães
eram trezentos capitães
Eram
trinta sargentos
eram três mil sargentos
Eram
trezentos soldados
eram trinta mil soldados
E eram
duas e quinze da madrugada
Vestiam camuflados de combate
e relampejantes
e empunhavam as armas
Eram
duas e quinze da madrugada
a noite chegava ao fim
Não eram super-homens
não eram arcanjos cavalgando
o relâmpago e o trovão
eram jovens soldados sangue
do nosso sangue popular
Relampejantes
empunhavam as armas
fitavam de frente os monstros
uivantes
a abominável hidra
do terror fascista
Eram
duas e quinze da madrugada
finalmente amanhecia
em Portugal
E era
de cravos couraçado
o povo triunfante
às portas de Abril
(Diário, 25/4/80)
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
25 DE ABRIL José do Carmo Francisco (1951)
Dez anos depois eu trago numa bandeja
Retratos e sons que guardei na altura
Não como quem já chora ou inda festeja
A certidão de óbito passada à ditadura
Porque os abutres logo vieram a correr
Sem mais cuidado que tomar outro lugar
à frente das muitas secretárias do poder
Para proibir a festa de mais avançar
Dez anos depois trago uma revolta
A raiva já sem limites duma tradição
Feita em eleições com fascismo à solta
Só amordaçam mas não matam a Revolução
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Dia 25 de Abril
20:00 - Disparos de elementos da PIDE/DGS sobre manifestantes que começavam a afluir à sede daquela polícia na Rua António Maria Cardoso, fazem quatro mortos e 45 feridos.
20:05 - É lida no RCP, a Proclamação do Movimento das Forças Armadas.
RUMOR Antunes da Silva (1921)
Se gosto desgosto
desta terra onde nasci,
porque longe meço o gosto
de viver onde vivi.
Se aqueço arrefeço
ao lume que pressenti,
ser o lume donde aqueço
outro lume que escolhi
Não vou cantar: canto
em Abril o que colhi,
meu país e meu recanto:
outro canto descobri.
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Dia 25 de Abril
Duas entrevistas de Otelo sobre a organização do 25 de Abril:
http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=txtOtelo1
http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=txtOtelo2
19:30 - Marcelo Caetano e os ministros que com ele estavam no quartel são transportados, numa Chaimite (veículo blindado), para o posto de comando do MFA, na Pontinha.
19:50 - Comunicado do MFA anuncia a queda do Governo.
10º POEMA DE ABRIL José Manuel Mendes (1948)
Acolher maio com punhos
de metal
repartir orvalhadas rosas
bagos de coral
agitar bandeiras espigas
ruivas
na luz fria
alagar as ruas do límpido cantar
como semeando faias na penumbra
da alegria
dizer íris com verdes asas
povo com mica dum clamor
fabril
gritar este dia com agulhas
de cristal
e fecundar abril
(in Pedra a Pedra, Lisboa, 1983 e Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Dia 25 de Abril
15:10 - Salgueiro Maia solicita, com megafone, a rendição do Carmo em 10 minutos. Momentos antes recebera do Posto de Comando do MFA uma mensagem escrita pelo major Otelo Saraiva de Carvalho na qual ordena que apresente um aviso-ultimato para a rendição.
15:30 - Não sendo atendido após 15 minutos, Salgueiro Maia ordena ao tenente Santos Silva para fazer uma rajada da torre da Chaimite sobre as janelas mais altas do Quartel, repetindo o apelo de rendição logo a seguir.
15:45 - Do Quartel do Carmo sai o major Hugo Velasco, membro do MFA, para falar com o capitão Salgueiro Maia.
16:00 – O coronel Abrantes da Silva, a pedido de Salgueiro Maia, entra no Quartel para dialogar com os sitiados.
16:15 - O capitão Salgueiro Maia dá ordens ao alferes miliciano Carlos Beato para instalar os seus homens no cimo do edifício da Companhia de Seguros Império e fazer fogo sobre o Carmo, agora com armas automáticas G-3.
16:25 – Salgueiro Maia, não tendo resposta dos sitiados no Quartel do Carmo, ordena a colocação de um blindado em posição de tiro e chega a dar "voz" de "um, dois"..., sendo interrompido pelo tenente Alfredo Assunção que conduz dois civis até ele. Trata-se de Pedro Feytor Pinto, director dos Serviços de Informação da Secretaria de Estado da Informação e Turismo, e Nuno Távora, que se dizem portadores de uma mensagem do general Spínola para Marcelo Caetano.
