Terça-feira, 8 de Fevereiro de 2011

A Cartilha Maternal de João de Deus

 

Carlos Loures

Aprendi a ler com quatro anos. A minha mãe encarregou-se de me resolver esse problema, utilizando um método que, na altura já tinha muitas dezenas de anos, mas então (como agora) continua a funcionar – o método de João de Deus e da sua «Cartilha Maternal». Dizia ela, que aprendera a ler vinte e tal anos antes pela «Cartilha», que não havia melhor método. Não sei se havia ou não, mas os meus dois filhos frequentaram desde os dois anos um Jardim-Escola João de Deus e aprenderam a ler, também muito cedo, pelo mesmo método pelo qual a minha mãe eu aprendêramos. 

Ainda hoje, numa era de novas tecnologias, o sistema pedagógico de João de Deus funciona perfeitamente, o que confirma que, por vezes, as inovações não substituem o que já existe – presente e passado podem coexistir e, até, complementar-se,

 

A «Cartilha Maternal», que tem o subtítulo de Arte de Leitura, concebida pelo poeta e pedagogo, foi publicada em 1876, constituindo a base de um método de ensino de leitura a crianças e adultos analfabetos. Na época, mais de 80% dos portugueses não sabia ler nem escrever, pelo que, mais do que o «Magalhães» relativamente aos nossos dias, A «Cartilha» veio ajudar a resolver um dos maiores problemas nacionais. Um livrito pequeno e barato que foi uma das obras mais vezes reimpressas em Portugal, tendo sido usada nas escolas portuguesas por quase meio século (até 1921). 

A publicação da «Cartilha Maternal», foi recebida entusiasticamente por um país onde o analfabetismo, a par da pobreza, era uma tragédia, sendo o ensino mútuo a norma praticada no reduzido número de escolas existentes e em que os responsáveis políticos, apesar de afirmarem repetidamente que a escola era o meio de regeneração da sociedade portuguesa, ainda não se tinha conseguido reconciliar com a anterior tentativa de alteração metodológica representada pelo «Método Português de Castilho». 

António Feliciano de Castilho tinha-se batido contra os métodos de repetição e soletração ritmada (e a tabuada cantada). Porém, o professorado mostrava enorme relutância em adoptar a metodologia. Apesar de ter conseguido que em 1853 fosse criada, na Escola Normal de Lisboa, uma aula de ensaio do sistema, aula que se manteve até 1858, o sistema não pegou. A sua morte em 1875 ditou um maior apagamento da sua inovadora proposta educativa. Porém, apesar deste aparente insucesso, estava aberto o caminho para as cartilhas. 

No ano seguinte ao da morte de Castilho, João de Deus apresentou a sua «Cartilha», a intelectualidade e o professorado, mentalizados pelo método Castilho, já estava receptivo à a alteração metodológica. A partir de 1877, começou a difundir-se o chamado «método João de Deus» e em 1882, por decisão parlamentar, foi decretado o uso generalizado da «Cartilha Maternal» nas escolas portuguesas, mantido até 1903, quando a metodologia se tornou facultativo. O «Método de João de Deus» tornou-se rapidamente no sistema de iniciação à leitura preferido pelos professores A «Cartilha Maternal» foi precursora de um aluvião de outras cartilhas,. Até ao final dos anos de 1930 foram dos livros com maior tiragem em Portugal e no Brasil, sendo ainda hoje reeditados.

Além da excelência pedagógica do livrinho, o seu grafismo não terá sido estranho ao êxito obtido. Não foi por acaso que João de Deus escolheu, ou foi aconselhado a escolher, o alfabeto Clarendon, da família das egípcias, apresentado em 1845 por R. Beley & Co, e que se caracterizava pela forma redonda dos caracteres, com um contraste de espessura quase inexistente, e com patilhas ou serifas, permitindo uma leitura contínua e fácil - a obra destinava-se a crianças e a adultos analfabetos. Um elevado grau de legibilidade e de «higiene de leitura», contribuiu para a disseminação do método, ainda hoje aplicado nos jardins-escola João de Deus. Nestes 134 anos quantos milhares de crianças e de adultos analfabetos dele terão beneficiado? A «Cartilha Maternal» foi, no último quarto do século XIX, um passo mais importante do que hoje o «Magalhães». E muito mais barato. 


Um pequeno livrinho que, a seguir à merenda, a minha mãe trazia para a mesa e sílaba a sílaba ia metendo na minha cabeça pequenas poções da magia que me dava acesso a um universo de prodígios. Uma janela abriu-se para mim, uma janela que deitava para um mundo maravilhoso e ao mesmo tempo tenebroso, habitado por magos e duendes, donzelas e megeras, heróis e sinistros vilões… O mundo real, afinal de contas.

