Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt
Virgílio, Eneida (1)
Reza a lenda que, lá para o fim da vida, Turner, o mais leve dos mais aéreos mestres, preocupado com tantas outras coisas e, ainda por cima, a ter de tratar com os clientes, vivia numa casa para dentro da qual a vida fora mandando tudo e mais alguma tralha, verdadeira lixeira, resguardado do mundo por tremenda governanta e vários gatos à solta. Um deles, de patas sujas, lá passou por um papel que havia de estar pelo chão ou em cima de uma mesa, e quis o acaso que essa folha chegasse até nós e merecesse honras de museu, exposta que a vejo sempre na velha Tate, a que agora chamam Tate-Britain. Eu gosto dessa folha de papel e visito-a sempre, com os passos do gato a virem não se sabe de onde e irem sabe-se lá para onde, em diagonal sobre a folha, leves, insólitos, a folha que recolheu, sudário, aquele preguiçoso, determinado passeio do gato movido por sabe-se lá que impulso, levado sabe-se lá por que apelo, naquele institivo "minuto do mundo que passa", minuto que para sempre connosco ficou.
Já, no outro dia, disse ao Pedro Chorão que este papel do gato de Turner lhe assenta como máscara, não como luva, a ele que pega nos papéis e os deixa por acabar, avança para outro, sabe-se lá para onde vai, volta atrás, olha os seus interlocutores maiores, os desaparecidos, os seus mortos, saúda-os, fá-los emergir, recomeça, recorta, "mestre do inacabado" chamou-lhe, e justamente o chamou, Alexandre Pomar, ele que começa os seus trabalhos não se sabe vindo de onde ou sabe-se — e muitas vezes vem da pintura de outros, sombras de Jaspers Johns, de Motherwell (a quem, nas suas homenagens, parece perguntar, como Ariel a Próspero: What shall I do? Say what: What shall l do?) —, cartolinas recortadas, pedaços de papel colados, rasgados, pedaços da vida suja, um envelope, um desenho técnico, listagens, papel grosso, restos dos dias, pegadas e o horizonte naquele imenso de papel intocado que parece desequilibrar-se, dançando num equilíbrio sempre recomeçado, imponderável.
A que agora se vêm juntar os delicadíssimos conjuntos em que tintas insustentavelmente leves mal assomam o papel, imperceptiveis, espuma mal liquefeita dos dias, libertando o branco do suporte, fazendo-o mover-se, luzir, cintilando, ansiando pela estrutura geométrica ou pela parede onde brilharão, luzinhas de vida derramando-se, lamentando-se numa perda do instante, chuva de átomo em permanência, nesse instante em que cada vez menos se inscreve, cada vez mais suspira, lucrecianamente ao rés das coisas.
E penso na velha expressão intraduzível de Virgílio, ele que fala das lacrimae rerum, que Antero, o dolorido, traduziu por "suspiro das coisas", é desse choro das tintas — não serão antes sorrisos e tão tranquilos, tão firmes, tão cantantes, tão límpidos? — que esta obra serena e constante é feita, dias e dias que se seguem, às vezes para trás, obscurecidos por névoa vivencial, verdade do momento, segredo, tão secreto segredo na ponta dos dedos da vida, tão táctil tudo, o papel rugoso, a tinta sedosa, água.
E são sussurros, são murmúrios, são segredos, são brincadeiras, sorrisos, são afagos, abraços, são gestos da mutável passagem das coisas, ver a tinta desfazer-se na pincelada descendente, vê-la encobrir-se toldada pela memória tão afectiva, é ver a cartolina cortada desenhar uma fenda, haverá um beijo sempre nestes recortes de grande intensidade, uma euforia erótica, há sempre um beijo no aflorar do pincel, penugem tão levemente deslizando, e outra vez e outra vez e recomeça, e volta.
Nesta arte em que parece não haver rede alguma, pousando apenas, inacabada, nua, invulgarmente discreta, lá vão indo os dias e os dias, a linha do horizonte, a luz reflectida, a luz reflexiva, um pouco de azul descendo, o que resta dos beijos roubados, a sombra doce das árvores e a imensa paisagem da vida, a contemplada, distante planície.
Se o caminho sempre em mutação de Pedro Chorão é tão comoventemente vivido é porque a sua carne viva não é a que vemos no talho, nem a sua ferida sangra; ele sorri da vida passada, brinca, recomeça, surge, ressurge, retoma, apolíneo, austero, sensível, volta, sem pathos, sem a hipótese de espectáculo ou narcisismo: são linhas e manchas da vida cruzada, pegadas, a aérea transformação da luz, a leve transição do presente em passado, memórias ternas, sozinhas e límpidas, a dor é flor do dia que acaba indo-se, éter.
E, tal como as pegadas do tal gato, cada trabalho, uma passagem apenas, atira para dentro de si e no seu instante um seu futuro: tal como o gato, lá se vai o Pedro Chorão depois, à vida dele.
Até novo papel (qual será dessa vez? craft, embrulho, canelado, rascunho, grosso?), a mesma leve tinta, um recorte, um pingo de cola, par délicatesse — et mentem mortalia tangunt.
Catálogo da exposição de desenho de Pedro Chorão na Galeria Esteves de Oliveira,
Lisboa, Janeiro 2005
(1) A mais bela tradução encontramo-la na epígrafe de Boa tarde às coisas aqui em baixo de António Lobo Antunes: Há lágrimas na natureza e [a sensação do efémero] toca-nos o coração. Quem mo assinalou (obrigado!) foi o Aires Augusto do Nascimento.
(in Jorge Silva Melo, Século Passado, Cotovia)
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