16:30 - Salgueiro Maia autoriza a entrada no Quartel dos dois mensageiros.
Spínola comunica ao Posto de Comando do MFA ter recebido um pedido de Marcelo Caetano para ser ele a aceitar a rendição do chefe do governo. Otelo, após recolher a opinião dos presentes, concede-lhe esse mandato.
16:45 - Os dois mensageiros saem do Quartel do Carmo e deslocam-se num jipe, acompanhados por Alfredo Assunção, para casa de Spínola que, entretanto, se dirige já para o Carmo.
17:00 - Salgueiro Maia desloca-se ao interior do Quartel e fala com Marcelo Caetano que, após ter colocado algumas perguntas, lhe solicita que um oficial-general vá efectuar a transmissão de poderes (Spínola, com quem, aliás, falara já ao telefone) para que o poder não caia na rua. .Salgueiro Maia pede a Francisco Sousa Tavares e a Pedro Coelho, oposicionistas ligados à CEUD e ao PS, para ajudarem a afastar a população. Sousa Tavares sobe para uma guarita da GNR e, usando o megafone, apela à calma.
17:45 - Chega ao Largo do Carmo António de Spínola. Após longos minutos envolvido pela multidão, o carro que transporta Spínola consegue, finalmente, chegar junto da porta de armas do quartel.
18:00 - António de Spínola, acompanhado por Salgueiro Maia (que o informa sobre o modo como os membros do Governo serão retirados das instalações), entra no Quartel do Carmo para dialogar com Marcelo Caetano.
18:15 - Spínola encontra-se com Marcelo e informa-o dos procedimentos que serão adoptados para a sua saída do local e posterior evacuação para a Madeira. Enquanto isso, Salgueiro Maia pede à população que abandone o Largo do Carmo, a fim de se proceder à retirada do Presidente do Conselho e dos ministros. O apelo é ignorado.
18:20 - Um comunicado do MFA informa o País da entrega de Marcelo Caetano e de membros do seu ex-governo, refugiados no Carmo.
18:30 – A Chaimite entra de marcha atrás no Quartel do Carmo.
18:45 - O Decreto-Lei 171/74, que "entra imediatamente em vigor", extingue a Direcção-Geral de Segurança, a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa e a Mocidade Portuguesa Feminina.
SONETO Olga Gonçalves (1929-2004)
festejar no teu corpo a liberdade
que a dobra desta noite pronuncia
sobre o nervo da voz força de alarme
garganta milimétrica de abril
um cravo da coronha de um soldado
no carmo há meia hora ainda em sentido
para o gesto tão fundo tão volável
infância já da luz dentro do sismo
jornais não censurados no tapete
uma fábula fértil de fogueiras
crepitando onde rola o som da estampa
interior ao rumo a labareda
o desenho final do nosso beijo
na premissa mais livre do meu sangue
(in Só de amor, Lisboa, 1975 e Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Dia 25 de Abril
LEMBRANÇA ENTRE ELEGIA E HINO PARA O 25 DE ABRIL António Salvado (1936)
O trigo espera o campo das searas
vive o sonho o pomar:
um canto de cigarra
aguarda os frutos para se entregar
A sombra nega a promessa
na tristeza maior das oliveiras:
ausente luz que atravessa
sem clarão o estreme nevoeiro
Que esvaído o contorno
é este que quando o granito
sufoca a terra onde nasceu o grito
adormecido em desalento morto
Despertas pousam ainda nos galhos
as aves: o desafio
E o vento aguarda puro sobre as árvores
A vinha se anuncia!
(in Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
25 DE ABRIL José do Carmo Francisco (1951)
Dez anos depois eu trago numa bandeja
Retratos e sons que guardei na altura
Não como quem já chora ou inda festeja
A certidão de óbito passada à ditadura
Porque os abutres logo vieram a correr
Sem mais cuidado que tomar outro lugar
à frente das muitas secretárias do poder
Para proibir a festa de mais avançar
Dez anos depois trago uma revolta
A raiva já sem limites duma tradição
Feita em eleições com fascismo à solta
Só amordaçam mas não matam a Revolução
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Dia 25 de Abril
12:30 - É cercado, pelas forças de Salgueiro Maia, o Quartel da GNR do Largo do Carmo, onde se encontra o presidente do Conselho, Marcelo Caetano.
12:45 - Forças da GNR, fieis ao Governo ocupam posições na Rua da Trindade, na retaguarda do dispositivo de Salgueiro Maia.