Uma magia que uma jovem chamada Judite com a ajuda de um velho poeta chamado João criaram expressamente para um miúdo chamado Carlos. Numa salinha de um quinto andar pombalino, vendo por detrás do rosto de minha mãe o Castelo de São Jorge sobressaindo como um orgulhoso navio de um oceano de telhados vermelhos, a chave que me iria dar acesso ao mundo das maravilhas construía-se dentro do meu pequeno cérebro.

Obrigado Judite. Obrigado João.

publicado por João Machado às 16:00

editado por Luis Moreira às 02:56
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Terça-feira, 28 de Setembro de 2010

A Cartilha Maternal de João de Deus

Carlos Loures

Aprendi a ler com quatro anos. A minha mãe encarregou-se de me resolver esse problema, utilizando um método que, na altura já tinha muitas dezenas de anos, mas então (como agora) continua a funcionar – o método de João de Deus e da sua «Cartilha Maternal». Dizia ela, que aprendera a ler vinte e tal anos antes pela «Cartilha», que não havia melhor método. Não sei se havia ou não, mas os meus dois filhos frequentaram desde os dois anos um Jardim-Escola João de Deus e aprenderam a ler, também muito cedo, pelo mesmo método pelo qual a minha mãe eu aprendêramos.

Ainda hoje, numa era de novas tecnologias, o sistema pedagógico de João de Deus funciona perfeitamente, o que confirma que, por vezes, as inovações não substituem o que já existe – presente e passado podem coexistir e, até, complementar-se,




A «Cartilha Maternal», que tem o subtítulo de Arte de Leitura, concebida pelo poeta e pedagogo, foi publicada em 1876, constituindo a base de um método de ensino de leitura a crianças e adultos analfabetos. Na época, mais de 80% dos portugueses não sabia ler nem escrever, pelo que, mais do que o «Magalhães» relativamente aos nossos dias, A «Cartilha» veio ajudar a resolver um dos maiores problemas nacionais. Um livrito pequeno e barato que foi uma das obras mais vezes reimpressas em Portugal, tendo sido usada nas escolas portuguesas por quase meio século (até 1921).

A publicação da «Cartilha Maternal», foi recebida entusiasticamente por um país onde o analfabetismo, a par da pobreza, era uma tragédia, sendo o ensino mútuo a norma praticada no reduzido número de escolas existentes e em que os responsáveis políticos, apesar de afirmarem repetidamente que a escola era o meio de regeneração da sociedade portuguesa, ainda não se tinha conseguido reconciliar com a anterior tentativa de alteração metodológica representada pelo «Método Português de Castilho».

António Feliciano de Castilho tinha-se batido contra os métodos de repetição e soletração ritmada (e a tabuada cantada). Porém, o professorado mostrava enorme relutância em adoptar a metodologia. Apesar de ter conseguido que em 1853 fosse criada, na Escola Normal de Lisboa, uma aula de ensaio do sistema, aula que se manteve até 1858, o sistema não pegou. A sua morte em 1875 ditou um maior apagamento da sua inovadora proposta educativa. Porém, apesar deste aparente insucesso, estava aberto o caminho para as cartilhas.

No ano seguinte ao da morte de Castilho, João de Deus apresentou a sua «Cartilha», a intelectualidade e o professorado, mentalizados pelo método Castilho, já estava receptivo à a alteração metodológica. A partir de 1877, começou a difundir-se o chamado «método João de Deus» e em 1882, por decisão parlamentar, foi decretado o uso generalizado da «Cartilha Maternal» nas escolas portuguesas, mantido até 1903, quando a metodologia se tornou facultativo. O «Método de João de Deus» tornou-se rapidamente no sistema de iniciação à leitura preferido pelos professores A «Cartilha Maternal» foi precursora de um aluvião de outras cartilhas,. Até ao final dos anos de 1930 foram dos livros com maior tiragem em Portugal e no Brasil, sendo ainda hoje reeditados.

Além da excelência pedagógica do livrinho, o seu grafismo não terá sido estranho ao êxito obtido. Não foi por acaso que João de Deus escolheu, ou foi aconselhado a escolher, o alfabeto Clarendon, da família das egípcias, apresentado em 1845 por R. Beley & Co, e que se caracterizava pela forma redonda dos caracteres, com um contraste de espessura quase inexistente, e com patilhas ou serifas, permitindo uma leitura contínua e fácil - a obra destinava-se a crianças e a adultos analfabetos. Um elevado grau de legibilidade e de «higiene de leitura», contribuiu para a disseminação do método, ainda hoje aplicado nos jardins-escola João de Deus. Nestes 134 anos quantos milhares de crianças e de adultos analfabetos dele terão beneficiado? A «Cartilha Maternal» foi, no último quarto do século XIX, um passo mais importante do que hoje o «Magalhães». E muito mais barato.