E CORRERAM OS RIOS Wanda Ramos(1948-1998)
Correram como rios as palavras
altas e soltas correram os rios na gente
rios de lava Lisboa inflamada acorrendo fremente
nos dias eu se abriram vinda das faldas vertida
dos dormitórios da cintura fumegante e mecanizada
Lisboa livre acorreu
enxameadas as veias avenida da liberdade
rossio terreiro do paço Belém
- e além na outra banda absurdo o cristo:
braços em cruz impotente –
e correndo os rios cada vez mais latos
até o súbito despedaçar-se da seda contra a amurada
afundadas as olheiras da vigília entornadas
as falas em busca do nexo – e achámos esta sorte
o sangue agitado o tempo:
uníssono o nosso grito
escancarado em cada rua
em passo de estar alerta
uníssono ressoou porém mais fundo.
E assim nos pergunto que águas nos lavaram tão de dentro
e levaram alamedas da liberdade acima
que rios tão feitos de luta e punhos? alegria?
(Diário de 25/4/79)
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Dia 25 de Abril
11:30 – A força estacionada no Terreiro do Paço divide-se, avançando a Escola Prática de Cavalaria para o Quartel do Carmo, sendo, ao longo de todo o percurso, aclamada entusiasticamente pela população. Forças dos Regimentos de Cavalaria 7, Lanceiros 2 e Infantaria 1 - que contavam com 16 blindados vão para o Quartel-General da Legião Portuguesa.
No Rossio, uma companhia do Regimento de Infantaria 1, da Amadora, tenta barrar o caminho para o Quartel do Carmo, à coluna da EPC. Após diálogo com o comandante das tropas, estas passam para o lado de Salgueiro Maia.
COMO SE FOSSE UMA LENDA Rui Mendes (1937)
Eu sou daqui destas maré íngremes preia-mar de rosas
Abril vi cantar leda madrugada às raparigas frondosas
Às raparigas e às mulheres cegando o vento das enseadas
Abril fresas ribeiras sonho arável do sonho ruas amuradas
Amuradas murmúrios nessas bagas d’anil era o fogo alteado
Abril punhos ao alto podoas que o mar no Tejo tinha secado
O mar as lezírias do mar com todas as velas postas de lado
Abril rimas ao ombro réstias sou tamborileiro sou soldado
Sou soldado ou hortelão de navios o que for seja o que seja
Abril torno do povo irmão cativo de maio anel que viceja
Eu sou daqui destas maré íngremes preia-mar de rosas
Abril vi cantar leda madrugada às raparigas frondosas
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Dia 25 de Abril
O CARANGUEJO Carlos Pinhão (1924-1993)
O caranguejo
talvez seja bom rapaz
não digo que não
mas quando o vejo
a andar para trás
faz-me lembrar a Revolução.
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
EU CANTEI ABRIL António Augusto Menano (1937)
Eu cantei Abril
e tu também
Eu cantei Abril
e tu também
A raiva e o amor cantámos
sem trilhos vagos
e secretos lugares
Cantámos o amor
de estar em Abril, amando-o,
a cantar Maio
(De Cinco poemas de Abril e Maio, in Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Dia 25 de Abril
09:00 - A fragata Almirante Gago Coutinho fundeou em frente ao Terreiro do Paço, ameaçando as forças de Salgueiro Maia. A artilharia do MFA, colocada no Cristo-Rei, tinha ordens para afundar a fragata caso esta abrisse fogo.
TROVA DO MÊS DE ABRIL Manuel Alegre (1936)
Foram dias foram anos a esperar por um só dia.
Alegrias. Desenganos. Foi o tempo que doía
com seus riscos e seus danos. Foi a noite e foi o dia
na esperança de um só dia.
Foram batalhas perdidas. Foram derrotas vitórias.
Foi a vida (foram vidas). Foi a História (foram histórias)
mil encontros despedidas. Foram vidas (foi a vida)
por um só dia vivida.
Foi o tempo que passava como se nunca passasse.
E uma flauta que cantava como se a noite rasgasse
toda a vida e uma palavra: liberdade que vivia
na esperança de um só dia.
Musa minha vem dizer o que nunca então se disse
esse morrer de viver por um dia em que se visse
um só dia e então morrer. Musa minha que tecias
um só dia dos teus dias.
Vem dizer o puro exemplo dos que nunca se cansaram
musa minha onde contemplo os dias que se passaram
sem nunca passar o tempo. Nesse tempo em que daria
a vida por um só dia.
Já muitas águas correram já muitos rios secaram
batalhas que se perderam batalhas que se ganharam.
Só os dias não morreram em que era tão curta a vida
por um só dia vivida.
E as quatro estações rolaram com seus ritmos e seus ritos.
Ventos do Norte levaram festas jogos brincos ditos.
E as chamas não se apagaram. Que na ideia a lenha ardia
toda a vida por um dia.
Fogos-fátuos cinza fria. Musa minha que cantavas
a canção que se vestia com bandeiras nas palavras.
Armas que o tempo tecia. Minha vida toda a vida
por um só dia vivida.
(in Atlântico, Lisboa, 1981 e Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Dia 25 de Abril
07:00 - Vindo da Ribeira das Naus, chega ao Terreiro do Paço um pelotão de reconhecimento Panhard de Cavalaria 7, comandado pelo tenente-coronel Ferrand de Almeida, que acaba por se render, sendo preso.
07:30 - Quinto comunicado do MFA – Repete as advertências às forças policiais e militarizadas e pede à população que se mantenha calma e permaneça nas suas residências.
25 DE ABRIL Hélia Correia (1949)
Agora deve-se beber, ohé, dançai
sobre este chão que estala com o cheiro
das coisas prometidas, com o fresco
tambor da ansiedade.
É, a festa, mulheres!
Que sangue vibra,
que flor ou menstruo? Cor
que abotoais nas blusas, que atirais
na direcção do sol.
Espantosamente
se desfaz a montanha..
Hoje é a ceifa, oh!
Beijai a terra,
soletrai-a com sede e devagar
como se toma a posse do amor
e se mordem os frutos.
Salve, mãe, o teu ventre perfumado
pelo nosso triunfo.
Bebamos, pois, o vinho destas vozes,
soltemos estes cravos como potros
embriagados.
Como intensas éguas
incendiárias
Cantai, cantai, crianças o esplendor
de que nasceis herdeiras.
Erguei nas vossas mãos o ar por onde
esvoaça esta alegria.
Que ninguém adormeça.
Por que dias,
meses a fio, e anos, dançaremos
por sobre a claridade.
Vinde, bebei, ciganos:
eis a pátria.
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
.
Dia 25 de Abril
06:05 - Chega ao Terreiro do Paço um esquadrão de Chaimites reforçado com Panhards de Cavalaria 7, fiel ao Governo. Adere ao MFA, tal como os dois pelotões do Regimento de Lanceiros 2 que guardam o Ministério do Exército.
06:45 - Quarto comunicado do MFA: Dá-se conta de que as Forças Armadas decidiram tomar a seu cargo a presente situação, repetindo-se o aviso de que qualquer oposição das forças militarizadas será duramente punida.
AINDA HOJE SE FALA NESSE DIA António Cabral (1931-2007)
Ainda hoje se fala nesse dia. Que
surgiu como bola de fogo
na sulfurosa montanha.
Dies irae, dies illa. Distante, mas
não tanto que se tenha apagado da raiva.
Sobretudo os mais novos são os primeiros
a recordar. Um hálito forte
de primavera excitava o húmido
corpo da noite e alguns cravos
trocavam na varanda suas palavras
recentemente proibidas.
À boca de muitos túneis, o mesmo corpo
surgia lentamente inundado de tons
claros. E passos musicais, firmes ,
falavam cada vez mais alto
pela incrível madrugada.
Quem decidiu tão feroz descontentamento
e encheu de alecrim as urnas
da memória? Até o ouro tinha um sabor
a enxofre. Velhas ideias
ardiam. Quão doce espectáculo! As culpas
reentravam no buraco dos olhos,
coisas insalubres, enquanto as lendas
vinham para a rua em cabelo.
Quando rompeu a manhã, um clarão
íntimo começou a jorrar
dos armários da luz, acumulação
de muitos anos, subiu de novo
às varandas, floriu no púbis.
Escancarou as coisas interditas.
Os jornais e as fábricas, a alcova
secreta, a rua e os campos anilados,
a escola da luz, tudo isso comoveu
o frágil coração do poeta que
pôs olhos atentos na cotovia:
do morro o coração, emerso no nevoeiro,
cintilava. Ainda hoje
se fala desse dia.
Mas sobretudo os mais novos continuam a recordar.
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Dia 25 de Abril
05:00 - A coluna de Salgueiro Maia passa na auto-estrada, em Sacavém.