Um pequeno livrinho que, a seguir à merenda, a minha mãe trazia para a mesa e sílaba a sílaba ia metendo na minha cabeça pequenas poções da magia que me dava acesso a um universo de prodígios. Uma janela abriu-se para mim, uma janela que deitava para um mundo maravilhoso e ao mesmo tempo tenebroso, habitado por magos e duendes, donzelas e megeras, heróis e sinistros vilões… O mundo real, afinal de contas.

Uma magia que uma jovem chamada Judite com a ajuda de um velho poeta chamado João criaram expressamente para um miúdo chamado Carlos. Numa salinha de um quinto andar pombalino, vendo por detrás do rosto de minha mãe o Castelo de São Jorge sobressaindo como um orgulhoso navio de um oceano de telhados vermelhos, a chave que me iria dar acesso ao mundo das maravilhas construía-se dentro do meu pequeno cérebro.

Obrigado Judite. Obrigado João.
publicado por Carlos Loures às 12:00
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Quarta-feira, 18 de Agosto de 2010

O Romantismo social português: 5 – João de Deus

Sílvio Castro


Ao contrário de quanto sucede com Soares de Passos, ninguém, e não só em Portugal, se colocará contra a afirmação de que João de Deus é um dos mais representativos poetas do romantismo social português. Paradoxalmente, em aparência, o subjetivismo lírico presente em tantos poemas do autor de Ramos de flores, lirismo embebido de vida recolhida diretamente do quotidiano e traduzida numa linguagem que retoma o melhor ritmo da tradição lirica nacional, esse lirismo profundamente individualista, mas ao mesmo tempo de ressonâncias universais, não obscura a face partecipante do poeta. Desde a apoteose pública em Lisboa que foram os funerais de João de Deus, falecido no dia 11 de Janeiro de 1896, estando o poeta por completar os seus sessenta e seis anos, Portugal o considera como um doce, mas firme herói civil.

A partir diretamente da linguagem poemática, o lirismo de João de Deus é simples e direto. A simplicidade resulta da consciência do autor de que os sentimentos, ainda os mais pessoais, podem ser transmitido diretamente ao seu leitor sem necessidade de altos recursos retóricos. Mas no fundo o resultado alcançado por essa linguagem se faz igualmente um grandíssimo resultado de uma retórica expressiva. João de Deus produz uma poesia que recorda sempre o ritmo das falas existenciais. A ingenuidade percebida a partir delas não é a tradução de uma simplicidade conceitual do poema, mas a percepção de um ritmo poemático que se faz reconhecer comum a todos. Assim é quando o poeta se debruça sobre o seu direto sentimento amoroso ou quando se faz cantor em procura da tradução do sentido maior do ser individual:


Os olhos sempre que os pus
Fitos nos astros do dia
(Parece que se introduz
Tanta luz na fantasia...)
Sabem o que acontecia?
Fechava os olhos e via
Do mesmo modo essa luz.

Assim foi certa visão
Que tive por meus pecados!
Nunca uma breve impressão
Em meus olhos descuidados
Deu tamanhos resultados...
Que é vê-la de olhos fechados,
Ainda no coração!

(“Sol íntimo”)

Esta mesma simplicidade encontramos na tradução que o poeta dá ao seu sentimento religioso, expresso liricamente em maneira tal a confundir-se com o de todo o mundo; ainda que, em circunstâncias e testemunhos diretamente pessoais do mesmo sentimento, o poeta adote uma ortodoxia católica quase paradoxal. Como acontece no momento da comemoração de Antero de Quental, uma das grandes admirações do poeta, com a publicação de um livro com testemunhos dos amigos. João de Deus se recusa participar na homenagem de um suicídio. Somente os pedidos dos confrades mais íntimos, o leva a contribuir com um belíssimo poema-epitáfio que faz parte do magnífico volume que é o Anthero de Quental – In Memorian.

A grande consciência de linguagem usada por João de Deus nos seus poemas, tanto naqueles da mais profunda subjetividade individual, quanto nos muitos de sentida participação com o mundo e com o “outro”, leva o poeta a uma de suas maiores criações, a Cartilha maternal, de 1876.

A poesia de João de Deus, principalmente naqueles poemas que passam do Flores do Campo (1868), ao Campo de Flores (1893), constituem um amplo e revelador sistema de metalinguagem. Este sistema encontrará na Cartilha maternal sua consequência lógica. Daí a surpreendente modernidade da pedagogia que caracterizou as últimas ações públicas de João de Deus. As crianças portuguesas, por diversas gerações, puderam aprender a língua já renovada por Garrett e muitas vezes compreendê-la e usá-la em diversos planos de linguagem. Possivelmente dela se originam alguns dos fatores que formam a ironia do falar de muitos portugueses. Ironia que o gênio de João de Deus traduzia principalmente nas suas composições satíricas, como em “Último suspiro”:

“Fui a semana passada
Visitar o hospital,
E vi numa enfermaria
O pobre de Portugal;"
................................
publicado por Carlos Loures às 16:30
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