05:15 - É lido o terceiro comunicado do MFA, onde se volta apelar para o bom senso dos comandos das forças militarizadas (PSP, GNR, PIDE/DGS, Legião…), no sentido de se evitarem confrontos com as Forças Armadas e se adverte da severidade com que tais atitudes serão punidas. Pede-se à população para recolher a suas casas e ao pessoal médico e de enfermagem que se apresente nos hospitais.
05:55 - A coluna da EPC instala-se no Terreiro do Paço, cercando os ministérios, a Câmara, a Marconi, o Banco de Portugal e a 1ª Divisão da P.S.P., com metralhadoras apontadas para o Ministério do Exército. «Estamos aqui para derrubar o Governo» diz Salgueiro Maia a Adelino Gomes.
05:59 - O ministro do Exército telefona ao coronel Romeiras Júnior: "veja se consegue salvar esta coisa, pois estamos todos cercados". O coronel diz que as forças fiéis iam a caminho e já se encontravam na Av. 24 de Julho.
O DIA INCOMUM DE UM EXILADO VIVENDO ENTÃO EM VANCOUVER Sérgio Godinho (1945)
Era muito longe, ou seja
no Pacífico
Notícias de jornal, confusas:
tanques ocupam a praça central
de Lisboa
Digo-me: mal eles sabem que se chama
Rossio
mas digo-me também: se é a revolução
daquele do monóculo
pouco tenho a esperar
Depois espanto-me: como é possível
que libertem assim
sem mais nem menos
os presos políticos
e prometam a autodeterminação
de colónias
economicamente tão preciosas?
O povo saiu à rua e foi isso
que mudou tudo, explicam-me então
pelo telefone.
No dia em que abalei
para aqui ficar
deixei sem remorsos:
a minha horta
cujos legumes tantas vezes protegi
um trabalho que tanto suspeitava amar
e os amigos que, querendo ser generosos,
me disseram:
«Vai, vais ver que não te arrependes»
Esquece-se muita coisa...
à força de ver caras novas
não sei se me lembro das antigas
embora as veja tão bonitas
e disponíveis
na memória
e por vezes em fotografia.
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
Dia 25 de Abril
04:20 - O aeroporto Militar de Figo Maduro (anexo ao Aeroporto de Lisboa, é ocupado por um só homem, o capitão Costa Martins. Utiliza o "bluff" de que está à frente de uma Companhia de Infantaria, o capitão. Usa o mesmo "bluff" e dá ordens de encerrar todo o tráfego na Portela. Chegam forças da Escola Prática de Infantaria (Mafra). O aeroporto de Lisboa é encerrado. O tráfego aéreo é reencaminhado para Madrid e Las Palmas.
04:26 - Leitura do primeiro comunicado do MFA, pela voz do jornalista Joaquim Furtado, aos microfones do Rádio Clube Português:
Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas.
As Forças Armadas portuguesas apelam a todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma. Esperamos sinceramente que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal, para o que apelamos para o bom senso dos comandos das forças militarizadas, no sentido de serem evitados quaisquer confrontos com as Forças Armadas. Tal confronto, além de desnecessário, só poderá conduzir a sérios prejuízos individuais que enlutariam e criariam divisões entre os Portugueses, o que há que evitar a todo o custo. Não obstante a expressa preocupação de não fazer correr a mínima gota de sangue de qualquer português, apelamos para o espírito cívico e profissional da classe médica, esperando a sua acorrência aos hospitais, a fim de prestar a sua eventual colaboração, que se deseja, sinceramente, desnecessária.
04:45 - Leitura do segundo comunicado do MFA, na antena do RCP – Nele, aconselha-se prudência às forças militarizadas e policiais no sentido de evitar confrontos e avisa-se os respectivos comandos de que serão severamente responsabilizados se ignorarem esta recomendação.
CANTIGA DE ABRIL Jorge de Sena
Às Forças Armadas e ao povo de Portugal
«Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade»
J. de S.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste pais,
e conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Essa paz de cemitério
toda prisão ou censura,
e o poder feito galdério.
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.
Qual a cor da liberdade?
É verde. verde e vermelha.
Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por politica demente.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.
Qual a cor da liberdade?
E verde, verde e vermelha.
Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim altiva e nua,
com força que não recua,
a verdade mais veraz.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.
(26-28(?)/4/1974)
(In Poemabril, 2ª edição , Coimbra, 1994)
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